Uma coisa puxa outra, e acabei me lembrando que, já tendo começado o governo companheiro, fiz uma outra rememoração de Roberto Campos, aos três anos de sua morte, desta vez em conversa com Keynes, Hayek e Marx, em torno de um bom copo de whiskey (mas não sei se servem bebidas alcóolicas no céu):
1332. “O que Roberto Campos estaria pensando da política econômica?”, Brasília, 30 setembro 2004, 4 p. Ensaio colocando RC em conversa com Keynes, Hayek e Marx, no limbo, a propósito do terceiro ano de sua morte. Preparada versão reduzida, sob o título de “O que Roberto Campos pensaria da política econômica”, publicada no caderno econômico d’O Estado de São Paulo(Sábado, 9 de outubro de 2004, p. B2). Relação de Publicados nº 471.
O que Roberto Campos estaria pensando da política econômica?
Paulo Roberto de Almeida
Preparada versão reduzida, sob o título
“O que Roberto Campos pensaria da política econômica”,
publicada no caderno econômico d’O Estado de São Paulo
(Sábado, 9 de outubro de 2004, p. B2).
Relação de Publicados nº 471.
No dia 9 de outubro se estará ultrapassando a marca dos três primeiros anos do falecimento, em 2001, do diplomata, economista, administrador público, político e pensador Roberto Campos, que foi também um comentarista cáustico e voluntariamente impiedoso de nossas (ir)realidades quotidianas e bizarrices institucionais. Infelizmente para nós (mas talvez felizmente para os seus adversários “filosóficos”), ele não viveu o suficiente para assistir, a partir de 2002, a uma das mais formidáveis revoluções intelectuais já registradas em toda a história do Brasil: nada mais, nada menos do que a incrível conversão da água em vinho, isto é, a transformação do antigo partido adepto das rupturas econômicas – e propenso a fazer passar as “prioridades sociais” antes do respeito aos contratos da dívida – em um grupo comprometido com a responsabilidade fiscal, com a boa gestão das contas públicas e, surpresa das surpresas, com a aceitação decidida e consentida, não só da renovação do acordo de assistência financeira com o FMI, como também das condicionalidades associadas ao seu “menu” de política econômica (mais parecido a um regime de emagrecimento do que a uma churrascaria rodízio).
O que estaria pensando de tudo isso o iconoclasta, irônico e irreverente Roberto Campos? O que estaria escrevendo a respeito da atual política econômica o mais arguto dos polemistas brasileiros contemporâneos, o homem a quem seus inimigos políticos teimavam em chamar de “Bob Fields”, como se ele fosse menos patriota ou menos comprometido com o interesse nacional do que aqueles que o provocavam com slogans mal concebidos, mas que hesitavam em (ou simplesmente evitavam) enfrentá-lo num debate aberto e responsável sobre esses temas candentes da atualidade econômica?
Onde quer que ele possa estar no presente momento – e eu o imagino no limbo econômico das soluções imperfeitas, como compete a todos os partidários da disciplina da escassez, esses adeptos realistas da “ciência lúgubre”, sentado confortavelmente à esquerda de Hayek e à direita de Keynes –, ele deve estar soltando gostosas gargalhadas, comentando com seus incrédulos parceiros essa verdadeira “reversão de expectativas” a que o Brasil assistiu nos últimos dois anos e meio. Vamos imaginar um possível diálogo entre os três, com algumas rápidas incursões por parte de Marx (também, e mais do que nunca, no limbo) e uma única e breve intervenção do seu discípulo russo, Vladimir Ulianov, em férias de paragens mais quentes.
Roberto Campos, que nasceu no mesmo ano da revolução bolchevique, não teria perdido a oportunidade para, em primeiro lugar, espicaçar este último e provocar o filósofo alemão, cujas doutrinas serviram de inspiração para a mais desastrada tentativa de superar os limites estreitos da escassez econômica em nome de uma suposta gestão socialista das forças produtivas. “O que você está achando da ‘nova política econômica’ Vladimir?”, perguntaria ele, para ouvir o outro resmungar ressabiado: “Os companheiros assumiram numa situação de verdadeira guerra econômica, pois os especuladores de Wall Street e os sabotadores internos queriam a derrocada imediata do novo governo. Eles precisaram, temporariamente, compor com as forças do mercado e com os banqueiros gananciosos, mas ainda guardam munição para combater a exploração capitalista e a opressão burguesa. Espere para ver.”
Sem esperar pelo resto, Roberto Campos dirigiu-se de maneira não menos provocadora ao autor do Capital,: “Você acha mesmo, Karl, que nossos amigos saberão construir a sociedade ideal, na qual cada um contribuirá na medida de suas capacidades e cuja distribuição se fará segundo as necessidades de cada um de seus membros?” “Mas isto não é para agora, seu capitalista utópico”, respondeu o filósofo da mais valia, “e sim para a etapa comunista da revolução brasileira, isto é, para a última e derradeira fase da construção socialista. Por enquanto, até eu recomendaria uma política de transição e uma acomodação com os mercadores do templo, isto é, os donos do capital. De toda forma, ainda estamos no começo: não se esqueça que no Manifestode 1848 eu preconizava primeiro o aprofundamento da globalização capitalista. Estou satisfeito com o que estou vendo: o novo governo caminha a passos rápidos no processo de internacionalização das empresas brasileiras, contribuindo com a missão histórica da rápida universalização do modo capitalista de produção. O socialismo está ao alcance da mão.”
Marx recebeu a surpreendente adesão do liberal Hayek, que também achava que o governo tinha tomado o caminho da servidão, construindo as bases da mesma economia coletivista que um dia tragou sua querida Áustria, sob a forma do dirigismo nazista, assim como a Rússia, sob a economia totalmente estatizada dos bolchevistas. “E o senhor, Herr Campos, não está preocupado ao ver a atual orientação do Brasilianische economik Regierung?”, indagou ele, com o semblante carregado. “De fato, meu caro Friedrich”, comentou Campos, “vários dos membros da nomenklatura tropical padecem de incurável nostalgia em relação aos antigos tempos revolucionários. Mas isso justamente não ocorre com das Finanz Ministerium de Herr Palocci: sua Realeconomik não causaria nenhum tipo de constrangimento ao seu amigo Friedman, de Chicago. Ele até agora se guiou pelo mais retos princípios do Ideal Liberalismus e estou certo de que ouviria com prazer algumas de suas receitas práticas sobre como escapar da servidão, hoje representada por um Estado economicamente opressor da liberdade de empreender, tão bem defendida em sua obra.”
Enquanto Hayek se deleitava ao ouvir essas palavras, Keynes fazia tilintar de impaciência o gelo de seu legítimo scotch, atacando sem mais esperar: “Mas esse doutor em medicina poderia ter evitado o amargo purgante de uma tão inútil quanto cruel recessão, se tivesse seguido uma das receitas da Teoria Geral, que recomendava injeções fiscais anti-cíclicas para poupar os Brazilian workers do desemprego e da perda do poder de compra. Ele precisava ter assegurado a demanda agregada, bem como o nível das despesas públicas, e deveria ter reintroduzido os controles de capitais, evitando a todo custo cair nas mãos daqueles fundamentalistas do FMI”.
“Você está mal informado, Maynard”, retrucou Campos, que tinha intimidade suficiente com o inglês para chamá-lo pelo seu nome do meio. “O Estado brasileiro não consegue sequer assegurar um dedal orçamentário para a recuperação das esburacadas estradas federais, quanto mais essa injeção fiscal que você recomenda para estimular a demanda agregada. O que ele faz, de um lado, é uma oferta desagregada de promessas insustentáveis de crescimento, ao mesmo tempo em que retira, por outro lado, as poucas poupanças da sociedade, pela mão de uma máquina de arrecadação mais ameaçadora do que um dreadnoughtbritânico.” Antes que Keynes formulasse novas recomendações de política econômica a partir das idéias de algum economista morto, Campos completou, com a mais fina ironia britânica: “As conseqüências econômicas de misterPalocci são, em todo caso, menos perigosas do que as recomendações bizarras dos seus discípulos no Brasil, que pretendem dar cabo de algo que nunca existiu em meu país: o liberalismo econômico. Francamente, Maynard, eles estão completamente out of touch! Passe o gelo, por favor, e se puder a sua garrafa também.”
Virando-se novamente para Hayek, Campos aduziu com um sorriso maroto: “Não aconteceu em minha vida, mas eu ainda vou assistir, no Brasil, aqui do alto, à mais incrível revolução capitalista que se poderia esperar de um antigo líder socialista radical.” Tendo Marx justificado que isso talvez representasse alguma necessidade histórica da fase de transição para o capitalismo globalizado – que, afinal de contas, tinha tido sua marcha interrompida por setenta anos de tropeços socialistas –, Campos concluiu, rendendo uma homenagem à prosa barroca do Manifesto: “Eu também acho Karl: os seus amigos ex-socialistas, hoje neocapitalistas, não têm mais nada a perder, senão os grilhões mentais que os prendem às velhas soluções estatizantes de um passado tão mítico quanto, hoje em dia, inexeqüível. Esses grilhões mentais precisam ser rompidos e eles serão rompidos”. E dirigindo-se a ambos: “Vamos brindar com um gole de Schnaps a esta revolução burguesa tropical?”
Paulo Roberto de Almeida é doutor em ciências sociais, mestre em planejamento econômico e professor universitário.
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