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sexta-feira, 19 de abril de 2024

O Brasil e o G20 - Paulo Roberto de Almeida (Revista Brasileira de Comércio Exterior)

 Mais recente artigo publicado: 

4597. “O Brasil e o G20”, Brasília, 8 março 2024, 5 p. Artigo sobre como o Brasil pode impulsionar a sua agenda no G20, para atender a pedido de Mário Cordeiro de Carvalho Jr., Economista-Chefe e Editor-Chefe da RBCEPublicado na Revista Brasileira de Comércio Exterior (ano, 38, n. 158, jan.-fev.-mar. 2024, p. 19-21; Rio de Janeiro: Funcex, Fundação Centro de Comércio Exterior, ISSN: 0102-5074versão flip do artigo: https://www.funcex.org.br/rbce/rbce158/mobile/index.html; link para o pdf isolado:http://www.funcex.org.br/publicacoes/rbce/material/rbce/RBCE158_PauloRobertoAlmeida.pdf); divulgado na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/117735054/4597_O_Brasil_e_o_G20_2024_)Relação de Publicados n. 1556.


Versão original (reduzida na versão publicada, que pode ser consultada nos links acima):


O Brasil e o G20 

 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Artigo sobre como o Brasil pode impulsionar a sua agenda no G20.

Revista Brasileira de Comércio Exterior (ano, 38, n. 158, jan.-fev.-mar. 2024, p. 19-21; Rio de Janeiro: Funcex, Fundação Centro de Comércio Exterior, ISSN: 0102-5074versão flip do artigo: https://www.funcex.org.br/rbce/rbce158/mobile/index.html; link para o pdf isolado:http://www.funcex.org.br/publicacoes/rbce/material/rbce/RBCE158_PauloRobertoAlmeida.pdf). Relação de Originais n. 4597.

  

O Brasil assumiu a presidência temporária do G20 em 1º de dezembro de 2023, e conduzirá os trabalhos do grupo durante todo o ano de 2024, culminando com o encontro dos chefes de Estado e de governo no Rio de Janeiro nos dias 18 e 19 de novembro. Uma primeira etapa, de definição de prioridades, já foi realizada no próprio Rio de Janeiro, em fins de fevereiro, com a presença dos ministros de relações exteriores e representantes de organismos internacionais, durante a qual o Brasil apresentou as suas metas ao grupo. A reunião enfrentou algumas dificuldades, uma vez que se imiscuiu no debate o problema das duas guerras em curso no atual momento: a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, desde 23 de fevereiro de 2022, e a guerra Hamas-Israel, desde 7 de outubro de 2023.

É evidente que o G20, tendo em vista seu foco tradicional nos temas econômico-financeiros, com alguma derivação para a agenda ambiental desde alguns anos, será incapaz, e sequer possui mandato para tal, de encaminhar qualquer solução, mesmo precária, para essas duas tragédias das relações internacionais, que já reforçaram o sentimento de que o mundo consolidou o cenário geopolítico, de uma Segunda Guerra Fria, já em curso desde mais de dez anos, sobretudo no campo econômico e tecnológico, entre as duas maiores economias da atualidade: os Estados Unidos e a China. Não cabe, portanto, concentrar o foco deste artigo nas questões concretamente geopolíticas, de confrontos interimperiais.

Cabe, sim, da perspectiva do Brasil, concentrar a atenção nas prioridades brasileiras estabelecidas para a sua presidência. Oficialmente, elas são as seguintes: (1) a inclusão social e o combate à fome e à pobreza; (2) a promoção do desenvolvimento sustentável em suas dimensões econômica, social e ambiental e transições energéticas; e (3) a reforma das instituições de governança global, incluindo as Nações Unidas e os bancos multilaterais de desenvolvimento. Para as primeiras duas prioridades, o governo brasileiro propôs a constituição de duas Força Tarefas (Task Forces): a primeira para o lançamento de uma Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, a segunda para uma mobilização global contra a Mudança do Clima e a Iniciativa para Bioeconomia. Caberá seguir os trabalhos dessas duas forças tarefas, mas o objetivo aqui é o de discutir as chances de o Brasil conseguir resultados satisfatórios nas três prioridades oficialmente apresentadas como relevantes do ponto de vista da melhoria na agenda multilateral e no presente estado, fragmentado, das relações entre as grandes potências e entre o que se convencionou chamar de Ocidente versus Sul Global. 

No tocante à primeira prioridade brasileira, trata-se de um objetivo permanente do PT no plano interno, mas que também foi objeto de uma iniciativa de Lula desde o início de seu mandato inicial como presidente do Brasil. Desde a campanha presidencial, em 2002, ele agitava, como a grande prioridade de seu governo, acabar com a fome no Brasil, tentando fazer, por meio do programa Fome Zero, com que os brasileiros mais frágeis pudessem se alimentar três vezes ao dia. O método adotado, no entanto, foi o mais equivocado possível: coletar, fisicamente, alimentos entre fornecedores – de preferência da pequena agricultura familiar – para distribuí-los entre os necessitados. Foi também o seu primeiro fracasso, tanto que foi abandonado depois de poucos meses – a despeito de ser coordenado desde a própria Presidência da República – e substituído, em pouco tempo, por uma contrafação do programa Comunidade Solidária, criado e desenvolvido do zero pela primeira-dama, Ruth Cardoso. 

Esse programa foi “entregue” ao governo petista com cerca de 6 milhões de famílias pobres, que passaram a ser assistidas por diversas modalidades de ajuda material, inclusive uma forma precoce de Bolsa Escola (com contrapartidas). O governo Lula, para compensar o evidente fracasso do Fome Zero, realizou uma assemblagem dessas modalidades, carimbou tudo como sua iniciativa, sob o apelativo de Bolsa Família, e passou a expandir, sobretudo numericamente, a população assistida. Ao final do seu mandato, o BF família alcançava mais de dez milhões de famílias, um volume superior a 40 milhões de pessoas – quase um quarto da população total, o equivalente a uma Argentina inteira – dotadas de um cartão magnético que as habilitavam a complementar a renda acima da linha da pobreza, ou simplesmente a consumir uma espécie de cesta básica de manutenção alimentar (na verdade, muitas famílias utilizavam o subsídio para cobrir despesas mensais de compras a “dez vezes sem juros”).

Indiferente a esse fracasso no âmbito interno, Lula insistiu, no plano externo, em criar uma espécie de Fome Zero Universal, já visando, provavelmente, um futuro Prêmio Nobel da Paz (depois perseguido pelas tentativas de fazer a paz entre israelenses e palestinos ou encontrar uma solução ao programa nuclear iraniano). Lembro-me perfeitamente, servindo em 2003 na embaixada em Washington, de seus insistentes pedidos dirigidos a delegação na ONU para obter a constituição de uma iniciativa nessa linha: alimentar os pobres do mundo. O Secretário Geral da ONU, argumentando que já existia uma ampla estrutura com os mesmos objetivos, o Programa Mundial de Alimentos (coordenado pela FAO), convidou Lula a se associar a essa iniciativa, existente desde várias décadas, o que Lula recusou terminantemente, uma vez que pretendia ter o “seu” programa, financiado pela ONU. Lula continuou insistindo junto a outros chefes de Estado – o presidente francês Jacques Chirac, entre outros –, mas, ao final, a única coisa que foi criada tratou da distribuição de medicamentos antiAids dirigido sobretudo à África. 

Não existe ainda consenso entre os membros do G20, e os organismos internacionais associados, sobre a possibilidade de criação e funcionamento efetivo dessa Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, dois flagelos que já são colocados sob os auspícios de diversos programas onusianos e da cooperação bilateral de países doadores, geralmente agrupados no Comitê de Assistência ao Desenvolvimento da OCDE (uma organização internacional reunindo três dúzias de países, mas que não conta com as simpatias de Lula ou do PT). A retórica do apoio a tão nobres objetivos não deverá ser contestada por nenhum dos países membros do G20, mas é improvável que se consiga montar uma nova superestrutura multilateral capaz de iniciar novas metas, quando os mesmos objetivos já estão contemplados em programas similares, ainda que fragmentados em diversos organismos internacionais.

Na segunda frente, a do desenvolvimento sustentável e da transição energética, não deveria haver objeções políticas aos objetivos gerais, ainda que a segunda vertente, a da transição energética, seja bem mais complexa, e improvável de ser canalizada a iniciativas convergentes, do que as questões ambientais, de resto reconhecidamente necessárias e até urgentes, dada a agravação dos extremos climáticos nos últimos anos e o aumento da devastação dos recursos naturais em grandes países do chamado Sul Global. Algum consenso retórico poderá ser registrado em documentos e declarações de boas intenções, de cunho puramente voluntário, como são geralmente as resoluções aprovadas ao cabo dos muitos encontros de cientistas e de diplomatas realizados desde a Rio-92 e a Rio+20. Haverá, aqui, portanto, uma aparência de progressos políticos, mas é improvável que eles reflitam as ações concretas dos países, do G20 e fora dele, no sentido de acelerar suas medidas de mitigação das mudanças climáticas ou que acelerem claramente a transição energética para fora dos combustíveis fosseis (que continuarão alimentando as cadeias produtivas e a energia). 

A terceira grande meta, a reforma das instituições de governança global, sobretudo a ONU e as instituições de Bretton Woods, conhecerá, provavelmente, alguns avanços cosméticos, inclusive porque os próprios Estados Unidos se declararam dispostos a considerar o aumento de membros permanentes no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Mas, como os demais objetivos, e a exemplo de exercícios anteriores nessa direção, mudanças no processo decisório e na própria estrutura dessas instituições enfrentarão naturais resistências daqueles que poderiam perder poder relativo nas instâncias de comando. Isso não impedirá que mais diretorias nas organizações tipicamente onusianas sejam atribuídas a delegados de países em desenvolvimento, embora muitos deles já exerçam inclusive a presidência ou a diretoria-geral de algumas delas, ou que aumentos de cotas, nas organizações de Bretton Woods possam também ocorrer em seu favor (lembrando que a China já foi contemplada com o aumento de seu capital em ambas). 

Curiosamente, o objetivo mais ambicioso acalentado por Lula desde o seu primeiro mandato, ver o Brasil integrar, como membro permanente, uma das cadeiras de um Conselho de Segurança ampliado, encontra surpreendentes obstáculos, vindos de um membro que Lula considera como seu principal aliado na concretização do mirífico projeto de uma “nova ordem global”: a República Popular da China. Desde quando tiveram início tentativas variadas no sentido de se encontrar algum consenso em torno da reforma da Carta da ONU e da ampliação do seu Conselho de Segurança, com a RPC já tendo assumido nele o lugar antes pertencente à República da China (Taiwan) entre 1945 e 1972, se sabe que a China não pretende, de maneira geral, ampliar o número de membros permanentes, mas sobretudo, porque se opõe, em particular, ao ingresso do Japão e da Índia, com os quais ela possui notórias antipatias, diferenças históricas e conflitos diplomático-militares.

O mais provável, portanto, é que se aprovem algumas melhorias cosméticas na presença e participação de alguns grandes países em desenvolvimento nos organismos onusianos e que se conceda algum aumento de capital, e algumas novas ou antigas diretorias nas “irmãs” de Bretton Woods e na OMC (que, aliás, não se baseia em cotas de capital, e que por isso mesmo acaba sendo paralisada pela inércia dos seus grandes membros). Não creio que os diplomatas, experientes em todas essas barganhas negociadoras nos organismos internacionais, se decepcionem, como provavelmente ocorrerá com Lula e assessores do PT, com a magreza de resultados efetivos ao cabo da reunião de cúpula do G20 em novembro. A marcha das reformas nos grandes “dinossauros” da ONU – De Gaulle a chamava de grand machin, a grande geringonça – sempre foi lenta e não será diferente num G20 agora (e diferente de quando surgiu nesse formato de cúpula em 2009) dividido entre os “ocidentais” e os supostos proponentes da “nova ordem global”, entre os quais se alinham, ingenuamente, Lula, os ideólogos do PT e acadêmicos sonhadores. 

O mundo pós-invasão da Ucrânia encontra-se irremediavelmente fragmentado, e as propostas do Brasil de Lula se veriam comprometidas por essa divisão mesmo se ele, numa hipótese otimista, fizesse parte dos mais entusiastas defensores do “Ocidente” (o que está longe de ser o caso). Que não se espere, portanto, resultados entusiasmantes, capazes de integrar um discurso sorridente de Lula no dia 19 de novembro no Rio de Janeiro. Os diplomatas profissionais farão os maiores esforços para, literalmente, extrair “leite de pedra”, num ambiente internacional que continuará a se deteriorar, com o cruel prolongamento da guerra na Ucrânia, de outros conflitos no Oriente Médio, e de uma virtual estagnação da integração regional, em face dos quais Lula tentará manter sua linguagem otimista, como pretenso líder de um diáfano Sul Global. 

Em todo caso, caberia efetuar nova avaliação, no momento devido, das realizações do G20 sob a presidência brasileira, uma vez que os resultados concretos, ali apresentados, sejam confrontados aos presentes argumentos dotados de certo ceticismo sadio. O que se pode, no entanto, prever, é que o mundo – enquanto Putin permanecer no comando da Rússia, e enquanto os generais do Pentágono continuarem paranoicos, como é seu dever e obrigação – enfrentará, no futuro previsível, nova corrida armamentista e pesados investimentos, tanto custosos quanto inúteis, em novas armas fantásticas, que provavelmente nunca serão usadas até uma hipotética mudança nos fios condutores das principais potências nucleares. Queremos crer que o estadismo responsável prevalecerá sobre as trombetas do Apocalipse, que, infelizmente, voltaram a se manifestar ruidosamente, desde a conclusão da primeira Guerra Fria, exitosamente dada por concluída por Gorbatchov e Bush pai. Eles não parecem ter encontrado sucessores à altura na atual geração de dirigentes pressionados por partidos extremistas, por ecologistas radicais, pelas baixas taxas de crescimento, pelo desemprego setorial e pelo afluxo maciço de imigrantes exóticos e miseráveis. O século XXI já não é o que se pensava emergir, nos anos triunfantes da unipolaridade imperial.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4597, 8 março 2024, 5 p.

Aceito para publicação em 13/03/2024, com poucas mudanças tópicas.


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