Ainda Estou Aqui, Marcelo Rubens Paiva
Eu já tinha partido, Paulo Roberto de Almeida
Acabo de assistir ao filme de Walter Salles, e ele representou algo especial para mim. Um pequeno mergulho nos horrores dos anos de chumbo da ditadura militar, quando muitos, centenas de oficiais das Forças Armadas se degradaram na repressão aos opositores do regime, o que eu era, desde a precoce politização de meados dos anos 1960 e um impulso a combatê-lo pela via de uma revolução de esquerda.
O deputado Rubens Paiva foi detido para interrogatório em janeiro de 1971, supostamente por poder estar envolvido no sequestro do embaixador suíço, no mês de dezembro anterior (mais tarde trocado por 70 prisioneiros políticos). O regime hesitou ao início, mas logo depois acelerou sua metodologia repressiva.
Quando o embaixador suíço foi sequestrado eu já não me encontrava mais no Brasil: havia decidido partir do Brasil, para evitar a sorte de alguns outros companheiros, e estava navegando no Atlântico, em direção à Europa. Só soube do sequestro em alto mar, informado por um telex de notícias recebido no meio do oceano. Naquele momento, senti que eu havia saído a tempo do Brasil, caso contrário eu também poderia ter sido preso, eventualmente sido torturado, havendo ainda a possibilidade de "desaparecer", como alguns dos quais se soube tarde demais.
Curiosamente, Rubens Paiva foi detido e interrogado – acredito que sua morte foi um "acidente de trabalho", pois ele não tinha envolvimento com a luta armada – pelo fato de ter sido intermediário de cartas vindas do Chile, de brasileiros exilados por lá, eventualmente ex-guerrilheiros no Brasil, enviadas a familiares no Brasil. Eu tinha ido ao Chile no ano anterior, também passando por Uruguai e Argentina, e feito contatos com companheiros de esquerda nos três países, tratando sobretudo de rotas de escape para aqueles que já se encontravam na clandestinidade.
Eu estava na resistência à ditadura militar desde alguns anos antes, mas ainda não era, digamos, um quadro da resistência armada; era apenas do apoio logístico, conseguindo documentos para aqueles que precisavam mudar de identidade. Entre 1969 e 1970, senti que a repressão seguia aumentando – batidas nos transportes em vias públicas, por exemplo, como mostrado ao início do filme Ainda Estou Aqui – e vários companheiros "caindo" nas teias da repressão. Servia então ao Exército, como conscrito, e o "meu" quartel invadia a "minha" universidade, no caso a Cidade Universitária da USP, onde eu fazia Ciências Sociais. Um colega de classe, o frei dominicano Tito, que com outros fazia ponte com o movimento armado de Carlos Marighella, foi preso, e desapareceu nas catacumbas do regime, aliás defendidas, mais tarde, pelo ex-presidente que ousava elogiar torturadores e dizer que a ditadura havia "matado até de menos".
Decidi então sair do Brasil, o que não foi o caso de Rubens Paiva, que continuou a fazer seu trabalho puramente humanitário de ajudar os perseguidos, quando poderia ter escolhido um novo exílio, como ocorreu com um dos outros personagens, amigos na mesma arriscada aventura.
Soube de sua prisão, alguns meses depois, ainda no primeiro semestre de 1971, ao me reincorporar ao trabalho de resistência à ditadura militar, já na Bélgica, retomando o meu curso de Ciências Sociais na Universidade Livre de Bruxelas. Passei a colaborar com o Front Brésilien d'Information, que divulgava, justamente, notícias sobre a repressão no Brasil e tentava mobilizar a opinião pública europeia contra o regime. Uma das iniciativas foi tentar fazer um Tribunal Russell – que havia sido feito por iniciativa direta do filósofo inglês contra a guerra dos Estados Unidos no Vietnã – sobre a ditadura brasileira; ele foi organizado, mas no meio do caminho uma ditadura aidna mais cruel tomou a frente do tribunal, a de Pinochet, no Chile.
Acompanhei todo o manancial de informação sobre a ditadura miitar durante mais de seis anos, até o início de 1977, quando decidi voltar ao Brasil. Vários desaparecidos nunca mais foram encontrados, entre eles Rubens Paiva. Frei Tito, o "colega" de Ciências Sociais na USP, se suicidou na França, em meados da década, consequência provável das torturas bárbaras que sofreu na perseguição a Marighella.
O filme é extremamente realista – na descrição visual dos locais de tortura, por exemplo – e dramaticamente sensível, e aqui cabe louvar o desempenho excepcional das crianças atores, as filhas de Rubens Paiva. Impossível não se emocionar com a angústia de Eunice Paiva e das filhas do "desaparecido", covardemente assassinado, sem qualquer benefício para o regime, por pura sanha dos torturadores desprovidos de qualquer sentimento humano.
Por isso, é abjetamente insuportável contemplar um militar medíocre como o que nos desgovernou por quatro anos - e ainda tentar se tornar ditador – dizer que está homenageando um dos piores torturadores do regime militar. Mais triste ainda constatar que tantos profissionais diplomados, supostamente liberais, ainda apoiam essas figuras execráveis, as mesmas, ou similares, que produziram tantas "Eunices" Paiva e "Zuzus" Angel.
Um dia relatarei minha pequena participação no trabalho de resistência à ditadura militar, que pelo visto nos últimos tempos, ainda não cabe considerar terminado.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 25 de novembro de 2024
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