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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Meus livros podem ser vistos nas páginas da Amazon. Outras opiniões rápidas podem ser encontradas no Facebook ou no Threads. Grande parte de meus ensaios e artigos, inclusive livros inteiros, estão disponíveis em Academia.edu: https://unb.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida

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terça-feira, 22 de julho de 2025

As metamorfoses de Reinaldo Azevedo (2022) - Julian Rodrigues (A Terra é Redonda)

 Apenas para registro histórico, tantos personagens, tantos movimentos, tantos partidos, tantos partidecos, e evolução sempre surpreendente, em certos casos. PRA.


 As metamorfoses de Reinaldo Azevedo

 

Por JULIAN RODRIGUES*

Blog A Terra é Redonda

 

Da libelu ao neoliberalismo, do antipetismo ao antibolsonarismo: a peculiar trajetória do Tio Rei

Por honestidade intelectual sinto-me compelido a abrir esse texto com uma confissão. Assistir ao O é da Coisa, de Reinaldo Azevedo, transmitido pela Rádio Bandeirantes é para mim puro guilty pleasure. Trata-se provavelmente do melhor programa jornalístico do PIG (Partido da Imprensa Golpista – Paulo Henrique Amorim, presente!).

Reinaldo Azevedo é um quadro político preparado, formado dentro da tradição marxista e trotskista. Foi militante da quase lendária Libelu (Liberdade e Luta), tendência estudantil com epicentro na USP, criada em meados dos anos 1970, seção brasileira da Organização Socialista Internacionalista (OSI), atualmente na corrente petista “O Trabalho”.

Trata-se de uma tendência socialista e petista ligada à IV Internacional (aquela liderada pelo francês Pierre Lambert). Sabe-se que existiram e existem diferentes grupos mundo afora alinhados às distintas correntes do movimento trotskista. Em geral pouco expressivas a maior parte dessas organizações autoproclamaram-se nas últimas décadas como sendo as legítimas herdeiras e continuadoras da Quarta Internacional – aquela fundada por Leon Trotsky em 1938.

Leninistas, centralizados, organizados e geralmente pequeninos, os mais diferentes grupos trotskistas têm em comum o enorme esforço dedicado à formação política de seus quadros. Uma tendência histórica a continuo fracionamento, orgulhoso sectarismo mais a fragilidade orgânica da maioria dos grupos trotskistas em todo e qualquer tempo e lugar viraram lenda e senso comum. Tem inspirado décadas a fio toda uma tradição de piadas no campo da esquerda, uma mais outras menos razoáveis, digamos assim.

Resumidamente, no Brasil, as principais correntes trotskistas são as dos: morenistas(a ex-Convergência Socialista, hoje PSTU,) e o MES de Luciana Genro, a CST de Babá, e outras menores; lambertistas (O Trabalho é a mais relevante); mandelistasdo SU – Secretariado Unificado (origem da tendência Democracia Socialista do PT) e muitos microgrupos mais, digamos, exóticos – como os posadistas (seguidores do argentino Juan Posadas, conhecidos por postular a existência de extraterrestres). (Reparem que fiz questão de ignorar aquela oportunista e esdrúxula liberal-trosca seita armamentista, particular propriedade do senhor RCP. Prudência e tino político aconselham-me a não escrever o que realmente penso sobre o PCO. Melhor manter a elegância, não xingar ninguém, não ajudá-los a ganhar clicks e, ademais, evitar contendas judiciais.)

 

Liberdade e luta

Chama a atenção quanta gente hoje importante passou pela Libelu (Liberdade e Luta). A caminhada dessa corrente foi registrada no imperdível documentário dirigido por Diógenes Muniz: Libelu – abaixo a ditadura”, de 2020.

Talvez seja possível agrupar os ex-Libelu em três grupos: (i) os que continuaram na tendência; (ii) os que foram para o campo majoritário do PT ou permaneceram na esquerda moderada, alguns como militantes partidários outros não; (iii) os que se transmutaram em liberais e/ou conservadores de diversas cepas. Seriam aproximações toscas, of course. Toda taxonomia é falha e arbitrária a priori. Quase nunca é possível ou eficaz operar com categorias rígidas, estanques – sobretudo se estamos a lidar com tantos e tão heterogêneas personalidades.

Mas, vamos lá. Na primeira turma – a dos que continuam do lado certo da história, ademais no mesmíssimo lugar – temos  Markus Sokol, Misa Boito e Júlio Turra (atual e tradicional trio dirigente da tendência petista O Trabalho).

É preciso mencionar o deslocamento de parte importante dos quadros de OT (O Trabalho) em direção ao campo majoritário e mais moderado do PT em meados dos anos 1980. Tornou-se lendária tal movimentação – maldosamente apelidada de “Sonrisal” – rotulada como uma dissolução. Isso porque ao invés de os quadros lambertistas executarem a conhecida tática do “entrismo” – tentando influenciar os rumos da corrente majoritária do PT – ao contrário, terminaram muitos deles se incorporando à Articulação.

O plano era alojarem-se em postos-chave no interior da corrente mais influente do PT para tentar empurrar à esquerda suas formulações. Na política também atuam as leis da física e da biologia. Tais militantes acabaram por mudar de rota e optaram por aderir organicamente à corrente majoritária e “moderada” a mesma de Lula, dos cristãos da teologia da libertação, dos sindicalistas.

Fizeram assim Antonio Pallocci, Brani Kontic, Clara Ant, Ricardo Berzoini, Zé Américo, Jorge Branco, Antonio Donato, o saudoso Luis Gushiken – citando apenas alguns.

Em um segundo grupo podemos agrupar figuras públicas que continuam no campo progressista, embora não sejam mais militantes do PT. Curiosamente as e os mais destacados são jornalistas – todas/os com passagens pela redação do diário da Barão de Limeira como Laura Capriglione, Paulo Moreira Leite, Josimar Melo, Caio Tulio Costa e Ricardo Melo.

A ala que virou a chavinha inteiramente – bandeando-se para o liberalismo e/ou até para o reacionarismo – inclui nomes como Demétrio Magnoli, Matinas Suzuki, Mario Sergio Conti – todos jornalistas que também coincidentemente trabalham ou trabalharam na Folha de São Paulo.

Abster-me-ei de dedicar qualquer espaço para o talvez mais conhecido ex-militante de OT: Antonio Palocci – trânsfuga vulgar um verme. Canalha, vaidoso e corrupto trata-se de desprezível cachorro (delator). As elites as quais tanto obedeceu divertem-se zombando do ex-poderoso ministro da fazenda – agora usuário de tornozeleira eletrônica. Corrupto rastaquera, um traíra bajulado anos a fio pela grande mídia.

O sujeitinho de língua presa serviu tanto ao andar de cima e foi tão mimado por eles, que se achou inimputável (Vanity is my favorite sin ensina o Capiroto, interpretado por Al Pacino, no clássico The Devil´s Advocate). Quando acreditou já ter virado gente diferenciada seu Palocci pôs-se a roubar com espetacular sofreguidão. Anos a fio havia cultivado a imagem de pessoa sofisticada, inteligente, ponderada – cristal que desabou em um estrondo. Pallocci roubou e roubou, rápida e desbragadamente – sem nenhuma elegância nem método – pior até que um principiante tosco qualquer.

O ex-ministro não se via como o que de fato era: um “wannabe”. Depois terminou nos revelando sua verdadeira vocação, a de batedor de carteira – e ainda mais bobalhão que qualquer malandro de rua.

 

Primórdios

Inicialmente crítica ao movimento pró-PT, a então OSI brasileira – futuro O Trabalho, logo-logo incorpora-se ao esforço de construção daquele novo Partido plural, socialista, independente e classista.

O então estudante de jornalismo Reinaldo Azevedo foi trotskista. Militou no final dos anos 1970 em O Trabalho. Deve vir daí parte de sua consistente formação política – fundamentada naquela época em um marxismo-trosco-lambertista-pró-PT.

Não sei exatamente precisar em quais momentos Reinaldo Azevedo fez suas grandes transições político-ideológicas. Do socialismo revolucionário ao neoliberalismo tucano, passando pelo direitismo mais estridente até chegar ao exuberante progressismo liberal de hoje.

O fato é que durante muito tempo Reinaldo Azevedo foi um dos mais virulentos propagadores do antipetismo na grande mídia. Dotado de indiscutível talento oratório e texto primoroso, Reinaldo Azevedo esteve na linha de frente. Fazia agitação e propaganda – intelectual orgânico da direita, combativo. Incansável na conservadora oposição militante aos governos do PT.

Historicamente próximo ao PSDB, Reinaldo Azevedo esteve à frente da revista Primeira Leitura – publicação impulsionada e financiada pelo tucanato paulista, que circulou na metade inicial da década de 2000. O jornalista foi colunista da fascistóide revista Veja por 12 anos – o período mais tenebroso de sua trajetória pública.

Notabilizou-se como criador do neologismo “petralhas”carimbo que mostrou-se grudento, termo virulento ao qual conservadores de todo tipo recorrem a todo momento para rotular não apenas os governos Lula/Dilma mas também o conjunto da militância petista. Em 2008, o ex-trotskista publicou um livro (coletânea de artigos) com um doce título: O país dos petralhas – a obra fez sucesso e deu cria.

O segundo volume foi regurgitado em 2012. Tudo com ampla divulgação e apoio da revista Veja, onde Reinaldo Azevedo hospedava sua coluna semanal além de toda grande mídia. No ano de 2017 Reinaldo Azevedo saiu (ou foi saído da Veja). Babado, confusão e gritaria.

A incompatibilidade entre ele e a publicação hebdomadária dos Civita deu-se aparentemente em virtude das críticas que vinha começando a tecer e torpedeavam a queridinha-mor da mídia – a operação Lava Jato. O estopim dessa surpreendente ruptura se relaciona com o episódio no qual Sérgio Moro vazou a transcrição de uma conversa comezinha entre Reinaldo Azevedo e Andrea Neves (irmã de Aécio). Moro arrumou nesse episódio um inimigo de peso.

No derradeiro artigo que publicou naquela revistinha fascistóide Reinaldo Azevedo classificou como intimidatória a divulgação enviesada daquele trivial diálogo entre ele (jornalista) e Andrea (fonte). Comum o papo era mesmo, mas saber que o mesmo aconteceu foi didático, cá entre nós (diga-me com quem andas – ou conversas – e direis quem tu és).

Surpreendente e contundentemente Reinaldo Azevedo posicionou-se como um dos pioneiros críticos daquela supostamente maravilhosa operação justiceira, então patrocinada por toda mídia. Sabemos hoje que foi uma estratégia golpista e anti-esquerda, concebida e implementada desde as profundezas do deep state norte-americano. É o petróleo, estúpido!

A tal operação supostamente épica era protagonizada por dois vaidosos provincianos paranaenses, mal treinados nos EUA. Não sabiam falar ou escrever direito nem em português, muito menos em inglês – uma duplinha de limítrofes capachos das elites e protofascistas. Rapidamente a roda da história girou. É um prazer quase orgástico assistir dia a dia à fulminante, trágica e espetacular derrocada da dupla Moro-Dallagnol. Luis Inácio falou, Luis Inácio avisou.

Lúcido, alertou-nos Reinaldo Azevedo lá nos primórdios da operação ela que poderia ser o início de um “estado policial”. Importante lembrar: alguns setores da esquerda flertaram e até chegaram a elogiar a Lava-Jato no início – ranço udenista de uns e ilusões “republicanas” de outros. Ah, o Estado burguês…

Foi no mês de fevereiro de 2019 – quando atuava como comentarista político da Rede TV – que Reinaldo deu então um bas-fond antológico. Resolveu pedir as contas e se desligar da emissora televisiva em grande estilo. Estrelou um piti memorável – ao vivo e em cadeia nacional. Inesperada e rudemente arrancou seus microfones pondo-se de pé. Muitos alegam que foi além e fez um gesto similar ao de “coçar o saco”.

Na sequência, desdenhou solenemente a simpática despedida ensaiada pelo reacionário Boris Casoy – que era o âncora do telejornal. Daí foi-se embora brusca e teatralmente, espumando de raiva, performando a ira mais santa e vingativa.

 

Outro giro

Não sei precisar exatamente quando ocorreu (em 2019 talvez). O fato é que Reinaldo Azevedo se reposicionou again. Com a mesma ênfase e competência de sempre. Passou a propagar posições progressistas. Ao ponto de vir a constituir-se, nos meios midiáticos, em um dos mais ácidos críticos tanto do bolsonarismo quanto do lavajatismo.

Quase um cavaleiro solitário cavalgando na contramão pelos campos nem tão verdejantes da grande mídia (Reinaldo Azevedo trabalha na Band FM e na Folha-UOL). Reivindica garbosamente (dia sim e outro também) sua filiação ideológica ao que seria um tipo ideal de liberalismo “clássico”. Ademais, orgulhosamente ostenta ao fundo de seu cenário um porta-retrato com a imagem icônica da filósofa liberal-cult a queridinha dos EUA, Hanna Arendt.

Todavia, entretanto, porém, contudo, na prática o apresentador tem se apresentado de forma crescentemente crítica ao campo conservador – e até simpático ao PT. Chegou recentemente a entrevistar Lula não só corretamente (o que já seria invulgar), mas também com empatia.

A mim me parece que Tio Rei está a vibrar em uma frequência de reconciliação com as ideias daquele do jovem socialista que um dia foi. Mesmo quando faz juras ao liberalismo objetivamente cada vez mais sustenta posições social-democratas – que lembram um Welfare State com cara brasileira. Reparem que formalmente segue repudiando ideias progressistas e socialistas.

Parece que sonha nosso jornalista com um governo liderado por aquele velho PSDB de centro-esquerda – que seria naturalmente o porta-voz do bom senso e do reformismo pragmático. Teríamos um blending perfeito. Mistura ideal – e nas proporções certas – de um social-liberalismo com muita social-democracia.

Esse PSDB imaginário nos salvaria. Seria o portador de um projeto quase perfeito – mesmo sendo essencialmente paulista, elitista, modernizante, levemente reformista, mal-humorado, blasé, supostamente ilustrado e muito arrogante. Algo meio Covas, meio FHC, representação da elite cosmopolita à frente de um país católico, mas que deve se manter secular. Um governo de gente pacata, moderadamente conservadora, vaidosa e com dicção perfeita. Por onde anda esse PSDB, afinal?

O PSDB com o qual Reinaldo Azevedo sonha transformaria o Brasil em uma nação desavergonhadamente moderna, empreendedora e globalizada, mas sem cair em exageros ultraliberais como os de um João Doria. Em sua utopia tucano-liberal-progressista o país teria a cara da Fiesp e do agronegócio (que é pop). Mas com o charme da USP.

Esse projeto tucano-raiz que empolga Reinaldo Azevedo projeta um Brasil contemporâneo distante tanto de esquerdismos como de extremismos neofascistas. Tal país que deve conservar suas liberdades democráticas – com políticas públicas compensatórias e total pluralismo. Mas, sem vacilar nada de dar margem à ascensão das classes populares. Muito menos para que se façam reformas estruturais.

Seríamos então o país do presente, a terra prometida, paraíso neoliberal fingindo e se achando socialdemocrata. Vistos de longe pareceríamos civilizados, embora de fato continuaríamos profundamente oligárquicos. Para sempre haveríamos de ter governos medíocres, contudo racionais. Conservadores e (ou) liberais – entretanto sempre compassivos.

Esse Brasil simpático, no entanto, só vale até o momento no qual a esquerda não chega ao governo. Nessa hora imediatamente se rasgam todas máscaras. As classes dominantes impulsionam logo alguma modalidade de golpe: rápida, eficaz e despudoradamente.

Dono de oratória afiada, consistente repertório cultural e conhecedor da boa literatura Reinaldo Azevedo tem cumprido um papel importante. É até inusitado que continue dispondo de 60 minutos diários para opinar livremente em plena Band News, além de manter sua coluna na Folha de Sâo Paulo.

Reinaldo Azevedo, ex-professor de literatura, um jornalista experiente maneja com talento a “última flor do Lácio”. Esbanjando referências faz questão de exibir vaidosa e arrogantemente seu vasto repertório cultural – embora pareça tentar não se apartar totalmente de seu público-alvo (setores centristas liberais bem informados das classes médias urbanas paulistanas e paulistas).

O colunista da Folha de São Paulo não abre mão de executar um ritual – faz todos saludos à la bandera. Ou seja, deixa nítido que continua um liberal de carteirinha: segue confiável para seus atuais patrões, para o conjunto dos barões da mídia e amigo dos donos do capital. Quando em vez, ao reiterar sua posição ideológica, parece estar o âncora apenas a repetir um protocolo – que visa manter seu emprego e/ou conservar sua audiência entre ouvintes e leitores senso comum.

Cada vez são mais frequentes críticas muito ácidas que o apresentador expressa – tanto à política econômica capitaneada por Paulo Guedes como a um conjunto de clichês ideológicos disseminados diariamente pelo partido da imprensa golpista (o famoso PIG – termo criado pelo saudoso Paulo Henrique Amorim).

Recentemente Reinaldo Azevedo tem falado de política internacional. Suas análises sobre o conflito entre Rússia e Ucrânia são semelhantes às da esquerda. Meu amigo Breno Altman, editor do site Opera Mundi, quadro petista formado na velha e boa tradição comunista, entrevistou Reinaldo Azevedo no início do mês de junho. O clima era de camaradagem. Bem à vontade, o colunista da Folha bateu sem piedade nos liberais brasileiros.

Entre muitas outras frases de efeito (o estilo é o homem) Reinaldo Azevedo afirmou diretamente a necessidade de cuidarmos das contas públicas. Mas, aí vem o que importa, sem uma rigidez que impeça o crescimento econômico.

Um dos maiores algozes do PT, o âncora da Band News reconheceu naquela entrevista que os governos do Partido implementaram uma política de inclusão “coisa que nossos liberais não teriam feito”. Além disso, enfaticamente postulou a constituição de uma frente ampla antifascista. Esculhambando os neoliberais brazucas, que não falariam com os pobres, provocou: “talvez o liberalismo seja de fato coisa de país rico”.

Qual é o perfil da maioria dos atuais ouvintes/leitores de Reinaldo Azevedo hoje? Eu queria muito saber. Intuo que atualmente ele tem muito mais audiência no meios progressistas do que entre supostos liberais e/ou democratas não bolsonaristas.

A trajetória de Reinaldo Azevedo é peculiar. Ter sido militante socialista na juventude, se formar na tradição marxista mudar de lado e aderir ao neoliberalismo – e/ou ao direitismo repugnante – não é algo raro, pelo contrário. Bem menos usual é deparamo-nos com alguém que começa na esquerda resolve atravessar o rubicão, alcança a margem oposta, mas anos depois engata (ao menos parcialmente) marcha a ré. E fica menos distante do lugar de onde partiu.

 

Distopia neoliberal-fascista

Nesses dias tão estranhos a poeira nem mais “fica se escondendo pelos cantos” (saudades do Renato Russo). O Brasil de Bolsonaro é pesadelo bruto. Distopia. Tudo de ruim elevado à enésima potência. Sociedade hiper-capitalista e pós-moderna, ao mesmo tempo arcaica. Um terço do povo está sob hegemonia e direção política da extrema direita.

Brasil desde sempre radicalmente desigual – e agora com fascistas armados até os dentes. Sob explícita tutela militar. Estrutural e conjunturalmente somos um país misógino, violento, racista, homofóbico. Em nossas metrópoles vegeta multidão de miseráveis a perambular – maltrapilhos e famintos – como zumbis de alguma série da Netflix. Enquanto isso um punhadinho de homens brancos (cidadãos do bem) – milionários toscos – refestelam-se entocados nos seus luxuosos condomínios-bunker. Protegidos e escoltados por milícias particulares – tal casta de rentistas flana mundo afora a praguejar contra nossos impostos supostamente abusivos, contra a corrupção dos políticos e a burocracia do Estado.

Mas, de fato, o esporte preferido dessa burguesia fascistóide que se acha liberal é resmungar contra a indolência da classe trabalhadora brasileira – esse bando de desqualificados: uma gente preta e parda, pobre e inculta. Fazem isso sem descuidar em nenhum momento das ações para garantir a hegemonia cultural e política dos dogmas pró-mercado. Ultimamente também do milico fascista que elegeram em 2018. Mas não tem conversa. Já decidiram que tudo farão para reeleger Jair Bolsonaro mesmo tendo um pouco de nojinho – ou não.

Não tem sido fácil enfrentar tanta desgraceira, tanta irracionalidade – essa baita regressão civilizatória que veio junto com o autoritarismo neofascista. Quedamo-nos imersos, dispersos – muitas vezes sem forças ou condições objetivas para coletiva e organizadamente remar contra esse tsunami de fétidos dejetos. Quase esmagados pela preponderância de uma ditadura da burrice – orgulhosa, arrogante, agressiva e parecendo invencível.

Mas tentamos seguir de espinha ereta e cabeça erguida. Dia após dia. Apanhando, recuando e também meio que avançando quando dá. Reagrupando, refletindo, reinventando. Lutando nas ruas e chamando o voto em Lula, única forma de começarmos a virar essa página horrível.

Daí também deriva a enorme relevância de toda e qualquer voz que venha a se perfilar ao lado das forças antifascistas. Mais gente contra Jair Bolsonaro. Ainda que marchando separados podemos – devemos – seguir golpeando juntos.

Vai, Tio Rei! Segue sendo um tanto gauche na vida. Se nosso existir está repleto nas palavras de Drummond: “ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera”, a voz de Reinaldo Azevedo: “é feia, mas é uma flor – furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”.


*Julian Rodriguesjornalista e professor, é ativista do movimento LGBTI e de Direitos Humanos. É doutorando no Programa de América Latina da USP.

domingo, 11 de maio de 2025

Notas sobre o mercado editorial brasileiro SERGIO COHN (A Terra é Redonda)

 Notas sobre o mercado editorial brasileiro

Por SERGIO COHN*


Do Plano Nacional das Artes ao abismo editorial: como a descontinuidade das políticas culturais e a falta de ousadia do atual governo perpetuam a crise do livro no Brasil

1.

Em 2015, no segundo governo de Dilma Rousseff, fui chamado para ser o coordenador de Literatura no Plano Nacional das Artes. A proposta do plano era fortalecer as linguagens artísticas, que tiveram pouco espaço nos primeiros mandatos de Gilberto Gil e Juca Ferreira na Cultura, entre 2003 e 2010, já que neles se pensava um sentido antropológico da cultura. Uma visão herdada de Lina Bo Bardi e da avant-garde da Bahia dos anos 1960, que buscava criar políticas culturais não apenas para as linguagens artísticas, mas para as diversas formas de manifestações culturais.

O que desencadeou no projeto dos Pontos de Cultura e em outras propostas inovadoras. Mas que, naquele momento, o novamente empossado ministro baiano percebia que tinha deixado desguarnecidas as políticas para as linguagens artísticas. O que se buscava, assim, com o Plano Nacional das Artes, era um equilíbrio.

Para se chegar a esse equilíbrio entre uma visão ampla da cultura e as necessidades específicas de cada linguagem artística, havia também uma promissora proposta de divisão das instituições dentro do Ministério da Cultura: o Ministério em si, com as suas diversas secretarias – Economia Criativa, Políticas Culturais, etc – mantinha a função de pensar a estrutura cultural do país; e uma fortalecida Funarte, a Fundação Nacional das Artes, receberia a função de pensar políticas específicas para as linguagens artísticas.

O escritor carioca Francisco Bosco foi convidado para ser presidente desta renovada Funarte e me chamou para trabalhar no Plano Nacional das Artes, considerada então uma iniciativa estratégica para a reformulação institucional proposta pelo ministro. Durante pouco mais de um ano, até o golpe que tiraria Dilma Rousseff da presidência, um grupo formado por artistas e pesquisadores de diversas áreas – artes visuais, teatro, dança, circo, literatura, música – se reuniu para pensar propostas específicas para suas linguagens e também propostas comuns. O trabalho foi interrompido pela crise política, mas mesmo assim conseguimos entregar documentos interessantes para o Ministério, com projetos concretos para as diversas linguagens.

Mas, desde o golpe, tudo desabou. As políticas para a cultura rarearam, o Ministério da Cultura foi sendo esvaziado até finalmente ser extinto, o Brasil entrou num período de trevas políticas e sociais. Sobreviver como artista ou agente cultural se tornou – e continua sendo – um desafio muito maior do que sempre foi no Brasil. A precariedade virou miséria.

2.

Quando, em 2023, Lula voltou para a presidência e anunciou a volta do Ministério da Cultura, com orçamento recorde e atenção central no governo, se criou uma esperança que não se concretizou. Vi amigos afundarem em depressão, já que antes todos nós tínhamos ao menos um inimigo em comum, o fascismo que estava no poder, mas agora eram nossos aliados que nos deixavam desguarnecidos com promessas que não estavam sendo cumpridas. E como criticar publicamente um governo de reconstrução, com o perigo sempre iminente da volta do fascismo ao poder?

Calar, ao mesmo tempo, não é solução: se não disputamos espaços e recursos, seremos sempre marginalizados e esquecidos. Aos poucos, comecei a ver mesmo os mais governistas dos meus amigos resmungarem contra a falta de atenção para a cultura, contra a inoperância do atual Ministério da Cultura, contra o silêncio covarde e cúmplice dos artistas.

Já tinha visto essa mesma movimentação antes, durante o primeiro governo Dilma Rousseff e sua gestão na Cultura, que desconstruiu as grandes conquistas políticas na área do governo Lula. Comecei a ficar duplamente preocupado: importante para o Lula 3.0 perceber que é preciso ter atenção para a sua base, porque, base, porque, parafraseando o dito de Leonel Brizola sobre os intelectuais, “artista não dá voto, mas tira”. E ninguém aguenta ser humilhado para sempre. E ninguém aguenta ser humilhado para sempre.

Quando o Ministério foi recriado, tive a ingênua esperança de que nós, os coordenadores do Plano Nacional das Artes, seríamos chamados para conversar e apresentar nossas pesquisas e propostas. Não somente por respeito a nosso trabalho, mas para a sociedade brasileira como um todo, já que tínhamos trabalhado recebendo dinheiro público e queríamos fazer uma devolutiva à altura para o país. Mas nada. E agora, com cerca de 30 meses de governo, começamos a ver o preço da inoperância nessa reconstrução das políticas de cultura. Para discutir isso, vou me ater à literatura, que é a minha principal área de atuação. Mas poderia expandir essa fragilidade de propostas para todas as outras linguagens artísticas.

Pois bem, atualmente se reacende o debate em torno do mercado editorial brasileiro. De um lado, uma carta aberta de diversos editores afirma de forma contundente: as editoras do país estão sobrevivendo por um fio. De outro, escritores reclamam da forma como estão sendo tratados, especialmente por editoras pequenas e independentes. Mas as soluções propostas são inócuas: os editores pedem mais celeridade, recursos e transparência para as vendas governamentais, especialmente o PNLD, que se tornou uma boia de salvação para um mercado falido; os escritores pedem que as editoras invistam recursos próprios e mais atenção aos seus livros, o que não vai acontecer se não tivermos leitores para os mesmos – e a tendência é que, se algo mudar nesse sentido, será apenas a diminuição de novos títulos colocados em catálogo.

Mas, antes de ser propositivo, gostaria de me aprofundar um pouco sobre as duas questões, bastante sérias e desafiantes. Quando comecei a editar livros, na virada do século, o PNLD era visto como algo só atingível pelas grandes editoras, um sonho distante de prosperidade. Foi só a partir do governo de Michel Temer, em 2017, que uma mudança no edital limitando o número de títulos por editora permitiu que editoras independentes conseguissem acreditar que aquela era uma forma de pagar as suas contas – empresariais e pessoais.

Mas o remédio virou veneno: muitas editoras agora focam toda a sua atenção para essa venda governamental, e o que é pior, sem ter qualquer preocupação com a qualidade dos seus produtos. Multiplicam-se títulos que se adequam ao edital, mas que são feitos de forma ágil e muitas vezes irresponsável. Num país com grandes falhas educacionais, como o Brasil, é trágico que programas de formação de leitores sejam tratados dessa forma.

Para piorar, no atual governo se criaram regras restritivas e sem sentido, como a obrigação de apresentar na inscrição no edital o livro digital em HTML5, algo caro e que não tem outra funcionalidade para as editoras – o que, como foi dito pelos editores, seria o mesmo que obrigar uma construtora a comprar previamente o cimento para poder entrar numa licitação de obra.

O próprio governo não sabe como lidar com essas regras impostas de forma arbitrária, tanto que vi projetos com estruturas semelhantes de livros digitais serem aprovados ou recusados sem critérios claros. Como se diz em boca miúda entre os editores, se houvesse uma gestão séria no FNDE do Ministério da Educação, os editais do PNLD deveriam ser cancelados e refeitos. Mas quem quer afundar o que parece ser a última tábua de salvação? Melhor deixar alguns afogados pelo caminho e seguir em frente. Ou não.

Mas a questão é ainda mais complexa: outro dia encontrei um amigo, grande poeta e tradutor. Ele trabalha há décadas como principal tradutor de uma grande editora e apresentou um livro infantil para ela. O livro é delicioso, aliás. Mas foi recusado. O argumento: o livro não se adequava à venda governamental no PNLD, por não estar dentro dos padrões “didáticos” que se impõem àquelas obras. Pois bem, duas coisas se sobressaem aqui: de um lado, que padrões são esses? A função da literatura infantil é apenas educar ou também criar o gosto pela leitura, fomentar novos leitores, muitas vezes de forma lúdica?

É sabido que os padrões impostos pelo PNLD estão diminuindo a criatividade, a variedade e muitas vezes a qualidade da literatura infantil brasileira, mas de novo autores, ilustradores e editores preferem se silenciar para não perder a “boquinha” que pode prover seus sustentos. Por outro lado, é preocupante que todo um mercado seja voltado para apenas uma dimensão, que é a venda governamental. Mesmo uma editora grande sabe que dificilmente um livro pagará seus investimentos apenas com vendas em livrarias, já que o número de leitores brasileiros está caindo ano após ano. Mas ao não se pensar em fomentar novos leitores, não estaremos apenas afunilando cada vez mais as nossas possibilidades e aumentando os nossos desafios?

O PNLD é voltado para o ensino público, que no Brasil atinge majoritariamente apenas as classes mais baixas da população – aquelas mesmas que não possuem recursos para comprar livros, já que vivem na subsistência. Seria importante que se fortalecesse o ensino público para ser novamente de qualidade, como já foi, e que atraia alunos de diversas classes sociais. Mas isso é trabalho de longo prazo.

Em curto prazo, se não se pensa livros para livrarias, se quase não existem mais livrarias, como fomentar a leitura entre as outras classes sociais não contempladas pelo PNLD? O livro no Brasil é caro, exatamente por conta da carência de leitores e livrarias. Quanto menor a tiragem, maior o preço por exemplar, por conta do aumento de custo de impressão. No Brasil, uma brochura com 200 páginas custa atualmente cerca de 5 ou 6% do salário mínimo.

Para comparação, nos EUA ou na Europa, um livro semelhante custa cerca de 1%, no máximo 2% (em Portugal) do salário mínimo. Faz diferença. Com custo tão alto, infelizmente não é possível para ampla parcela da população brasileira ser consumidora de livros, mesmo que se desperte o interesse pela leitura.

3.

Pois bem, sobre a outra questão, a do conflito entre escritores e editores independentes, é preciso ver que ambas as partes estão certas – e erradas. Costumo dizer que atualmente aumentou muito a diferença entre editar um livro e publicar um livro. Publicar um livro é trazê-lo a público, criar mecanismos, em diversas dimensões, para que o livro seja conhecido e acessado pelo leitor. Não é apenas diagramar e imprimir um livro, editá-lo, mas qualificá-lo e se criar planos de mídias, formas de distribuição, etc.

As editoras independentes cada vez menos conseguem fazer isso, por falta de recursos e pelos desafios estruturais, como falta de mídia especializada e de pontos de vendas. Em consequência, só se torna possível editar novos títulos com ajuda financeira do autor, seja por investimento próprio, seja por pré-venda em plataformas colaborativas, seja por venda de exemplares para o autor depois do livro pronto.

Em consequência, essas editoras acabam prestando serviços, mais do que estabelecendo um trabalho curatorial. Como esses serviços se tornam cada vez mais baratos – e, portanto, precarizados – resta para as editoras fazerem muitos livros ao mês, para que consigam pagar as suas contas – ou nem isso, já que a maior parte é deficitária. Bom, quanto mais livros, mais difícil de trabalhar com eles para torná-los visíveis – públicos. Sobra menos tempo de trabalho, aumenta a competição pelos parcos espaços.

Só que o serviço precarizado acaba pesando também sobre os autores, que possuem expectativas sobre os seus próprios livros que não serão cumpridas. Em cada 100 livros lançados, acredito que nem mesmo 5% chegam a ter uma circulação mínima, para além da rede pessoal do autor. Por isso, é compreensível que os autores se levantem contra as editoras, sentindo que há um descuido delas em relação aos seus livros tão queridos.

Agora, o que fazer a respeito? Se a editora quiser investir recurso próprio no livro, terá que pagar a gráfica para impressão, por exemplo, em no máximo três meses. Mas só conseguirá colocar o livro em poucas livrarias, estas pegarão poucos exemplares, o desconto será de 50% e o pagamento em 90 dias. A conta não fecha.

Então, do jeito que as coisas andam, ou a editora presta serviço ou não editará esses livros. Eles seguirão nas gavetas, como foi por tanto tempo. E posso dizer: não é o desejo de nenhum editor apenas prestar serviços. Todos sonham com seus títulos de predileção para colocar no mundo e é sempre doloroso para um editor lançar um livro que ele sabe não estar pronto ou não ter ainda a qualidade que ele gostaria. No fim, ninguém está satisfeito com essa situação.

Eu lancei o meu primeiro livro muito jovem, aos 25 anos. Antes disso, já havia procurado uma outra editora – a qual sempre tive respeito – com um original bastante imaturo. Era um sonho editar meu livro por ela. O editor nem sequer leu o livro, disse que gostava do meu trabalho na revista Azougue, que gostava de mim e que publicaria o livro, mediante o pagamento da impressão e dos serviços. Felizmente, o valor era demasiado caro para mim na época e não consegui fazê-lo. O livro ainda estava em construção, e atualmente eu certamente o renegaria – como tantos poetas fazem com os seus livros de estreia.

Quando fiz finalmente o livro, cerca de dois anos depois, tive um editor mais atento. Leu os originais, fez sugestões. Mas paguei caro pela edição e senti o meu trabalho pouco prestigiado mesmo assim: não saíram resenhas, mesmo tendo pago assessor de imprensa, e o livro circulou pouco. Fiquei indignado. Quando, no ano seguinte, abri a minha editora, prometi que não prestaria serviços, investindo nos próprios livros, e vi o quanto era difícil.

De qualquer forma, segui buscando investir nos livros que publico até hoje – eventualmente, fiz livros pagos pelos autores, mas sempre com um travo amargo na garganta. Escrevi sobre essa experiência dupla como escritor e editor num texto que tem um título que até hoje é válido: “Os dois lados da moeda sem a moeda”.

4.

Pois bem, aqui chegamos ao ponto. As crises perduram, muitas vezes se ampliam, e pouco se busca soluções, apenas paliativos. A impressão digital, de baixa tiragem ou sobre demanda, permite o aumento de novos lançamentos, mas numa estrutura de cauda longa: pouquíssima venda. Os livros não chegam ao seu final, que é o leitor. E pouco satisfazem o seu princípio, que é o escritor.

No meio do caminho, editores lutando para existir, sem conseguir trabalhar de forma consistente nos seus catálogos. Seja na escolha dos títulos, seja na divulgação e distribuição. O circuito editorial brasileiro virou uma ciranda drummondiana ao avesso: o autor odeia o editor que odeia o livreiro que odeia o leitor que não existe.

Hoje, se olharmos com calma para o mercado, veremos majoritariamente três tipos de editoras independentes, para além dos grandes conglomerados: as que possuem investimento externo, especialmente de herdeiros, funcionando como um hobby ou um tipo de beneficência cultural; as que vivem de incentivos públicos – seja vendas governamentais, seja agências de fomento; e as que vivem de prestar serviços para escritores ansiosos de ver seus livros impressos. Nenhuma delas tem como fim ou como princípio o leitor. Este é quase um feliz acidente, quando ocorre.

Mas será que não existem soluções possíveis? Pois bem, voltamos agora ao Plano Nacional das Artes. Quando fiz meu relatório final, quase dez anos atrás, coloquei entre as propostas de políticas para o livro e a literatura uma que considero até hoje interessante, e que gostaria rapidamente de expor aqui: um edital que contemplasse as diversas dimensões do circuito editorial: escritores, trabalhadores, editores, livrarias.

Estas, aliás, seriam o ponto principal do edital, já que sem elas nunca teremos uma forma consistente de distribuição e acesso ao livro pelas diversas regiões do país. Assim, o objeto do edital é o fortalecimento ou a criação de livrarias de rua, independentes (ou seja, sem pertencer a nenhuma rede de livrarias ou conglomerado empresarial) e preferencialmente em regiões que não possuem esse tipo de equipamento cultural.

É importante ressaltar esse ponto: os projetos contemplados serão de livrarias que atuem não apenas como um espaço comercial, mas também um equipamento cultural, realizando eventos, oficinas, encontros com autores, etc. No Brasil, hoje, existem diversas cidades que possuem campus universitário, mas não tem nem sequer uma livraria qualificada, o que demonstra a fragilidade de nossa educação e da constituição de público leitor.

Assim, a proposta do edital é contemplar 100 livrarias, sejam elas já pré-existentes ou novas, que receberão um aporte de 25 mil reais mensais por um ano. Esse aporte seria realizado de três formas:

(i) 10 mil reais ao mês como incentivo, em forma de bolsa, para a estrutura básica da livraria: aluguel, equipamento, água, luz, funcionários. (ii) 9 mil reais ao mês em exemplares de livros, que serão adquiridos de editoras parceiras (ponto a seguir). (iii) 6 mil reais ao mês para eventos, para pagar cachês, transportes e diárias de escritores convidados. As livrarias se comprometeriam a realizar ao menos um evento semanal com esses autores selecionados.

Os livros que seriam enviados para as livrarias são adquiridos de 50 editoras, também contempladas por edital através de uma proposta de catálogo anual. Cada editora terá 200 exemplares de três títulos comprados por mês, totalizando 36 títulos anuais com valor médio de 30 reais por exemplar. Assim, cada editora contemplada receberá cerca de 18 mil reais por mês. Esse valor ajuda não apenas a pagar os custos básicos da empresa, mas podem ser usados para criar estoque, mediante a impressão de mais exemplares dos seus livros. Os livros enviados para as livrarias para serem comercializados ajudam elas a ter um estoque mensal de base e complementar a sua renda.

As editoras contempladas seriam selecionadas segundo os seguintes critérios: serem independentes (ou seja, não fazerem parte de conglomerados de editoras), de pequeno ou médio porte (ou seja, tendo um fluxo financeiro anual dentro de uma ordem de grandeza) e apresentarem uma proposta de catálogo com 36 títulos de autores nacionais contemporâneos dos diversos gêneros, não apenas literários. Poderão ser contemplados também livros de ensaios, por exemplo.

Os livros não precisam ser necessariamente inéditos, podendo já figurar no catálogo da editora previamente, mas precisarão atender a critérios de qualidade editorial e gráfica – papel de miolo e capa, formato, etc. O seu valor de aquisição será referente ao seu formato e número de páginas.

Por fim, os autores que circularão pelas livrarias serão contemplados a partir dos títulos selecionados das editoras, para haver uma relação entre os eventos – palestras, debates, oficinas – e os livros lançados. Nisso, não é preciso edital, mas apenas uma negociação entre as partes – autores, editoras e livrarias. Um benefício extra da circulação de autor é que a editora pode enviar mais exemplares para serem comercializados durante os eventos, aumentando assim a tiragem e o acesso a leitores.

Lembrando-se aqui que se as editoras se unirem podem conseguir preços de impressão mais baixos com as gráficas, pelo aumento de exemplares e pela regularidade de produção. O estabelecimento de uma rede entre as editoras e as livrarias contempladas é importante e precisa ser estimulada, seja para o intercâmbio de experiências, seja para a constituição de estratégias comuns que fortaleçam a iniciativa.

Outra possibilidade de aquisição de exemplares e títulos qualificados para as livrarias é através de parceria com as agências de fomento de pesquisa científica, que financiam muitas edições de livros que pouco circulam após publicadas, exatamente pela dificuldade de chegar a pontos de venda e se tornarem visíveis aos possíveis leitores. Pode-se incluir dentro dos livros contemplados pelos editais destas agências a contrapartida de envio de exemplares para as livrarias parceiras do edital.

Assim, com um investimento base de 30 milhões de reais – um investimento muito baixo, em nível ministerial ou estatal, e que pode ser dividido nas diversas esferas, federal, estadual e municipal (uma possibilidade colocada na proposta original é que as cidades ou estados onde se localizam as livrarias contempladas possam realizar uma contrapartida financeira) – é possível conseguir altos números: (a) 100 livrarias contempladas; (b) 50 editoras contempladas; (c) 1.800 títulos de autores contemporâneos publicados por ano; (d) 360 mil exemplares de livros impressos por ano; (e) 4.800 eventos presenciais.

Além disso, o edital permitiria o aumento da capilaridade dos espaços culturais voltados para o livro e a literatura, o fomento à leitura e o pagamento de salários e serviços de profissionais nas diversas instâncias em torno do mercado editorial. Para além dos contemplados diretamente – livreiros, editores e autores – o edital beneficiaria tradutores, revisores, designers gráficos, administradores, entre outros.

Para se ter uma ideia da virada política que uma proposta como essa seria para o mercado editorial, vale lembrar que em 2013 o BNDES aprovou um empréstimo de 28 milhões de reais para a Livraria Cultura. Esse recurso não chegou na ponta, já que a rede de livrarias possuía poucas lojas – 15 no seu auge – e consignava poucos exemplares das editoras independentes. Ou seja, houve poucos beneficiados pelo uso de um alto recurso público.

Na presente proposta, é o contrário: o benefício atingiria os diversos agentes do circuito editorial, com benefícios para além dos contemplados no edital: outras editoras e autores conquistaram mais espaços de comercialização de seus livros, por exemplo, através do fomento de livrarias pelo país.

Por fim, um último adendo, não contemplado na proposta original mas que me parece de grande importância: há uma carência de espaço de reflexão crítica sobre a produção literária e bibliográfica contemporânea no Brasil. Seria importante a inclusão, no edital, de um valor para elaboração de resenhas e ensaios sobre os livros publicados, com publicação em portal digital.

Assim, se incorpora a pesquisa acadêmica no projeto, além de estimular um diálogo mais amplo e qualificado com as obras publicadas. O portal digital é de grande importância para trazer um mapeamento dos livros e das livrarias contempladas, apresentando para a sociedade a amplitude da proposta.

Se o presente texto é duro em suas críticas, é por acreditar que é somente na relação franca entre sociedade e Estado que se pode qualificar as políticas públicas. É importante uma permeabilidade e um diálogo, o que foi uma marca dos dois governos anteriores de Lula e está ainda faltando na presente gestão.

Trago a proposta a público como começo – a rigor, retomada – de debate e por acreditar que existem, sim, formas de suplantar os grandes desafios culturais do nosso tempo. Mas isso exige diálogo, criatividade e uma ação conjunta entre os diversos agentes, sejam governamentais ou civis.

 

*Sergio Cohn é poeta e editor. Atualmente, é curador das revistas Poesia Sempre (Fundação Biblioteca Nacional) e BRICS Poetry Review.

 

domingo, 8 de dezembro de 2024

A França se lança ao desconhecido - Daniel Afonso da Silva A Terra é Redonda,

A França se lança ao desconhecido

Daniel Afonso da Silva

A Terra é Redonda, 6/12/2024

https://aterraeredonda.com.br/a-franca-se-lanca-ao-desconhecido/ 

 

A classe política francesa e suas elites econômicas e culturais conseguiram, finalmente, lançar o país ao desconhecido, tornando a integralidade do regime disfuncional


Era previsível: um país – a França – ingovernável. Foi premonitório: o término das Olimpíadas de Paris com Tom Cruise e Missão Impossível. O primeiro-ministro francês, Michel Barnier, vem de ser demitido pelo Parlamento após 91 dias na função. Os parlamentares reuniram 331 votos – bem mais que os 289 necessários – para censurá-lo e ejetá-lo do cargo.

Jean-Luc Mélenchon foi o mentor e o tenor da manobra. Marine Le Pen, sua coadjuvante em convicção e apoio. As duas maiores forças político-partidárias da França, malgrado as suas diferenças, uniram-se em alma, em princípio, contra a proposta de orçamento apresentada pelo primeiro-ministro. Mas, em verdade, o seu objetivo indisfarçável sempre foi fragilizar o presidente Emmanuel Macron.

Que, doravante, precisa reconhecer a derrota, acatar a decisão do legislativo, acolher a demissão de Michel Barnier e de seu brevíssimo governo de três meses, nomear um outro primeiro-ministro e vistoriar a escolha de novos ministros, novas táticas e novas estratégias para superação da variedade de sinistros franceses momentâneos, conjunturais e estruturais extraordinariamente profundos. Sendo o colapso econômico muito grave. O constrangimento partidário gravíssimo. A entropia política sem precedentes. E a crise de regime, matizado pela Quinta República, perto de terminal.

Sem meias palavras, a classe política francesa e suas elites econômicas e culturais conseguiram, finalmente, lançar o país ao desconhecido, tornando a integralidade do regime disfuncional. Por claro, que em decorrência de operações sorrateiras. Que não vêm de hoje nem de ontem. Mas de tempos. Anos e mais anos com a embarcação fazendo água. E, agora, enfim, com furos aumentados, casco estourado e leme inteiramente avariado. Sendo improvável a solução por reparos. Restando apenas reconhecer-se a abertura de uma nova temporada de caos.

Forjada pelo general Charles de Gaulle, a partir de 1958, a Quinta República, enquanto regime político francês, foi, sim, uma resposta à instabilidade política e moral da Quarta República. Mas, também e fundamentalmente, um esforço de superação da “república de partidos”. Um cancro insistente permanente na vida política da França.

Como cotidianamente notada, a tensão no interior da classe política francesa jamais abdicou a sua condição efervescente. Desde a Revolução, passando pela Restauração, avançando pelo golpe – farsa ou não – de Napoleão III, chegando ao colapso de 1870-1871, amargando o após 1918 e 1929, vivenciando o cataclismo de 1940, entorpecendo-se com a resistência ao nazismo até 1944, juntando os cacos da humilhação de Vichy depois e tentando superar o tropismo da France Éternelle versus a vulgaridade da gestão do imediato. Um imediato que envolvia (i) a reconciliação nacional, (ii) a reconstrução do país e (iii) a definição do destino das colônias africanas.

O general De Gaulle fora retirado dessas incumbências desde 1946. Ele parecia controverso demais. Conduzira a resistência francesa desde 1940. Era herói inequívoco das guerras totais de 1914 a 1945. Mas – talvez também por isso – granjeou suspeição de todas as partes. Notadamente do primeiro-ministro Winston Churchill, que sempre lhe aplicou votos de desconfiança, e particularmente do presidente Roosevelt e todo o establishment norte-americano, que nutriam por ele um complexo sentimento de admiração e repulsa. Especialmente porque o general De Gaulle, no fundo, era a quintessência do marquês de La Fayette – “herói de dois mundos”, combatente da Guerra de Independência dos Estados Unidos e da Revolução Francesa – com todo o seu estigma de ser admirado em bravura e menosprezado em reconhecimento.

Como todos podiam vivamente se lembrar, a étrange défaite francesa de 1940 tinha sido um choque planetário. Malgrado o extraordinário empenho do general francês na superação dessa situação, após a liberação de Paris e da França em 1944-1945, ele foi percebido como corpo estranho em seu próprio país quando a situação serenou. E, com isso, foi obrigado a retirar-se da vida pública e reduzir-se a singelo e silencioso observador distante. Longe de tudo, mas perto de todos. Especialmente com o avanço da Guerra Fria.

Contrário a todas as aparências, a Guerra Fria sempre foi um problema essencialmente europeu cujo impasse se devia ao destino da Alemanha. Que desde Yalta e Potsdam fora partilhada entre norte-americanos e soviéticos. Deixando bem claro o imperativo da tensão Leste-Oeste entre liberais e anti-liberais forjando um espaço de rivalidades sem perdão interiorizadas e simbolizadas pela ocupação de Berlim. Ainda não existia muro. Mas a cortina de ferro já era uma realidade inconteste.

Assim, desde 1945, a possibilidade de avanço vermelho causava apreensão. Especialmente entre os franceses. Que, por sua vez, suplicaram pelo apoio permanente e estrutural dos norte-americanos. Que, como resposta, retornaram ao Velho Mundo com o Plano Marshall e a Otan. Dois projetos que permitiram a efetiva reconstrução da França e a decisiva internalização notas de pacificação os franceses.

Mas, apenas, entre os metropolitanos. Pois, nas colônias, notadamente, africanas, desde 1944-1945, em lugar de fim da guerra e dos conflitos, acelerava-se o verdadeiro começo de uma guerra sem fim por independência e liberdade. E por razões plausíveis: os colonos franceses haviam participado dos esforços de guerra sob a aura da resistência implementada pelo general De Gaulle a partir de 1943 e, com o fim do embate ante o nazismo em 1944-1945, a sua demanda geral moveu-se ao encontro da supressão do sistema, do regime e do mando coloniais franceses. Lutava-se pela descolonização. Mas a gente de Paris seguia aturdida e indiferente. Especialmente após 1946, com a partida do general.

Nesse embate, a classe política francesa voltou rapidamente a viver entropias após 1946. Era, de uma só vez, impossível de se ignorar as demandas africanas como eles ignoravam e inconsequente ignorar o peso das colônias para o orçamento francês como os menos experimentados nunca conseguiram se dar conta. Frente a isso, a junção de insensibilidades, ignorância e indiferença acabou por conduzir o país à beira do precipício. Gerando um cenário de franca anomia. Onde a Quarta República deixou de se fazer funcional.

Isso porque a pressão parlamentar contrária à concessão de independências aos africanos conduziu – para ficar num simples exemplo – pressões orçamentárias insuportáveis para a manutenção de integridades territoriais coloniais e, por outro lado, a redução de impostos advindos das colônias. E se isso não bastasse, o francês metropolitano francês – leia-se: a sociedade civil – estava demasiado cansado de aventuras e guerra.

Para superar a situação, pôs pressão em sua classe política que, por não suportar, sucumbiu a uma imensa instabilidade partidária. Que contaminou o Parlamento. Que, por timorato, passou a padecer de convulsões sucessivas. Produzindo 24 governos e 12 primeiros-ministros nas legislaturas 1946 e 1958, e levando o regime político a uma disfuncionalidade total. Sem continuidade nem credibilidade na condução de seus destinos. O que impôs a reabilitação do general De Gaulle. Essencialmente para solucionar a problemática colonial. Mas, fundamentalmente, para superar essa guerra infindável de partidos.

Convocado em 1958, o general foi imediatamente tornado plenipotenciário. E, nessa condição, compôs às pressas uma Constituição. Foi à Argélia – principal e mais conturbada colônia. Apresentou aos argelinos o seu ambíguo “je vous ai compris” [eu lhes compreendi]. Iniciou a distensão com todas as colônias. Negociou com praticamente todas as lideranças metropolitanas e coloniais. Conduziu – ora tranquilamente, ora menos tranquilamente – a descolonização/independência.

Reposicionou o lugar da França no mundo. Forjou uma nova projeção interior e exteriori do país. Eliminou a possibilidade de alinhamentos automáticos com liberais ou comunistas. Passou a construir-se como terceira via e terceira voz no mundo. Falando a todos e tentando ser ouvido por todos. Em nome do presente, pensando no futuro e em louvor aos tempos em que o mundo venerava a França. Mesmo assim, a pressão interna seguiu imensa.

Especialmente porque, tecnicamente, o general havia sido entronizado no poder indiretamente por um colégio de notáveis. Sem, portanto, a participação nem a legitimidade popular. E, desse modo, gostando-se ou não, mais ou menos, refém do sistema e dos partidos. Que, por claro, poderiam amputar os seus meios de ação e ejetá-lo do poder a qualquer momento, tão logo a sua tarefa principal que era solucionar a problemática colonial fosse concluída.

Para, então, inibir essa possibilidade, o general convocou um referemdum para a instalação do sufrágio universal para a escolha de presidentes da República a começar por ele próprio. Como reação, o aglomerado de partidos do colégio de notáveis impetrou uma moção de censura contra o governo de George Pompidou, primeiro-ministro do general, com o propósito de acoimar o general. O ano era 1962. O mês, outubro. O dia, 5.

E, portanto, em atenção ao artigo 50 da Constituição de 1958, nesse dia 5 de outubro de 1962, pela primeira vez na Quinta República, um primeiro-ministro foi demitido pela vontade parlamentar.

Mas o general não se intimidou. Vendo que o propósito era fragilizá-lo, ele dissolveu o Parlamento, convocou novas eleições parlamentares, conseguiu constituir maioria parlamentar a seu favor, renomeou George Pompidou como seu primeiro-ministro e conseguiu o referendum favorável ao sufrágio presidencial universal. E, com isso, conduziu a querela de partidos à irrelevância. Vitalizando o espírito do novo regime ancorado na Constituição de 1958. Que fazia do presidente da um verdadeiro monarca, com amplos poderes e robusta legitimidade. Advindos diretamente do povo. Sem nenhum – ou quase nenhum – compromisso com partidos. Eis a essência da Quinta República.

O que acaba de ocorrer na França nesta primeira semana de dezembro de 2024 vai integralmente diferente daquele feito de 1962. Michel Barnier vem de ser demitido pelos parlamentares e o presidente Macron não possui nenhum mecanismo para “punir” os parlamentares. Vê-se, assim, um evidente retorno à odienta querela de partidos. Esterilizando o regime político da Quinta República e lançando o destino do país – da Quinta República e do presidente Macron – ao desconhecido.

Pois um retorno à Quarta República virou impossível e a implementação de uma Sexta, a partir de uma reforma política, também parece improvável. De modo que 1958 e 1962 foram, agora, tornados anacrônicos e 2024 ganhou a pecha de annus horribiblis francês. Ou melhor, o ano que em o empilhamento de crises chegou ao limite do suportável. Pois a crises são múltiplas e variadas. Para ficar apenas nas mais decisivas, olhando bem de perto, o cursor pode ser posicionado naquela fatídica decisão de dissolução do Parlamento na noite do 9 de junho de 2024 após a vitória acachapante do partido de Marine Le Pen nas eleições para deputação na União Europeia em Bruxelas.

Olhando mais ao longe, o 2 de dezembro de 2020, 26 de setembro de 2019 e o 8 de janeiro de 1996 – datas respectivas da morte dos presidentes Vallery Giscard d’Estaing, Jacques Chirac e François Mitterrand – sepultaram os últimos presidentes franceses capazes de suportar o fardo de sucessores do general De Gaulle. E olhando bem longe, a Quinta República talvez tenha começado a terminar com a resignação do general naquele terrível 28 de abril de 1969.

Voltando ao início e recompondo com calma seis meses, dia após dia, daquela fatídica decisão do 9 de junho de 2024, ninguém entendeu completamente as motivações do presidente Macron na dissolução do Parlamento. As eleições eram europeias. O partido de Marine Le Pen – e de seus similares radicais e extremistas na Europa e mundo afora – amplia a sua capilaridade de maneira profunda e estrutural desde a crise financeira de 2008. Tanto que chegou ao segundo turno das presidenciais francesas em 2017 e 2022 – nas duas ocasiões, contra Emmanuel Macron.

De maneira que já virou tácito que a sua ascensão vai constante, impressionante e irresistível. E, claramente, poderá – mais dia, menos dia – conduzir Marine Le Pen ou afins para a presidência em 2027 ou adiante. De modo que dissolver o Parlamento francês sob o pretexto de conter a ramificação do partido de Marine Le Pen continua sendo um argumento intelectualmente frágil, moralmente inconsequente e politicamente irresponsável. Assim como a tese da clarificação, mobilizada pelo presidente Macron.

Sem ser demasiado contundente ao encontro do nobre presidente francês, a defesa dessa tese beira o cinismo. Todo o macronismo entrou em crise terminal ao longo do primeiro mandato do presidente Macron. Após a sua reeleição em 2022, os despojos dessa crise só fizeram aumentar. De modo que impor ao povo “pensar melhor” e “rever” o sobre o seu ampliado apoio no partido de Marine Le Pen chega bem perto de ignomínia. Ou, dito de outro modo, parece brincadeira de péssimo gosto com a inteligência alheia. Tanto que o resultado dos dois para o legislativo deixou ainda mais clara a força de Marine Le Pen.

Em contrário, observe-se que esse resultado coloriu o Parlamento com a França Insubmissa (LFI) de Jean-Luc Mélenchou conquistando 78 cadeiras; o Partido Comunista Francês (PCF), 8; os Ecologistas (LE), 28; o Partido Socialista (PS), 69; os partidos esquerdistas diversos, 10; os partidos centristas diversos, 5; o Movimento Democrático (Modem) de François Bayrou, 33; Ensemble – reunindo Renascimento e outros aliados do presidente Macron – 99; o Horizontes do antigo primeiro-ministro Édouard Phillipe da presidência Macron, 26; a União Democrática e Independente, 3; o Os Republicanos (LR) do antigo presidente Nicolas Sarkozy, 39; partidos direitistas diversos, 26; a união LR-RN – aliança entre Éric Ciotti e Marine Le Pen –, 17; o RN de Marine Le Pen, 125; o partido de extrema direita, à direita do RN, 1; e o partido regionalista, 9.

Mirando tudo através de alianças, a Nova Frente Popular (NFP), liderada por Mélenchon aquinhoou 182 assentos. A Maioria Presidencial (MP) de Macron conseguiu 168. A Reunião Nacional (RN) de Marine Le Pen de braço com parcelas de LR de Éric Ciotti conseguiu 143. O grupo dos Republicanos levou 46. Enquanto a variedade independente à direita conseguiu 14, a à esquerda, 13, a ao centro, 6. Ao passo que o partido dos regionalistas levou 4 e outras agremiações nanicas unidas, 1.

Baralhando mais uma vez os números e vendo-os em perspectiva, o RN aparece como o único partido com ascensão constante, consistente e acelerada na ampliação de sua representação parlamentar nos últimos vinte e cinco anos. Essa força política sob a liderança dos Le Pen não tinha conseguido nenhuma cadeira em 2002 nem em 2007. Mas conquistou duas em 2012, nove em 2017, 89 em 2022 e às 125 – ou, em aliança, 143 – em 2024.

O conjunto dos partidos ancorados no agrupamento Ensemble conquistou 350 após a primeira eleição do presidente Macron em 2017, 249 após a sua reeleição em 2022, e desceu para 156 – ou 168 – cadeiras em 2024. Enquanto o agrupamento de Mélenchon – que também envolve, a contragosto de todos, frações do PS – variou de 162 em 2002 para 205 em 2007, 307 após a eleição do presidente François Hollande em 2012 para 58 em 2017, 131 em 2022 e 178 – ou 182 – em 2024.

Parece mais que claro que esses números não são números. Fitando apenas a realidade de 2024, após a dissolução e recomposição do Parlamento, existem 143 cadeiras a favor de Le Pen, 168 para Macron e 182 para Mélenchon. Constituindo-se três forças parlamentares disformes e dissonantes. Como jamais se viu sob a Quinta República.

Pois, voltando-se à essência, a Quinta República supõe a governabilidade através de uma maioria parlamentar. Qualquer que seja.

O general De Gaulle e todos os seus sucessores – exceto o presidente Jacques Chirac, em 1997 – supuseram dissolver o Parlamento como mecanismo de afirmação dessa maioria. E conseguiram.

O presidente Macron poderia até intuir e pode seguir imaginando que isso seria possível em junho de 2024. Mas nenhum dado da realidade corrobora a sua tese.

De modo que, sem mancar com o respeito ao encontro do distinto presidente francês afeiçoado em saltitar com o presidente Lula da Silva na Amazônia, a sua intempestividade na dissolução do Parlamento foi, sim, uma ação temerária e desprovida de pouco ou nenhum cálculo político revestido de interesse nacional francês.

Daí a perplexidade rumo ao desconhecido. Pois nesse cenário, qualquer primeiro-ministro tende a transitar por um Parlamento hostil. Que só poderá ser novamente dissolvido em junho de 2025. Tarde demais para um regime político que, sinceramente, claudica.

E claudica porque, de fato, “ninguém ganhou” as legislativas. Ou seja, nenhum partido conseguiu número suficiente de cadeiras para afirmar-se majoritário. O número mínimo seriam 289 cadeiras. Como ninguém chegou nem perto, o caos se instalou. Pois o grupo de Mélenchon conseguiu 182 e se acredita majoritário. O entorno de Marine Le Pen com suas 143 também se sente empoderado. E os 168 deputados fieis ao presidente sabem que não possuem nada a comemorar.

Nesse ambiente, a singela escolha de um primeiro-ministro tornou-se um risco ao regime. O presidente Macron escolheu Michel Barnier sabendo disso.

Michel Barnier é tido como experimentado quadro político francês. De seus variados serviços prestados, o mais recente, complexo e relevante foi a negociação do Brexit. Que demonstrou os seus predicados de portador de nervos de aço, paciência chinesa e sapiência carioca. Por isso, ele entrou no radar do presidente Macron para Matignon. Mas para aceder ao posto ele precisaria atar alianças. Essencialmente com Mélenchon e fundamentalmente com Marine Le Pen.

Com o primeiro, a resposta foi “não”. Com a segunda, conversou-se. E dessa conversa emergiu a perspectiva de integração das 143 cadeiras do RN às 168 do Ensemble como uma frente parlamentar para fazer passar projetos essenciais. Sendo o orçamento, o mais importante. Sob um custo moral, sinceramente, inacreditavelmente imperdoável da naturalização de Marine Le Pen e de seu RN na paisagem política francesa.

Tudo parecia bem. Bem mesmo. Malgrado os solavancos de Mélenchon. Até que o judiciário francês iniciou um procedimento de inviabilização política de Marine Le Pen. Denunciando-a de crimes políticos – “empregos fictícios” – no Parlamento europeu.

Michel Barnier havia sido empossado primeiro-ministro em setembro de 2024 e essa ofensiva jurídica ante Marine Le Pen começou em outubro. Quando durante duas ou três semanas não se falou de outra coisa que a possibilidade de a principal liderança da principal força política do país sob o risco de ser suprimida da competição eleitoral francesa.

Esse mal-estar causou desconforto de natureza física e espiritual em toda parte. Especialmente sobre Marine Le Pen, em seu partido e em seus eleitores.

Coetaneamente, Michel Barnier iniciou a apresentação do orçamento a ser votado pelo Parlamento. Uma operação complexa, decorrente da deterioração fiscal estrutural do país.

A situação fiscal francesa vem gravemente deficitária há quarenta ou cinquenta anos. O após pandemia e o “quoi qu’il en coûte” [custe o que custar] do presidente Macron simplesmente tornou a situação mais desafiadora. Com a eclosão da nova fase da tensão russo-ucraniana e o seu impacto direto sobre o fornecimento de energia, o que era desafiador ganhou ares de desespero. Diante a situação israelo-palestina, o desespero virou insuportável. E, se nada disso bastasse, a expectativa de retorno e o retorno de Donald J. Trump à Casa Branca transformaram o pesadelo em pandemônio. De maneira que o projeto orçamentário de Michel Barnier nasceu inviável e impossível de ser aprovado.

Sem adentrar em tecnicalidades, diante de todos esses vetores, o projeto propunha, simplesmente, o aumento de perto de 40 bilhões de euros em impostos ao contribuinte francês.

Entre os franceses, como se sabe, tudo: menos apreciação de impostos. Notadamente após 2008, a crise do euro, o Brexit, os Coletes Amarelos e a pandemia.

 

De toda sorte, era necessário tentar. E tentar por vias legislativas. Nesse sentido, do lado de Mélenchon, o apoio – independente da proposta – seria nulo, e foi. Ao passo que lado de Marine Le Pen apoiar projeto desse tipo seria uma traição aos seus 11 milhões de eleitores. Porquanto, essas duas forças parlamentares – o NFP e o RN, de Mélenchon e Marine Le Pen – bloquearam a proposta.

Diante disso, o primeiro-ministro lançou mão do artigo 49, alínea 3, da Constituição para fazer passar sem o aval do Parlamento. Frente à gravidade da manobra, Mélenchon formalizou uma proposição de censura. Que foi imediatamente aceita por Marine Le Pen e variados parlamentares de outros partidos. Concretizando-se nos 331 votos de censura ante Michel Barnier no último dia 04 de dezembro.

Como primeiro-ministro do presidente Macron, Michel Barnier foi lançado a feras. Todos sabiam disso. Mas, agora, com ares históricos. Não simplesmente por ser a primeira demissão após 1962 e a segunda no interior da Quinta República Francesa. Mas porque, essencialmente, o evento sugere novos tempos. Tempos de tormentas. Onde as estabilidades viraram voláteis. E ninguém parece saber o que fazer.

Fitando simplesmente o caso francês, quando Nicolas Sarkozy chegou à presidência da República em 2007, a intelligentsia francesa, europeia e mundial começou a sinalizar que um mundo umbilicalmente integrado às agruras do século XX começava a desaparecer. Nicolas Sarkozy era o primeiro presidente da Quinta República nascido após 1945 e, portanto, desprovido da imagem do trágico nas retinas.

Mas antes a situação já não ia bem. 2005, o “não” francês à Constituição europeia, sob a presidência de Jacques Chirac, foi um baque importante. 1992, o “quase não” francês a ingressar no sistema de Maastricht foi outro momento constrangedor. 1981, o “não” francês à reeleição do presidente Valery Giscard d’Estaing também segue complexo. Pois a disputa Giscard versus Mitterrand produziu duas narrativas que merecem meditação.

Giscard propôs ser Mitterrand um “homem do passado” ao passo que Mitterrand propôs ser Giscard um “homem do passivo”.

Observando-se com calma, esse “passivo” remetia a problemas fiscais, aumento de desemprego, da carga de impostos e afins. Todos problemas persistentes e anteriores a 1981. Para não dizer bem antes. Desde, ao menos, o fim dos Trinta Anos Gloriosos, que, de fato, terminaram em maio de 1968.

Maio de 1968 como outubro de 1962 levaram a autoridade do fundador da Quinta República ao descrédito. Da primeira vez, em 1962, o general conseguiu suportar e superar. Da segunda, em 1968, não. Como resultado, ele renunciaria onze meses depois sem deixar nenhum sucessor.

E por razões profundas que podem ser apreendidas na meditação atenta das concepções do general De Gaulle reportadas nesse fabuloso C’était de Gaulle de Alain Peyrefitte (Paris: Fayard, 1994).

Sob todos os seus aspectos, a Quinta República foi feita sob medita para o general. Essencialmente ao subentender que o exercício da presidência deveria ser, acima de tudo, um fato retórico e um fato moral. Onde a grandeur [grandiosidade] da França, tangida por sua história e por sua cultura, serviria de objetivo e obsessão. E a distinção de seu líder máximo conduziria o país acima dos arranjos do estado, do direito e dos partidos.

O presidente Mitterrand – único presidente francês a cumprir quatorze anos ininterruptos de presidência sob a Quinta República – levou esses preceitos às últimas consequências. Sendo a “quase” imposição de Maastricht a marca mais evidente dessa perspectiva estrutural e estruturante.

O presidente Chirac, por sua vez, tentou de tudo – e conseguiu – para seguir a senda do general. Sendo o “não” francês à invasão do Iraque a melhor mostra disso.

O presidente Macron chegou ao poder em 2017 ignorando De Gaulle, Mitterrand e Chirac e querendo ser Júpiter, o maior planeta do sistema solar. Mas, agora, por razões obtusas, após a dissolução de junho e moção de censura de dezembro, corre forte risco de terminar como Ícaro: singrando pelo desconhecido até ser definitivamente estraçalhado pelo seu misto de arrogância e ilusão.

 

*Daniel Afonso da Silva é professor de história na Universidade Federal da Grande Dourados. Autor de Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas (APGIQ). [https://amzn.to/3ZJcVdk]