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terça-feira, 30 de abril de 2024

Uma ode ao octogenário da liberação de Roma - Daniel Afonso da Silva (Jornal da USP)

Uma síntese genial de todo o processo político que vai da Grande Guerra à queda de Roma, em 1944, e das várias etapas de recuperação aliada contra as poderosas forcas nazi-fascistas. Uma leitura das mais instrutivas, contendo informações coletadas numa ampla literatura da história europeia e mundial, assim como de obras de referência sobre a Segunda Guerra, que no entanto permanecem na moita.

Poucas vezes li, na produção acadêmica brasileira uma tal capacidade de síntese sobre o período mais decisivo do século XX, sua primeira metade.

Paulo Roberto de Almeida.

Uma ode ao octogenário da liberação de Roma

Por Daniel Afonso da Silva, pesquisador no Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP

 Jornal da USP, 29/04/2024

https://jornal.usp.br/articulistas/daniel-afonso-da-silva/uma-ode-ao-octogenario-da-liberacao-de-roma/

Para Gabriel Yuji Kuwamoto Silva (1996-2024).

Aquele 4 de junho de 1944 foi um dia muito especial. Os aliados finalmente libertavam Roma. A tentação do Reich esmaecia. Hitler estava mais e mais acuado, sentido e deprimido. A Wehrmarcht caia na defensiva. O desembarque aliado na Europa estava sendo um sucesso. As forças britânicas e norte-americanas de terra, mar e ar conseguiram integrar perfeitamente os seus esforços de guerra, ação e intervenção na direção de vencer o inimigo nazista, fascista e nazifascista, conter os extremismos de todos eles e reabilitar a esperança de dias bons.

Desde meados de 1914 que os dias viraram noite de tez muito escura. Todas as relações humanas foram brutalizadas. Nenhum setor da vida foi poupado. Todos os instintos primitivos foram avivados. A selvageria consciente rondou todas as casas e misérias da natureza humana adentrou fartos corações.

O 11 de novembro de 1918 foi, em contraponto, um alívio. Nenhum sobrevivente viveu esse dia sem emoção. O terror das trincheiras que havia trazido o Hades para este mundo parecia retrair. Mas a dor da lembrança era imensa. Tamanha que nem a fé – em Cristo ou em qualquer outro – permitiu aos homens remediar.

Viveu-se, de 1914 a 1918, assim, às voltas com o Inferno sob as primícias do Armagedom. O carisma do presidente Woodrow Wilson contrastou recalibrou essa imagem. A sua candura no falar, no pensar e no mover dava fortes significados àquele fim de guerra, fim de vida, fim de tarde, fim de mês. Um novo tempo se abria. Ninguém, por certo, conseguia obliterar o odor das trincheiras. Sociedades inteiras perderam a sua razão de existir. Muitas outras inclusive perderam o seu chão. Nesse torvelinho, especialmente os europeus entenderam que as ambições gerais de potência e de poder tinham ido longe demais. Certo que eles mesmos, europeus, guerreavam entre si desde a noite dos tempos. Mas desde Borodino, Austerlitz, Jena, Auerstedt e Iena – mais sangrentas batalhas dos tempos de Napoleão – eles poderiam ter retirado alguma lição.

Mas, não.

Adiante, nenhum europeu informado ou não se esqueceu da simbólica humilhação entronizada naquele dia 18 de janeiro de 1871 quando o rei da Prússia, na Galeria de Espelhos do Palácio de Versalhes, foi proclamado imperador da Alemanha. Mesmo que Otto von Bismarck tenha merecido a alcunha de “bom” – leia: “homem bom” –, os seus sucessores alimentaram o sucesso da tragédia. Uma tragédia moral, espiritual, cultural, militar, intelectual, estratégia, tática, operacional e singelamente humana que aquele dia 11 de novembro de 1918 prometia conter.

Mas, novamente, não.

O que se anotou do lendemain e depois foi a derrota insistente da capacidade de todos de construção da paz. Os vencedores de agora seguiam insatisfeitos e os perdedores de sempre queriam voltar a se afrontar. A fúria interior de todos era muito grande. O ressentimento então, nem se fale. Benito Mussolini desde a Itália liderava a exaltação de um novo homem a partir do homem novo que seria marinado no deslumbre pela força, virilidade, obediência irrestrita ao chefe, ao mandatário, ao másculo, ao líder, ao guia. Eis o espírito do nazismo.

Pelo restante da Europa e além essa exaltação ao super macho rastejante das trincheiras virou modelar. Tudo porque, como notificou o filósofo italiano Giovanni Gentile, 1914-1918 nunca acabou. 1914-1918 brutalizou, vandalizou e desconjuntou tudo com tanta ênfase que ficou impossível seguir, viver e superar o passado. O peso do passado imediato virara um fardo de presente contínuo. Uma âncora que impedia os italianos de fluir.

Na Alemanha – principal humilhada e não apenas traída com a Itália no após Grande Guerra – o sentimento sobre tudo isso era ainda mais imoderado. O que os paladinos do bem fizeram em Versalhes ante os alemães foi insuportável. Os responsáveis pela república de Weimar sabiam disso. E, por isso, tentaram algo compensar. Mas não era possível. Do contrário, era impossível, inviável, sem sentido nem razão. Todos sabiam que não se construiria a paz sob as ruínas do descrédito tangido por impérios de não-perdão.

Quando Hitler aquinhoou todos os poderes na Alemanha todos sabiam que a revanche seria certa, dura, brutal e inominável. Mas as conveniências daqueles mesmos que fizeram as tratativas de Versalhes sugeriam esperar, conversar, negociar. Os franceses, ingleses e norte-americanos, modernos e antigos modernos, haviam ressignificado a arte de se parlamentar e a transformaram num imperativo de convivialidade depois das Revoluções. Desse modo, mesmo com el diablo às portas, a orientação era de se seguir a parlamentação.

E, assim, seguiam. Entretanto, do outro lado do planeta, no Pacífico, os japoneses nem os chineses viviam em outra cultura, outra mentalidade, outros destinos que não conseguiam justificar essa espera para parlamentação. Tanto que a conquista do Japão sobre a China em 1937 foi sem aviso nem contrição. Um feito gigantesco. Que reabilitou os espíritos de 1914. A tragédia da guerra-mundo voltava a conduzir espíritos. A investida italiana fascista na Etiópia e na Espanha em 1935-1936 deram, assim, o tom do retorno à guerra sem fim. A investida japonesa de 1937 mundializou essa guerra. O que o Führer promoveu foi a interiorização do arcano 13 – o anjo da morte – na Europa a partir de 1939.

Curiosamente foi somente quando a desgraça simbolizada nesse arcano penetrou na Europa que a guerra-mundo voltou a ser considerada mundial. Mas, agora, com novidades.

A astúcia do Führer no emprego da Wehrmacht e da Luftwaffe para esquartejar seus inimigos vitais foi uma inovação cruelmente extraordinária. O cerco à Polônia e queda da Bélgica em 1939-1940 criaram um malaise sem precedentes na opinião político-militar planetária. Não sem razão, os periódicos norte-americanos The New York Times e Newsweek alcunharam, desde 1939, a nova ofensiva alemã como Blitzkrieg – guerra-relâmpago, tormento sem fim. Era, sim, algo inovador. Mas também dramático e desesperador. Ninguém conseguia se preparar para contê-lo. Nem a França que seria o seu próximo target.

Blitzkrieg alemã sobre a França na primavera de 1940 foi implacável. As poucas semanas de conflito que conduziram à queda do país da revolução promoveriam, pouco a pouco, o maior sinistro político, militar, cultural, intelectual, espiritual e moral de toda a história das grandes guerras. O martírio da França significou – sem exageros – o martírio do mundo inteiro.

Quando o marechal Pétain preferiu capitular a lutar diante da Blitzkrieg em 1940, uma parte expressiva e considerável do espírito francês, europeu, ocidental, democrático e liberal foi maculado para nunca mais se recuperar. Ninguém conseguiria imaginar – em 1940, antes ou depois – uma queda tão rápida, tão forte e tão desconcertante. O coronel De Gaulle – herói da Grande Guerra, tal e qual o marechal Pétain – percebendo a ignomínia de “cair sem lutar” e capitular ao Reich, desertou das forças oficiais francesas e partiu para Londres para, desde lá, iniciar a resistência ao Führer.

Mais le dernier mot est-il dit?” [a última palavra já foi dita?]. “L’espérance doit-elle disparaître?” [a esperança está condenada a desaparecer?]. “La défaite est-elle définitive?” [a derrota é definitiva?]. Eis as perguntas nucleares de seu afamado Apelo do 18 de Junho registrado e difundido pelas ondas da BBC de Londres poucos dias após a queda da França e a constituição do vexaminoso regime de Vichy.

Alguns muitos se fizeram de surdos diante do apelo desse francês à deriva. Outros tantos, entorpecidos pela perplexidade, nem conseguiram entender nem interpretar o que ele propunha. A agonia era tanta e, talvez, sem par que mesmo alguns muito valorosos começaram a vacilar.

Do outro lado da Montanha Mágica, às voltas com o Wolfsschlucht, quartel-general alemão, instalado nas cercanias de Bruxelas, Hitler não se continha em gargalhar. O sucesso sobre a França fora tamanho que talvez nem Bismarck nem o kaiser Guilherme I imaginariam conquistar. O Reich, assim, sob Hitler e às portas de Paris, chegava ao seu momento supremo de sua afirmação e glória.

Jusante aos Alpes, Benito Mussolini também se exortava em regozijos. Do outro lado do mundo, no Pacífico e no Japão, os súditos do imperador Hiroito e seguidores do primeiro-ministro Fumimaro Konoe também estavam excitados com a queda súbita da França. Mesmo Stálin, desde a Moscou sem fim, via tudo aquilo com entusiasmo incomum.

O aturdimento do primeiro-ministro Winston Churchill era, em contraponto, profundo e integral. Ele sabia que, caída a França, o Reino Unido poderia ser o próximo. E, mais que isso, talvez não houvesse sangue, suor e lágrimas suficientes para esse martírio contrastar. Nesse espírito de responsabilidade e receio, ele não viu outro caminho senão singrar o Atlântico em busca de maior atenção de Washington, da Casa Branca e do presidente Franklin Delano Roosevelt.

Desde o ocaso da presidência Woodrow Wilson, vinte anos antes, que o isolacionismo tomou conta da métrica e da compleição mental dos norte-americanos sobre a sua presença e projeção internacionais. O verdadeiro contragosto interno diante dos Quatorze Pontos e dos preceitos da Sociedade de Nações levou a classe política e do deep state do país a reconhecer o enclausuramento como um projeto.

Se nada disso bastasse, o choque da quebradeira de 1929 fora inclemente e ficou difícil de suportar, segurar e superar. O presidente Roosevelt, assim, tinha sido eleito e reeleito várias vezes para salvar o país dessa bancarrota interna e todo o resto – notadamente de dimensão exterior – deveria ficar em quarto, quinto ou sexto plano. Não era prioridade frente à demanda de avivamento da dignidade do estadunidense. Por tudo isso, o envio físico de homens em uniforme para a Europa estava completamente fora de cogitação. O New Deal era para salvar os Estados Unidos da América e não a Europa nem o mundo inteiro.

Entrementes, o choque da queda da França tocou alguns corações e mentes norte-americanos. Pouco a pouco foi se notando que a deriva francesa punha em risco os princípios existenciais dos demais considerados democráticos, libertários e liberais como os norte-americanos, europeus e ocidentais. Consequentemente mais e mais os reclamos do primeiro-ministro de Her Majesty conseguiam audiência na América para lhe ouvir após a notícia da queda da França e da ocupação nazista do país.

Nesse sentido, as sondagens de opinião pública ocidentais indicavam que mais e mais norte-americanos desejavam a derrota de Hitler, o fim do nazismo e a ocaso dos extremismos fascistas e nazifascistas. Mas, da parte do presidente norte-americano, ainda não havia convicção para avançar. Por conta disso, ele sugeria à sua contraparte, o primeiro-ministro britânico, aguardar. Em verdade, o presidente Roosevelt estava mais atento às estimações para as urnas de novembro que aos tormentos dos europeus pela Europa. Os Estados Unidos viviam aquele seu momento sagrado de périplo eleitoral. Nada, portanto, retiraria a atenção dos norte-americanos dessa procissão. O presidente Roosevelt era candidato à sua própria reeleição. Nada poderia fragmentar os seus esforços em voltar a vencer. Nem mesmo a percepção da gravidade da entropia dos ditames ocidentais com a queda da França.

Uma vez reeleito, o mandatário norte-americano, enfim, pôde se virar com vagar para a agonia europeia.

Em verdade, desde o encontro da última chance em Munique em 1938 e desde a aliança Molotov-Ribbentrop firmada em Moscou em 1939 que as gentes da 10 Downing Street e do Palácio de Buckingham projetavam todas as suas esperanças em Washington, na Casa Branca e no presidente dos Estados Unidos. Mas, quando a Polônia, a Bélgica e a França caíram, essa projeção de esperança virou obsessão. Estava, desde ali, muito claro para eles que sem os irmãos norte-americanos seria impossível suportar Hitler, o nazismo e os demais extremismos. Como amostra desse desespero, estava evidente que sem um apoio norte-americano expressivo os súditos de Her Majesty não aguentariam por muito mais tempo o verdadeiro dilúvio de fogo que a Luftwaffe promovia no país. A Air Raid Precautions Committee – instaurada, bem treinada, conservada e motivada desde os anos de 1920 no núcleo da estratégia de defesa britânica – estava sendo muito útil e valorosa. Entretanto, já indicava fadiga. Os recursos para mantê-la começavam a rarear. Faltava, essencialmente, dinheiro. Dinheiro que os britânicos pareciam já não ter mais para aportar.

Para acomodar tudo isso que o presidente Roosevelt e o primeiro-ministro Churchill se viram em pessoa na primavera de 1941. A sanha nazista, fascista e nazifascista na Europa já tomava conta do tempo, dos relógios e dos calendários e nenhuma parcela dos domínios britânicos nem norte-americanos além terra e além-mar seguiam salvaguardados. A África e a Ásia – sem contar o deserto e o Oriente Médio – seguiam presas fáceis para a Wehrmacht, a Luftwaffe e todas as suas replicações nos países do eixo. Nenhum mar nem Oceano, assim, ficou a salvo nem à solta. Do Atlântico ao Mediterrâneo ao Vermelho ao Índico ao Pacífico tudo e todos viraram terrenos de disputa e conflagração. Essa imagem aterradora de desvirtuação do mundo, vista em detalhes, passou a preocupar muito os núcleos de decisão de Londres e de Washington. E, por isso, seus mandatários decidiram se entrevistar em pessoa naqueles dias.

Enquanto isso, o chefe de estado-maior norte-americano enviava briefings detalhados e ilustrados diuturnos ao presidente Roosevelt, aos membros do Congresso e notadamente aos membros do Senado. Do outro lado do Atlântico, o seu homólogo em função fazia o mesmo.

Essa verdadeira inflamação de encontro, informações e contatos levou as duas partes – Londres e Washington, Washington e Londres – a realizar a primeira grande conferência de uma série que foi a Conferência do Atlântico.

Finalizada no dia 14 de agosto de 1941 e iniciada cinco dias antes, nas imediações de Terra Nova, nos Estados Unidos, essa conferência reuniu, pela primeira vez, além dos magnânimos presidente Roosevelt e primeiro-ministro Churchill, a integralidade dos conselheiros civis e militares dos dois lados. Como resultado, as presenças mundiais das duas potências nos teatros planetários de guerra foram definidas. Os norte-americanos cuidariam do Pacífico e os britânicos, do Atlântico. Washington liberaria mais e mais recursos para Londres e Londres mobilizaria esforços para sobreviver e melhor otimizar movimentos de resistência ao hitlerismo na Europa. O Mediterrâneo e a África eram ainda incógnitas. Não se sabia ao certo como proceder. Mas o presidente Roosevelt tinha em tudo uma convicção e uma direção: a convicção e a direção da necessidade de se preservar – custasse o que custasse – as Quatro Liberdades wilsonianas e todos os preceitos de inviolabilidade dos territórios.

Eis aí a síntese das motivações da, doravante, afamada Carta do Atlântico que guiaria todos os espíritos aliados até o fim. Um fim que demoraria chegar. Mas que, agora, em agosto de 1941, começava, ao menos, a se desenhar.

Mesmo assim, os norte-americanos ainda se recusavam a ingressar inteiramente na guerra. Uma pesquisa de opinião realizada naquele agosto aferia que 80% da população era terminantemente contrária à guerra – leia-se: ao esforço de guerra norte-americano, com aumento do envio de recursos materiais, financeiros e humanos – e 60% desejava a derrota avassaladora da Alemanha. Acabar com a guerra e derrotar a Alemanha sem o apoio norte-americano era isso que desejavam os norte-americanos. Nesse sentido, as premissas da Carta do Atlântico ficaram estéreis.

Mas veio o incidente de Pearl Harbor que modificou tudo.

Após aqueles ataques de dezembro de 941, subitamente inclusive os norte-americanos mais reticentes decidiram adentrar o conflito. Desse modo, lutar e vencer a guerra deixavam de ser uma hipótese estratégica para se tornar uma convicção existencial. Os norte-americanos, assim, foram tornados em responsáveis morais pela defesa irremediável do Mundo Livre.

Essa fúria norte-americana diante do evento-monstro e infernal preocupou do primeiro-ministro britânico. Ele suspeitava e temia que o presidente Roosevelt e a Casa Branca poderiam abandoná-lo solito na Europa frente a Hitler. Devido a isso, no dia seguinte ao ataque dos japoneses ele atravessou novamente o Atlântico e foi implorar ao presidente Roosevelt que não desguarnecesse a Europa nem o Reino Unido. A vingança – tratada eufemisticamente como direito de defesa – era legítima, lembrava o primeiro-ministro. A agressão a Pearl Harbor fora sentida e vivida como um ato libidinoso asqueroso e brutal sem consentimento entre os norte-americanos. Uma agressão que ninguém, portanto, sem perdão. Mas focar no Pacífico em substituição à Europa causaria danos ainda maiores a todos. Nesse sentido, o presidente Roosevelt foi cauteloso, enfático e apaziguador. Disse à sua contraparte britânica, fique tranquilo: “Germany First”. A urgência focava eliminar Hitler. Do Japão cuidar-se-á depois.

Doravante, nesse entendimento, a máquina de guerra norte-americana começou a verdadeiramente operar multidimensionalmente e planetariamente. E com o aval e o suporte de toda opinião pública e política do país. Nesse sentido, nenhum político nem empresário nem jornalista ousava ser contra o novo momentum norte-americano. O presidente e, portanto, comandante-em-chefe das forças começava, assim, a exercer os seus plenos poderes para guerrear e iniciou um importante processo de integração e unificação dos esforços de guerra britânico e norte-americano.

O primeiro dos primeiros movimentos nesse sentido foi a fusão da gestão do processo decisório no âmbito militar a partir da criação do Combined Anglo-American Chiefs of Staff (CCS), com sede em Washington, a partir dos inícios de 1942. Dessa maneira, o alto-comando de parte a parte passaria a viver, estudar, projetar e decidir tudo em conjunto. Em adição a isso, outra evolução importante foi a junção do processo decisório no âmbito dos chefes de estado-maior de Londres e Washington. Desse modo, fez-se o Join Chiefs of Staffs – o mesmo que, depois da guerra, em 1947, seria ressignificado e transformado no Pentágono.

Tudo isso, enquanto enquadramento burocrático e administrativo para harmonização de interesses, foi algo simplesmente espetacular. Mas, no campo concreto e cruento da guerra, a notícia mais relevante veio do frio. Do frio de Moscou e do frio do semblante do camarada Stálin.

Em realidade, desde a Conferência do Atlântico que o presidente Roosevelt sinalizava para uma cooperação mais estreita com os soviéticos. Sem Stálin – intuía ele – seria impossível vencer Hitler. Hitler, naqueles tempos, já tinha tornado nulo o pacto germano-soviético de não agressão e marchava fagueiro para assaltar Moscou movido pela astúcia de superar os feitos de Napoleão; abraçando, domando e dominando o Urso. Tudo isso porque o sucesso da Blitzkrieg desde a Polônia – e o empilhamento de sucessos a seguir – acabou por inebriar a razão no interior do Führer a ponto de fazê-lo transitar de lunático a demente.

Por evidente que ele não leu Tolstói. Se tivesse lido dimensionaria a profundidade da Rússia. Por evidente que também levava pouco a sério o peso dos conselhos cartográficos de Clausewitz. Se o levasse saberia que a Rússia – e a Grande Rússia – nunca deixou de se imaginar eterna, eternal, atemporal, infinita. E saberia mais. Saberia que nunca – repita-se e entenda-se: nunca – gente da qualidade dos magnânimos Pedro nem Catarina se dignificaram a serem menores que Grandes.

Quem volta no tempo, bem antes de Tolstói, Napoleão, Clausewitz e mesmo do lendário Iván, o terrível, vai, enfim, entender – o que Hitler se negava a perceber – que a Rússia jamais se fiou em fronteiras. Consequentemente, como nos tempos do império romano ou do império do meio, os russos de sempre jamais se sentiram parte tampouco o centro do mundo. Entre eles, russos da Grande Rússia, só existe a Rússia e a convicção de que um mundo sem Rússia simplesmente não merece existir. Dito de modo menos críptico, os russos desde sempre seguem imbuídos a lutar até o seu último homem com fins de preservar a Rússia para sempre. Ninguém, assim, mais que eles, leva tão a sério o furor existencial e de sobrevivência. E Hitler sabia disso. Mas preferiu deixar de saber.

Entorpecido pelas vitórias temporárias desde Varsóvia até Paris, Hitler acreditou imatura e petulantemente na possibilidade de dominar territórios infinitos da Rússia e massacrar permanentemente os combatentes de Stálin. Ao fazê-lo, Stálin, por sua vez, apenas observou. E tão logo a Wehrmacht chegou às portas de Moscou em dezembro de 1941, o reflexo do herdeiro de Lênin foi o de exigir do seu Exército Vermelho que bloqueasse o avanço dos homens de Hitler até deixá-los inteiramente exangues. E assim se fez. O avanço das forças alemãs foi contido às portas de Moscou e Stálin seguiu meditando como melhor esmagá-las e conduzir a memória de seus restos mortais até Berlim.

Sim: tão demente quanto Hitler, Stálin incutiu no imaginário dos combatentes soviéticos o imperativo de se lutar a guerra de suas vidas para retirar a vida de todos aqueles que haviam malversado as nobres razões russas e soviéticas de existir. Tudo isso em dezembro de 1941-janeiro/fevereiro/março de 1942.

A chegada da notícia desses feitos em Londres e Washington reavivou a convicção do presidente Roosevelt em apoiar Stálin. Entretanto, apoiar Stálin seria literalmente negar o espírito das Quatro Liberdades wilsonianas entronizados na Carta do Atlântico de 1941. Isso tudo porque Stálin demandava a divisão da Europa em dois fronts, um ocidental e outro oriental, fazendo tombar o Leste europeu sob a responsabilidade dos soviéticos e o Oeste da Europa seria problema dos aliados. Afora isso, Stálin também queria integrar aos domínios soviéticos todos os territórios conquistados por Moscou a partir de 1939.

Dito sem remendos, apoiar Stálin era negar os consensos ocidentais. Mas, por outro lado, não apoiar era perder uma aliança decisiva no embate contra Hitler.

Difícil decisão. Decisão difícil.

Beijar ou não el diablo, eis a questão.

De toda sorte, com Stálin ou sem Stálin, a confluência de culturas militares, entre Londres e Washington, continuava importante e amadurecia as decisões a partir do Join Chiefs of Staffs entre os anglo-saxões mesmo após as notícias dos sucessos de Stálin.

Com isso, pouco a pouco, iam ficando evidentes as diferenças na percepção e as divergências no olhar de Londres e de Washington. Todos, britânicos e norte-americanos, queriam esmagar Hitler e salvar a Europa. Mas cada uma possuía o seu método e a sua maneira.

O chefe do estado-maior imperial acreditava que a melhor opção era cercar o Reich, recuperando posições, destronando seus apoiadores laterais e asfixiando a sua capacidade de existir. Do lado norte-americano, a concepção era bem mais ofensiva. O chefe de estado-maior norte-americano, ninguém menos que o general George Marshall, acreditava que a melhor saíra era o confronto direto, a devastação implacável e a condução do inimigo a uma capitulação incontornável e sem concessão.

Essa importante tensão de visões de mundo – mais que a decisão sobre o beijo bandido em Stálin – foi o que conduziu todo o debate estratégico entre os aliados naquele após Pearl Harbor.

Chegar a um meio-termo nisso tudo não era fácil. Mas seria necessário. Os norte-americanos tinham mais poder e recursos em tudo; e, por isso, em nada queriam em nada ceder. Os britânicos, por sua vez, tinham o peso da história de uma nação que do século 17 até então dominara o mundo inteiro sem partilha nem abonação. E, mais que isso, que sabia que, por mais que o dólar, em 1939-1942, já sobrepujasse a libra em expressão e aceitação, ainda era a Royal Navy que dominava todos os mares.

Nesse quadro, acabava por se estabelecer uma interdependência demasiado complexa. Pois, por um lado, sem o domínio dos mares, os norte-americanos não alcançariam os seus objetivos vitais no Pacífico. E, por outro lado, sem uma presença física dos norte-americanos no continente europeu seria impossível estraçalhar Hitler.

Nessa reflexão ficou, então, evidente que o envio de tropas norte-americanas de volta ao Velho Mundo seria mais e mais incontornável. Caso contrário, os homens de Stálin iriam, certo, esmagar todos os elementos nazista, fascistas e nazifascistas do Leste europeu, mas poderiam ultrapassar Berlim e povoar de vermelho a integralidade do continente do Atlântico ao Ural. O que simbolicamente seria muito pior e mais permanente que a queda da França.

Esse reflexo convenceu o presidente Roosevelt a aquiescer diante da demanda insistente dos generais britânicos do Staff integrado dos chefes de estado-maior anglo-saxônico. Mas, antes de decidir enviar seus soldados para a Europa, ele despachou para a Europa o general Dwight D. Eisenhower para averiguar a situação. Uma vez em posição, esse nobre general se convenceu e foi convencido da urgência do desembarque. E, sem tardar, voltou para Washington para convencer o seu chefe, o general George Marshall, e o seu magnânimo, o presidente Roosevelt.

Assim, o desembarque de tropas aliadas na Europa deixava de ser uma questão para virar uma decisão. Mesmo assim, o onde, como, quando e com quem reabriram o debate.

Nesse quesito, uma vez mais, o peso moral da história britânica contou e desde Londres advieram as melhores considerações.
Em Londres, a essa altura, residia ninguém menos que o maior representante da resistência europeia a Hitler que era o general De Gaulle. Malgrado desconsiderado, desrespeitado e mesmo humilhado pelos maiorais de Washington e de Londres, ele agora começava a ser útil e incontornável a todos.

O regime de Vichy era sabidamente frágil e carcomia a credibilidade do Reich de dentro pra fora da França. A colaboração dos franceses aos desígnios de Hitler na França era dinâmica e complexa e, em grande medida, também de fachada. Desde o Apelo do 18 de junho de 1940 que resistentes vinculados ao general De Gaulle seguiam atuando como agentes duplos por toda a França metropolitana e colonial. Desse modo, mobilizar esses homens do general De Gaulle por todas as partes com o propósito de reganhar os espaços franceses ocupados para o lado dos aliados era um dos argumentos centrais do primeiro-ministro britânico sobre a prioridade do desembarque. Dito de modo preciso, a recuperação do Norte da África para o campo dos aliados poderia ser o ponto de partida mais decisivo para a contraofensiva implacável rumo a Berlim.

Convencidos disso, os norte-americanos e os britânicos reuniram, então, esforços para desembarcar no Magreb. Faltava, no entanto, definir o onde, que foi meditado a palmos.

A Tunísia, o Egito e Líbia foram retirados de cogitação por estarem infestados de tropas nazistas e fascistas. Restaram, assim, o Marrocos e a Argélia. E foi para desembarcar neles que a operação Torch foi estruturada e executada. Era 8 de novembro de 1942. Um dia que marcou espíritos.

A partir desse dia, uma nova modalidade tática era colocada em marcha na Segunda Grande Guerra e pela primeira vez as forças norte-americanas teriam a ocasião de se encontrar face-to-face com temida Wehrmacht. Descidas no Marrocos e na Argélia, as forças aliadas iniciaram as batalhas de desocupação nazista da região. E logo no dia seguinte, no 9 de novembro, as tropas norte-americanas conseguiram emboscar as tropas alemães na Tunísia, no evento que entrou para a história como a batalha de Kasserine.

A vitória dos aliados nessa batalha daria o tom mental e moral de toda a reconquista do Norte da África. Era o primeiro desembarque e o primeiro desembarque feito conjuntamente. Os britânicos e notadamente o seu primeiro-ministro sabia exatamente da relevância daquele feito. Tanto que um dia depois do desembarque, palestrando em Londres num jantar entre confrades, o primeiro-ministro foi enfático em ponderar que “Now this is not the end. It is not even the beginning of the end. But it is, perhaps, the end of the beginning.” [Não é o fim ainda. Também não é o começo do fim. Mas pode, talvez, ser o fim do começo]. Luminoso. Profético. Genial. Era o fim do começo. Um começo iniciado nos desacertos de 1914-1917 e ressignificado nos eventos de dezembro de 1941.

O sucesso tático da operação Torch forjou a necessidade de outro balanço geral – feito aquele após Pearl Harbor – do lugar dos aliados nos teatros de guerra e na contraofensiva de liberação. Foi por isso que se fez a Conferência de Casablanca em janeiro de 1943.
A Conferência de Casablanca foi o primeiro encontro dos aliados magnânimos em terrenos reconquistados. Tratava-se, portanto, de algo muito importante naquele contexto. O presidente Roosevelt e o primeiro-ministro Churchill, assim, foram em pessoa para o Norte da África. Os seus principais oficiais e conselheiros fizeram o mesmo, vindos das mais variadas partes do mundo.

O entusiasmo do momento foi geral e a conversação foi em tudo amistosa. A ideia e a ação do desembarque tinham surtido efeito. Mas, agora, precisariam prosperar e se desdobrar.

O grande esperado desse encontro era o camarada Stálin. O presidente Roosevelt fez questão de convidá-lo e voltar a convidar várias vezes. Mas o soviético declinou. Sentiu-se diferente demais para participar. Entendeu ser uma festa dos aliados, com os quais a Rússia nem a União Soviética tinham parte. Nesse sentido, declinou ostensivamente e preferiu aguardar o bom momento.

De toda sorte, o cheiro da vitória começava a rondar as casernas dos aliados mesmo com a situação inteiramente incerta em todos os fronts. A Luftwaffe e Wehrmacht ainda constrangiam os soviéticos, agora, às portas de Stalingrado e colocavam em sobreaviso a todos os demais europeus desde Praga até Paris. Mas a decisão de desembarcar na Europa, ali em Casablanca, já estava tomada – o que ampliava a esperança dos aliados. Restava, assim, novamente, se definir o onde, o como e o quando.

Onde desembarcar na Europa precisava ser na Itália e depois na França. Isto estava pacificado. Na Itália para destronar o destronar o mais importante aliado nazista meridional. Na França para abrir o caminho para se liberar todo o Oeste da Europa e singrar às rápidas para destroçar Berlim. O como era simplesmente aperfeiçoando a experiência africana que havia sido uma excelente learning curve. O quando, sem receios, deveria ser o mais urgentemente possível.

Desse modo, quando os generais aliados retornaram para as suas bases depois do congraçamento em Casablanca eles levaram consigo convicções, ordenamentos e o calendário para seguir para o desembarque eficiente na Europa. Todos sabiam que nada poderia desfazer os imperativos da libertação da Europa e nada poderia atrasar a sua mise en place. Seis desembarques foram, assim, urgentemente projetados. Cinco na Itália e um na França.

Na Itália, um primeiro seria na Sicília sob a cobertura de operação Husky; outros em Salerno, na Calábria, e Tarento na forma de operação Avalanche, Baytown e Slapstick; e os últimos em Anzio e Nettuno como operação Shingle. Já na França o desembarque seria na Normandia sob a nominata de operação Overlord.

Nesses moldes, então, a operação Husky inauguraria, então, a presença dos aliados em teatros de operação majoritária e ofensivamente inimigos na Europa. Muitos homens experimentados na África foram mobilizados agora para desembarcar na Itália. Ao todo, essa primeira operação envolveu mais de 2.500 navios da Royal Navy para dar suporte ao desembarque de aproximadamente 200 mil homens liderados por comandantes do gabarito do general Bernard Montgomery, do general George Patton e do marechal Harold Alexander sob a condução geral do general Dwight D. Eisenhower.

Muita gente, muito empenho e muita determinação para vencer. O seu objetivo tático era a contenção geral da atuação da Wehrmacht na Itália. O que, em muitos aspectos, foi alcançado. Não sem custos humanos expressivos. Do lado alemão, entre 10 e 12 mil foram mortos ou feitos prisioneiros e perto de 20 mil saíram feridos. Do lado dos britânicos e norte-americanos, em torno de 22 mil pessoas foram mortas, feridas ou desaparecidas. Do lado italiano, perto de 110 mil homens, 10 mil veículos, 50 blindados e 200 peças de artilharia foram interceptados, contidos, desmobilizados e evacuadas.

Tecnicamente, portanto, um sucesso inconteste para os aliados.

Mas teve mais.

O objetivo estratégico da operação que era desconjuntar o regime fascista foi majoritário foi conquistado. Tanto que no dia 25 de julho de 1943, poucos dias depois do início da operação, o Duce foi preterido e os fascistas ficaram acéfalos. Adeus, fascistas e adeus, Benito Mussolini – que, pouco a pouco, foi retornando à sua obscura e insignificante condição de ser obscuro e insignificante.

Mas, nesse quesito, ainda teve mais.

Acima das tropas aliadas repletas de homens em uniforme existia muita gente em terno e gravata pensando, negociando e parlamentando destinos. Pois foi essa gente, em muito também destemida, que conduziu os italianos ao armistício no dia 8 de setembro de 1943. O que, no plano estratégico, foi uma vitória política e diplomática sem precedentes desde o início da guerra-mundo em 1937-1939. Nesse sentido, o mais importante aos preceitos democráticos e liberais era se notar que pela primeira vez desde o início das escaramuças a caneta voltava a valer mais que o canhão. O que representava um frescor sem par. Mas não sem consequências.
Tão logo descobriram a nova italiana, Hitler e entourage sorveram a notícia como uma traição. E, desse modo, reagiram como os nazistas reagiam: sendo nazistas.

Uma vez, portanto, formalizado o armistício, eles efetuaram uma triagem em todos os teatros de operação para saber quais italianos desejavam seguir com o Reich ou capitular com a Itália. Aqueles que optavam por voltar pra casa eram desarmados e feitos prisioneiros da Wehrmacht.

O caso mais complexo e sensível nesse ínterim teve lugar na ilha de Cefalônia onde a divisão italiana de Acqui recusou-se a devolver as armas e abriram fogo aos negociadores alemães. Como resposta, a Wehrmacht invadiu a ilha, fez de todos os antigos aliados prisioneiros e o Führer ordenou a execução sumária de todos eles, e inclusive do general Antonio Gandin, comandante da divisão. Foi verdade que nem todos os prisioneiros foram mortos. Dos sete mil prisioneiros, pelo menos dois mil perderam a vida. Mesmo assim, o extermínio da Cefalônia segue como um dos maiores crimes da Wehrmacht ao longo da segunda Grande Guerra e ajuda a explicitar ainda mais a dimensão demencial do Führer.

De toda maneira, os sucessos da operação Husky deram ânimo às demais operações na Itália – Avalanche, Baytown e Slapstick a partir de setembro de 1943 e a operação Shingle a partir de janeiro de 1944. As primeiras – Avalanche, Baytown e Slapstick – tiveram o mérito de afugentar a Wehrmacht em quase todas as suas frentes italianas. Mas foi a operação Shingle que materializou o turning point integral da situação.

Após a queda de Mussolini em julho de 1944 e o armistício em setembro, a zona italiana de combate foi progressivamente mundializada. Afora as tropas britânicas e norte-americanas, expedicionários canadenses, franceses, poloneses, italianos, neozelandeses e brasileiros engrossaram as frentes de contraofensiva pela libertação da Itália. Nessa nova conformação, o estado-maior britânico percebeu ser o momento ótimo para desbaratar o cerco alemão das imediações de Roma e, nesse propósito, liderou o desembarque anfíbio em Anzio. Anzio estava estrategicamente a 80 km ao norte da linha Gustavo e a 40 km de Roma. Chegar a Roma era objetivo. Mas para tanto seria necessário suplantar a linha Gustavo – fortificação alemã às voltas do Monte Cassino. Desse modo, uma vez em Anzio o próximo destino seria o Monte Cassino.

Foram quatro as batalhas implacáveis, do 17 de janeiro ao 18 de maio de 1944, pelo Monte Cassino. Mas nesse entremeio, o imponderável voltou a tomar conta da situação mediante a participação exitosa do corpo expedicionário francês, sob o comando do general Alphonse Juin.

Plenamente bem treinados e motivados, esses colonos franceses – mais que qualquer outro militar de qualquer outro lugar – tinham retirado a integralidade lição da pensée-Maginot que resultou na tragédia francesa de 1940. Sabiam, assim, que a sobrevalorização das fortificações como mecanismo de defesa era, ao fim das contas, um calcanhar de Aquiles de qualquer armada. Fora no caso da França em 1940 e poderia, assim, também ser no caso do Reich na Itália agora.

Nessa convicção, entraram, então, no teatro de operações com o objetivo tático de dispersar a atenção da Wehrmacht e ir recuperando territórios. Assim fizeram e tiveram nisso um sucesso extraordinário.

Entretanto, com a ocasião posta, a sua superioridade estratégica frente aos alemães sucumbiu à sua incontestável miséria humana ao encontro dos italianos.

Tão logo retomaram as vilas, depois dos combates sem perdão contra os homens da Wehrmacht, iniciaram uma barbarização sem precedentes ao encontro dos italianos. Nesse sentido, entraram a roubar, violentar, martirizar e matar os moradores locais e do entorno. Numerosas mulheres foram, assim, estupradas e ao menos 300 civis inocentes foram mortos.

Essa ação desbragadamente criminosa e sem nenhum sentido ficou conhecida como a Marocchinate. E, por conseguinte, impediu esses inquestionavelmente bravos expedicionários coloniais franceses de gravar seus nomes na liberação de Roma.

No dia 4 de junho de 1944, então, as forças aliadas entraram em Roma sem eles. Os homens da Wehrmacht tinham sido inteiramente evacuados da capital romana e acuados ao norte de Florença sem maiores capacidades de reação.

Aquele 4 de junho de 1944 foi um dia muito especial, portanto, pois o símbolo da maior aliança do Führer no continente se desfazia.
A agonia da guerra-mundo, no entanto, ainda levaria tempos para se resolver. Hitler sangrava, mas não morria. A Wehrmacht seguia cercada por todos os lados, mas ainda resistia. A África toda estava praticamente liberada, mas traumatizada e diminuída devido a toda aquela razia. A Europa meridional seguia toda ocupada pelos aliados, mas ao norte da Europa tinha tudo por se fazer. A fúria dos soviéticos seguia obsessiva a sua marcha até Berlim, mas isso colocava em contradição os sentimentos dos aliados em Washington, Londres e, agora, da Itália e da France libre do general De Gaulle.

Os preparativos para o desembarque na Normandia estavam todos finalizados, mas precisavam avoir son jour [ter seu dia]. De toda sorte, um adeus, Hitler e um adeus, Reich eram questão de tempo. Muito ou pouco tempo, era difícil saber. A determinação dos aliados e dos homens de Stálin para que o fim de Hitler fosse logo era impressionante. Mas, de volta à Itália, o momento agora era de se meditar. Os italianos tinham toda uma extraordinária civilização ancorada em Roma para reavivar.

Roma livre, um alívio. Que bonito, que romano. Tem oitenta anos.

PS: Reler Tolstói para entender o mundo de hoje, gentilmente publicado neste espaço do Jornal da USP no dia último 8 de abril, recebeu muitas manifestações de afeição, consideração e complemento. Malgrado muito ricas e estimulantes, reagir a elas seria uma operação quase sem fim. De toda sorte, como mostra de reconhecimento, respeito e atenção, gostaria de agradecer muito enfaticamente aos longos, importantes e gentis comentários do embaixador Paulo Roberto de Almeida, da professora Paola Giocomoni da Università di Trento e da Columbia University, do meu amigo Joacyr Bezerra de Lima e da minha mais que amiga Maria Eloisa Cardoso da Rosa, sem contar a minha eterna Nina.

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(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)


domingo, 12 de novembro de 2023

Tempos estranhos construídos entre nós - Daniel Afonso da Silva (Jornal da USP)

Tempos estranhos construídos entre nós

Por Daniel Afonso da Silva, pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (Nupri) da USP

  Jornal da USP: 10/11/2023 

https://jornal.usp.br/artigos/tempos-estranhos-construidos-entre-nos/


Virou criminoso ter ideias, tomar partidos, expressá-los. Ficou démodé tratar assuntos sérios, complexos e dinâmicos com a gravidade e o zelo que merecem. Está, como nunca, perigoso afirmar ponderações, convicções, avaliações. A sociedade brasileira – como todas as demais ocidentais e extremo-ocidentais – passou de sólida a líquida; e de líquida a mole. Sendo mole, perdeu a fluidez. Sem fluir, entrou em transe. Nesse transe, estancou a transição de melhoramentos. Sem melhorar, regrediu. Ao regredir, desesperou-se. Acelerou na curva e avançou em marcha à ré. Iniciou namoro desavergonhado com a obscuridade e com a desrazão. Questionando a civilização, reprimindo a civilidade, naturalizando o descontrole de pulsões. Quanta desonra. Sim: descivilização.

O incidente do 7 de outubro de 2023 no Oriente Médio mobilizou a atenção do mundo inteiro – o Brasil incluso. A brutalização das relações entre judeus e islamitas ganhou intensidade poucas vezes anotada. Centenas de pessoas foram assassinadas em instantes e outras tantas foram sequestradas a cativeiros sabe-se lá de qual salubridade. Como tudo hoje contém imediatidade, as imagens, os sons e os clamores médio-orientais inundaram rápido retinas e sentidos em todo o planeta. A indiferença virou instantaneamente impossível. Sucumbir a ela se firmou como sinônimo de covardia, desumanidade, indecência.

Autoridades israelitas se apressaram em classificar as atrocidades como o seu 11 de setembro em menção aos incidentes terroristas que abriram o novo século revelando a impotência da potência norte-americana em seu próprio território. A gravidade do simbolismo dessa comparação dispensa observações. Entusiastas da causa dos palestinos não titubearam em aplaudir a audácia dos ismaelitas radicais que na senda de Osama bin Laden continuam querendo islamizar o mundo inteiro. O impacto moral dessa louvação também dispensa análise demorada. Ausência de meio-termo. Pura e simplesmente isso. Uma ausência de meio-termo que inebriou qualquer ponderação. Avec Dieu, on ne discute pas! [Com Deus, não se discute], lembrou um politólogo argelino.

O extremismo da situação ostracizou as penúrias eslavas e as misérias africanas. O presidente ucraniano segue desesperado sem saber o que fazer. O clamor de Kiev, Kinshasa, Abuja, Bamako, Bangui foi retirado inteiramente dos focos de atenção. A guerra dos mundos saiu do itinerário de Washington, Paris, Londres, Berlim, Bruxelas, Moscou e Pequim para se imiscuir nas batalhas milenares intermináveis dos herdeiros abraâmicos em seus destinos médio-orientais.

Com Deus, por certo, não se discute. Mas as pessoas, de lado a lado, estão morrendo. E não somente islamitas e judeus. Mas também católicos, protestantes, agnósticos, hinduístas, animistas e toda a infinita variedade de abstêmios de fé. Que fazer?

Um alto funcionário do Estado de Israel classificou os palestinos – e não simplesmente os elementos do Hamas que tocaram o terror em Israel – de “animais” antes de endossar a supressão do fornecimento de gás, alimentos e medicamentos aos moradores de Gaza. Lideranças do Hamas em Doha, Teerã e Beirute prometeram reunir forças para, desta vez, eliminar até o último de seus oponentes infiéis.

Quanto ressentimento, quanto ódio, quanta dor.

Onde falta pão, vaticina o provérbio, todos brigam e ninguém tem razão. Todos ali, no Oriente Médio, islamitas, judeus ou não, desejam um simples seu lugar ao sol. Mas a Providência parece não cooperar. Tem mil e quinhentos anos que esse tormento dura. E vai seguir assim. E, por frigir assim, tudo exige imensa cautela, parcimônia, decência, honradez, civilidade e retidão. Não se deve, pois, jogar nem brincar com o sofrimento dos outros como informa um outro adágio conhecido e de valor.

No entanto, a professora Francirosy Campos Barbosa, em seu artigo Cantando al sol como la cigarra: enquanto o terror, publicado neste espaço, no dia 23 de outubro de 2023, evidenciou que por aqui, pelo Brasil, brasileiros não se cansam de jogar e brincar com o sofrimento alheio. E, pior, parecem, inclusive, gostar.

Pelo que ela reportou no artigo, após colaborar com órgãos de imprensa para o esclarecimento de aspectos da tormenta no Oriente Médio, ela começou “a receber inúmeros ataques, por e-mail e pelo Instagram”. E, diante do temor, obrigou-se a revelar aqui, no Jornal da USP: “Temo pela minha segurança e integridade física”.

Três dias depois, no 26 de outubro de 2023, a Comissão Arns, presidida pelo eminente advogado José Carlos Dias e pela digníssima Professora Emérita da USP Maria Victoria Benevides, enviou um ofício ao magnífico reitor da Universidade de São Paulo solicitando a “Defesa e proteção de docentes ameaçados pela manifestação sobre o conflito Israel e Hamas”.

Dispensa-se o cotejamento pessoal para se ter a convicção de que a professora Francirosy – com quem tenho a honra e o privilégio de figurar côte à côte neste espaço – expressa as qualidades de uma pessoa simpática, sensível, correta, inteligente e intelectualmente honesta. Basta que se leia o que ela escreve por aqui e alhures.

Ninguém, como se sabe, toca fundo no imaginário nem na alma de outro alguém – mesmo em divergência – sem praticar a nobreza desses predicados supramencionados. Ninguém desprovido desses predicados consegue adentrar em assuntos tão moralmente complexos, como esses da nova fase das agonias médio-orientais, de modo parcimonioso e tranquilo como a professora Francirosy aqui, ali e em toda parte o faz.

Constrange, porquanto, simular J’accuse sem ser Zola nem ter a ilusão de querer sê-lo. A professora Francirosy possui gente mais consistente para protegê-la. Mas, de toda sorte, constrange muito mais lembrar que a liberdade de expressão segue em vigor como um valor no âmbito da legislação brasileira e no interior de todas as convenções sobre garantias civilizacionais em todo o planeta. Constrange, assim, rememorar que gente civilizada conversa, persuade-se, reconhece-se, harmoniza tensões e elimina aporias. Mesmo com o silêncio. Muita vez com a ausência. Outras tantas somente com a retidão.

Nada disso reside exclusivamente em Hegel nem simplesmente nos iluministas obcecados pelo imperativo da razão. Um apóstolo primitivo, que renasceu no caminho de Damasco para depois morrer decapitado em fúrias romanas, já dizia “sede meus imitadores”, “amai-vos uns aos outros”. O budismo, o hinduísmo, o judaísmo, o espiritismo, todos os animismos e o islamismo comungam nessa métrica e forjaram civilizações mundo afora assentadas nessa convicção. Mas a agonia permanece, o dissenso reina e uma renovada selva selvagem transvestida de descivilização parece em toda parte se avizinhar. Infelizmente, desta vez agora, ao que tudo indica, sem Dante nem Virgílio tampouco Beatriz para algo salvar.

A professora Francirosy não ficou isolada nesse torvelinho da desrazão brasileira dos últimos dias. O professor Salem Hikmat Nasser, da Faculdade de Direto da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo, foi ainda mais hostilizado devido às suas sinceras e embasadas avaliações sobre as decorrências do 7 de outubro de 2023 em terras médio-orientais. Os seus contraditores, audazes e cruéis, permitiram-se formular uma petição pública solicitando o seu degredo. Inicialmente de seu espaço laboral, a FGV-SP. Em seguida de seu país, o Brasil. E, por fim, da face esférica deste firmamento; por assim dizer, desta vida.

Sim: em pleno século XXI, vivendo num país onde os seus paladinos se vangloriam do funcionamento das instituições, da qualidade de um regime político pretensamente democrático e da graciosidade de uma sociedade supostamente civilizada, professores são ameaçados de morte simplesmente por cumprir dimensões deontologicamente impostas pela sua função de elucidar.

Tem três anos que o professor Samuel Paty foi degolado à luz do dia na França pelo simples fato de lecionar uma das disciplinas alma mater das elucidações que segue sendo a história. Dominique Bernard, outro professor de História, foi assassinado, também sob a luz do sol, em seu ambiente de trabalho, semanas atrás, depois do 7 de outubro de 2023, pelas mesmas motivações radicais daqueles que acreditam e militam nas bases de absolutos étnico-religiosos impermeáveis à contradição, à divergência e à elucidação.

Pelo Brasil, ainda não se mata professor por isso. Ainda.

Excetuando-se matar, exemplos de agressão, hostilização, importunação, intimidação e humilhação de todo tipo viraram recorrentes no Brasil e em todas as partes do Ocidente e do extremo Ocidente. Cretinos, covardes e canalhas tornaram corriqueiro fustigar professor. E, por mais doentio que possa parecer, esses miseráveis parecem nisso orgasticamente se alegrar.

Instâncias públicas e privadas de monitoramento e controle seguem impotentes e sem nada efetivamente consistente aportar. O presidente Emmanuel Macron, na França, por Samuel Paty fez discursos, mobilizou recursos e pessoal, sinalizou campanhas e projetou ações. O assassinato de Dominique Bernard semanas atrás veio indicar, no entanto, que foi tudo – ou quase tudo – em vão.

Seguindo no velho mundo e retroagindo no tempo, vale sempre lembrar que Raymond Aron foi incontestavelmente um dos luminares do século XX. Seguramente um dos maiores intelectuais de sua época. Mas cometeu delitos gravíssimos aos olhos de seus coevos. Os seus principais desvios foram: 1) surfar a contravento; 2) recusar-se à hemiplegia de se enquadrar cega e ideologicamente à direita ou à esquerda; e 3) explicitar as suas posições, avaliações e elucidações a quem quiser e vier. Os seus contemporâneos não o perdoaram. Os seus detratores chegaram a afirmar ser melhor errar com Sartre (maoísta, esquerdista e confuso) que acertar com Aron. O ápice da contenda veio com os eventos de maio de 68. Diante daqueles espetáculos, Raymond Aron, que desceu às trincheiras da resistência ao nazismo com o general De Gaulle em 1940 para depois se afastar dele após a liberação de 1944, afirmou categoricamente ser “inadmissível e insuportável que um país sério como a França se permitisse retirar do poder o presidente-general Charles de Gaulle em favor do agitador-universitário Daniel Cohn-Bendit”. As suas razões e elucidações nesse expediente eram diversas. Mas a sua convicção profunda e inamovível remetia à memória dos ovos de serpentes que ele vira germinar na Alemanha dos anos de 1930. Ovos e serpentes que marinaram a ascensão de Hitler, do nazismo, do sem-nome, da Shoah. Em síntese, Aron acreditava no trágico. Sabia que por pouco, muito pouco, o nazismo e os demais totalitarismos deixaram de vencer. Antevia, assim, naqueles eventos de 1968, um perigo iminente. Um namoro incestuoso com o trágico. O trágico na vida e o trágico na história. Um namoro que poucos viam. E aqueles que viam fingiam não ver. Por tudo isso ver e dizer, esse gigante do século XX de nome Raymond Aron recebeu um lugar permanente no index da intelligentsia francesa até a sua morte no 17 de outubro de 1983.

Perguntar-se-ia, sutilmente, um desavisado onde estaria a liberdade de cátedra, a liberdade de expressão e a liberdade tout court.

Melhor não perguntar nem imaginar tampouco procurar. Há index em toda parte, a todos os gostos, com variada motivação.

De toda sorte, o passar dos anos foi evidenciando que as preocupações de Raymond Aron estavam recheadas de sentido e de razão. A trama por detrás do mantra do é proibido proibir impulsionou uma horizontalização da sociedade que, com o tempo, começou a retirar a bússola de todas as relações humanas não somente na França, mas em todo o Ocidente e Ocidente extremo. Avant la lettre, portanto, o sociólogo francês avistou o que hoje nos carcome: um pós-modernismo desvairado de mistura identitária e fúria woke.

Focado no Brasil, Nelson Rodrigues, um dos maiores luminares brasileiros de todos os tempos, foi dos primeiros a sentir os sinais de perigo aludidos nas preocupações do sociólogo francês. Perdida em vários lugares de sua extensa obra existe o alerta insistente ao fato de os “idiotas estarem perdendo a modéstia. [Pois] outrora silenciosos e contidos, agora – nos tempos do mestre pernambucano – esses canalhas, cretinos e covardes já maiorais, cheios de si, seguem loucos para aparecer”.

Morto no 21 de dezembro de 1980, quase três anos antes de Raymond Aron, Nelson Rodrigues foi – como Aron – privado da contemplação dos infortúnios que ele próprio percebeu e anunciou para os brasileiros. A imbecilidade dos idiotas foi pouco a pouco tomando conta da pátria Brasilis que ele tanto amou – mesmo sendo ele, Nelson Rodrigues, um simpatizante da máxima de Samuel Johnson que informa: patriotism is the last refuge of a scoundrel [o patriotismo é o último refúgio de um canalha].

Três lustros antes, no dia 2 de abril de 1964, o mineiro Tancredo de Almeida Neves classificou de “canalhas, canalhas” aqueles senhores que surrupiavam o poder para apagar as luzes da Revolução de 1930. Vinte anos depois, o deputado Ulysses Guimarães considerava que os gestos autoritários, inconsequentes e descivilizados daqueles canalhas, canalhas, fardados e sem farda, com dinheiro e sem dinheiro, seguiam vivos, abundantes e contagiando e amealhando seguidores com roupagens libertárias. E não tido por contente na recepção de sua avaliação, o marido da dona Mora Guimarães ainda vaticinou aos céticos que aguardassem, “pois os próximos [canalhas] serão ainda piores”.

Quase trinta anos depois, a gravidade dessa profecia macabra do sábio da redemocratização somada à desesperação de Nelson Rodrigues subiu à superfície da compreensão todos com os protestos das noites de junho de 2013. A partir deles, os imbecis, os canalhas, os covardes, os cretinos e os idiotas, outrora soterrados no anonimato de sua irrelevância, começaram a dominar, barbarizar e terrorizar ineditamente o espaço público brasileiro com a fluidez da internet. Umberto Eco – mais que Olavo de Carvalho – tinha razão: as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis.

Se esses imbecis devem ou não se manifestar, trata-se de uma outra discussão. Entretanto, segue fora de parlamentação se esses incontestáveis pulhas – imbecis ou não; fardados ou não; parlamentares ou não; políticos ou não; empresários ou gente do comum – devem ou não importunar, intimidar, fustigar, ameaçar, humilhar professor em geral, professor universitário em particular ou qualquer concidadão brasileiro de qualquer matiz. Não. Mil vezes não.

Quem se dedicar a meditar sobre as tensões civilizacionais por detrás de toda essa delicada discussão vai notar que instituições escolares, academias e universidades não representam que uma porção periférica, limitada e reduzida do imenso sistema universal de transmissão de conhecimentos, saberes e valores que é a educação. A educação formal – diga-se assim para se referir a instituições formais de ensino – vive sabidamente hodiernamente estágios de miséria, pilhéria e regressão no mundo inteiro. Especialmente nos espaços ocidentais e extremo-ocidentais. A razão essencial dessa queda aos infernos dessa dimensão da educação se deve ao fato de que, salvo exceções, a educação formal deixou de funcionar como elevador social. Os seus frequentadores descobriram que o seu futuro econômico, social, intelectual e cultural pode independer de um diploma de uma instituição de ensino. Como consequência, salvo melhor demonstração, os seus frequentadores que ainda não totalmente desertaram começaram a se autoimpor a incultura como missão. Ou seja, estão virando incultos obstinados. E, infelizmente, nada indica que disponham de motivação para voltar a desejar se cultivar.

O fim da história (que não aconteceu) trouxe paradoxalmente consigo o fim do gosto pelo saber como um valor em si. As consequências civilizacionais gerais disso estão aí para quem quiser ver, entender e sentir. Mas no cadinho limitado da educação formal esses efeitos parecem ser vistos sem ser notados. Desditos sem ser ditos. Sublimados sem ser contraditos. Dito de modo direto: com a desvalorização do gosto pelo saber, o professor, intermediador desse saber, virou objeto da desconstrução e do escárnio de uma civilização em acelerada putrefação.

Em contrário, perceba-se que no Brasil desde as noites brasileiras de junho de 2013 que uma verdadeira chusma de canalhas defende e difunde impune e inadvertidamente o imperativo da necessidade da desconstrução e da destruição das instituições formais de ensino no País. Especialmente daquelas públicas. Notadamente das universidades. Conseguintemente de seus profissionais. Singularmente de seus docentes.

Chegou-se ao cúmulo de se inocular no imaginário da população brasileira hors les murs que as universidades seriam simplesmente um antro de doutrinação marxista, iniciação a psicotrópicos, conivência com imoralidades, além de espaço de deformação de caráter e bons costumes.

Muitos, claro, acreditaram e acreditam.

Como consequência, a integralidade das categorias dos profissionais universitários – e muito especialmente os segmentos docentes – passou a amargar perseguições morais e funcionais, dentro e fora de seus locais de trabalho, como jamais se viu.

Sim. É isto mesmo. A descivilização na sociedade brasileira parece que chegou aonde ela deveria terminar. Foi, assim, portanto, ficando, por evidente, perigoso ser docente, ter ideias, tomar partidos, expressá-los.

Quando se lê na petição da Comissão Arns que: “Por fim, solicitamos que nos sejam informadas as medidas tomadas pela Universidade de São Paulo para a defesa do direito à livre expressão da professora Dra. Francirosy. E ficaremos agradecidos com as providências administrativas tomadas pela Reitoria para a defesa dos princípios citados e para a proteção dos docentes ameaçados”, a perplexidade generalizada fica tão imensa que chega a obliterar a dramaticidade da situação da Francirosy Campos Barbosa, do professor Salem Hikmat Nasser e de tantos outros anônimos interpelados diuturnamente pela desrazão. Inicia-se outra reflexão. Menos amena, muito profunda e sem respostas seguras. Começa-se a, singelamente, meditar sobre que sociedade é esta, que país é este, onde foi que nos permitimos tanto errar.

Tempos estranhos construídos entre nós.

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