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sábado, 18 de outubro de 2025

Às voltas com o adeus a Charles de Gaulle (1890-1970) - Daniel Afonso da Silva (Jornal da USP)

 

Às voltas com o adeus a Charles de Gaulle (1890-1970)

Por Daniel Afonso da Silva, pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP

  Publicado: 17/10/2025 às 20:18
Fazia frio naqueles dias em Paris. Uma penumbra ocre e uma brisa fina recobriam a capital e o país. Eram inícios de novembro. O ano, 1970. Cinco anos depois do fim do Concílio do Vaticano II e da morte de Winston Churchill.

Marguerite Duras (1914-1996), Marguerite Yourcenar (1903-1987) e Romain Gary (1914-1980) eram as grandes letras francesas do momento. Mémoire d’Hadrien de 1951, L’Amante anglaise de 1967 e La promesse de l’aube de 1960 funcionavam como síntese lírica daquela geração.

No cinema, a Nouvelle Vague. François Truffaut (1932-1984) e Jean-Luc Godard (1930-2022). Em cena, Alain Delon (1935-2024), Brigite Bardot, Jean Gabin (1904-1976) e Jean-Paul Belmondo (1933-2021). Rostos da França, rostos do mundo. Imortalizados em Plein soleil[O sol por testemunha], À bout de souffle[Acossado] e L’homme de Rio [O homem do Rio]. Catherine Deneuve e Gérard Depardieu eram revelações. Daniel Auteuil, uma promessa. Juliette Binoche, uma menina.

Na música, Serge Gainsbourg (1928-1991) dava o tom. No rock and roll, o Elvis Presley francês era Johnny Hallyday (1943-2017).

Na intelligentsia universitária, Claude Lévi-Strauss (1908-2009), Fernand Braudel (1902-1985), Jacques Lacan (1901-1981), Jean-Paul Sartre (1905-1980), Michel Foucault (1926-1984) e Raymond Aron (1905-1983) eram vivos e marcavam fundo o imaginário dos frequentadores do Quartier Latin, da Rue des écoles, da Rue Saint Guillaume, do Boulevard Saint Michel e do Boulevard Saint Germain.

Ainda no campus, Pierre George (1909-2006) e Yves Lacoste eram a Geografia por vocação.

No jornalismo, André Fontaine (1921-2013) e Jean Lacouture (1921-2015), as leituras diárias obrigatórias no Le Monde.

No futebol, como costume, os franceses não iam bem. Bem do contrário. Iam bastante mal. Ficando de fora da Copa do Mundo do México. E, por conseguinte, sendo obrigados a venerar os eminentes Gérson, Jairzinho, Pelé, Rivelino e Tostão da seleção brasileira campeã da competição daquele ano. 1970.

Um ano de virações, fins de ciclo, fins de tarde, fins de mês.

O mês era novembro.

Um duro e rigoroso inverno anunciava-se. Notáveis e populares antecipavam-se e resguardavam-se para o Natal. Historiadores e memorialistas meditavam sobre os melhores festejos pelo centenário da Comuna. Políticos e intelectuais ainda remoíam interpretações e memórias da debacle de 1940. A comunidade estrangeira ressentia a situação na Argélia. Franceses ultramarinos – comedidos, mas perplexos – ainda intentavam compreender as razões dos tumultos de maio de 1968 na capital. Europeus e norte-americanos faziam o mesmo para apreender as motivações do novo presidente francês, George Pompidou (1911-1974).

Esse era o quadro. Feito em cenário. Quase pintura. Tipo moldura. Tudo agitado e estático simultaneamente. Fluindo e estancando. Envolto às mais profundas e requintadas tradições francesas. Que pareciam eternas, atemporais. Quando uma notícia intempestiva aterrissou na paisagem. Primeiro como rumor. Depois, confirmação. E, ao fim, verdade.

O general De Gaulle não vinha mais. Acabara de morrer. Naquele novembro. No dia 9.

Tinha ano e meio que ele abdicara da presidência da França em favor de seu primeiro-ministro, George Pompidou. Dois anos e pouco que ele interpelara as protestações pelas ruas de Paris, partira para Baden-Baden, na Alemanha, parlamentara com o general Jacques Massu (1908-2002), retornara a Colombay-les-deux-Églises e regressara a Paris com a convicção de que não dava mais.

Mas seu passado seguia imenso.

Três anos antes de 1970 foi o seu “Vive le Québec libre” [Viva o Quebec livre]. Mais ou menos no mesmo momento de seu “Un peuple d’élite, sûr de lui-même et dominateur” [um povo de elite, seguro de si e dominador] a propósito dos judeus em Israel. Quatro anos antes de 1970 ocorreu a sua retração da França do comando integral da Otan. Cinco anos antes, a sua vitória sobre François Mitterrand (1916-1996) em sufrágio universal. Oito anos antes, a assinatura dos Acordos de Évian, sobre a sorte dos argelinos. Doze anos antes, ele havia sido conclamado ao poder supremo da França para criar a Quinta República Francesa. Vinte e quatro antes, ele tinha sido expulso da vida política do país após conduzir a sua liberação do jugo alemão dois anos antes. Vinte e seis anos antes, ele tinha declamado e imortalizado

Paris outragé! [Paris ultrajada!].
Paris brisé! [Paris quebrada!].
Paris martyrisé! [Paris martirizada!] Mais Paris libéré. [Mas Paris liberada].

Trinta anos antes, ele fizera o seu Apelo do 18 de junho de 1940, onde ponderou

Mais le dernier mot est-il dit? [a última palavra já foi dita?].
L’espérance doit-elle disparaître? [a esperança está condenada a desaparecer?].
La défaite est-elle définitive? [a derrota é definitiva?].

Quarenta e nove anos antes, ele casara-se com Yvonne de Gaulle (1970-1979). Cinquenta e quatro anos antes ocorreu o seu aprisionamento na Batalha de Verdun. Setenta e nove anos, onze meses e dois dias, o seu nascimento em Lille.

Apenas nisso, um gigante francês incontestavelmente.

Herói nacional.

Construtor do país.

Um homem de fé.

Católico praticante.

Fiador da França, da Europa e do Ocidente.

Sempre com uma certa ideia de cada um deles.

Mesmo assim ou talvez justamente por isso, sempre contestado e maltratado em toda a sua trajetória. Tido por louco. Traidor. Bandido. Rebelde. Malfazejo. Arrogante. Autoritário. Ditador.

Notadamente pela juventude da geração de baby boomers que lotou as ruas de Paris naquele maio de 1968 e não saiu mais.

Mas também pelos mais antigos.

Aqueles que foram e eram seus adversários e inimigos. Socialistas e comunistas sobretudo. Nostálgicos dos tempos de Léon Blum (1872-1950) e do Front populaire. Admiradores do marechal Philippe Pétain (1856-1951) também.

Todos muito duros com o general em vida.

Mas, agora, com ele morto, todos perplexos.

Consumidos por certa incompreensão.

O homem da resistência, do Apelo do 18 de Junho de 1940, da liberação de Paris, fundador da Quinta República não existia mais. Seria enterrado em breve. E levaria consigo referências morais instransponíveis da consciência da França, da Europa e do Ocidente. Como ocorrera cinco anos antes, na morte de Churchill. Mas, agora, talvez, ainda mais.

Pois, pouco a pouco, ainda naquele 9 de novembro de 1970, foi-se notando que essa perplexidade francesa invadia a Europa, os Estados Unidos, o Ocidente e o mundo inteiro e o vazio sem o general revelava-se monumental. Antes mesmo de seus obséquios e funerais.

Ainda naquele 9 de novembro, tão logo participadas da notícia, chancelarias dos quatro cantos do planeta fizeram instantaneamente chegar ao Quai d’Orsay e ao Élysée os seus pesares ao encontro da França, dos franceses e da família do general.

Ao mesmo tempo, mais de oitenta soberanos, chefes de estado e chefes de governo interditaram os seus afazeres e começaram a singrar pessoalmente para a França e para Paris. Outros tantos fizeram silêncio, pediram uma missa, caíram em contrição.

Os que vieram à França e a Paris chegaram devastados. Tapados de emoção. Cabisbaixos. Mirando o vazio. Procurando explicação.

A catedral de Notre-Dame de Paris foi, assim, pari passu, transformando-se em Notre-Dame do mundo. Com a reunião de praticamente todas as grandes autoridades mundiais presentes.

O presidente norte-americano, Richard Nixon (1913-1994). O primeiro-secretário soviético, Nikolaï Podgorny (1903-1983). O xá o Irã, Reza Pahlevi (1919-1980). O primeiro-ministro britânico, Anthony Eden (1897-1977). O assessor de Eden, Harold Wilson (1916-1995). O presidente do Senegal, Léopold Sedar Senghor (1906-2001). O presidente da Finlândia, Urho Kekkonen (1900-1986). O príncipe Charles representando Sua Majestade, a rainha Elizabeth II (1926-2022). A rainha Juliana (1909-2004) da Holanda. O imperador da Etiópia, Haile Selassié (1892-1975). O irmão do imperador Hussein da Jordânia. Dezenas de personalidades internacionais de estatura planetária como David Ben-Gurion (1986-1973), para mencionar apenas uma. Centenas de companheiros de farda da liberação de 1944. Oficiais da Legião de Honra e heróis da resistência. Praticamente todo o corpo diplomático estacionado em Paris, na França e imediações. Claramente todos os representantes dos corpos burocráticos intermediários de todos as entidades internacionais, públicas e privadas, acreditadas no governo francês e na administração de Paris. Praticamente todos os representantes das entidades religiosas ortodoxas, israelitas e ismaelitas assentados no país. Toda a classe política francesa. Todas as personalidades intelectuais, culturais e politicas relevantes no país. André Malraux (1901-1976), Alain Peyrefitte (1925-1999), Jacques Chaban-Delmas (1915-200), Valéry Giscard d’Estaing (1926-2020), Edgar Faure (1908-1988) e tantos outros. Adicionados às centenas de milhares de pessoas, conhecidas e anônimas, que não conseguiram adentrar a catedral. Onde o valoroso cardeal François Marty (1904-1994), em memória do general, fazia uma missa simples, baseada no Evangelho de João, como o general havia desejado.

Ninguém andava. Ninguém ouvia. Ninguém se movia.

Um silêncio imenso os invadia.

Lançando-os todos em labirintos vazios. Ocupados de lembranças.

Ao fundo, o coral executava Johann Sebastian Bach.

Lá fora, o aeroporto de Orly suspendeu as suas atividades. O transporte público de ônibus, trem e metrô também.

Floristas viram-se abarrotados com demandas de arranjos vindas aos borbotões de todas as partes do mundo. Da Grécia, dos Estados Unidos, das Américas, do Vietnã, da Arábia Saudita, da China.

Aliás, da China, Mao Tsé-Tung (1893-1976), em pessoa, ordenou a compra de oito furgões especiais de rosas, dálias, lis, crisântemos, violetas para adornar a cena. O adeus ao general. O adeus a Charles de Gaulle.

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(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)

quinta-feira, 3 de julho de 2025

A principal explicação para a atual crise fiscal: ninguém quer ceder - Paulo Feldmann (Jornal da USP)

A principal explicação para a atual crise fiscal: ninguém quer ceder

Por Paulo Feldmann, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP

Paulo Feldmann

https://jornal.usp.br/?p=906738

  Publicado Jornal da USP: 01/07/2025 às 16:44

No Brasil de hoje, o componente político está por trás de quase toda discussão econômica, e a questão do déficit fiscal não é diferente. Esse indicador consiste na diferença entre tudo o que o setor público arrecada e tudo o que gasta, excluindo o pagamento de juros. Se o valor é positivo, chama-se superávit fiscal.

Infelizmente, nos últimos cinco anos, apenas em 2022 o Brasil teve superávit, ou seja, temos tido predominantemente déficits fiscais. Isso quer dizer que o governo gasta mais que arrecada.

Importantíssimo frisar que nessa conta não entra o pagamento de juros para quem investiu em títulos do Governo Federal. Estes pagam taxa de inflação mais a taxa Selic — hoje de 15% ao ano —, o que significa que, em 2025, o País vai pagar mais de R$ 1 trilhão aos felizes compradores dos títulos do Tesouro.

Mas há algo interessante na discussão do déficit fiscal deste ano (0,5%) porque, lendo a mídia em geral, na grande maioria dos casos a impressão que fica é de que apenas o Governo Federal deveria cortar despesas. De maneira nenhuma queremos aqui defender o Poder Executivo: achamos, sim, que há muito o que fazer por parte do governo do presidente Lula em relação ao corte de despesas. Mas a impressão de que ele é o único responsável se deve ao fato de ser dele a obrigação de elaborar o orçamento da nação, que depois precisa ser aprovado junto ao Legislativo. Acontece que há uma parte importante dos gastos que oneram nosso déficit fiscal que são de responsabilidade do Legislativo e do Judiciário. É isso que vamos comentar abaixo.

O Poder Legislativo — principalmente, a Câmara dos Deputados — tem criado dificuldades para muitas das propostas feitas pelo ministro da Fazenda. Recusou o aumento do IOF, reprovou a proposta da volta de oneração da folha de pagamentos para empresas de 17 setores da economia e várias outras medidas que, se aprovadas, iriam aumentar muito a arrecadação do governo de forma a evitar o déficit fiscal. Por outro lado, o Legislativo não abre mão das emendas parlamentares que, só neste ano, já nos custaram R$ 55 milhões. E que, em 2026, deverão mais que dobrar pois trata-se de um ano eleitoral, e os deputados vão precisar de mais emendas secretas que favoreçam seus eleitores espalhados por todo o Brasil.

Ou seja, o Legislativo quer que os outros cortem, mas nunca ele próprio. Além disso, o Legislativo tem sido sistematicamente contrário a qualquer discussão relativa a supersalários e taxação aos super-ricos. Os parlamentares fazem questão de aprovar projetos em que enfiam seus “jabutis” e aprovam medidas como a da semana retrasada que vão onerar a conta de energia elétrica de todos os brasileiros a partir do próximo ano — o ano da eleição.

Algo semelhante acontece com o Poder Judiciário, sobejamente conhecido como um dos mais custosos do mundo. Os custos judiciários no Brasil atingem 1,4% do PIB, conforme divulgado pelo Tesouro, enquanto a média mundial é de 0,3 do PIB. Isso significa que, se no Brasil o gasto fosse equivalente à média mundial, a economia seria de R$ 140 bilhões. Só isso acabaria com o déficit fiscal. Boa parte dos supersalários também estão incluídos nos gastos do Judiciário.

A solução só virá se os três poderes cederem um pouco, e o Governo Federal concordar em promover alguma contenção, por exemplo, nos índices de reajuste de salário mínimo, pelo menos para os próximos anos. Os gastos de sua responsabilidade são também de muita importância, como o pagamento dos aposentados, dos salários dos servidores, dos benefícios sociais, da saúde e da educação, mas a maioria é indexada pelo IPCA mais aumento real do salário mínimo.

Em suma, há de haver uma grande negociação entre os três poderes, em que o fundamental seja obter o bem da nação, zerando-se o déficit fiscal já em 2026. Isso significa que cada parte deverá ceder um pouco. Ou seja, a crise é fiscal, mas o problema é político. Claro que esse tipo de negociação é muito complexo, mas já tivemos situações parecidas quando, em 1994, o presidente Itamar Franco implantou o Plano Real junto com seu ministro da Fazenda e liderou essa negociação com os outros poderes, o que, como se sabe, foi uma das razões para o sucesso do plano.

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(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)


terça-feira, 27 de maio de 2025

Os últimos martírios de Sobibor - Daniel Afonso da Silva (Jornal da USP)

Os últimos martírios de Sobibor

Por Daniel Afonso da Silva, pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP

  Jornal da USP,: 26/05/2025 às 19:59

Foi no Brasil. No 3 de outubro de 1980. Na pequena Atibaia. Interior de São Paulo. Que adormeceu, à tout jamais, o último facínora de Sobibor. Gustav Franz Wagner (1911-1980). Por alcunha, “besta”. Por verdade, “demônio”. “Besta” e “demônio” de Sobibor. Que, no Brasil, suicidou-se. E o fez pelo receio de ser assassinado. Pois um medo intenso que rondava o seu espírito. Feito materialização da lei do retorno. Trazendo de volta e contra ele todo o ódio que ele aplicara no extermínio de judeus nos tempos do Reich

(…)

Ler a íntegra aqui:

https://jornal.usp.br/articulistas/daniel-afonso-da-silva/os-ultimos-martirios-de-sobibor/