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sábado, 11 de março de 2023

A primeira classe também cai (desindustrialização no Brasil) - Bolívar Lamounier (OESP)

A primeira classe também cai

A questão não é escolher entre a reforma econômica e a política. É ter coragem para fazer as duas ao mesmo tempo. Sem isso, cedo ou tarde vamos para o buraco

 

* Bolívar Lamounier, O Estado de São Paulo

  11 de março de 2023

 

Nem uma criança de dez anos imagina que um avião, quando cai, se divide em duas partes, a dos pobres esborrachando-se no chão e a dos ricos seguindo normalmente o voo.

Nos céus, a hipótese é delirantemente fantasiosa. Na terra, nem tanto. Já aconteceu, e aqui mesmo, entre nós. A indústria brasileira chegou a representar 27% do Produto Interno Bruto (PIB). Caiu para 11%, metade da primeira classe. Hoje, o que a sustenta, e o resto da aeronave, é a outra metade da primeira classe, principalmente a exportação de commodities, e queira Deus que o crescimento da China se mantenha.

A queda da indústria no PIB deveu-se em sua maior parte ao chamado “custo Brasil”, que talvez devesse ser rebatizado “custo Brasília”, à força da competição internacional, mas talvez em sua maior parte ao próprio empresariado industrial, que desde os tempos getulistas pretendeu assistir ao filme pagando meia-entrada, como se fosse estudante. Quebraram todos. Quebrou a indústria. Quebrou o governo. E quebraram os cinemas – essa talvez a pior perda.

No fundo, tudo se resume ao fato de o País não ter uma elite digna do nome. Desde o final do século 19, o mundo tem vivido duas situações. Ou tem uma elite bem caracterizada, mas que em certos momentos se comporta como um bando de jumentos, ou não a tem e passa a depender de um só líder. Na Alemanha, nas três primeiras décadas que precederam a 1.ª Guerra Mundial, ocorreram as duas coisas ao mesmo tempo. Havia uma cabeça capaz de pensar, a do primeiro-ministro Otto von Bismarck. Não por acaso, o Kaiser o demitiu em 1890. Em todos os outros países predominava a outra situação. Havia elites, e todas queriam a guerra contra os demais, com fins expansionistas. Foram, e aprenderam a lição: 20 milhões de mortos em combate mais 21 milhões de vítimas da gripe espanhola, consequência direta da guerr a.

Reduzidas as proporções – porque nossa briga é de cachorro pequeno –, uma situação análoga veio à tona em 1944, no debate entre Roberto Simonsen e Eugênio Gudin, e ecoava o emergente profetismo de Celso Furtado, que pregava a industrialização de qualquer jeito, pela substituição de importações, tendo como trunfo, nos anos seguintes, o abundante contingente de “paus-de-arara” que começou a vir do Nordeste e os parcos recursos que o Estado arrancava da sociedade e transferia aos industriais-estudantes. Na posição contrária, estava o economista Eugênio Gudin, que advogava um crescimento industrial balanceado entre indústria e agricultura. Recorde-se que, àquela altura, os pregoeiros da industrialização a qualquer preço viam a agropecuária como um zero à esquerda, desinformados de que a revolução pecuária já estava em marcha, deflagrada pelos fazendeiros de Uberaba, que haviam viajado à Índia para trazer os primeiros espécimes das raças zebuínas.

O problema, pois, como se vê, é que o Brasil nunca teve e não tem uma elite que se possa levar a sério. Permito-me recordar-lhes que elite não é uma casta com ares aristocráticos nem um grupo de bilionários sem vocação empresarial, que só pensa em conhecer todos os recantos do mundo. Não temos uma elite e temos, logo ali, espreitando-nos, um baita dilema. De um lado, a velha forma de crescer com recursos supridos por um Estado falido, fórmula perempta, mas que continua a contar com apoio político. Do outro, nosso longamente esperado “estalo de Vieira”: uma economia mais aberta, investimentos estrangeiros para um setor privado dinâmico, uma revolução tecnológica (como a que Estados Unidos e Japão fizeram cada um nas três últimas décadas do século 19) e uma revoluç ão política que liquide de vez a cabeça patrimonialista de nossa máquina de Estado.

O que acima foi dito leva à inevitável conclusão de que os 50% de miseráveis que vivem da mão para a boca nada podem ser responsabilizados por nenhuma ocorrida no céu ou na terra, no passado ou no futuro, com ou sem vítimas mortais. Aqui, estamos falando de um grupo que ganhou numa Mega Sena invertida, aquele que vive em favelas, nas periferias, debaixo de viadutos – ou na rua mesmo, quando até nas favelas lhe faltam vagas. Volta e meia me perguntam: “Mas não foi ela que elegeu os que mandam no País?”. É claro que foi. É a lei da oferta e da procura. Votou (com o voto obrigatório) no que lhe foi ofertado.

Queira Deus que Lula, que de Getúlio já herdou o figurino de “pai dos pobres”, não queira também herdar o de profeta da industrialização com recursos públicos inexistentes. Ou melhor, recursos existentes, mas que estão ferreamente guardados nos colchões da multidão de picaretas corporativistas e numa infinidade de patifarias insculpidas na Constituição e nas leis estaduais e municipais. A questão não é escolher entre as duas reformas acima alinhavadas, a econômica e a política. É ter coragem para fazer as duas ao mesmo tempo. Sem isso, esteja o leitor certo de que cedo ou tarde vamos para o buraco, no céu ou na terra, e qualquer que seja a nossa classe.

*CIENTISTA POLÍTICO, SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS.

quinta-feira, 1 de julho de 2021

Bolivar Lamounier trata da morte anunciada dos regimes liberais

 Admirável análise realista das agruras temporárias da liberal democracia e das ameaças autoritárias, quando não tentações totalitárias, como alertou Jean-François Revel, e agora Bolívar Lamounier. Nossa democracia de baixa qualidade, a despeito dos arreganhos caudilhescos do genocida no poder, vai perdurar, e sempre de baixíssima qualidade, pois esta é a nossa infeliz condição. Vai demorar para construirmos um sistema representativo decente e um capitalismo razoável, vai demorar. A razão da demora? Insisto na responsabilidade principal: nossas elites — todas elas, não só o Grande Capital, sindicatos e corporações de Estado também— são muito MEDIOCRES!

Paulo Roberto de Almeida 

UM ABOMINÁVEL MUNDO NOVO?

Bolívar Lamounier - 29.06.2021


A democracia liberal mal se iniciava e sua morte já era anunciada dia sim e outro também. Um caso de mortalidade infantil.

No momento atual, com o mundo engolfado nessa monstruosa pandemia, ninguém se surpreenderá com o reaparecimento do tema. Agora, já mais que centenária, não há dúvida de que ela integra um grupo de altíssimo risco. Os fatores cogitados como causas do anunciado óbito variam, é claro, e é com eles que nos devemos preocupar. O mais invocado é uma reversão da interdependência mundial, cada país ensimesmando-se, concentrando-se em seus problemas internos  e deixando o resto ao Deus dará. Outra tecla continuamente martelada é a perda de hegemonia dos Estados Unidos, vale dizer, a  debilitação da grande potência do norte em relação às demais – à China, notadamente. Semanas atrás, Henry Kissinger discorreu longamente sobre esse tema, frisando que tal hipótese significaria a liquefação do ideário liberal frente ao férreo totalitarismo asiático. Tudo isso soa razoável no campo das hipóteses, mas se queremos pensar a sério sobre o futuro da democracia  liberal, precisamos de um recuo histórico maior e de mais cuidado com os conceitos.

Nunca é demais lembrar que a democracia liberal-representativa só começa a se configurar plenamente por volta da quarta década do século 19. Até então, com as exceções parciais  da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, o mundo se dividia em países desabridamente autoritários  e em embriões de democracia. Estes existiam em sociedades oligárquicas, nas quais o jogo político limitava-se a pequenos grupos  de elite – proprietários de terra, comerciantes e uns poucos profissionais liberais, como advogados e médicos. A  população habilitada a votar era uma minúscula parcela imersa numa vasta maioria analfabeta, empregada em atividades rurais e completamente excluída da vida pública. 

Um ponto importantíssimo, raramente ressaltado mesmo por renomados acadêmicos, é que esse era o cenário invocado pelos primeiros  críticos do liberalismo, que atestavam o óbito da democracia quando ela apenas engatinhava. Tomando a nuvem por Juno, tais críticos julgavam estar vendo um cemitério, e não o início de uma caminhada cheia de opções e possibilidades.

Tomando só os pontos mais importantes, a segunda pretensão de atestar o óbito da democracia surgiu entre a segunda e a terceira décadas do século XX, na esteira da Revolução Russa e da marcha fascista sobre Roma. O horizonte que agora se descortinava compunha-se de um elenco muito mais complexo, protagonistas sociais de maior peso, entre os quais os sindicatos e partidos ideológicos se destacava. Nesse novo enredo, o leit-motiv era o confronto entre o capital e o trabalho. Resumidamente, podemos pois afirmar que a traço distintivo desse novo quadro era uma abrupta elevação do nível dos conflitos. O segundo atestado de óbito parecia emergir praticamente pronto: a colisão de interesses agigantara-se a tal  ponto que a   capacidade de resistência das “débeis” instituições da democracia não era maior que casquinhas de sorvete. O futuro pertenceria, de um lado,  a ditaduras comunistas, assentadas em sistemas de partido único e, do outro, na violência nua e crua contra a resistência e na organização compulsória dos contendores em corporações, próprias do fascismo. 

No Brasil, o modelo corporativista foi experimentado para inglês ver por Getúlio Vargas, que nunca quis organização nenhuma e sim uma ditadura personalista respaldada pelo Exército. Mas quem lhe deu o cartão vermelho foi o próprio Exército – especificamente os “pracinhas” que haviam combatido na Itália e retornaram convencidos de que o regime de Mussolini era uma grande farsa. 

Finda a Segunda Guerra Mundial, os problemas e atores eram ainda basicamente esses, mas a ideia-força sob a qual a sociedade internacional se reorganizou foi o liberalismo (político e econômico). Desde então, apesar de seus avanços e retrocessos, a democracia liberal permanece como o mais importante princípio internacional para a legitimação do poder. O fascismo do tipo italiano sumiu do mapa e  o comunismo soviético cambaleou por mais 45 anos.       

O segundo pós-guerra, marcado pela Guerra Fria, permanece vivo em nossa memória. Rachou como fendas tectônicas quase todos os países democráticos,   turbinando fatores internos de radicalização política, como foi o caso, no Brasil, da contraposição entre o lacerdismo e o getulismo. Fato é que mesmo países autoritários (como Portugal e Espanha) e outros, democráticos, que haviam recaído temporariamente no  autoritarismo se reergueram. Os elementos internos de conflito que havia em todos eles foram bem ou mal equacionados através da retomada do sistema representativo. 

Nos últimos anos, temos visto por toda parte uma legião de coveiros ansiosos por atestar, dia sim, outro também, o “fim da democracia representativa”. Claro, nada é impossível. Um dia o mundo democrático poderá  sucumbir de vez. 

Mas três afirmações podem ser feitas sem temor de errar. Em escala mundial, essa alternativa antidemocrática será um “abominável mundo novo”, pois será necessariamente totalitário, experiência sobre a qual a Alemanha e a URSS nos ensinaram o suficiente no transcurso do século 20. 

A segunda afirmação é que, por si sós, crises econômicas e baboseiras ideológicas, com ou sem pandemias não provocam rupturas profundas na ordem constitucional  democrática. Estas decorrem da gana de poder de líderes desmiolados, que não se furtam a ameaçar o convívio civilizado nas sociedades que governam. Também aqui, o exemplo brasileiro é relevante. Apeado do poder pelos militares em 1945, Getúlio Vargas, numa entrevista famosa a Samuel Wainer, mandou este recado ao país: “Eu voltarei. Mas não como político. Como líder de massas”. Não é exagero dizer que tal declaração, respondida no mesmo tom por Carlos Lacerda, foi o estopim da radicalização dos anos cinquenta, que desaguou no golpe militar de 1964.       

Aqui chegamos à minha terceira afirmação, referente a um velho equívoco do debate sobre a democracia e o liberalismo. À capenga suposição de que o sistema político liberal só é concebível em sociedades que hajam atingido um elevado nível de desenvolvimento econômico, social e educacional. Ora, nenhum teórico liberal sério jamais afirmou que o regime democrático só seria possível numa sociedade igualitária, constituída por unidades iguais em massa e peso, como bolas numa mesa de bilhar. 

Desde seus primórdios, a democracia, como qualquer outro sistema, teve que enfrentar os dilemas da acumulação de capital (ou seja, o crescimento econômico) e a ordenação ou regulamentação institucional dos conflitos (instituições respeitadas), com as desigualdades e enfrentamentos que deles decorrem. 

Salta aos olhos que o mundo pós-pandêmico terá de enfrentar grandes desafios, mas não necessariamente desafios que ponham em xeque a própria sobrevivência da ordem liberal-democrática. No Brasil, por exemplo, os últimos sessenta ou setenta anos evidenciam equívocos monumentais. O mega-endividamento externo do general-presidente Ernesto Geisel e mais recentemente o criminoso desperdício de recursos com a construção de estádios da era Lula-Dilma, por exemplo. 

Na  citada sequência de tolices, não nos demos conta de que nossas prioridades tinham que ser o fortalecimento do setor privado da economia e a destinação  de vultosos recursos para os setores de ciência e tecnologia, saneamento básico, saúde e, naturalmente, educação básica.  Essa reorientação será um imperativo inarredável, em relação ao qual a transparência e as divergências inerentes à  democracia serão uma grande alavanca, e não um obstáculo, como não se cansam de afirmar os idiotas incuráveis e os pregoeiros do autoritarismo.