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terça-feira, 28 de maio de 2024

Foreign Relations of the United States (FRUS) ; Papers Diplomatiques français (Daniel Afonso da Silva)

Daniel Afonso da Silva, pesquisador de relações internacionais na USP, me envia as fontes documentais para o estudo da política externa dos países. Aqui a série de documentos diplomáticos americanos (um modelo para a organização dos papeis diplomáticos brasileiros, se tivéssemos um historiador oficial do Itamaraty): 

https://history.state.gov/historicaldocuments


 Daniel Afonso da Silva também me enviou o link para os papeis diplomáticos da França, com remissões aos documentos de outros países também: 

https://bibliotheque-numerique.diplomatie.gouv.fr/meae/

Uma ode ao octogenário da liberação de Paris - Daniel Afonso da Silva Jornal da USP

Uma ode ao octogenário da liberação de Paris

Por Daniel Afonso da Silva, pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP

 Jornal da USP, 28/05/2024

Para Cremilda Medina e para Rubens Ricupero

Aquele 25-26 de agosto de 1944 foi um momentum sem par. Os aliados retomavam Paris. Vichy agonizava os últimos suspiros. O Reich ainda não. Hitler – sem saber para onde olhar nem ir tampouco o que fazer – talvez. Era geral a entropia da aventura nazista. Os mais sapientes intuíam o fim próximo daquela história macabra. Muitos já sentiam o cheiro acre de seu ocaso.

Alguns poucos notavam um novo mundo nascendo. Perto, muito perto, dali. Perto a ponto de já tocar corações.

O desembarque aliado, no Norte da África e no Sul da Europa, tinha sido um sucesso. Agora se vivia o desembarque exitoso na França.

A maior tragédia do século 20 – quiçá de todos os tempos –, assim, ia se decompondo. Do Mediterrâneo ao Ural, tudo parecia ir se renovando. O Mundo Livre – liderado pelos Estados Unidos e simbolizado pelo Reino Unido – ia, aos poucos, recuperando posições. A Wehrmacht sangrava. A Luftwaffe seguia em desarranjo. A Kriegsmarine estava cada vez mais dilapidada. Não apenas na França. Mas em todas as partes e em todos os lugares em terra, ar e mar.

Uma nova fase começava a se abrir. O “fim do começo” – que o primeiro-ministro Churchill identificou no desembarque no Norte da África em fins de 1942 – virava, aos poucos, passado. Entre o desembarque na Itália, em meados 1943, e o desembarque na França, em meados em 1944, tinha tido início o “começo do fim”. A liberação de Roma, no 4 de junho de 1944, era um sinal eloquente da desordem do fascismo. O desembarque meritoso na Normandia, dois dias depois, no 6 de junho de 1944, era mais um passo firme rumo ao galardão. Precisava combinar com os russos sobre Berlim. Da parte dos aliados, o projeto, agora, entrando na França, era liberar Paris.

O responsável pelo Bombing Command, o Sir Arthur Harris, havia persuadido britânicos e norte-americanos da eficácia do dilúvio de fogo na contenção e destroçamento das forças alemãs espalhadas pela Europa. Nesse intento que, desde 1943, a USA Air Force e a Royal Air Force bombardeavam diuturnamente as posições do Reich em todas as partes mediante uma insistente tempestade de chumbo. Nas manhãs e tardes sob a mira determinada dos pilotos do presidente Roosevelt e nas noites e madrugadas sob a fúria desmedida dos súditos de His Majesty, Albert Frederick Arthur George, George VI.

O propósito geral era a amputação de regiões estratégicas do Reich de suas conexões com Berlim. Por conta disso, vias terrestres – estradas de ferro e estradas de chão e terra – foram amplamente destruídas. Todas as imediações do Ruhr – espaços abundantes em carvão e aço e, portanto, deverasmente importantes para os nazistas –, nesse intuito, foram, assim, comprometidas. O desejo de Sir Arthur Harris era a promoção de um sinistro geral e total. E assim se fez. A superioridade aérea e balística dos aliados, nesse momento da guerra, já era implacavelmente superior.

No biênio 1943-1944, os norte-americanos chegaram a fabricar o número mágico de 100 mil aparelhos anuais em média. Isso evidenciava que a ciência aeronáutica evoluíra consideravelmente de uma Grande Guerra à outra. A integração entre ciência – física, química, matemática e afins – e ciências militares a serviço da vitória chegara a níveis jamais vistos.

E nos dois lados do Atlântico.

Desde a queda da França, em junho de 1940, que o primeiro-ministro Churchill começou a despachar os principais cientistas britânicos para Estados Unidos para partilhar e aperfeiçoar os seus inventos, especialmente, os aeronáuticos. Por isso os inventos – entre eles, o mais conhecido, o radar – do cientista britânico Robert Watson-Watt foram apresentados às equipes dos professores John Randall e Henry Boot da Universidade de Birmingham e, em seguida, melhorados e incorporados aos desígnios do general George Marshall, chefe do estado-maior norte-americano.

Dois anos depois, a sinergia entre Londres e Washington em assuntos aéreos já era integral. Tanto que a formação de pilotos, depois da efeméride de dezembro 1941, começou a se fazer conjuntamente. Do mesmo modo que a mise en placede aviões operacionais. Tudo em sintonia. Uma sintonia que permitiu a otimização de esforços na ampliação da quantidade e da qualidade de pilotos e aviões. Tudo para esmagar o Reich. E os alemães perceberam isso do modo mais amargo: contando os seus mortos.

Anotada em perspectiva, foi impressionante a evolução da letalidade da USA Air Force e da Royal Air Force. No triênio 1940-1942, enquanto era pequena a sinergia aeronáutica anglo-saxônica, os bombardeios aliados mataram 11 mil civis e militares alemães. De 1943 a 1945, esse número subiu para 600 mil. O melhoramento da tecnologia aeronáutica dos aliados foi, assim, um claro diferencial tático e o seu imenso salto de qualidade representou um verdadeiro tour de forcenas batalhas.

Mas, não só.

Nem só de aprimoramento tecnológico, como sabido, depende a sorte de uma guerra. É sempre necessário algo mais. E esse algo mais estava contido no ímpeto de vingança dos britânicos. Um desejo profundo lastreado no sentimento de humilhação acumulado desde o início dos bombardeios alemães em 1940. Nenhum britânico conseguia esquecer o verdadeiro pandemônio aéreo promovido pela Luftwaffe. A Battle of Britain foi traumática demais. Numerosos londrinos, por exemplo, desenvolveram síndromes de pânico irreversíveis. Mesmo com bons radares, bons sistemas de comunicação e bons abrigos, o medo de morrer na tempestade de chumbo era tamanho que os paralisava. Uma revanche implacável era o único antídoto. Mas precisaria ser na mesma medida e no mesmo formato. Feito Juízo Final. Vindo dos céus. Com chamas e chumbo.

Por isso, tão logo a aliança com os norte-americanos virou mais efetiva, a demanda insistente dos britânicos ao presidente Roosevelt de ampliação dos investimentos conjuntos em aperfeiçoamento aeronáutico. Quando o dinheiro começou a chegar, eles iniciaram a materialização de sua vingança. E, nesse intuito, a partir de 1943, tornaram o bombardeio de alemães numa questão de honra nacional. Tanto que bombardearam sem perdão – mas com muito orgulho – todas as cidades estratégicas do Reich. Especialmente Hamburgo e Berlim.

Hitler, acuado, vendo isso, seguia imóvel.

Salvar Hamburgo e Berlim era importante. Mas manter posições no Norte da África e em toda a Itália era essencial. E, mais que tudo, acoimar Stálin no front Leste continuava sendo decididamente fundamental.

Que fazer?

Como fazer?

Onde focar?

Desde o front Leste, o momentum Paulus – da capitulação do marechal alemão Friedrich Wilhelm Ernst Paulus, às portas de Stalingrado, em fevereiro de 1943 – tinha alterado profundamente as percepções. As relações de força tinham sido amplamente revertidas. O sucesso soviético deixou tudo inebriante. A Wehrmacht – era verdade – seguia altiva por lá. Mas Stálin, com a capitulação do inimigo, passava a dominar agendas, relógios e calendários e retirava de Hitler o controle sobre todos os movimentos seguros do Reich em todos os teatros de operações entre Berlim e Moscou.

A carnificina de Stalingrado marcou espíritos. Ocorreu nela a maior batalha urbana jamais vista na história das guerras. E o sucesso soviético jamais fora imaginado por Hitler.

Esse sucesso elevou todo o moral dos soldados da União Soviética. Tudo neles virou extraordinário. Seus olhos reluziam e seus corações batiam mais forte. Ninguém entre eles parecia temer a morte. Vingar Moscou, vingar os soviéticos e vingar Stálin tinham virado a sua obsessão. Nada, assim, os impediria de singrar decididamente até Berlim.

Do lado oposto, os soldados do Reich começavam a fraquejar. As vigas morais do regime começavam a esmaecer e a invencibilidade dos alemães começava a ser, internamente, posta à prova.

Foi verdade que o rompimento da não agressão germano-soviética causou danos colaterais gigantescos à organização mental da gente de Moscou. Stálin e Molotov sabiam o que poderia acontecer. Mas quando aconteceu, ficaram atônitos. Mas, claro, não por muito tempo. Precisou “apenas” a contenção da Wehrmacht às portas de Moscou, no inverno de 1941-1942, para esses herdeiros de Lênin e Trotsky se recompor. E dessa recomposição veio o sucesso de Stalingrado.

O sucesso de Stalingrado foi produto da mutação mental do camarada Stálin. Ele poderia ser grosso, mas não era inteiramente estulto. Por conta disso, na viragem de 1941 para 1942, ele passou subitamente a respeitar os seus generais.

Quando isso aconteceu, os comissários do partido foram sutilmente retirados das deliberações operacionais, táticas e estratégicas. Em seguida, oficiais de todas as patentes passaram a ter voz e a ser sinceramente ouvidos. E, assim, o determinado marechal Júkov foi, enfim, investido em todos os seus poderes.

Diante dessa verdadeira metanoia soviética, desde os Estados Unidos, o general George Marshall passou a venerar a competência do Exército Vermelho. Consequentemente, o presidente Roosevelt – que nunca escondeu a sua admiração pela determinação dos mujiques – passou a considerar impossível vencer Hitler sem o apoio de Stálin. E o primeiro-ministro Churchill – que, de sua parte, nunca escondeu o seu desprezo pelo mandatário de Moscou – também se obrigou a mudar.

Dessa mudança súbita não demoraram os desdobramentos concretos, que os alemães começaram a imediatamente constatar. E da pior maneira. Com o aumento exponencial de jipes, furgões, furgonetas, caminhões com marca, brasão ou logotipo de empresas bélicas britânicas e norte-americanas sendo utilizados pelos soviéticos. A aliança entre Moscou, Londres e Washington, assim, começava a ser para valer, e Hitler, mais uma vez, não sabia o que fazer.

Tudo isso até valeria um canto de Camões.

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.”

Ninguém saiu incólume de Stalingrado.

Nem Hitler nem Stálin.

Nem o presidente Roosevelt nem o primeiro-ministro Churchill.

Mas, não.

Ou, pelo menos, não tão rapidamente assim.

Wehrmacht ainda dominava porções importantes do front Leste e o Führer ainda acreditava na vitória sobre Stálin. Mas a sua atenção estava dispersa demais. Ele olhava para Hamburgo, clamava por Berlim, sonhava com Moscou, chorava por Paulus, irritava-se com os desarranjos do Reich em Stalingrado, estatelava seus punhos em mesas e fuzilava com olhares o seu Großer Generalstab [estado-maior] enquanto gente da qualidade do general Dwight D. Eisenhower, do general Bernard Montgomery e do general George Patton começavam a dominar o Norte da África e a desembarcar no Sul da Europa.

O Reich – era verdade – estava cercado por todos os lados.

Desde no front Oeste pelos aliados e no Leste pelos soviéticos. Isso era claro desde 1941. Mas em 1942-1943, o primeiro-ministro britânico insistiu na criação de um terceiro front. O front do Mediterrâneo sob a responsabilidade de Londres.

Desde o desembarque na África, para ser justo, que o primeiro-ministro sugeria esse arranjo. Mas o alto-comando norte-americano sempre resistiu. No congraçamento em Casablanca, no Marrocos, em janeiro de 1943, no momento da conferência, o presidente Roosevelt – contrariando o seu chefe de estado-maior – aquiesceu frente à demanda. Dali em diante, os britânicos coordenariam as investidas na região.

Na conferência de Trident, em Washington, no mês de maio seguinte, o alto-comando norte-americano voltou a discutir o assunto. O general George Marshall hesitava muito sobre a capacidade dos britânicos. Mas os diplomatas do Departamento de Estado e “les visiteurs du soir” [conselheiros mais informais] da Casa Branca pensavam diferente. Entendiam que a divisão do front Oeste poderia otimizar a ofensiva.

O presidente Roosevelt os ouviu e, mais uma vez, ignorou os militares. Conseguintemente, no dia 10 de julho de 1943, teve início a operação Husky e o desembarque na Sicília sob a coordenação da gente de Londres.

O diferencial dessa coordenação foi a capacidade da inteligência militar britânica em despistar o Reich. O seu dispositivo Ultra, desde a Government Code and Cypher School, em Blentchley Park, quebrou altos níveis de criptografia do estado-maior alemão e inundou os sistemas de rádio e telex do Reich com informações falsas sobre o local, a data e o modo do desembarque dos aliados. Vários pontos do Mediterrâneo e até a Escandinávia foram falsamente informados. Planos e manobras espetaculares foram indicados. Tudo para confundir os soldados de Hitler, que, quando se aperceberam, os aliados já tinham adentrado o território italiano.

Mas a condução do primeiro-ministro britânico ia além. Ela propunha forçar o rompimento imediato da aliança entre Roma e Berlim para gerar defecções em cascata como ocorrera no armistício dos Búlgaros em setembro de 1918. Mais que isso, ela também sugeria que as penínsulas italianas deveriam virar pontos de apoio para a continuação do bombardeio de espaços estratégicos do Reich, como, por exemplo, as rotas de petróleo entre a Romênia e a Alemanha. Fazendo-se isso, a gente de Londres imaginava que seria possível a dominação do Mar Egeu, a retirada dos nazistas do Sudeste europeu e, quem sabe, a integração da Turquia na investida contra Hitler.

Mas a oposição dos militares norte-americanos voltou a se impor. Não às ideias do primeiro-ministro, consideradas como mera “imaginação”. Mas pelos desdobramentos do desembarque.
Os enviados do presidente Roosevelt queriam a rendição dos italianos mediante um texto curto, sem concessões nem maiores reflexões. Os súditos de His Majesty, por sua vez, desejavam uma longa convenção, com diversos dispositivos e muitas peças de convicção. Essa conversação não foi simples nem amena. Mas antes de ela chegar ao paralelismo, veio o 25 de julho de 1943, a destituição de Mussolini e a aceleração de tudo.

Se a gente do Reich ficou furiosa com o desembarque dos aliados na Itália, os italianos fascistas ficaram ainda mais. Como consequência, iniciaram a recomposição de seus quadros. A começar pelo próprio Duce. O caráter extemporâneo dessa decisão precipitou tudo. Os aliados se obrigaram a conversar com os novos italianos na função. Isso levou os norte-americanos a abandonar a disputa pelo formato do armistício e legar aos britânicos que fizessem como bem entendessem. Mas os italianos, por razões variadas, preferiram o texto curto sugerido por Washington em lugar do texto longo proposto por Londres. E o ato da rendição definitiva foi marcado para ocorrer, formalmente, no dia 3 de setembro de 1943.

Os desdobramentos de tudo isso – feitos como foram feitos, em afogadilho – foram francamente desastrosos.

A Itália foi simbolicamente instantaneamente cortada ao meio. O seu Sul virou um espaço dominado majoritariamente por aliados e o seu Norte, uma zona de influência das forças do Reich. O rei Vítor Emanuel III, cioso da preservação de seus interesses dinásticos, fugiu. O antigo chefe de estado-maior italiano, o general Pietro Badoglio, tornado primeiro-ministro na deposição de Mussolini, também declinou, desertou e desapareceu. Mussolini, por sua vez, intensificou tratativas com Hitler e o convenceu da continuação da aliança nazifascista no Norte da Itália.

Desse modo, os soldados do Reich recuperaram o Duce desde Roma e o conduziram em segurança até a região do Lago di Garda, na confluência de Lombardia, Vêneto e Trentino-Alto Adige, onde foi instaurada a Repubblica Sociale Italiana de Salò – ulteriormente imortalizada por Pier Paolo Pasolini em Salò – ou 120 dias de Sodoma.

Concomitantemente, naqueles inícios de setembro de 1943, as forças britânicas lideradas pelo general norte-americano Mark W. Clark desembarcaram em Messina, seguiram para o Norte de Salerno e foram bloqueadas pelas tropas do general Albert Kesselring. Essa demonstração de força persuadiu o estado-maior alemão a reagir. E, com isso, teve início a operação Axis. Que nada mais foi que um franco acerto de contas com os italianos desertores. Onde a Wehrmacht interceptou imediatamente vinte e cinco divisões italianas em solo italiano, desarmou os seus mais de 600 mil soldados e os enviou para as principais cidades do Reich em solo alemão na qualidade escravos de guerra para trabalhos forçados.

Tudo isso impôs aos diplomatas, militares e homens de influência em todos os núcleos de poder em Roma, Washington e Londres – e, quem sabe, até em Moscou – voltarem às mesas de negociação.

Tudo era simplesmente impressionante.

Quase tudo mudou subitamente após o 3 de setembro de 1943.

Hitler reagira, Mussolini renascera, os grandes dignatários italianos fugiram e os homens de Londres e Washington viam tudo aquilo bestializados. Não tinha jeito. Era imperativo superar a sangria. E, nesse empenho, os aliados voltaram a propor um texto de rendição longo aos moldes inicialmente sugeridos pelos britânicos. Tão logo se acertaram, o novo texto foi confeccionado e assinado pela Comissão Militar dos aliados no 29 de setembro de 1943. Como consequência, os italianos deixaram clara a sua situação e declararam guerra à Alemanha no dia no dia 13 de outubro de 1943.

Mesmo assim, o momento era complexo. Hitler e o Reich ainda dominavam fisicamente porções inteiras da Itália. A superação da linha Gustavo – fortificação entre Nápoles e Roma – ainda demandaria imensos esforços dos aliados. A libertação de Roma ainda figurava como um target distante. E todos sabiam que muito sangue ainda lavaria as vias romanas até se chegar a uma vitória total.

O primeiro-ministro Churchill havia prometido o sangue, o suor e as lágrimas de pelo menos 100 mil soldados britânicos. Mas, ao todo, até a liberação de Roma em junho de 1944 e a libertação de toda a Itália em abril de 1945, a campanha italiana faria mais de 312 mil baixas britânicas e norte-americanas ante 434 mil baixas alemãs. Sem se contar os danos colaterais e as indecências morais como a autorização do envio de praticamente todos os judeus de Roma para Auschwitz pelo receio de a Wehrmacht invadir e destruir o Vaticano. É difícil saber se Deus perdoou o Papa Pio XII por isso.

De toda sorte, aquele outono italiano de 1943 reorientou a geometria da guerra e, nesse sentido, o presidente Roosevelt convocou da Itália para Washington os seus principais generais – Eisenhower, Montgomery, Patton – para a preparação da operação decisiva contra Hitler no front Oeste que seria na França e por Paris.

A França – bem ou mal – era a maior conquista simbólica e moral de Hitler. Liberá-la era um imperativo para os aliados. Mas todos sabiam que não seria simples. O Reich faria de tudo para guardá-la. Toda a geração de alemães que amargou a inconstância da República de Weimar mantinha na memória e na retina os gestos arrogantes, prepotentes e incontinentes do primeiro-ministro francês George Clemenceau nas tratativas da paz após a guerra de 1914-1918. Os alemães nunca desejaram, portanto, simplesmente ocupar a França. Eles sempre quiseram humilhar os franceses. Como seus antepassados tinham feito em 1870-1871.

De toda sorte, o projeto da operação na França foi pensado ao longo de 1943 e o seu primeiro codinome foi Roundup. Mas os sucessos na Itália alteraram as pretensões. O George Marshall mensurou o desembarque na França como algo pessoal, feito o momento mais importante de sua vida. Como decorrência, procurou ampliar ao máximo o entusiasmo de seus comandados. E, para isso, modificou o codinome da operação para Overlord. Soberano. Só e apenas isso.

Overlord foi efetivamente gigantesca. Perto de 156 mil soldados foram mobilizados e treinados para desembarcar na Normandia a partir do 6 de junho de 1944. Outros 195 mil deram apoio no interior de 7 mil navios. E não menos de 15 mil fizeram sobrevoos de reconhecimento pilotando 11 mil e 500 aeronaves de todos os portes saídos de todos os hangares e porta-aviões de todos os aliados.

Nunca se viu nem se fizera uma operação militar assim. Talvez somente na imaginação de Homero. Quem sabe, nos tempos de Spartacus ou das Vidas Paralelas. Talvez nos mundos dos templários, Baudolino, Prestes João. Sabe-se lá. Mas em tempos contemporâneos, a Overlord foi humanamente sem par. Soberana.

Politicamente, ela foi conduzida pelo Supreme Allied Commander [comando supremo das forças aliadas na Europa] sob a direção do general Dwight D. Eisenhower. Como agentes complementares, foram designados o marechal aeronáutico britânico Arthur Tedder, o general norte-americano Bernard Montgomery, o marechal britânico Tradfford Leigh-Mallory e o almirante também britânico Bertram Ramsay. No plano dos contingentes, além dos britânicos e norte-americanos, foram também mobilizados expedicionários canadenses, poloneses e franceses. Mexicanos e brasileiros, ao que consta, ficaram apenas na Itália mesmo.

Tal e qual nos desembarques no Mediterrâneo, o ponto de partida operacional veio do empenho do serviço de inteligência britânico em desinformar o alto-comando do Reich. Dessa vez, os locatários de Blentchley Park inventaram a operação fictícia sob o nome Fortitude e intoxicaram os alemães com notas falsas sugerindo que o desembarque ocorreria em Pas-de-Calais a partir de abril de 1944. Nessa trilha desse engano, a Wehrmacht se moveu substancialmente para essa região francesa e a Luftwaffe bombardeou decididamente todas as suas linhas de acesso e trânsito. Consequentemente, cidades emblemáticas como Rouen, por exemplo, foram pesadamente destruídas e mais de 60 mil franceses perderam as suas vidas nesses bombardeios alemães antes mesmo do início do desembarque dos aliados no 6 de junho de 1944.

Uma vez consciente desses enganos, Hitler se viu novamente furioso. Mas, dessa vez, com agravantes. Mais que na Itália, o volume das tropas desembarcadas na Normandia era simplesmente verdadeiramente extraordinário. E o desespero no Reich também. Para conter, assim, esse mal-estar, restou ao Führer reabilitar aos fundamentos de sua diretiva n. 51 para a manutenção da presença nazista no Oeste da Europa e ampliar a sua batalha retórica para levantar o moral do Reich. Nesse empenho, ele voltou, então, a falar do inimigo “judeu-plutocrático” e a reavivar o fragmento de seu discurso do 1º de janeiro de 1944 que aduzia que, após os feitos italianos, “qualquer outro desembarque dos aliados na Europa fracassaria”.

Mas, pelo que se viu, não foi bem assim.

A partir do dia 12 de junho de 1944, os cinco setores do desembarque dos aliados na Normandia conseguiram ser reunidos e tornados operacionais. A Royal Navy e os United States Marine Corps conseguiram bloquear a movimentação da Kriegsmarine pelos mares e a USA Air Force e a Royal Air Force ampliaram a sua contenção da Wehrmacht e da Luftwaffe por terra e ar. Tudo isso para acelerar o acesso dos aliados no interior do país e pavimentar os melhores caminhos rumo a Paris.

Vendo tudo isso, o Führer decidiu modificar todo o alto-comando Reich no início de julho de 1944 – portanto, menos de um mês após o início do desembarque dos aliados.

Desse modo, ele indicou a troca do marechal Gerd von Rundstedt em favor do general Günther von Kluge para o Oberbefehlshaber West [alto-comando do Oeste da Europa] e depois, em cadeia, ordenou a modificação de todos os seus generais setoriais.

Como reação, os aliados intensificaram as ofensivas. E, não ao acaso, logo nesse início de julho, o general Bernard Montgomery começou a falar em “colossal cracks” para levantar o moral das tropas e o general George Patton, nos quadros da operação Cobra, coordenou um imenso bombardeio às divisões dos blindados alemães Lehr-Panzer. A demonstração de força, com isso, ganhava níveis inimagináveis.

Nisso tudo, em inícios de agosto de 1944, como última aposta para salvaguardar Paris, o mandatário do Reich nomeou o general Dietrich von Choltitz como novo Wehrmachtsbefehlshaber von Groß-Paris [comandante plenipotenciário da Wehrmacht em Paris]. E nesse ato a instrução nazista foi simples, clara, direta e sem arremedos: “[… a capital francesa] não deve cair nas mãos inimigas ou [se cair] somente como um chão de ruínas”.

Entretanto, o leite já ia quase todo derramado. Paris já era palco de intensa sublevação. A presença alemã não era mais sustentada. O regime de Vichy fazia água em todas as frentes. E os aliados já tinham tomado praticamente todas as suas cercanias.

Mesmo assim, o general alemão resistiu heroica e longamente. Nos mais de vinte dias que ficou na função, ele manteve amplas e fartas conversações diretas com Hitler, o Reich e seus aliados. Da mesma forma, que negociou incansavelmente com os enviados de Londres e Washington para tentar remediar a defecção alemã em Paris. Mas não teve jeito. No 25 de agosto de 1944, ele se rendeu e capitulou.

Tudo isso já tinha sido previsto por Berlim. Mesmo assim, os acessos de fúria do Führer foram imoderadamente incontidos. Aquela capitulação era um golpe duríssimo no Reich. Não era o final. Mas, seguramente, deverasmente, o mais letal.

O general Dwight D. Eisenhower sabia disso. Mas na qualidade de comandante geral da Overlord ele sabia mais. Sabia que era imensa a dimensão simbólica, espiritual e sensível daquele momento. Por conta disso, malgrado as forças norte-americanas já estivessem praticamente dentro de Paris na antevéspera da capitulação, ele determinou que os aliados aguardassem as tropas francesas para que os franceses iniciassem a liberação de Paris.

A honra militar jamais supera a honra do gesto político.

E, por isso, no momentum da assinatura do termo de rendição, diante do austero Hotel de Ville da capital francesa, o general Dietrich von Choltitz foi observado pelo silêncio vazio e perplexo do olhar dos determinados soldados franceses da segunda divisão regular de blindados liderada pelo general Philippe Leclerc.

Seguramente o general De Gaulle foi consultado para que o evento fosse feito assim. Certamente o próprio presidente Roosevelt e o primeiro-ministro Churchill também foram participados. Tudo ali, naquele 25 de agosto de 1944, era grande demais para ser tratado como mero detalhe de ofensiva militar. Liberar Paris era o passo mais importante dos aliados em toda a guerra. Todos sabiam do peso daquilo. Especialmente Hitler. Notadamente Stálin. O presidente Roosevelt, o primeiro-ministro Churchill e o próprio general De Gaulle nem se fale.

A queda da França em junho de 1940 fora um evento sem-nome. Nunca se vivenciara tamanha monstruosidade simbólica em nenhuma parte do mundo e em nenhum momento da existência do Ocidente. A capitulação passiva do marechal Pétain ampliou ainda mais a gravidade de tudo aquilo. O que era para ser só dramático virou infame. Um escárnio. A instauração do governo franco-nazista de Vichy instaurou uma chaga instantânea de desonra que nenhuma geração futura conseguiria superar.

O cultuado medievalista Marc Bloch, reagindo a tudo isso, entendeu se tratar de uma “étrange défaite” [estranha derrota]. Onde “Nos chefs n’ont pas su penser cette guerre. En d’autres termes, le triomphe des Allemands fut, essentiellement, une victoire intelectuelle et c’est peut-être ce qu’il y a là de plus grave” [Os nossos líderes não souberam pensar esta guerra. Em outros termos, o triunfo dos alemães foi, essencialmente, uma vitória intelectual e é talvez nisso resida o mais grave].

Essa aguda avaliação dominou interpretações. No entanto, ela obliterou que a França, ao fim das contas, era mundial. Pois o mundo inteiro falava, sonhava e amava em francês. Aquela, portanto, debacle dos franceses ultrapassaria rapidamente as cercanias da França e da Europa para tomar conta do mundo inteiro.

Primeiro com espanto. Depois com emoção. Por fim, em reação.

Sydney Morning Herald, do dia 14 de junho de 1940, sugeriu que, com a queda da França, “a luz da civilização se apagava”. O primeiro-ministro canadense Mackenzie King teria dito no 19 de junho que “le silence e la nuit sont tombés. Nous pleurons la tragédie d’une France brisée… Il est minuit en Europe” [o silêncio e a noite caíram. Nós choramos a tragédia de uma França aquebrantada. É meia-noite na Europa]. O principal jornal de Santiago do Chile da época, o Mercurio, acentuou, no 15 de junho, que “Paris havia entrado na noite”. O seu concorrente em Valparaiso, o South Pacific Mail, no mesmo diapasão, acentuou que “o mundo chora por Paris”.

O estupor geral foi, assim, imenso. A desesperação também.

Mas a queda da França foi bem mais que isso. Ela francamente destroçou o equilíbrio político, geopolítico, geoeconômico, geoestratégico e geodiplomático do planeta.

Os britânicos ficaram com receio das frotas marítimas francesas caírem sob o mando dos nazistas e, por isso, aceleraram o reconhecimento do movimento France Libre do general De Gaulle para tentar impedir que, ao menos, a marinha colonial francesa caísse no domínio do Reich. Do outro lado do mundo, no Japão, desde o 16 de junho de 1940, o príncipe e primeiro-ministro Fuminako Konoe apresentou uma nova orientação do expansionismo japonês a partir da ampliação de alianças com o Reich para mobilizar a marinha francesa da dominação dos mares do Sul no Pacífico.

Nos Estados Unidos, as implicações de tudo isso foram incrivelmente complexas. O Chicago Daily News, do 14 de junho de 1940, escancarava que “Paris falls ! France doomed, Britain next.” Essa premonição foi formatando o imaginário dos norte-americanos, que passaram a notar que o avanço de Hitler na Europa, ao fim das contas, solapava as quatro liberdades wilsonianas – entre elas, a democracia liberal e a liberdade de comércio – que regiam a própria condição de potência mundial dos Estados Unidos. Por conta disso, duas ou três semanas após a queda da França, o presidente Roosevelt liberou 50 destroyers [navios de guerra com dispositivos de interceptação e torpedos] aos britânicos em troca do direito de uso das bases navais de His Majesty em Terra Nova, Bahamas e Bermudas. E, nos meses de agosto e setembro de 1940, ele fez passar no Congresso norte-americano variados embargos sobre o aço, as ferragens e os demais produtos aeronáuticos demandados pelo Japão.

Na União Soviética, não foi diferente. O camarada Kruschev grafaria em suas Memórias que Stálin viveu um momento de transfiguração e ficou irreconhecível com a notícia da França. Ninguém em Moscou morria de amores por Paris. Mas a sua queda era uma sinalização mais que evidente de que o próximo target de Hitler seria Moscou.

Fala-se pouco, mas a queda da França também teve implicações no interior do próprio Eixo. O Duce ficou imediatamente extremamente excitado com a desgraça francesa. A sua excitação foi tamanha que ele mandou agendar um encontro de felicitações em pessoa com o seu homólogo nazista o quanto antes. Sem muitas questões, o encontro foi marcado para o dia 18 de junho de 1940 em Munique. E para Munique Mussolini levou o seu ministro do exterior Gian Galeazzo Ciano e um extenso plano de partilha dos domínios coloniais franceses. O congraçamento do Duce com o Führer foi, como de costume, caloroso, bem perto do carnal. Mas a excitação do primeiro foi interrompida quando o segundo rejeitou fleumaticamente o seu plano de conquista sobre os despojos da França. Contrariado e irritado, Mussolini retornou à Itália meditando sobre alternativas. E as encontrou. E, ainda no trajeto para Roma, convenceu os seus generais a iniciar imediatamente uma “guerra paralela”, autônoma do Eixo e de Hitler, no Mediterrâneo, para tomar o Egito do domínio britânico e avançar sobre a Grécia.

Mas isso não foi tudo.

A deriva francesa conduziu o Führer a convocar os seus aliados da Itália e do Japão para a pactuação de um acordo tripartite para a partilha do mundo. O teor desse acordo, assinado em Berlim, no dia 27 de setembro de 1940, indicava a harmonização da política exterior dos três países – Alemanha, Itália e Japão – para a afirmação uma New World Order na qual os italianos dominariam o sudeste europeu e os alemães, todo o resto da Europa, enquanto aos japoneses caberia desbaratar os norte-americanos da Ásia e seguir a sua expansão contra os chineses e contra os soviéticos. Se isso não bastasse, o ministro Ribbentrop ainda sugeriu a incorporação da Espanha do generalíssimo Francisco Franco nessa reconfiguração do mundo.

Nesse propósito, o Führer foi ter com Franco, no dia 16 de outubro de 1940, na comuna de Hendaye, nos Pirineus. A interação entre os seus diplomatas foi amena, mas conversação tête-à-tête entre eles, Hitler e Franco, foi péssima. A condição do general espanhol para a participação da Espanha naquele arranjo do Reich era a partilha dos domínios coloniais franceses. Mais precisamente do Marrocos (não necessariamente domínio colonial francês, mas historicamente sob sua forte influência) e a região de Orã na Argélia. Essa manobra deixou Hitler exasperado, e o acerto entre eles não avançou.

Revendo a queda da França por esses prismas e meditando sobre as suas implicações planetárias, fica evidente que aquela “étrange défaite” que aludia Marc Bloch fora, sim, “étrange”, mas “étrange” no mundo inteiro.

Internamente, o general De Gaulle foi dos primeiros a afirmar que aquela tragédia era uma continuação de 1914. O primeiro-ministro Churchill seguiu o general francês indicando se tratar de uma imensa noite escura. Alfred Rosenberg sugeriu que Hitler seria o novo “Napoléon de l’Europe” [Napoleão da Europa]. Hannah Arendt seguia considerando aquilo tudo como as fagulhas da grande explosão de 1914. E alguns mais embrenhados de História da França estabeleceriam paralelos daquele malaise terminal francês de 1940 com a derrota francesa na batalha de Pavie, no 24 de fevereiro de 1525, onde o rei François I teria dito que, para a França, “Toute est perdu fors l’honneur” [tudo se perdeu exceto a honra].

De toda sorte, no 14 de junho de 1940, quando a Wehrmacht começou a adentrar a capital francesa, mais de ¾ da população parisiense já tinha desertado. Menos, portanto, de 25% dos seus residentes permaneciam por lá. Por tudo isso, adiante, pouco a pouco, a cidade foi ficando alemã, falando alemão e vivendo ao estilo dos alemães. Monumentos emblemáticos – como a Ópera, a torre Eiffel, o hotel dos Inválidos, o Panteão, a basílica de Sacré-Coeur – passaram a ter o verniz do Reich. Apartamentos particulares e vilas privadas, hotéis e palácios públicos feitos o Bourbon, o Senado, as residências de ministros, imóveis industriais e comerciais, hospitais, cinemas e até prostíbulos [“maisons closes”] receberam o viés alemão.

Ao todo, foram milhões de ocupantes alemães que invadiram Paris e a França desse junho de 1940 até 1944 (1945-1947). Pelos números de Alya Aglan e Robert Frank, desembarcaram na França e, essencialmente, em Paris perto de 80 mil soldados alemães de junho a dezembro de 1940, mais 130 mil até fins de 1943 e mais um milhão e meio até agosto de 1944. Sem contar os milhares de nazistas civis alocados em todas as partes.

Quando, portanto, os aliados começaram a desembarcar na Normandia, no 6 de junho de 1944, era toda essa agonia generalizada que precisavam aplacar.

Complexo. Muito complexo. Difícil.

Complexo a ponto do general Dwight D. Eisenhower mandar os aliados aguardarem a chegada dos blindados do general Philippe Leclerc para adentrar Paris em agosto de 1944 e difícil a ponto do presidente Roosevelt, do primeiro-ministro Churchill e mesmo do camarada Stálin não terem argumentos para negar a reivindicação do general De Gaulle para o ingresso da França como membro permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas após a guerra.

Por tudo isso, aquele 25-26 de agosto de 1944 foi um momentum verdadeiramente sem par.

Menos de vinte e quatro horas depois da capitulação do general Dietrich von Choltitz, no dia 25 de agosto de 1944, o general De Gaulle adentrou Paris como um general pródigo. Feito, sim, o filho da pátria, enfim, de retorno.

Como dimensionar as suas emoções?

Como mensurar as emoções do homem de carne e osso que habitava as suas vestes de general?

Como recompor as emoções de todas as pessoas, notórias e ordinárias, que confiaram em sua determinação desde a debacle francesa de 1940 até aquela liberação em 1944?

Ninguém foi mais resiliente e consistente que ele ao longo de toda a guerra-mundo. Nem o presidente Roosevelt, tampouco o primeiro-ministro Churchill. As circunstâncias da deriva francesa, da deserção para Londres, da condução da resistência, da peregrinação pela África, da humilhação e do escárnio de todos os lados, notadamente desde Londres e Washington, do descrédito absoluto vindo de Moscou, do desprezo sem tamanho oriundo de Roma, Berlim, Madri e Tóquio, da indiferença desmedida de seus antigos liderados integrados ao governo de Vichy, da construção de solidariedades planetárias, do afeto dos militares dos países latino-americanos, da condescendência dos enviados brasileiros – mais diretamente do embaixador Vasco Leitão da Cunha – na Argélia, da compreensão dos seus antigos alunos africanos, da simples esperança no fim daquele martírio e da clarividência da dimensão profundamente histórica de tudo aquilo fizeram do general De Gaulle uma personagem incontornável de toda a Grande História daquele período. Não foi, assim, ao acaso que jornalistas, fotógrafos, cineastas, autoridades, artistas, militares, políticos e curiosos do mundo inteiro singraram para a capital francesa para acompanhar a sua chegada. Ninguém tinha dúvidas que, com o seu retorno, Paris voltava a ser Paris e a França, a França.

O simbolismo de tudo aquilo era imenso. E, talvez, sem par.

Embebido daquilo tudo, o general De Gaulle desembarcou no Arco do Triunfo em tributo aos resistentes em uniforme, ao soldado desconhecido e a todos os herdeiros de Napoleão. Em seguida, desceu caminhando em modo civil a avenida Champs-Élysées até a praça da Concórdia acenando para os populares em demonstração de deferência ao gigantesco momento histórico que todos ali viviam. Desde a Concórdia, ele seguiu em carro aberto pela rue de Rivoli, passando pelo Lovre, com destino à Notre-Dame-de-Paris. Era preciso agradecer, e ele queria agradecer.

A libertação de Paris tinha sido feita por gente de carne e osso. Mas o general De Gaulle acreditava que aquele sucesso decorria de arranjos divinos e celestiais. Coisa dos céus, coisa de Deus. Mesmo militar, general e herói da Grande Guerra de 1914-1918, Charles de Gaulle era, antes e acima de tudo, um católico fervoroso de fé cristã inquebrantável. Leitor infatigável da Bíblia, ele conhecia os Evangelhos de cor. Não ao acaso, vendo assim, o seu Apelo do 18 de Junho de 1940 teve um tom profético.

Mais le dernier mot est-il dit?” [a última palavra já foi dita?].

L’espérance doit-elle disparaître?” [a esperança está condenada a desaparecer?].

La défaite est-elle définitive?” [a derrota é definitiva?].

Onde todas essas perguntas conduziam a um “Non!” [não] retumbante, teleológico e condutor. Como anunciando a alvorada, o regozijo da vitória e o semblante inesquecível do dia bom.

Isso tudo em 1940. No 18 de junho de 1940. Quando tudo parecia perdido.

Agora, no 25-26 de agosto de 1944, diante da graça da liberação, restava a ele concluir a sua epopeica formulação profética. Que ele fez com:

Paris outragé!” [Paris ultrajada!]

Paris brisé!” [Paris quebrada!]

Paris martyrisé!” [Paris martirizada!].

Mais Paris libéré.” [Mas Paris liberada].

Bonito, excepcional, francês.

Tem oitenta anos.

P.S.: Uma ode ao octogenário da liberação de Roma, gentilmente publicado neste espaço do Jornal da USP, no último 29 de abril, recebeu expressivas manifestações de atenção. Francesco Franz Guerra, Joacyr de Lima, Juan Federer, Maria Eloísa, Paola Giacomoni e Ricardo Ortiz identificaram lapsos, sugeriram correções e aportaram complementos. Nina esteve presente em tudo. O embaixador Paulo Roberto de Almeida republicou a integralidade do artigo em seu prestigioso Diplomatizzando e ainda adicionou um generoso comentário de abertura. Mas a querida professora Cremilda Celeste de Araújo Medina, aqui da USP, e o querido embaixador Rubens Ricupero de tantos lugares roubaram a cena com comentários sinceramente arrebatadores, desconcertantes e iluminados. Tanto que decidi refazer este texto – que, no início, era bem curto – sobre a libertação de Paris para singelamente dedicar a eles dois, Medina e Ricupero, exemplos de vitalidade intelectual para todos nós.

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(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.


Carta do Atlântico: o início da ordem mundial da atualidade, que alguns querem trocar por uma nova - trechos de Last Lion, de William Manchester

Seleciono alguns trechos de um livro que li poucos anos atrás, do qual me lembrei ao ler o excelente artigo de Daniel Afonso da Silva, pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP,  "Uma Ode ao Octogenário da Liberação de Paris", no Jornal da USP (https://jornal.usp.br/articulistas/daniel-afonso-da-silva/uma-ode-ao-octogenario-da-liberacao-de-paris/).

O livro é este: William Manchester e Paul Reid, The Last Lion: Winston Spencer Churchill, Defender of the Realm, 1940-1965 (New York: Bantam Books, 2013), p. 394-395: 

"In its final form, the Atlantic Charter contained eight points, including the pledge that the United States and Great Britain would seek no territorial gains 'after the final destruction of the Nazi tyranny'. (...) Point Four had to do with free trade; specifically, it guaranteed that raw materials and trade would be enjoyed by all states 'on equal terms'. (...)

Point Eight ... called for peace following the war, but recommend no means to keep that peace. [Churchill] south inclusion of a declaration of intent to form a world organization – a sort of League of Nations with muscle – led by the English-speaking world in order to guarantee the peace. (...)

Point Three ... contained the seed most likely to grow into bitter fruit. It guaranteed 'the right of all peoples to choose the form of government under which they will live', as well as the restoration of 'sovereign rights  and self-government  to those who have been forcibly deprived of them'."  


terça-feira, 30 de abril de 2024

Uma ode ao octogenário da liberação de Roma - Daniel Afonso da Silva (Jornal da USP)

Uma síntese genial de todo o processo político que vai da Grande Guerra à queda de Roma, em 1944, e das várias etapas de recuperação aliada contra as poderosas forcas nazi-fascistas. Uma leitura das mais instrutivas, contendo informações coletadas numa ampla literatura da história europeia e mundial, assim como de obras de referência sobre a Segunda Guerra, que no entanto permanecem na moita.

Poucas vezes li, na produção acadêmica brasileira uma tal capacidade de síntese sobre o período mais decisivo do século XX, sua primeira metade.

Paulo Roberto de Almeida.

Uma ode ao octogenário da liberação de Roma

Por Daniel Afonso da Silva, pesquisador no Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP

 Jornal da USP, 29/04/2024

https://jornal.usp.br/articulistas/daniel-afonso-da-silva/uma-ode-ao-octogenario-da-liberacao-de-roma/

Para Gabriel Yuji Kuwamoto Silva (1996-2024).

Aquele 4 de junho de 1944 foi um dia muito especial. Os aliados finalmente libertavam Roma. A tentação do Reich esmaecia. Hitler estava mais e mais acuado, sentido e deprimido. A Wehrmarcht caia na defensiva. O desembarque aliado na Europa estava sendo um sucesso. As forças britânicas e norte-americanas de terra, mar e ar conseguiram integrar perfeitamente os seus esforços de guerra, ação e intervenção na direção de vencer o inimigo nazista, fascista e nazifascista, conter os extremismos de todos eles e reabilitar a esperança de dias bons.

Desde meados de 1914 que os dias viraram noite de tez muito escura. Todas as relações humanas foram brutalizadas. Nenhum setor da vida foi poupado. Todos os instintos primitivos foram avivados. A selvageria consciente rondou todas as casas e misérias da natureza humana adentrou fartos corações.

O 11 de novembro de 1918 foi, em contraponto, um alívio. Nenhum sobrevivente viveu esse dia sem emoção. O terror das trincheiras que havia trazido o Hades para este mundo parecia retrair. Mas a dor da lembrança era imensa. Tamanha que nem a fé – em Cristo ou em qualquer outro – permitiu aos homens remediar.

Viveu-se, de 1914 a 1918, assim, às voltas com o Inferno sob as primícias do Armagedom. O carisma do presidente Woodrow Wilson contrastou recalibrou essa imagem. A sua candura no falar, no pensar e no mover dava fortes significados àquele fim de guerra, fim de vida, fim de tarde, fim de mês. Um novo tempo se abria. Ninguém, por certo, conseguia obliterar o odor das trincheiras. Sociedades inteiras perderam a sua razão de existir. Muitas outras inclusive perderam o seu chão. Nesse torvelinho, especialmente os europeus entenderam que as ambições gerais de potência e de poder tinham ido longe demais. Certo que eles mesmos, europeus, guerreavam entre si desde a noite dos tempos. Mas desde Borodino, Austerlitz, Jena, Auerstedt e Iena – mais sangrentas batalhas dos tempos de Napoleão – eles poderiam ter retirado alguma lição.

Mas, não.

Adiante, nenhum europeu informado ou não se esqueceu da simbólica humilhação entronizada naquele dia 18 de janeiro de 1871 quando o rei da Prússia, na Galeria de Espelhos do Palácio de Versalhes, foi proclamado imperador da Alemanha. Mesmo que Otto von Bismarck tenha merecido a alcunha de “bom” – leia: “homem bom” –, os seus sucessores alimentaram o sucesso da tragédia. Uma tragédia moral, espiritual, cultural, militar, intelectual, estratégia, tática, operacional e singelamente humana que aquele dia 11 de novembro de 1918 prometia conter.

Mas, novamente, não.

O que se anotou do lendemain e depois foi a derrota insistente da capacidade de todos de construção da paz. Os vencedores de agora seguiam insatisfeitos e os perdedores de sempre queriam voltar a se afrontar. A fúria interior de todos era muito grande. O ressentimento então, nem se fale. Benito Mussolini desde a Itália liderava a exaltação de um novo homem a partir do homem novo que seria marinado no deslumbre pela força, virilidade, obediência irrestrita ao chefe, ao mandatário, ao másculo, ao líder, ao guia. Eis o espírito do nazismo.

Pelo restante da Europa e além essa exaltação ao super macho rastejante das trincheiras virou modelar. Tudo porque, como notificou o filósofo italiano Giovanni Gentile, 1914-1918 nunca acabou. 1914-1918 brutalizou, vandalizou e desconjuntou tudo com tanta ênfase que ficou impossível seguir, viver e superar o passado. O peso do passado imediato virara um fardo de presente contínuo. Uma âncora que impedia os italianos de fluir.

Na Alemanha – principal humilhada e não apenas traída com a Itália no após Grande Guerra – o sentimento sobre tudo isso era ainda mais imoderado. O que os paladinos do bem fizeram em Versalhes ante os alemães foi insuportável. Os responsáveis pela república de Weimar sabiam disso. E, por isso, tentaram algo compensar. Mas não era possível. Do contrário, era impossível, inviável, sem sentido nem razão. Todos sabiam que não se construiria a paz sob as ruínas do descrédito tangido por impérios de não-perdão.

Quando Hitler aquinhoou todos os poderes na Alemanha todos sabiam que a revanche seria certa, dura, brutal e inominável. Mas as conveniências daqueles mesmos que fizeram as tratativas de Versalhes sugeriam esperar, conversar, negociar. Os franceses, ingleses e norte-americanos, modernos e antigos modernos, haviam ressignificado a arte de se parlamentar e a transformaram num imperativo de convivialidade depois das Revoluções. Desse modo, mesmo com el diablo às portas, a orientação era de se seguir a parlamentação.

E, assim, seguiam. Entretanto, do outro lado do planeta, no Pacífico, os japoneses nem os chineses viviam em outra cultura, outra mentalidade, outros destinos que não conseguiam justificar essa espera para parlamentação. Tanto que a conquista do Japão sobre a China em 1937 foi sem aviso nem contrição. Um feito gigantesco. Que reabilitou os espíritos de 1914. A tragédia da guerra-mundo voltava a conduzir espíritos. A investida italiana fascista na Etiópia e na Espanha em 1935-1936 deram, assim, o tom do retorno à guerra sem fim. A investida japonesa de 1937 mundializou essa guerra. O que o Führer promoveu foi a interiorização do arcano 13 – o anjo da morte – na Europa a partir de 1939.

Curiosamente foi somente quando a desgraça simbolizada nesse arcano penetrou na Europa que a guerra-mundo voltou a ser considerada mundial. Mas, agora, com novidades.

A astúcia do Führer no emprego da Wehrmacht e da Luftwaffe para esquartejar seus inimigos vitais foi uma inovação cruelmente extraordinária. O cerco à Polônia e queda da Bélgica em 1939-1940 criaram um malaise sem precedentes na opinião político-militar planetária. Não sem razão, os periódicos norte-americanos The New York Times e Newsweek alcunharam, desde 1939, a nova ofensiva alemã como Blitzkrieg – guerra-relâmpago, tormento sem fim. Era, sim, algo inovador. Mas também dramático e desesperador. Ninguém conseguia se preparar para contê-lo. Nem a França que seria o seu próximo target.

Blitzkrieg alemã sobre a França na primavera de 1940 foi implacável. As poucas semanas de conflito que conduziram à queda do país da revolução promoveriam, pouco a pouco, o maior sinistro político, militar, cultural, intelectual, espiritual e moral de toda a história das grandes guerras. O martírio da França significou – sem exageros – o martírio do mundo inteiro.

Quando o marechal Pétain preferiu capitular a lutar diante da Blitzkrieg em 1940, uma parte expressiva e considerável do espírito francês, europeu, ocidental, democrático e liberal foi maculado para nunca mais se recuperar. Ninguém conseguiria imaginar – em 1940, antes ou depois – uma queda tão rápida, tão forte e tão desconcertante. O coronel De Gaulle – herói da Grande Guerra, tal e qual o marechal Pétain – percebendo a ignomínia de “cair sem lutar” e capitular ao Reich, desertou das forças oficiais francesas e partiu para Londres para, desde lá, iniciar a resistência ao Führer.

Mais le dernier mot est-il dit?” [a última palavra já foi dita?]. “L’espérance doit-elle disparaître?” [a esperança está condenada a desaparecer?]. “La défaite est-elle définitive?” [a derrota é definitiva?]. Eis as perguntas nucleares de seu afamado Apelo do 18 de Junho registrado e difundido pelas ondas da BBC de Londres poucos dias após a queda da França e a constituição do vexaminoso regime de Vichy.

Alguns muitos se fizeram de surdos diante do apelo desse francês à deriva. Outros tantos, entorpecidos pela perplexidade, nem conseguiram entender nem interpretar o que ele propunha. A agonia era tanta e, talvez, sem par que mesmo alguns muito valorosos começaram a vacilar.

Do outro lado da Montanha Mágica, às voltas com o Wolfsschlucht, quartel-general alemão, instalado nas cercanias de Bruxelas, Hitler não se continha em gargalhar. O sucesso sobre a França fora tamanho que talvez nem Bismarck nem o kaiser Guilherme I imaginariam conquistar. O Reich, assim, sob Hitler e às portas de Paris, chegava ao seu momento supremo de sua afirmação e glória.

Jusante aos Alpes, Benito Mussolini também se exortava em regozijos. Do outro lado do mundo, no Pacífico e no Japão, os súditos do imperador Hiroito e seguidores do primeiro-ministro Fumimaro Konoe também estavam excitados com a queda súbita da França. Mesmo Stálin, desde a Moscou sem fim, via tudo aquilo com entusiasmo incomum.

O aturdimento do primeiro-ministro Winston Churchill era, em contraponto, profundo e integral. Ele sabia que, caída a França, o Reino Unido poderia ser o próximo. E, mais que isso, talvez não houvesse sangue, suor e lágrimas suficientes para esse martírio contrastar. Nesse espírito de responsabilidade e receio, ele não viu outro caminho senão singrar o Atlântico em busca de maior atenção de Washington, da Casa Branca e do presidente Franklin Delano Roosevelt.

Desde o ocaso da presidência Woodrow Wilson, vinte anos antes, que o isolacionismo tomou conta da métrica e da compleição mental dos norte-americanos sobre a sua presença e projeção internacionais. O verdadeiro contragosto interno diante dos Quatorze Pontos e dos preceitos da Sociedade de Nações levou a classe política e do deep state do país a reconhecer o enclausuramento como um projeto.

Se nada disso bastasse, o choque da quebradeira de 1929 fora inclemente e ficou difícil de suportar, segurar e superar. O presidente Roosevelt, assim, tinha sido eleito e reeleito várias vezes para salvar o país dessa bancarrota interna e todo o resto – notadamente de dimensão exterior – deveria ficar em quarto, quinto ou sexto plano. Não era prioridade frente à demanda de avivamento da dignidade do estadunidense. Por tudo isso, o envio físico de homens em uniforme para a Europa estava completamente fora de cogitação. O New Deal era para salvar os Estados Unidos da América e não a Europa nem o mundo inteiro.

Entrementes, o choque da queda da França tocou alguns corações e mentes norte-americanos. Pouco a pouco foi se notando que a deriva francesa punha em risco os princípios existenciais dos demais considerados democráticos, libertários e liberais como os norte-americanos, europeus e ocidentais. Consequentemente mais e mais os reclamos do primeiro-ministro de Her Majesty conseguiam audiência na América para lhe ouvir após a notícia da queda da França e da ocupação nazista do país.

Nesse sentido, as sondagens de opinião pública ocidentais indicavam que mais e mais norte-americanos desejavam a derrota de Hitler, o fim do nazismo e a ocaso dos extremismos fascistas e nazifascistas. Mas, da parte do presidente norte-americano, ainda não havia convicção para avançar. Por conta disso, ele sugeria à sua contraparte, o primeiro-ministro britânico, aguardar. Em verdade, o presidente Roosevelt estava mais atento às estimações para as urnas de novembro que aos tormentos dos europeus pela Europa. Os Estados Unidos viviam aquele seu momento sagrado de périplo eleitoral. Nada, portanto, retiraria a atenção dos norte-americanos dessa procissão. O presidente Roosevelt era candidato à sua própria reeleição. Nada poderia fragmentar os seus esforços em voltar a vencer. Nem mesmo a percepção da gravidade da entropia dos ditames ocidentais com a queda da França.

Uma vez reeleito, o mandatário norte-americano, enfim, pôde se virar com vagar para a agonia europeia.

Em verdade, desde o encontro da última chance em Munique em 1938 e desde a aliança Molotov-Ribbentrop firmada em Moscou em 1939 que as gentes da 10 Downing Street e do Palácio de Buckingham projetavam todas as suas esperanças em Washington, na Casa Branca e no presidente dos Estados Unidos. Mas, quando a Polônia, a Bélgica e a França caíram, essa projeção de esperança virou obsessão. Estava, desde ali, muito claro para eles que sem os irmãos norte-americanos seria impossível suportar Hitler, o nazismo e os demais extremismos. Como amostra desse desespero, estava evidente que sem um apoio norte-americano expressivo os súditos de Her Majesty não aguentariam por muito mais tempo o verdadeiro dilúvio de fogo que a Luftwaffe promovia no país. A Air Raid Precautions Committee – instaurada, bem treinada, conservada e motivada desde os anos de 1920 no núcleo da estratégia de defesa britânica – estava sendo muito útil e valorosa. Entretanto, já indicava fadiga. Os recursos para mantê-la começavam a rarear. Faltava, essencialmente, dinheiro. Dinheiro que os britânicos pareciam já não ter mais para aportar.

Para acomodar tudo isso que o presidente Roosevelt e o primeiro-ministro Churchill se viram em pessoa na primavera de 1941. A sanha nazista, fascista e nazifascista na Europa já tomava conta do tempo, dos relógios e dos calendários e nenhuma parcela dos domínios britânicos nem norte-americanos além terra e além-mar seguiam salvaguardados. A África e a Ásia – sem contar o deserto e o Oriente Médio – seguiam presas fáceis para a Wehrmacht, a Luftwaffe e todas as suas replicações nos países do eixo. Nenhum mar nem Oceano, assim, ficou a salvo nem à solta. Do Atlântico ao Mediterrâneo ao Vermelho ao Índico ao Pacífico tudo e todos viraram terrenos de disputa e conflagração. Essa imagem aterradora de desvirtuação do mundo, vista em detalhes, passou a preocupar muito os núcleos de decisão de Londres e de Washington. E, por isso, seus mandatários decidiram se entrevistar em pessoa naqueles dias.

Enquanto isso, o chefe de estado-maior norte-americano enviava briefings detalhados e ilustrados diuturnos ao presidente Roosevelt, aos membros do Congresso e notadamente aos membros do Senado. Do outro lado do Atlântico, o seu homólogo em função fazia o mesmo.

Essa verdadeira inflamação de encontro, informações e contatos levou as duas partes – Londres e Washington, Washington e Londres – a realizar a primeira grande conferência de uma série que foi a Conferência do Atlântico.

Finalizada no dia 14 de agosto de 1941 e iniciada cinco dias antes, nas imediações de Terra Nova, nos Estados Unidos, essa conferência reuniu, pela primeira vez, além dos magnânimos presidente Roosevelt e primeiro-ministro Churchill, a integralidade dos conselheiros civis e militares dos dois lados. Como resultado, as presenças mundiais das duas potências nos teatros planetários de guerra foram definidas. Os norte-americanos cuidariam do Pacífico e os britânicos, do Atlântico. Washington liberaria mais e mais recursos para Londres e Londres mobilizaria esforços para sobreviver e melhor otimizar movimentos de resistência ao hitlerismo na Europa. O Mediterrâneo e a África eram ainda incógnitas. Não se sabia ao certo como proceder. Mas o presidente Roosevelt tinha em tudo uma convicção e uma direção: a convicção e a direção da necessidade de se preservar – custasse o que custasse – as Quatro Liberdades wilsonianas e todos os preceitos de inviolabilidade dos territórios.

Eis aí a síntese das motivações da, doravante, afamada Carta do Atlântico que guiaria todos os espíritos aliados até o fim. Um fim que demoraria chegar. Mas que, agora, em agosto de 1941, começava, ao menos, a se desenhar.

Mesmo assim, os norte-americanos ainda se recusavam a ingressar inteiramente na guerra. Uma pesquisa de opinião realizada naquele agosto aferia que 80% da população era terminantemente contrária à guerra – leia-se: ao esforço de guerra norte-americano, com aumento do envio de recursos materiais, financeiros e humanos – e 60% desejava a derrota avassaladora da Alemanha. Acabar com a guerra e derrotar a Alemanha sem o apoio norte-americano era isso que desejavam os norte-americanos. Nesse sentido, as premissas da Carta do Atlântico ficaram estéreis.

Mas veio o incidente de Pearl Harbor que modificou tudo.

Após aqueles ataques de dezembro de 941, subitamente inclusive os norte-americanos mais reticentes decidiram adentrar o conflito. Desse modo, lutar e vencer a guerra deixavam de ser uma hipótese estratégica para se tornar uma convicção existencial. Os norte-americanos, assim, foram tornados em responsáveis morais pela defesa irremediável do Mundo Livre.

Essa fúria norte-americana diante do evento-monstro e infernal preocupou do primeiro-ministro britânico. Ele suspeitava e temia que o presidente Roosevelt e a Casa Branca poderiam abandoná-lo solito na Europa frente a Hitler. Devido a isso, no dia seguinte ao ataque dos japoneses ele atravessou novamente o Atlântico e foi implorar ao presidente Roosevelt que não desguarnecesse a Europa nem o Reino Unido. A vingança – tratada eufemisticamente como direito de defesa – era legítima, lembrava o primeiro-ministro. A agressão a Pearl Harbor fora sentida e vivida como um ato libidinoso asqueroso e brutal sem consentimento entre os norte-americanos. Uma agressão que ninguém, portanto, sem perdão. Mas focar no Pacífico em substituição à Europa causaria danos ainda maiores a todos. Nesse sentido, o presidente Roosevelt foi cauteloso, enfático e apaziguador. Disse à sua contraparte britânica, fique tranquilo: “Germany First”. A urgência focava eliminar Hitler. Do Japão cuidar-se-á depois.

Doravante, nesse entendimento, a máquina de guerra norte-americana começou a verdadeiramente operar multidimensionalmente e planetariamente. E com o aval e o suporte de toda opinião pública e política do país. Nesse sentido, nenhum político nem empresário nem jornalista ousava ser contra o novo momentum norte-americano. O presidente e, portanto, comandante-em-chefe das forças começava, assim, a exercer os seus plenos poderes para guerrear e iniciou um importante processo de integração e unificação dos esforços de guerra britânico e norte-americano.

O primeiro dos primeiros movimentos nesse sentido foi a fusão da gestão do processo decisório no âmbito militar a partir da criação do Combined Anglo-American Chiefs of Staff (CCS), com sede em Washington, a partir dos inícios de 1942. Dessa maneira, o alto-comando de parte a parte passaria a viver, estudar, projetar e decidir tudo em conjunto. Em adição a isso, outra evolução importante foi a junção do processo decisório no âmbito dos chefes de estado-maior de Londres e Washington. Desse modo, fez-se o Join Chiefs of Staffs – o mesmo que, depois da guerra, em 1947, seria ressignificado e transformado no Pentágono.

Tudo isso, enquanto enquadramento burocrático e administrativo para harmonização de interesses, foi algo simplesmente espetacular. Mas, no campo concreto e cruento da guerra, a notícia mais relevante veio do frio. Do frio de Moscou e do frio do semblante do camarada Stálin.

Em realidade, desde a Conferência do Atlântico que o presidente Roosevelt sinalizava para uma cooperação mais estreita com os soviéticos. Sem Stálin – intuía ele – seria impossível vencer Hitler. Hitler, naqueles tempos, já tinha tornado nulo o pacto germano-soviético de não agressão e marchava fagueiro para assaltar Moscou movido pela astúcia de superar os feitos de Napoleão; abraçando, domando e dominando o Urso. Tudo isso porque o sucesso da Blitzkrieg desde a Polônia – e o empilhamento de sucessos a seguir – acabou por inebriar a razão no interior do Führer a ponto de fazê-lo transitar de lunático a demente.

Por evidente que ele não leu Tolstói. Se tivesse lido dimensionaria a profundidade da Rússia. Por evidente que também levava pouco a sério o peso dos conselhos cartográficos de Clausewitz. Se o levasse saberia que a Rússia – e a Grande Rússia – nunca deixou de se imaginar eterna, eternal, atemporal, infinita. E saberia mais. Saberia que nunca – repita-se e entenda-se: nunca – gente da qualidade dos magnânimos Pedro nem Catarina se dignificaram a serem menores que Grandes.

Quem volta no tempo, bem antes de Tolstói, Napoleão, Clausewitz e mesmo do lendário Iván, o terrível, vai, enfim, entender – o que Hitler se negava a perceber – que a Rússia jamais se fiou em fronteiras. Consequentemente, como nos tempos do império romano ou do império do meio, os russos de sempre jamais se sentiram parte tampouco o centro do mundo. Entre eles, russos da Grande Rússia, só existe a Rússia e a convicção de que um mundo sem Rússia simplesmente não merece existir. Dito de modo menos críptico, os russos desde sempre seguem imbuídos a lutar até o seu último homem com fins de preservar a Rússia para sempre. Ninguém, assim, mais que eles, leva tão a sério o furor existencial e de sobrevivência. E Hitler sabia disso. Mas preferiu deixar de saber.

Entorpecido pelas vitórias temporárias desde Varsóvia até Paris, Hitler acreditou imatura e petulantemente na possibilidade de dominar territórios infinitos da Rússia e massacrar permanentemente os combatentes de Stálin. Ao fazê-lo, Stálin, por sua vez, apenas observou. E tão logo a Wehrmacht chegou às portas de Moscou em dezembro de 1941, o reflexo do herdeiro de Lênin foi o de exigir do seu Exército Vermelho que bloqueasse o avanço dos homens de Hitler até deixá-los inteiramente exangues. E assim se fez. O avanço das forças alemãs foi contido às portas de Moscou e Stálin seguiu meditando como melhor esmagá-las e conduzir a memória de seus restos mortais até Berlim.

Sim: tão demente quanto Hitler, Stálin incutiu no imaginário dos combatentes soviéticos o imperativo de se lutar a guerra de suas vidas para retirar a vida de todos aqueles que haviam malversado as nobres razões russas e soviéticas de existir. Tudo isso em dezembro de 1941-janeiro/fevereiro/março de 1942.

A chegada da notícia desses feitos em Londres e Washington reavivou a convicção do presidente Roosevelt em apoiar Stálin. Entretanto, apoiar Stálin seria literalmente negar o espírito das Quatro Liberdades wilsonianas entronizados na Carta do Atlântico de 1941. Isso tudo porque Stálin demandava a divisão da Europa em dois fronts, um ocidental e outro oriental, fazendo tombar o Leste europeu sob a responsabilidade dos soviéticos e o Oeste da Europa seria problema dos aliados. Afora isso, Stálin também queria integrar aos domínios soviéticos todos os territórios conquistados por Moscou a partir de 1939.

Dito sem remendos, apoiar Stálin era negar os consensos ocidentais. Mas, por outro lado, não apoiar era perder uma aliança decisiva no embate contra Hitler.

Difícil decisão. Decisão difícil.

Beijar ou não el diablo, eis a questão.

De toda sorte, com Stálin ou sem Stálin, a confluência de culturas militares, entre Londres e Washington, continuava importante e amadurecia as decisões a partir do Join Chiefs of Staffs entre os anglo-saxões mesmo após as notícias dos sucessos de Stálin.

Com isso, pouco a pouco, iam ficando evidentes as diferenças na percepção e as divergências no olhar de Londres e de Washington. Todos, britânicos e norte-americanos, queriam esmagar Hitler e salvar a Europa. Mas cada uma possuía o seu método e a sua maneira.

O chefe do estado-maior imperial acreditava que a melhor opção era cercar o Reich, recuperando posições, destronando seus apoiadores laterais e asfixiando a sua capacidade de existir. Do lado norte-americano, a concepção era bem mais ofensiva. O chefe de estado-maior norte-americano, ninguém menos que o general George Marshall, acreditava que a melhor saíra era o confronto direto, a devastação implacável e a condução do inimigo a uma capitulação incontornável e sem concessão.

Essa importante tensão de visões de mundo – mais que a decisão sobre o beijo bandido em Stálin – foi o que conduziu todo o debate estratégico entre os aliados naquele após Pearl Harbor.

Chegar a um meio-termo nisso tudo não era fácil. Mas seria necessário. Os norte-americanos tinham mais poder e recursos em tudo; e, por isso, em nada queriam em nada ceder. Os britânicos, por sua vez, tinham o peso da história de uma nação que do século 17 até então dominara o mundo inteiro sem partilha nem abonação. E, mais que isso, que sabia que, por mais que o dólar, em 1939-1942, já sobrepujasse a libra em expressão e aceitação, ainda era a Royal Navy que dominava todos os mares.

Nesse quadro, acabava por se estabelecer uma interdependência demasiado complexa. Pois, por um lado, sem o domínio dos mares, os norte-americanos não alcançariam os seus objetivos vitais no Pacífico. E, por outro lado, sem uma presença física dos norte-americanos no continente europeu seria impossível estraçalhar Hitler.

Nessa reflexão ficou, então, evidente que o envio de tropas norte-americanas de volta ao Velho Mundo seria mais e mais incontornável. Caso contrário, os homens de Stálin iriam, certo, esmagar todos os elementos nazista, fascistas e nazifascistas do Leste europeu, mas poderiam ultrapassar Berlim e povoar de vermelho a integralidade do continente do Atlântico ao Ural. O que simbolicamente seria muito pior e mais permanente que a queda da França.

Esse reflexo convenceu o presidente Roosevelt a aquiescer diante da demanda insistente dos generais britânicos do Staff integrado dos chefes de estado-maior anglo-saxônico. Mas, antes de decidir enviar seus soldados para a Europa, ele despachou para a Europa o general Dwight D. Eisenhower para averiguar a situação. Uma vez em posição, esse nobre general se convenceu e foi convencido da urgência do desembarque. E, sem tardar, voltou para Washington para convencer o seu chefe, o general George Marshall, e o seu magnânimo, o presidente Roosevelt.

Assim, o desembarque de tropas aliadas na Europa deixava de ser uma questão para virar uma decisão. Mesmo assim, o onde, como, quando e com quem reabriram o debate.

Nesse quesito, uma vez mais, o peso moral da história britânica contou e desde Londres advieram as melhores considerações.
Em Londres, a essa altura, residia ninguém menos que o maior representante da resistência europeia a Hitler que era o general De Gaulle. Malgrado desconsiderado, desrespeitado e mesmo humilhado pelos maiorais de Washington e de Londres, ele agora começava a ser útil e incontornável a todos.

O regime de Vichy era sabidamente frágil e carcomia a credibilidade do Reich de dentro pra fora da França. A colaboração dos franceses aos desígnios de Hitler na França era dinâmica e complexa e, em grande medida, também de fachada. Desde o Apelo do 18 de junho de 1940 que resistentes vinculados ao general De Gaulle seguiam atuando como agentes duplos por toda a França metropolitana e colonial. Desse modo, mobilizar esses homens do general De Gaulle por todas as partes com o propósito de reganhar os espaços franceses ocupados para o lado dos aliados era um dos argumentos centrais do primeiro-ministro britânico sobre a prioridade do desembarque. Dito de modo preciso, a recuperação do Norte da África para o campo dos aliados poderia ser o ponto de partida mais decisivo para a contraofensiva implacável rumo a Berlim.

Convencidos disso, os norte-americanos e os britânicos reuniram, então, esforços para desembarcar no Magreb. Faltava, no entanto, definir o onde, que foi meditado a palmos.

A Tunísia, o Egito e Líbia foram retirados de cogitação por estarem infestados de tropas nazistas e fascistas. Restaram, assim, o Marrocos e a Argélia. E foi para desembarcar neles que a operação Torch foi estruturada e executada. Era 8 de novembro de 1942. Um dia que marcou espíritos.

A partir desse dia, uma nova modalidade tática era colocada em marcha na Segunda Grande Guerra e pela primeira vez as forças norte-americanas teriam a ocasião de se encontrar face-to-face com temida Wehrmacht. Descidas no Marrocos e na Argélia, as forças aliadas iniciaram as batalhas de desocupação nazista da região. E logo no dia seguinte, no 9 de novembro, as tropas norte-americanas conseguiram emboscar as tropas alemães na Tunísia, no evento que entrou para a história como a batalha de Kasserine.

A vitória dos aliados nessa batalha daria o tom mental e moral de toda a reconquista do Norte da África. Era o primeiro desembarque e o primeiro desembarque feito conjuntamente. Os britânicos e notadamente o seu primeiro-ministro sabia exatamente da relevância daquele feito. Tanto que um dia depois do desembarque, palestrando em Londres num jantar entre confrades, o primeiro-ministro foi enfático em ponderar que “Now this is not the end. It is not even the beginning of the end. But it is, perhaps, the end of the beginning.” [Não é o fim ainda. Também não é o começo do fim. Mas pode, talvez, ser o fim do começo]. Luminoso. Profético. Genial. Era o fim do começo. Um começo iniciado nos desacertos de 1914-1917 e ressignificado nos eventos de dezembro de 1941.

O sucesso tático da operação Torch forjou a necessidade de outro balanço geral – feito aquele após Pearl Harbor – do lugar dos aliados nos teatros de guerra e na contraofensiva de liberação. Foi por isso que se fez a Conferência de Casablanca em janeiro de 1943.
A Conferência de Casablanca foi o primeiro encontro dos aliados magnânimos em terrenos reconquistados. Tratava-se, portanto, de algo muito importante naquele contexto. O presidente Roosevelt e o primeiro-ministro Churchill, assim, foram em pessoa para o Norte da África. Os seus principais oficiais e conselheiros fizeram o mesmo, vindos das mais variadas partes do mundo.

O entusiasmo do momento foi geral e a conversação foi em tudo amistosa. A ideia e a ação do desembarque tinham surtido efeito. Mas, agora, precisariam prosperar e se desdobrar.

O grande esperado desse encontro era o camarada Stálin. O presidente Roosevelt fez questão de convidá-lo e voltar a convidar várias vezes. Mas o soviético declinou. Sentiu-se diferente demais para participar. Entendeu ser uma festa dos aliados, com os quais a Rússia nem a União Soviética tinham parte. Nesse sentido, declinou ostensivamente e preferiu aguardar o bom momento.

De toda sorte, o cheiro da vitória começava a rondar as casernas dos aliados mesmo com a situação inteiramente incerta em todos os fronts. A Luftwaffe e Wehrmacht ainda constrangiam os soviéticos, agora, às portas de Stalingrado e colocavam em sobreaviso a todos os demais europeus desde Praga até Paris. Mas a decisão de desembarcar na Europa, ali em Casablanca, já estava tomada – o que ampliava a esperança dos aliados. Restava, assim, novamente, se definir o onde, o como e o quando.

Onde desembarcar na Europa precisava ser na Itália e depois na França. Isto estava pacificado. Na Itália para destronar o destronar o mais importante aliado nazista meridional. Na França para abrir o caminho para se liberar todo o Oeste da Europa e singrar às rápidas para destroçar Berlim. O como era simplesmente aperfeiçoando a experiência africana que havia sido uma excelente learning curve. O quando, sem receios, deveria ser o mais urgentemente possível.

Desse modo, quando os generais aliados retornaram para as suas bases depois do congraçamento em Casablanca eles levaram consigo convicções, ordenamentos e o calendário para seguir para o desembarque eficiente na Europa. Todos sabiam que nada poderia desfazer os imperativos da libertação da Europa e nada poderia atrasar a sua mise en place. Seis desembarques foram, assim, urgentemente projetados. Cinco na Itália e um na França.

Na Itália, um primeiro seria na Sicília sob a cobertura de operação Husky; outros em Salerno, na Calábria, e Tarento na forma de operação Avalanche, Baytown e Slapstick; e os últimos em Anzio e Nettuno como operação Shingle. Já na França o desembarque seria na Normandia sob a nominata de operação Overlord.

Nesses moldes, então, a operação Husky inauguraria, então, a presença dos aliados em teatros de operação majoritária e ofensivamente inimigos na Europa. Muitos homens experimentados na África foram mobilizados agora para desembarcar na Itália. Ao todo, essa primeira operação envolveu mais de 2.500 navios da Royal Navy para dar suporte ao desembarque de aproximadamente 200 mil homens liderados por comandantes do gabarito do general Bernard Montgomery, do general George Patton e do marechal Harold Alexander sob a condução geral do general Dwight D. Eisenhower.

Muita gente, muito empenho e muita determinação para vencer. O seu objetivo tático era a contenção geral da atuação da Wehrmacht na Itália. O que, em muitos aspectos, foi alcançado. Não sem custos humanos expressivos. Do lado alemão, entre 10 e 12 mil foram mortos ou feitos prisioneiros e perto de 20 mil saíram feridos. Do lado dos britânicos e norte-americanos, em torno de 22 mil pessoas foram mortas, feridas ou desaparecidas. Do lado italiano, perto de 110 mil homens, 10 mil veículos, 50 blindados e 200 peças de artilharia foram interceptados, contidos, desmobilizados e evacuadas.

Tecnicamente, portanto, um sucesso inconteste para os aliados.

Mas teve mais.

O objetivo estratégico da operação que era desconjuntar o regime fascista foi majoritário foi conquistado. Tanto que no dia 25 de julho de 1943, poucos dias depois do início da operação, o Duce foi preterido e os fascistas ficaram acéfalos. Adeus, fascistas e adeus, Benito Mussolini – que, pouco a pouco, foi retornando à sua obscura e insignificante condição de ser obscuro e insignificante.

Mas, nesse quesito, ainda teve mais.

Acima das tropas aliadas repletas de homens em uniforme existia muita gente em terno e gravata pensando, negociando e parlamentando destinos. Pois foi essa gente, em muito também destemida, que conduziu os italianos ao armistício no dia 8 de setembro de 1943. O que, no plano estratégico, foi uma vitória política e diplomática sem precedentes desde o início da guerra-mundo em 1937-1939. Nesse sentido, o mais importante aos preceitos democráticos e liberais era se notar que pela primeira vez desde o início das escaramuças a caneta voltava a valer mais que o canhão. O que representava um frescor sem par. Mas não sem consequências.
Tão logo descobriram a nova italiana, Hitler e entourage sorveram a notícia como uma traição. E, desse modo, reagiram como os nazistas reagiam: sendo nazistas.

Uma vez, portanto, formalizado o armistício, eles efetuaram uma triagem em todos os teatros de operação para saber quais italianos desejavam seguir com o Reich ou capitular com a Itália. Aqueles que optavam por voltar pra casa eram desarmados e feitos prisioneiros da Wehrmacht.

O caso mais complexo e sensível nesse ínterim teve lugar na ilha de Cefalônia onde a divisão italiana de Acqui recusou-se a devolver as armas e abriram fogo aos negociadores alemães. Como resposta, a Wehrmacht invadiu a ilha, fez de todos os antigos aliados prisioneiros e o Führer ordenou a execução sumária de todos eles, e inclusive do general Antonio Gandin, comandante da divisão. Foi verdade que nem todos os prisioneiros foram mortos. Dos sete mil prisioneiros, pelo menos dois mil perderam a vida. Mesmo assim, o extermínio da Cefalônia segue como um dos maiores crimes da Wehrmacht ao longo da segunda Grande Guerra e ajuda a explicitar ainda mais a dimensão demencial do Führer.

De toda maneira, os sucessos da operação Husky deram ânimo às demais operações na Itália – Avalanche, Baytown e Slapstick a partir de setembro de 1943 e a operação Shingle a partir de janeiro de 1944. As primeiras – Avalanche, Baytown e Slapstick – tiveram o mérito de afugentar a Wehrmacht em quase todas as suas frentes italianas. Mas foi a operação Shingle que materializou o turning point integral da situação.

Após a queda de Mussolini em julho de 1944 e o armistício em setembro, a zona italiana de combate foi progressivamente mundializada. Afora as tropas britânicas e norte-americanas, expedicionários canadenses, franceses, poloneses, italianos, neozelandeses e brasileiros engrossaram as frentes de contraofensiva pela libertação da Itália. Nessa nova conformação, o estado-maior britânico percebeu ser o momento ótimo para desbaratar o cerco alemão das imediações de Roma e, nesse propósito, liderou o desembarque anfíbio em Anzio. Anzio estava estrategicamente a 80 km ao norte da linha Gustavo e a 40 km de Roma. Chegar a Roma era objetivo. Mas para tanto seria necessário suplantar a linha Gustavo – fortificação alemã às voltas do Monte Cassino. Desse modo, uma vez em Anzio o próximo destino seria o Monte Cassino.

Foram quatro as batalhas implacáveis, do 17 de janeiro ao 18 de maio de 1944, pelo Monte Cassino. Mas nesse entremeio, o imponderável voltou a tomar conta da situação mediante a participação exitosa do corpo expedicionário francês, sob o comando do general Alphonse Juin.

Plenamente bem treinados e motivados, esses colonos franceses – mais que qualquer outro militar de qualquer outro lugar – tinham retirado a integralidade lição da pensée-Maginot que resultou na tragédia francesa de 1940. Sabiam, assim, que a sobrevalorização das fortificações como mecanismo de defesa era, ao fim das contas, um calcanhar de Aquiles de qualquer armada. Fora no caso da França em 1940 e poderia, assim, também ser no caso do Reich na Itália agora.

Nessa convicção, entraram, então, no teatro de operações com o objetivo tático de dispersar a atenção da Wehrmacht e ir recuperando territórios. Assim fizeram e tiveram nisso um sucesso extraordinário.

Entretanto, com a ocasião posta, a sua superioridade estratégica frente aos alemães sucumbiu à sua incontestável miséria humana ao encontro dos italianos.

Tão logo retomaram as vilas, depois dos combates sem perdão contra os homens da Wehrmacht, iniciaram uma barbarização sem precedentes ao encontro dos italianos. Nesse sentido, entraram a roubar, violentar, martirizar e matar os moradores locais e do entorno. Numerosas mulheres foram, assim, estupradas e ao menos 300 civis inocentes foram mortos.

Essa ação desbragadamente criminosa e sem nenhum sentido ficou conhecida como a Marocchinate. E, por conseguinte, impediu esses inquestionavelmente bravos expedicionários coloniais franceses de gravar seus nomes na liberação de Roma.

No dia 4 de junho de 1944, então, as forças aliadas entraram em Roma sem eles. Os homens da Wehrmacht tinham sido inteiramente evacuados da capital romana e acuados ao norte de Florença sem maiores capacidades de reação.

Aquele 4 de junho de 1944 foi um dia muito especial, portanto, pois o símbolo da maior aliança do Führer no continente se desfazia.
A agonia da guerra-mundo, no entanto, ainda levaria tempos para se resolver. Hitler sangrava, mas não morria. A Wehrmacht seguia cercada por todos os lados, mas ainda resistia. A África toda estava praticamente liberada, mas traumatizada e diminuída devido a toda aquela razia. A Europa meridional seguia toda ocupada pelos aliados, mas ao norte da Europa tinha tudo por se fazer. A fúria dos soviéticos seguia obsessiva a sua marcha até Berlim, mas isso colocava em contradição os sentimentos dos aliados em Washington, Londres e, agora, da Itália e da France libre do general De Gaulle.

Os preparativos para o desembarque na Normandia estavam todos finalizados, mas precisavam avoir son jour [ter seu dia]. De toda sorte, um adeus, Hitler e um adeus, Reich eram questão de tempo. Muito ou pouco tempo, era difícil saber. A determinação dos aliados e dos homens de Stálin para que o fim de Hitler fosse logo era impressionante. Mas, de volta à Itália, o momento agora era de se meditar. Os italianos tinham toda uma extraordinária civilização ancorada em Roma para reavivar.

Roma livre, um alívio. Que bonito, que romano. Tem oitenta anos.

PS: Reler Tolstói para entender o mundo de hoje, gentilmente publicado neste espaço do Jornal da USP no dia último 8 de abril, recebeu muitas manifestações de afeição, consideração e complemento. Malgrado muito ricas e estimulantes, reagir a elas seria uma operação quase sem fim. De toda sorte, como mostra de reconhecimento, respeito e atenção, gostaria de agradecer muito enfaticamente aos longos, importantes e gentis comentários do embaixador Paulo Roberto de Almeida, da professora Paola Giocomoni da Università di Trento e da Columbia University, do meu amigo Joacyr Bezerra de Lima e da minha mais que amiga Maria Eloisa Cardoso da Rosa, sem contar a minha eterna Nina.

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