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segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

"O fascismo nosso de cada dia" - Michel Foucault (via Maurício David)

 Dica de leitura : "O fascismo nosso de cada dia" (primeira das palestras que o grande pensador francês Michel Foucault proferiu no Brasil, na USP, em outubro de 1975)

[Introdução de Maurício David, a quem devo a graça desta matéria]


“Fascismo”, hoje em dia no Brasil, virou um xingamento, uma espécie de denegrimento da opinião de quem pensa diferente do outro... O conceito de “fascismo” perdeu então, qualquer relevância explicativa ou significado cognitivo. Tento explicar isto aos meus alunos ou ex-alunos, e também a amigos que cultivo no meu jardim de amizades, de altos oficiais das Forças Armadas a colegas da Academia... Mas é difícil, porque é tão fácil xingar e desqualificar o outro... Para alguns energúmenos, Bolsonaro, Trump e quem mais seja voz discordante na política, são todos fascistas e golpistas...Assim fica difícil explicar o que foi o fascismo e o perigo que significaria o retorno das idéias fascistas... Mas a leitura do texto de 1975 de Foucault pode ser um bom começo... Aliás, assim que voltei do exílio em 1979, a primeira vez em que me encontrei com o então jovem economista de oposição (então técnico do IPEA), Pedro Malan – de quem o então poderoso Delfim Neto guardava rancor pelas posições independentes que mantinha – mas que, diga-se de passagem, jamais foi tocado pela repressão do regime militar em todo o período anterior à abertura política), o Malan tinha em mãos um livro do Foucault , “Microfísica do Poder”, que estava lendo. Eu próprio não tinha lido o livro do grande pensador francês, já na época leitura obrigatória de todos os que se interessavam pelas estruturas internas de repressão que apareciam invisíveis para grande parte da Sociedade. Para o Malan, não : êle me falou com admiração sobre o livro que estava lendo e me abriu as portas da percepção para uma problemática que até então me havia passado desapercebida. Que figura magnífica o Malan ! Depois vim a trabalhar com êle na sua gestão no Instituto de Economistas do Rio de Janeiro-IERJ e êle foi o primero que levantou nas páginas do jornal do IERJ a questão das cassações brancas no Brasil, o aspecto que então vinha a luz da microfísica do poder repressivo. Tornei-me amigo e admirador do Pedro, já então um economista de grande prestígio ( o Pedro foi colega no IPEA do grande economista e “brazilialista” emericano Albert Fishlow, que o levou para fazer o doutorado em economia na prestigiada Universidade de Berkeley, na Califórnia, uma das “top” universidades americanas). Revi o Pedro em Nova York (quando êle trabalhou um período no setor de estudos transnacionais da ONU) e em Washington, onde êle passou um período trabalhando como representante brasileiro no Banco Mundial e no BID, até ser chamado pelo Fernando Henrique para ser o negociador da renegociação da dívida externa brasileira. O Fernando Henrique se encantou com o Pedro e fez dele o seu Ministro da Fazenda, nos seus dois governos, com o sucesso que sabemos...

Não tenho estado com o Malan nos últimos, tempos mas assisti os vídeos da sua participação nas comemorações dos 20 anos do lançamento do Plano Real, organizadas pelo Departamento de Economia da PUC (onde fomos colegas nos anos 80). Brilhante como sempre, o Malan ! Que falta nos fazem homens públicos da qualidade e estatura do Pedro Malan !

MD

P.S.: Não posso me esquecer – e nunca me esquecerei !– de que o Pedro, em um momento difícil da minha vida, quando a mão pesada da repressão se abateu novamente sobre mim e a minha família, procurou-me na PUC – onde éramos colegas, como já destaquei – e se ofereceu para me conseguir uma bolsa de pesquisa do CNPq, onde êle integrava o Comitê de Economia. Na ocasião, com minha esposa grávida do meu segundo filho e eu com um contrato na PUC a honorário fixo, esta bolsa nos permitiu, a minha e a minha família, a sobrevivência por um ano em condições apertadas, mas as suficientes para desbravar as difíceis condições do retorno de um exílio de dez anos...


[Mauricio David] 

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O fascismo nosso de cada dia

 

Por MICHEL FOUCAULT*

Transcrição de um curso na USP, proferido em outubro de 1975


Apresentação do tradutor: 


Há pouco foi publicado na França, num volume de inéditos de Michel Foucault intitulado Généalogies de la sexualité (Vrin, 2024), o curso ministrado por ele em outubro de 1975, na USP, com o título de “A genealogia do saber moderno sobre a sexualidade”. Na ocasião, por um pedido dos alunos pertencentes ao movimento estudantil, transmitido a ele e a Gerard Lebrun por Marilena Chauí, Michel Foucault, por solidariedade às inúmeras prisões de alunos e professores da USP, interrompeu seu curso.

Na ocasião, ele leu um breve manifesto, escrito por ele mesmo, na assembleia dos estudantes reunidos na FAU. O ponto culminante da repressão do Estado naquela ocasião foi o assassinato do jornalista Vladimir Herzog. Foucault não deixou também de participar do ato ecumênico em memória de Herzog, realizado na Igreja da Sé cercada pelas forças do exército. Esse episódio foi lembrado com detalhes por José Castilho Marques Neto em “No táxi com Michel Foucault. Memórias de um estudante de filosofia aos 22 anos” (Cult, 225, julho 2017).

O breve texto traduzido abaixo, faz parte da primeira aula de um curso projetado para oito aulas, das quais apenas quatro foram ministradas, pelo motivo acima referido. Trata-se da tentativa de explicitar as relações entre o que Michel Foucault chamava na época de “microfísica do poder” e a questão do fascismo.

Pessoalmente, considero que polêmicas até recentemente muito intensas, que reduzem o pensamento de Michel Foucault à “pós-modernidade”, ao “pós-estruturalismo”, ao “irracionalismo” ou ainda a um antimarxismo total, devem ganhar seu devido lugar na história de uma época em que pouco se conhecia do conjunto de inéditos, que conhecemos hoje. Passadas algumas décadas de efervescência dessas polêmicas, quanto mais ganhamos distância temporal delas, mais podemos ler sua obra com paciência e sobriedade e, assim, podemos mensurar melhor, para além da adesão apaixonada ou da crítica do leitor apressado, a lucidez e o alcance de suas análises e quiçá no que elas ainda nos ajudam a entender a persistência do fascismo nos dias atuais.[i]


Michel Foucault – curso de 1975

“A essa questão do porquê, a questão da razão pela qual apareceu o tema do poder e do poder infinitesimal, devo confessar que não posso responder, mas gostaria de ao final desta conferência ou do curso, que se possa discutir um pouco isso e ver como se poderia tentar elaborar uma resposta. Gostaria no momento, na falta de explicação do porquê o problema se pôs tal qual se põe agora, de simplesmente esboçar algumas considerações sobre o ‘como’. Como esse problema se colocou, pelo menos nos países da Europa ocidental? Creio que se pode destacar dois processos, no decorrer dos quais apareceu o problema desse poder infinitesimal, do micropoder.

De um lado, creio que apareceu o que se poderia chamar de colapso do fascismo. E, [a propósito] desta linha do colapso do fascismo, se pode observar duas coisas. De início, é que esse fascismo, que foi definido pela Terceira Internacional como vocês o sabem, como ‘a ditadura sangrenta da fração mais reacionária do grande capital’, essa ditadura quando se pode vê-la mais de perto, após seu colapso em 1945, revelou que não se tratava apenas disso, que não se tratava no fascismo apenas da confiscação por alto de um aparelho de Estado, por capangas que eram comandados, direta ou indiretamente, por uma certa facção de acionistas do grande capital, etc.

O fascismo era talvez isso, mas igualmente outra coisa: o fascismo, se ele pôde se manter e se manter por muito tempo, foi por ter podido prolongar longe os seus efeitos no corpo social, foi porque pôde aprofundar suas raízes. Se o fascismo pôde se manter por tanto tempo na Europa e em outros países onde se estabeleceu, é que ele pôde utilizar no interior mesmo do corpo social toda uma série de estruturas de poder pré-estabelecidas.

Como se sabe, houve uma utilização da medicina e da psiquiatria pelo fascismo; houve utilização de um estatuto secular, milenar mesmo, da mulher considerada – há quanto tempo! – como reprodutora biológica ou escrava doméstica. O fascismo utilizou no corpo social onde ele se estabeleceu todas as partilhas que já haviam sido feitas, todas as partilhas de marginalidade concernentes às raças, às doenças, às anomalias – sexuais, marginalidade da delinquência, etc.

Quando o fascismo funcionou, o foi sobre essa base pré-existente; e é bem verdade que suprimido o nazismo, apareceram então nas sociedades liberais, mas justamente com um valor de escândalo, uma vez que já tinham sido utilizados pelo fascismo, todos esses elementos de base, dos quais o fascismo se serviu. Esses elementos de base haviam sido, até aí, tolerados, aceitos e mesmo não tendo sido percebidos, faziam de qualquer modo parte da trama contínua da existência cotidiana. E, depois, após terem sido utilizados pelo fascismo, como resultado, como vocês sabem, se tornaram estritamente intoleráveis.

O exemplo mais simples e o mais famoso é bem entendido o campo de concentração. O campo de concentração, que foi até um certo ponto a forma máxima, paroxística do fascismo, quando o campo de concentração, […] denunciado, fotografado, suprimido e solenemente suprimido desapareceu do horizonte europeu, o que se encontrou? Se encontrou os asilos, se encontrou os hospitais, se encontrou a unidade de confinamento. E a problemática do confinamento, do confinamento psiquiátrico, do confinamento dos anormais, etc., essa problemática apareceu na Europa sob a repercussão mesma do fascismo.

Não podemos esquecer de Charles Bettelheim, que na sua prática foi um daqueles que mais radicalmente pôs em questão o confinamento psiquiátrico de crianças, foi alguém que saiu dos campos de concentração. Pelo filtro do fascismo apareceu em nossas sociedades – aquilo que escandaliza em nossas sociedades – todo um conjunto de poderes excessivos, de pequenas violências, de dominações intoleráveis, de persistências absurdas, toda uma série de dissimetrias micropolíticas que se exerciam há um longo tempo e com toda tranquilidade, por meio da medicina, da psiquiatria, da escola, da família, da justiça penal, da potência marital, do sexismo machista, tudo o que vocês queiram.

Nos grupos esquerdistas, atualmente, se fala de bom grado do fascismo do psiquiatra, do professor que vos cola a um exame. De minha parte, creio que é preciso dizer que é muito bonito tentar liberar a inserção psiquiátrica do fascismo nas sociedades europeias, seu enraizamento escolar, o apoio que ele pôde ter na medicina, na família, no sistema judiciário. Ditadura sangrenta da fração mais reacionária do grande capital? Talvez, em uma extremidade.

Mas, na outra extremidade […] o que torna possível o fascismo não é essa ditadura sangrenta, é alguma coisa bem menor ou bem pior como vocês queiram, é a subjugação abafada, que se exerce silenciosamente na amplitude mais profunda do corpo social. Em suma, a desaparição do fascismo institucional, do grande fascismo histórico e sangrento, deixou aparecer atrás dele uma massa de poderes excessivos, de violências intrafamiliares, parecidos com ele, que o prepararam e sobrevivem a ele. Penso que um dos pares que fez aparecer atualmente o problema dos micropoderes foi, pois, a existência e o colapso do fascismo.


*Michel Foucault (1926-1984) foi professor de filosofia na cátedra História dos Sistemas do Pensamento no Collège de France. Autor, entre outros livros, de O nascimento da biopolítica (Martins Fontes). [https://amzn.to/4jlokJo]

Tradução: Ernani Chaves.

Nota do tradutor: 

[i] A notação (…) significa palavras inaudíveis, devido à problemas com a gravação.

sábado, 18 de janeiro de 2025

O Auto da Compadecida 2 - Bruno Fabricio Alcebino da Silva; Introdução de Maurício David

Apresentação de Maurício David:

 A lembrança mais remota que tenho na memória é de, garoto de calça curta passando de ônibus pela Praia do Flamengo, no Rio, ter visto nos muros do antigo prédio da UNE cartazes de divulgação da peça de Ariano Suassuna “O Auto da Compadecida”. Tempos depois, soube que fora encenada pelo Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE e que se tornara muito popular nos teatros estudantis que, de quando em quando, espoucavam nas escolas secundaristas do Rio de Janeiro, tocadas pelos estudantes de esquerda. Mas ver mesmo a obra de Ariano, só me ocorreu quando do lançamento da versão do Guel Arraes feita pelos estúdios da Globo Filmes (vejam a ironia da História, a Globo do Roberto Marinho, a arqui-reacionária emissora de televisão que esteve por décadas por detrás de tudo o que fosse obscurantismo político no Brasil... E o filme em si, filmado pelo brilhante cineasta e diretor de televisão Guel Arraes – filho do cassado ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes e banido do país pelo regime militar. Aliás, Guel vem de “Miguel” , o nome do pai (Miguel Arraes). Foi amor a primeira vista, um filmaço que até hoje me emociona e diverte!

Recomendo muitíssimo a leitura da peça do grande autor Ariano Suassuna, uma obra prima. E também que se vejam as duas sequencias filmadas do Auto (a primeira – pela qual sou apaixonado, que vi em uma das minhas vindas ao Brasil no começo dos anos 2000 (quando ainda estava vivendo no Chile em meu segundo exílio e trabalhando na CEPAL das Nações Unidas ; a segunda ainda não vi e que acaba de ser lançada nos cinemas brasileiros, mas já fiquei fã também pelas criticas positivas que li na imprensa.).

Recomendo então, com ênfase, neste começo de um 2025 alvissareiro, a leitura do livraço do Ariano Suassuna e os filmes que se basearam no seu livro . Boa leitura e se divirtam com os dois filmes do Guel...

MD

P.S.: Uma curiosidade : tenho uma amiga do movimento estudantil de 67/68 que por diversas vezes já mencionei em minhas episódicas memórias : a Ana Célia, que veio a se casar com o saudoso economista Antonio Barros de Castro e que se tornou também um grande amigo.  A Ana é uma amiga de lá se vão seis décadas (perdoe-me, querida Ana, por revelar a nossa idade, mas sei que você é tudo menos vaidosa...), amiga mesmo, daquelas capazes de estender a mão para quem está se afogando e fazer de tudo para salvar a vida do amigo... Certa vez em Paris, batendo papo com um brasileiro também amigo que estava por lá e que havia sido colega da Ana no Colégio de Aplicação da UFRJ, êle me contou que em apresentação teatral da peça O Auto da Compadecida pelos alunos do CAP a Ana Célia havia representado o papel da ... Nossa Senhora !!! Sim, a Nossa Senhora, a mesma que a grande atriz Fernanda Montenegro representou na versão cinematográfica do Guel Arraes... Me diverti muito com a história e sempre achei, depois disto, que a Ana Célia era mesmo a figura apropriada para representar a Nossa Senhora ( a Compadecida...) no teatro... Valeu, minha Nossa Senhora !!!, como repetia o ator – Matheus Nachtergaele - que representava João Grilo no filme do Guel !

Mauricio David

 

Para os amantes do Cine : O Auto da Compadecida 2

 

Ariano Suassuna. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2018, 208 págs.
O Auto da Compadecida 2.
Brasil, 2024, 114 minutos.
Direção: Guel Arraes, Flavia Lacerda.
Roteiro: Guel Arraes, Adriana Falcão.
Elenco:Matheus Nachtergaele, Selton Mello, Virgínia Cavendish, Eduardo Sterblitch, Enrique Diaz, Luiz Miranda, Taís Araújo. 

 

Considerações sobre a peça de Ariano Suassuna e os filmes baseados nessa obra

 

...Auto da compadecida é muito mais do que uma sátira social. É também uma obra profundamente espiritual, que aborda questões existenciais de maneira acessível e tocante. A justaposição entre o cômico e o trágico reflete a própria experiência humana, especialmente no contexto do sertão, onde a luta pela sobrevivência é acompanhada por uma rica vida espiritual e cultural. Essa dualidade é exemplificada na figura de João Grilo, que, apesar de todas as suas falhas e artimanhas, revela uma profunda compreensão da condição humana e um desejo genuíno de justiça e redenção...

 

“Mandou chamar o vigário: / – Pronto! – o vigário chegou. / – Às ordens, Sua Excelência! / Bispo lhe perguntou: / – Então, que cachorro foi / Que o reverendo enterrou? / – Foi um cachorro importante, animal de inteligência: / ele, antes de morrer, / deixou a Vossa Excelência / Dois contos de réis em ouro. / Se eu errei, tenha paciência / – Não errou não, meu vigário, / você é um bom pastor. / Desculpe eu incomodá-lo, / a culpa é do portador! / Um cachorro como esse, / se vê que é merecedor! (Leandro Gomes de Barros, “O enterro do cachorro”, fragmento de O dinheiro).

“Não sei, só sei que foi assim”. Foi assim que cresci, foi assim que me formei, foi assim que vivi. Nasci no sertão do Cariri, no Ceará, mas fui criado em São Paulo, ouvindo minha avó e meu pai contarem os causos tradicionais e quase sempre cômicos que ouviram ou viveram por lá. A vastidão seca e austera dessa região, seus contornos agrestes e seu povo resiliente sempre moldaram minha percepção de mundo.

Ao ler Auto da compadecida (1955), de Ariano Suassuna, fui inevitavelmente transportado para um espaço muito próximo ao meu, ainda que ficcional: Taperoá, na Paraíba. Ali, os cenários e os personagens pareciam falar diretamente às minhas memórias, às vivências de quem conhece as nuances do sertão nordestino, seus dilemas e suas belezas.

O termo “auto”, que dá título à peça, remete a uma tradição literária medieval que encontrou sua expressão mais marcante em Portugal, com autores como Gil Vicente. Os autos, de caráter religioso ou moralizante, eram encenações teatrais que buscavam entreter e instruir, combinando elementos cômicos e dramáticos. Em Suassuna, essa tradição é revitalizada e adaptada à realidade nordestina, compondo um texto que é simultaneamente local e universal, popular e erudito, cômico e trágico.

Logo de início, Auto da compadecida se apresenta como uma obra que transcende fácil categorização. A narrativa, centrada nas figuras de João Grilo e Chicó, é um caleidoscópio de referências culturais, históricas e religiosas. João Grilo, o anti-herói arquetípico, é a personificação da astúcia sertaneja, enquanto Chicó, seu companheiro de aventuras, encarna o imaginário fabuloso e a oralidade tão própria ao povo nordestino. Ambos, através de suas artimanhas e desventuras, questionam instituições e hierarquias sociais, expondo as contradições de uma sociedade profundamente marcada pela desigualdade e pela hipocrisia.

O auto foi escrito com base em romances e histórias populares do Nordeste, como exemplificado pela epígrafe deste texto, que reflete a rica tradição literária e cultural da região, principalmente da literatura de cordel, uma expressão autêntica e profundamente enraizada na cultura nordestina. O cordel, com suas rimas e narrativas envolventes, sempre foi uma forma de resistência e preservação da história e das crenças populares do povo nordestino. Ela surge das vozes anônimas, das experiências cotidianas e das mitologias locais, muitas vezes abordando temas como o folclore, as lendas, os desafios da vida no sertão e as figuras heroicas que se tornam parte do imaginário coletivo.

A trama, ambientada em Taperoá, entrelaça o cotidiano do sertão com temas universais, como a justiça, a fé e a moralidade. No cerne da narrativa está o julgamento final, onde figuras como o Diabo, Manuel (Jesus Cristo) e Nossa Senhora da Compadecida desempenham papéis cruciais. Esse julgamento é uma síntese brilhante do sincretismo religioso brasileiro, mesclando elementos do catolicismo tradicional com a religiosidade popular. Nossa Senhora, por exemplo, é retratada como a intercessora máxima, dotada de uma empatia profunda pelo sofrimento humano, enquanto o Diabo encarna não apenas o mal metafísico, mas também as injustiças concretas do mundo terreno.

Um dos aspectos mais notáveis da peça é seu uso magistral da linguagem. Suassuna consegue recriar a oralidade nordestina com uma precisão e um lirismo que tornam o texto profundamente autêntico. As expressões idiomáticas, os ditos populares e o humor peculiar do sertão são explorados de maneira a dar à obra uma musicalidade própria, que é ao mesmo tempo cômica e poética. Esse uso da linguagem é também um ato de resistência cultural, uma afirmação da riqueza e da singularidade da tradição nordestina em um contexto histórico marcado pela marginalização dessa região no imaginário nacional.

Outro elemento essencial é o humor, que permeia toda a narrativa e serve como um meio de subversão e crítica. O riso em Ariano Suassuna não é apenas um fim em si mesmo; é uma ferramenta poderosa para desvelar as estruturas de poder e questionar as normas sociais. As cenas envolvendo figuras como o padeiro, a mulher adúltera e o padre ganancioso são exemplos claros de como o humor pode ser utilizado para expor a hipocrisia e a corrupção, sem perder de vista a complexidade e a humanidade dos personagens.

No entanto, Auto da compadecida é muito mais do que uma sátira social. É também uma obra profundamente espiritual, que aborda questões existenciais de maneira acessível e tocante. A justaposição entre o cômico e o trágico reflete a própria experiência humana, especialmente no contexto do sertão, onde a luta pela sobrevivência é acompanhada por uma rica vida espiritual e cultural. Essa dualidade é exemplificada na figura de João Grilo, que, apesar de todas as suas falhas e artimanhas, revela uma profunda compreensão da condição humana e um desejo genuíno de justiça e redenção.

Finalmente, não se pode falar de Auto da compadecida sem destacar seu impacto cultural. Desde sua estreia em 1955, a obra tem sido adaptada e reinterpretada em diversos formatos, incluindo cinema e televisão, sempre com grande sucesso. Essa capacidade de ressoar com públicos tão diversos é um testemunho de sua força artística e de sua relevância atemporal.

Assim, ao revisitar o auto, não apenas reconheci os traços do sertão de Taperoá, mas também enxerguei, refletidos na obra de Suassuna, os dilemas, as esperanças e a grandeza de um povo que, como João Grilo, encontra na astúcia e na fé as ferramentas para enfrentar as adversidades da vida. É uma obra que, mais do que nunca, fala à alma do Brasil.

Entre o sagrado e o profano: Auto da compadecida no cinema

Quando O Auto da Compadecida foi lançado em 2000, ele não apenas adaptou a obra-prima teatral de Ariano Suassuna; o filme redefiniu os limites do cinema brasileiro ao mesclar a comédia popular com um profundo subtexto cultural e espiritual. Sob a direção de Guel Arraes, a narrativa costurou o rico universo da literatura de cordel com um vigor cinematográfico raro, valorizando a oralidade nordestina, a esperteza dos personagens e o sincretismo religioso que define boa parte do Brasil profundo.

Agora, quase um quarto de século depois, a chegada de O Auto da Compadecida 2 apresenta novos desafios e celebra antigas conquistas, refletindo não apenas mudanças nos personagens, mas também no próprio cinema nacional.

A adaptação de 2000 transformou um material originalmente teatral e radiofônico em um dos mais marcantes sucessos do audiovisual brasileiro. O que foi crucial nesse processo não foi apenas a fidelidade à linguagem e ao humor de Suassuna, mas também a habilidade de transportar sua essência para um formato mais dinâmico e visualmente rico. A câmera de Guel Arraes explorou o sertão não como um espaço meramente árido e desolado, mas como um palco vibrante de emoções humanas e conflitos universais. A plasticidade dos cenários e a leveza da montagem ampliaram o alcance da obra, permitindo que João Grilo e Chicó transcendessem suas origens regionais para se tornarem arquétipos da malandragem, da coragem e da sobrevivência em um mundo de desigualdades.

O primeiro filme equilibrou o sagrado e o profano com uma elegância incomum. A presença de Fernanda Montenegro como a Compadecida não apenas ancorava o filme no imaginário católico, mas conferia gravidade e beleza ao julgamento final, em contraste com as peripécias hilárias de João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello). O resultado foi uma obra que conseguia ser simultaneamente crítica e devocional, regional e universal, cômica e comovente.

Por outro lado, O Auto da Compadecida 2 surge em um momento em que o cinema brasileiro enfrenta tanto desafios orçamentários quanto pressões por inovação narrativa. A sequência, dirigida novamente por Guel Arraes e co-assinada por Flávia Lacerda, preserva a essência humorística e o carisma dos protagonistas, mas se revela menos ousada em suas ambições. Se o primeiro filme foi uma celebração da criatividade e do virtuosismo narrativo, o longa de 2024 prefere revisitar fórmulas consagradas, às vezes sem o frescor necessário para reinventá-las.

A escolha de explorar os mesmos arquétipos em uma nova disputa – agora eleitoral – funciona como uma alegoria contemporânea, mas carece da profundidade que tornou o original atemporal. Ao colocar João Grilo no centro de uma disputa entre poderosos locais, o filme aborda questões relevantes sobre manipulação política e ambição, mas muitas dessas reflexões acabam diluídas em uma trama que prioriza o humor fácil em detrimento da crítica social mais contundente.

Mesmo assim, há méritos que não podem ser ignorados. A utilização de animações para ilustrar os “causos” de Chicó é uma inovação que respeita o espírito narrativo original ao mesmo tempo em que explora novas linguagens visuais. Além disso, a introdução de novos personagens, como Antônio do Amor (Luiz Miranda) e a nova Compadecida (Taís Araújo), traz vitalidade ao elenco e prova que há espaço para reinvenções dentro desse universo.

A substituição de Fernanda Montenegro por Taís Araújo no papel da Compadecida sintetiza o maior desafio da sequência: como se apropriar de um legado icônico sem descaracterizá-lo? Araújo entrega uma interpretação que equilibra suavidade e carisma, mas inevitavelmente carrega o peso de suceder uma das maiores atrizes da história do cinema. Sua performance, entretanto, sinaliza uma tentativa de modernização do filme, aproximando a Compadecida de uma figura mais acessível e menos hierática.

Já Nachtergaele e Selton Mello permanecem como o coração da história. A química da dupla é tão marcante que ofusca eventuais problemas narrativos. João Grilo ainda é o malandro irresistível, enquanto Chicó continua o contador de histórias cheio de medos e contradições. Contudo, é notável que o roteiro de 2024, em sua tentativa de reproduzir os acertos de 2000, acabe restringindo a evolução dos personagens. A sensação de repetição é inevitável, especialmente para quem tem o primeiro filme vivo na memória.

Talvez o maior mérito da nova adaptação resida em sua capacidade de reaproximar o público do universo de Suassuna, mesmo que o faça de maneira menos inspirada do que poderia. O filme é um convite à nostalgia, mas não se arrisca o suficiente para ampliar as fronteiras narrativas do original. Em um momento em que o cinema nacional luta por espaço em meio a produções estrangeiras de alto orçamento, a falta de ousadia da sequência é compreensível, mas não deixa de ser frustrante.

Por outro lado, a obra reafirma o poder duradouro dos personagens de Suassuna e o impacto cultural de suas histórias. Mesmo quando não é plenamente inventivo, O Auto da Compadecida 2 prova que o Brasil ainda sabe rir de si mesmo – e, às vezes, essa capacidade é tudo o que precisamos para seguir em frente.

 

  • Bruno Fabricio Alcebino da Silva é graduando em Relações Internacionais e Ciências Econômicas pela Universidade Federal do ABC (UFABC).

 


Ariano Suassuna. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2018, 208 págs.
O Auto da Compadecida 2.
Brasil, 2024, 114 minutos.
Direção: Guel Arraes, Flavia Lacerda.
Roteiro: Guel Arraes, Adriana Falcão.
Elenco:Matheus Nachtergaele, Selton Mello, Virgínia Cavendish, Eduardo Sterblitch, Enrique Diaz, Luiz Miranda, Taís Araújo.

 

terça-feira, 23 de julho de 2024

‘Tsundoku’, a arte de acumular livros - Alex Castro (451)

Introdução de Maurício David:

Eis que de repente, nada mais que de repente, deparei-me com a explicação do meu “TOC-Transtorno Obsessivo Compulsivo” : acumular livros, livros e mais livros, o que ainda vai terminar em divórcio entre este pobre leitor e a sua esposa de quase 60 anos, que passou a odiar livros que invadem todas as paredes do meu triplex... O que me consola é que, nas casas dos meus amigos parisienses (por natureza muito pequenas, como se sabe...) é muito comum encontrar livros e mais livros nos banheiros (não sei se somente por falta de espaço, ou se para melhor proveito das horas passadas nos WCs da vida...). De todos modos, vou mandar comprar este livro japonêsE o do Roberto Calasso “Como organizar uma biblioteca”(Companhia das Letras, 2023).

MD

Um dos escritores brasileiros mais lidos no mundo, Paulo Coelho, em coluna publicada no jornal O Globo em 10 de outubro de 2004, revelou só ter quatrocentos livros, “alguns por razões sentimentais, outros porque estou sempre relendo”.

E existimos nós, pobres mortais que não temos nem a seriedade e o senso de propósito das bibliófilas, e nem a patologia descontrolada das acumuladoras, mas que, sim, vamos comprando livros pela vida e, na semana seguinte, antes de termos lido qualquer uma das compras da anterior, já estamos comprando novos, que vão se acumulando sem serem lidos.

Os japoneses, sempre eles, têm um nome para essa prática: tsundoku, das palavras tsunde (empilhar), oku (algo como deixar correr) e doku (ler).

‘Tsundoku’, a arte de acumular livros

Mais que uma expressão japonesa, comprar mais exemplares do que se lê pode ser um sinal de alerta ou uma aposta no futuro

Alex Castro

 

451, 01JUL 2024 -  | EDIÇÃO #83

Nos anos 2010, a rede social Shelfari tinha uma comunidade chamada “Acumuladores Compulsivos de Livros”. Para fazer parte era preciso ter no mínimo mil exemplares. Muito? Pouco? Um dos escritores brasileiros mais lidos no mundo, Paulo Coelho, em coluna publicada no jornal O Globo em 10 de outubro de 2004, revelou só ter quatrocentos livros, “alguns por razões sentimentais, outros porque estou sempre relendo”.

Conversei com ele em fevereiro, vinte anos depois, para saber se continua com a mesma quantidade. Coelho respondeu que agora são apenas trezentos e que não guarda mais os que relê, só os afetivos — “tenho a coleção completa de Sherlock Holmes, Henry Miller, Malba Tahan.” Na coluna, o escritor havia explicado alguns motivos de sua decisão: “Um deles é a tristeza de ver como bibliotecas acumuladas cuidadosamente durante a vida são depois vendidas a peso, sem qualquer respeito”.

Coelho não estava errado. Moro em Copacabana, bairro com maior concentração de idosos do país. Todo dia vejo netos e bisnetos esvaziando apartamentos. Guardam um móvel ou outro, alguns poucos livros: o resto acaba empilhado nas calçadas cariocas.

Em 2005, na época do furacão Katrina, eu morava em Nova Orleans. A cidade passou semanas fechada, universidades cancelaram o semestre, boa parte da população se espalhou pelo país, muitos não voltaram, a maioria parou de pagar aluguel. Sem receber, os senhorios despejaram nas ruas o conteúdo das casas. Livros que tinham sobrevivido bravamente secos ao furacão terminaram, poucas semanas depois, abandonados nas calçadas. Em meia hora de caminhada, eu passava por milhares de exemplares, muitos que queria desesperadamente folhear, mas não ousava: o mofo era tóxico. Fundamentalmente, hoje ou amanhã, todo livro é lixo.

Bibliófilos e acumuladores

Existem as pessoas bibliófilas (do grego biblio, “livro”): quase sempre intelectuais, adoram ter livros raros, edições únicas, várias traduções dos mesmos textos. Reúnem coleções catalogadas que podem ser utilíssimas para pesquisadores. Existem as pessoas acumuladoras: adoram ter uma enorme quantidade de objetos, incluindo livros. Via de regra, o termo já designa uma patologia: pessoas que acumulam itens porque simplesmente não conseguem jogá-los fora. E, portanto, são também incapazes de catalogar, cuidar, organizar, até mesmo limpar seus objetos.

E existimos nós, pobres mortais que não temos nem a seriedade e o senso de propósito das bibliófilas, e nem a patologia descontrolada das acumuladoras, mas que, sim, vamos comprando livros pela vida e, na semana seguinte, antes de termos lido qualquer uma das compras da anterior, já estamos comprando novos, que vão se acumulando sem serem lidos.

Os japoneses, sempre eles, têm um nome para essa prática: tsundoku, das palavras tsunde (empilhar), oku (algo como deixar correr) e doku (ler). O termo surgiu no Japão do século 19, mas acabou ficando popular mesmo no contexto de afluência e consumismo do pós-guerra, no século 20.

Antibiblioteca

Quando entravam na biblioteca particular com 30 mil livros de Umberto Eco, bibliófilo italiano e autor de O nome da rosa, as pessoas, espantadas, costumavam perguntar: “Você leu todos os esses livros?”. Mas uma biblioteca de livros lidos é como uma sala de caçador cheia de animais empalhados: não serve para nada, exceto dar palmadinhas no ego de seu dono. “Olha esse javali que eu cacei!”, “Olha esse Ulisses que eu li!”.

O valor de uma biblioteca pessoal está justamente no potencial de leitura ainda por realizar, nas conexões inesperadas entre obras aleatórias. Uma das muitas pessoas que repete essa anedota já quase proverbial é Nassim Nicolas Taleb, enfant terrible das listas de mais vendidos. Em seu A lógica do cisne negro: o impacto do altamente improvável (Objetiva, 2021), Taleb defende que uma biblioteca pessoal deve conter tantas coisas que o dono desconhece quanto seus meios financeiros permitirem: “quanto mais você sabe, maiores devem ser suas fileiras de livros não lidos”. Essa seria, diz ele, sua “antibiblioteca”.

Em 2023, a Companhia das Letras publicou Como organizar uma biblioteca, um dos últimos livros de Roberto Calasso, legendário editor italiano e das poucas pessoas capazes de rivalizar em erudição com seu contemporâneo Umberto Eco. Para Calasso, bibliotecas deveriam ser organizadas de forma aleatória e lúdica, um lugar para o usuário se perder e, quem sabe, encontrar um livro ainda melhor quando se está buscando por outro apenas adequado. Mais importante, toda boa biblioteca é comprada no presente, mas para ser útil no futuro. “Nada tira do fascínio de ter nas mãos — na hora — um livro cuja necessidade não se sabia até um momento antes”, escreve ele.

Pegando carona em Taleb, que pegou carona em Eco, e ecoando Calasso, não é que você seja hiperconsumista, uma pessoa descontrolada, estágio quatro do tsundoku. Talvez só esteja montando uma antibiblioteca lúdica. Na verdade, uma aposta no futuro.

‘As bibliotecas nascem quando a fome por livros é maior que o ritmo de leitura’

Conversei com a espanhola Irene Vallejo, autora do sucesso internacional O infinito em um junco: a invenção dos livros no mundo antigo (Intrínseca, 2022). “Ainda faz sentido comprar livros?”, perguntei. Vallejo se confessa surpresa com a ideia de que um novo formato ou suporte deve necessariamente substituir ou tornar obsoletos os anteriores.

Em vez de celebrarmos o enriquecimento das alternativas, criamos uma falsa competição. Um audiolivro pode ser ouvido na academia ou enquanto se varre a casa. Os livros eletrônicos são úteis em viagens ou residências no exterior. Os livros de papel oferecem a experiência estética do design, das ilustrações e dos mapas; da dimensão tangível do cheiro, do som, do tato; permitem dedicatórias do autor ou de quem presenteia. Além disso, estudos indicam que se retém mais a informação na leitura em papel. “Como leitora, me sinto uma felizarda por ter tantas opções”, diz a autora.

E sobre o acúmulo exagerado: estamos comprando livros de mais? “As bibliotecas nascem quando a fome por livros é maior que o ritmo de leitura”, diz Vallejo. “Comprar livros é uma forma de afirmar a esperança que viveremos o suficiente para ler tudo que nos interessa. Uma ilusão, claro. Mas uma forma de otimismo.”

Para Coelho, o livro de hoje é o lixo de amanhã. Por isso, não vale a pena acumulá-los. Para Taleb, Eco e Calasso, eles são ferramentas de trabalho. Por isso, vale a pena tê-los, mesmo se não forem usados. Para Vallejo, por fim, o livro de hoje é uma aposta no amanhã. Vale a pena comprá-los. Nem que apenas pela promessa de que estaremos vivos para lê-los.

Alex Castro

Escritor e professor, escreve para a Folha de S.Paulo e é autor de Atenção (Bicicleta Amarela, 2019) e Mentiras reunidas (Oficina Raquel, 2023).


quinta-feira, 27 de junho de 2024

Persio Arida: entrevista excepcional; comentada pelo Maurício David ficou ainda melhor: na ordem inversa

Comentário inicial do Mauricio David: 

 My God ! O Pérsio com 70 anos ! (porque me admiro, se eu próprio já estou com 77, à dois meses e meio de completar 78...). Conheci o Pérsio a começos da década dos 80, quando ambos estávamos trabalhando na PUC/RJ ( o Pérsio no Departamento de Economia, eu em uma instituição nova e pioneira que havíamos criado um grupo de ex-exilados, o IRI-Instituto de Relações Intenacionais). No IRI tudo era precário nesta época e tínhamos pouquíssimos – ou quase nada- recursos, então o Bacha e o Malan articularam para que eu desse aulas no Departamento de Economia para fechar o final do mês... Nesta época eu estava com uns 34/35 anos, o Pérsio devia ter uns 28... Cara de garoto, casado com uma gringa (Suzy, se mal me recordo...) que trouxe dos Estados Unidos. Eu tinha uma amiga/colega/aluna, Wanda, que se tornou muito amiga do Pérsio, estavam sempre de papo na hora do lanche e do cafezinho (me dava até ciúmes...). Ela tinha adoração pelo Pérsio. Descobriu nele qualidades que eu ainda não antevia... Neste período, o Pérsio “estourou” no mundo acadêmico com o famoso paper “Larida”, escrito com outro “garotão”, o André Lara Resende. O paper Larida foi a base do futuro Plano Real, creiam... Éramos todos gênios, e não sabíamos... Anos depois, muitos anos depois, li um depoimento escrito pelo Pérsio sobre a sua prisão em São Paulo, êle estudante ainda, quando militava no grupo armado da VPR-Vanguarda Popular Revolucionária. Muito interessante o depoimento do Pérsio sobre a sua prisão, me emocionei muito quando o li quando o Pérsio o publicou. Depois o Pérsio se reciclou, seguiu para uma interessante intersecção entre o mundo acadêmico e o financeiro, virou banqueiro, fundou um banco (BTG, depois outro BTG Pactual), tornou-se um economista super-respeitado. Trajetória excepcional, assim como a do André Lara Resende, do Gustavo Franco, do Malan e do Bacha. Não me canso de repetir, éramos felizes e não sabíamos...

Esta entrevista do Pérsio sobre os 30 anos do Real é muito interessante, merece ser lida com atenção. É uma das melhores coisas que li sobre este período em que eu mesmo estava fora do país pela segunda vez, fazendo meu doutorado em Paris. Em Paris convivi por um tempo com uma pessoa com que fiz grande amizade, a Loris – irmã de uma amiga minha, cunhada de um grande amigo-irmão – que era muito amiga do Pérsio (haviam convivido juntos no movimento estudantil e na VPR). Ela adorava o Pérsio. Aprendi na vida que quando as pessoas são adoradas, por algo de bom será. Lamentavelmente, a Loris morreu muito precocemente, algum anjo celestial (se eles existirem...) deve ter se apaixonado por ela e a levou para o espaço celestial. Nem sei se o Pérsio chegou a saber disto, mas se não, que saiba que a Loris simplesmente lhe queria muito, muitíssimo...

MD

P.S.: O Castro (Antonio Barros) gostava também muito do Pérsio, creio que fizeram amizade em uma estadia de ambos nos Estados Unidos...Certa vez, creio que lá pelos anos 80 ou 81, o Castro reuniu um grupo d economistas para conversas com o Pérsio sobre a “Teoria das Expectativas Racionais”, que estava “bombando” nos Departamentos de Economia das universidades americanas. O Pérsio estava chegando dos Estados Unidos e estava com uma visão muito derrotista sobre a massacre avassaladora das Expectativas Racionais nos departamentos de economia das grandes universidades americanas. Super-inteligente e articulada a palestra do Pérsio sobre o que estava acontecendo nos centros hegemônicos do pensamento econômico americano. Sem nenhuma pretensão extraordinária da minha parte, confesso que a exposição do Pérsio não me convenceu, creio que a sua visão de mundo se restringia ao mundo americano, quase que exclusivamente. Não sei quem estava certo, se o Pérsio em sua análise derrotista, ou se eu, na minha visão mais esperançosa e otimista. Do lado prático das coisas, a história deu razão ao Pérsio... Mas, como dizia o meu amigo e mestre Darcy Ribeiro, eu não estaria feliz se estivesse do lado dos vencedores...

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“Precisa mesmo de uma reforma administrativa estrutural, mas sei que o tema é tabu. A melhora da máquina pública é um processo que leva uma década ou duas, mas vai na direção de ter um Estado eficiente. O debate não é se o Estado deve ser grande ou pequeno. O Estado tem que ser necessário e eficiente. Não temos isso.”

“O Brasil tem tudo para liderar o processo de transição energética no mundo, mas precisa de um plano, uma visão. Tem o Europa 2030, que é um plano. Os Estados Unidos optaram por subsídios maciços à inovação. Você pode questionar qual dos dois é melhor, mas claramente eles têm planos. O Brasil não tem. É inacreditável.”

(da entrevista do Pérsio na FSP de hoje, 26 de junho, sobre os 30 anos do Real)

Governos do PT interromperam modernização prevista pelo Plano Real, diz Persio Arida 

Apesar da frustração com medidas econômicas, ele afirma que preservar a democracia é fundamental e não se arrepende do voto anti-Bolsonaro 

Alexa Salomão

Oxford

Apesar de ter sido concebido para combater a hiperinflação, o Plano Real tinha uma visão mais ambiciosa, a de tonar o Brasil um país moderno e eficiente, afirma o economista Persio Arida, um dos formuladores do programa de estabilização que completa 30 anos. Mas essa proposta, avalia ele, foi interrompida nas gestões do PT.

"O Real, diferentemente de muitos planos de estabilização, tinha uma visão de futuro compartilhada por todos nós. Eu diria que as bases de um Brasil mais moderno foram todas consolidadas naquele momento", afirma.

"Houve uma série de frustrações do ponto de vista do que seria ideal, um retrocesso e uma interrupção de vários aspectos desse projeto modernizante de país nos mandatos do governo Lula."

Na avaliação de Arida, agora é preciso um esforço para recuperar parte daquela agenda e promover uma revisão do sistema de gastos e a melhoria da máquina pública.

"O debate não é se o Estado deve ser grande ou pequeno. O Estado tem que ser necessário e eficiente. Não temos isso", diz o economista à Folha.

Olhando agora, 30 anos depois, por que o Plano Real deu certo depois de tantos planos frustrados?

O Plano Real teve uma arquitetura de transição da alta para baixa inflação que foi original, não só para a história brasileira como internacionalmente. Foi "made in Brasil" mesmo.

Mas, tão importante quanto o desenho, faz diferença quem implementa, e nisso houve uma característica única. Fernando Henrique Cardoso, como ministro da Fazenda, era, de um lado, intelectual e, do outro, articulador político, algo raro. Normalmente, um ministro da Fazenda é intelectual ou político.

Como intelectual, foi capaz de entender o programa e reunir uma equipe em que confiava, e escolheu a equipe da PUC do Rio —o que foi um ato de ousadia política. Ele trouxe os liberais para implementar o plano. Dada a sua trajetória como exilado, por exemplo, muitos podiam imaginar que levaria economistas mais à esquerda.

Esse grupo também foi um aspecto singular. Normalmente, equipes de governo são pessoas de várias extrações, que não se conhecem bem e precisam desenvolver o conhecimento de como trabalhar em conjunto já no governo. O grupo do Real era formado por pessoas que já trabalhavam em conjunto na universidade, muito coeso e com laços de confiança. Não tinha jogo político ou um querendo derrubar o outro, essas coisas da vida pública e da vida privada também, diga-se de passagem.

Por outro lado, como ministro da Fazenda, Fernando Henrique operou politicamente. Fez uma aliança do PSDB com o PFL, que era, muito mal comparando, uma espécie de centrão da época, e foi fortemente criticado pelos puristas do PSDB. Mas ele falou: "Precisa ter maioria para aprovar o plano, e maioria se faz com aliança". Aliás, ele manteve essa aliança durante os seus dois mandatos.

Teve outra característica única. Ele foi eleito por causa do Plano Real, e não teria sido sem ele, então deu continuidade e consolidou o plano. Ele sabia que a sua popularidade e sua possibilidade de reeleição dependiam intrinsecamente do sucesso do programa. Ou seja, o presidente da República estava comprometido, algo que não houve em outros momentos da história brasileira.

Fernando Henrique se empenhou num processo que ele mesmo descreve em seu livro a Arte da Política como pedagogia democrática: explicar o plano. Todos nós fizemos isso, mas ele, claro, mais do que todos. Enfim, houve um conjunto muito particular de circunstâncias.

Agora, tão desafiador quanto lançar o plano foi sustentar a moeda depois. Planos de estabilização são frequentemente bem-sucedidos no começo. O desafio é manter a estabilidade de preço ao longo do tempo.

O sr. pode enumerar desafios?

Foram muitos. Primeiro, teve o risco de uma enorme crise bancária. Os bancos eram sócios da inflação. Sem ela, o ganho de float desapareceu. Houve, na prática, um processo gradual de purgação do sistema. Mais de 100 instituições, públicas e privadas, foram liquidadas ou forçadas a serem vendidas para terceiros.

Outro desafio foi o câmbio. Depois de muito debate, o câmbio ficou praticamente fixo. Quando o Brasil não teve mais reservas, veio a flutuação cambial. Há países em que, quando você faz a flutuação cambial, a inflação sai do controle. Superamos esse desafio.

Destaco também o desafio foi organizar o Estado e fazer uma sociedade brasileira mais eficiente.. Eu diria que as bases de um Brasil mais moderno foram todas consolidadas naquele momento.

Vieram as privatizações, a quebra dos monopólios estatais e de telecomunicações, o FGC, fundo para garantir empréstimos, as mudanças no Conselho Monetário Nacional e nas relações entre Tesouro e Banco Central. Foram criados o mercado de títulos de longo prazo, que existe até hoje, a Lei de Responsabilidade Fiscal para enquadrar os estados, as agências reguladoras, o Enem [Exame Nacional do Ensino Médio]. A lista é enorme.

Passados 30 anos, o Brasil é o que vocês projetaram?

Muita coisa mudou para melhor. Alguns aspectos, porém, são muito frustrantes. A abertura, para forçar os mercados à disciplina da competição internacional, era um elemento chave do nosso projeto. Não aconteceu até hoje.

Outro exemplo. Foi feita uma desvinculação orçamentária com Fundo Social de Emergência, que era parte de uma desvinculação geral —desvinculando reajuste de Previdência de salário mínimo, desvinculando despesas de receita etc. Obviamente, estamos com essa discussão agora, 30 anos depois. Reajustes reais de salário mínimo quebraram a Previdência, porque há indexação. Não deveríamos ter indexado saúde e educação à arrecadaçãoHouve uma série de frustrações do ponto de vista do que seria o ideal, um retrocesso e uma interrupção de vários aspectos desse projeto modernizante de país nos mandatos do governo Lula.

Quais ajustes são inevitáveis daqui para frente?

Fizemos duas rodadas de aumento de gastos. Uma com a PEC do Kamikaze, do Bolsonaro [que turbinou benefícios sociais a três meses das eleições de 2022], e outra com a PEC da Transição, no mesmo ano, mas articulada pelo governo eleito do presidente Lula, que já tinha sido eleito. A junção das duas criou um aumento de gastos públicos que é impossível resolver via taxação. A sociedade se recusa a pagar o montante que é necessário.

É preciso algum esforço para fazer uma revisão do sistema de gastos. O mundo inteiro faz. Qualquer programa periodicamente tem avaliações —e avaliações independentes— que podem recomendar a continuidade, mudanças ou a interrupção dos programas. Não pode é criar um programa e expandi-lo inercialmente, perpetuando.

Você tem que fazer gestão por metas, ter objetivos claros, pré anunciados, para que a sociedade cobre se o funcionamento da máquina pública está ou não adequado aos seus anseios. Precisa elevar a digitalização. Hoje, você avalia até compra de comida pelo iFood, mas não tem avaliação para serviço público —e uma inovação no serviço público tem impacto extraordinário. Olha o Poupatempo, para dar um exemplo pequeno aqui de São Paulo.

Precisa mesmo de uma reforma administrativa estrutural, mas sei que o tema é tabu. A melhora da máquina pública é um processo que leva uma década ou duas, mas vai na direção de ter um Estado eficiente. O debate não é se o Estado deve ser grande ou pequeno. O Estado tem que ser necessário e eficiente. Não temos isso.

Pelo que o sr. está descrevendo, o arcabouço fiscal atual, sustentado em aumento de receita, não vai ficar de pé. Correto?

Se você olhar de frente, da forma como está posto, o problema é insolúvel. Não há como arrecadar da sociedade o necessário para gerar um superávit fiscal que estabilize a dívida pública. O que tem que fazer? Revisão de gastos e melhora da máquina pública

O sr. estava no que podemos chamar de frente ampla de economistas que apoiou a eleição do atual governo, e havia uma expectativa de que poderiam contribuir na gestão, o que não aconteceu. Qual a sua avaliação sobre a condução da economia? 

Olha, não me interessa comentar sobre política. Não é a minha praia. Mas a eleição entre Bolsonaro e Lula, a meu ver, era, antes de mais nada, uma escolha entre alguém que claramente ameaçava o fundamento democrático do país e outro que não. Voto no Lula, para mim, sempre foi um voto pela democracia, um voto anti-Bolsonaro.

E vou te dizer: não tenho arrependimento. Para mim, ajustes na economia podem acontecer mais cedo ou mais tarde, mas, se você perder a democracia, tem um problema muito mais grave. Claro, esperava mais do ponto de vista econômico.

Coisas boas aconteceram. A reforma tributária foi encaminhada. Apesar de todas as excepcionalidades, exceções e lobbies, a meu ver, foi um passo muito importante. Manter indexações, porém, foi claramente um erro. Com a indexação do salário mínimo à Previdência, muitos dos ganhos com a reforma já se perderam. Vamos ter que fazer uma outra reforma da Previdência por falta de coragem política para simplesmente dizer: "Olha, ganho real, ganho de produtividade, é para quem trabalha, não para quem não trabalha". Me preocupa também a falta de uma agenda climática.

Como assim?

O Brasil tem tudo para liderar o processo de transição energética no mundo, mas precisa de um plano, uma visão. Tem o Europa 2030, que é um plano. Os Estados Unidos optaram por subsídios maciços à inovação. Você pode questionar qual dos dois é melhor, mas claramente eles têm planos. O Brasil não tem. É inacreditável.

Acabamos de ter um desastre monumental no Rio Grande do Sul, e a mudança climática é uma ameaça enorme para um setor dinâmico da economia brasileira, a agricultura. Se o regime de chuvas mudar, ele será afetado. Então, o que eu estou chamando a atenção aqui é que precisamos de um bom plano de transição climática para enfrentar os desafios. Confesso que nisso o governo tem me dado uma grande frustração.

RAIO-X - PERSIO ARIDA, 70

Nascido em São Paulo, tem graduação em Economia pela USP (Universidade de São Paulo) e doutorado na área pelo MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). Foi professor da PUC-RJ e da USP, atuando como pesquisador no Instituto de Estudos Avançados de Princeton (EUA), no Centro Brasileiro de Estudos da Universidade de Oxford (Reino Unido) e no Instituto Smithsonian, em Washington (EUA). É um dos pais do Plano Real. Foi presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e do Banco Central. Na iniciativa privada, foi um dos fundadores do Banco BTG, atual BTG Pactual, do qual deixou de ter participação em 2017. Em 2018, foi coordenador do programa de governo do então candidato a presidência pelo PSDB, Geraldo Alckmin.


segunda-feira, 10 de junho de 2024

Maria da Conceição Tavares (1930-2024) marca debate econômico de JK ao TikTok - Danilo Thomaz (Folha de S. Paulo); comentário Maurício David

FSP, domingo, 9 de junho de 2024 (reproduzindo material antigo)

Maria da Conceição Tavares (1930-2024) marca debate econômico de JK ao TikTok


Danilo Thomaz* / Folha de S. Paulo (15.10.22)

Maria da Conceição Tavares marcou o debate público brasileiro das últimas décadas, tanto por suas ideias quanto por sua figura teatral. Referência central nos estudos sobre crescimento e planejamento econômico, formou três gerações de economistas. No plano pessoal, sua postura inconformada, enérgica e desbocada inspirou até personagem de programa de humor. Aos 92, é redescoberta por novas gerações após virar meme na internet.

Não poderia haver melhor momento para o Instituto de Economia da Unicamp, que começou a funcionar em agosto de 1968, comemorar seus 40 anos. Era 2009, e os países ricos estavam recolhendo os destroços do que havia restado da crise de 2008, fruto de quase três décadas de desregulação financeira.

Já o Brasil, que nunca embarcara com a mesma intensidade no que se convencionou chamar de neoliberalismo, via a economia se recuperar rapidamente com a ação dirigida estatal. Como, aliás, já vinha acontecendo naquele segundo governo Lula. Era a vitória política e ideológica da chamada Escola de Campinas, mais voltada à participação do Estado na economia.

Uma das principais formuladoras da tradição dessa escola estava na celebração da Unicamp: a economista Maria da Conceição Tavares. Convidada a falar no evento, não se limitou a ser mera espectadora enquanto não chegava o dia e a hora de sua palestra.

Se um convidado dizia algo de que discordava, rebatia, "não é assim!". Se alguém falasse uma besteira, dizia "é uma bobagem!". Se errasse, corrigia no mesmo instante: "Está errado!".

A única poupada de críticas foi a então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. "Eu não gosto de brigar com mulher", a própria Conceição já dissera antes, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 1995.

Fumante inveterada difícil de conter, Conceição sentou-se em uma cadeira na entrada do auditório, lugar reservado a ela pela organização do evento, onde poderia fumar sem incomodar a plateia, ouvir e, claro, intervir nos debates.

Até que chegou o momento de sua fala. Conceição começou citando o romance "O Retrato de Dorian Gray", do escritor irlandês Oscar Wilde. No clássico, um aristocrata faz um pacto demoníaco para ter a juventude eterna, enquanto um quadro com seu retrato envelhece.

A economista tinha o receio de que o Brasil terminasse como o aristocrata hedonista: horrorizado ao encarar o próprio retrato. No plano pessoal, seu receio era ter nascido em uma crise, na Europa, e morrer em outra, no Brasil —após toda uma vida contra a corrente.

NASCIMENTO E EXÍLIO

Maria da Conceição de Almeida Tavares nasceu em Anadia (Portugal) em 1930, a pouco mais de 50 km de Coimbra, mas cresceu e estudou em Lisboa. Mudou-se para o Brasil em fevereiro de 1954, junto do primeiro marido, Pedro Soares.

"Cheguei aqui e levei um susto. Porque o Getúlio morreu logo depois. Julguei que era uma democracia, vindo lá do Salazar, e me enganei", disse no Roda Viva.

Nesse instante, a então deputada federal pelo PT abriu um sorriso que contraiu os olhos, um dos raros momentos de suavidade em suas manifestações públicas. "Mas depois tivemos Juscelino, lembra? Aí íamos construir Brasília, uma democracia nos trópicos, o desenvolvimento."

O primeiro emprego de Conceição foi como estatística do Inic (Instituto Nacional de Imigração e Colonização), hoje Incra, onde deu-se conta da desigualdade no país.

Essa consciência a levou a estudar economia. Ingressou no curso em 1957, quando adotou a cidadania brasileira, na Universidade do Brasil, hoje UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro.

SUPERANDO O SUBDESENVOLVIMENTO

No ano seguinte, tornou-se analista matemática do que hoje se chama BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), à época presidido pelo economista Roberto Campos, um dos criadores e articuladores do Plano de Metas de JK, que buscava dar um salto no processo de desenvolvimento. Mas como era possível um liberal, como Campos, defender o planejamento estatal da economia?

Conceição, Campos, Celso Furtado, colegas de ambos no BNDES, e o sociólogo e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, entre outros, são representantes de uma geração que tinha por objetivo compreender e superar a problemática do subdesenvolvimento nacional.

"Nós criamos a noção de desenvolvimento", afirma FHC à Folha. "Estávamos no mesmo clima que se respirava no Brasil. Então mesmo que não estivéssemos próximos [no terreno das ideias], nós ‘brigávamos’ pelo contexto de compreensão mútua. Eu li quase todos os textos que ela escreveu. Eu posso ter discordado dela mais de uma vez, mas tenho que reconhecer que ela foi uma grande idealista."

DITADURA

O período ditatorial fez erodir os sonhos da geração que buscava um desenvolvimento em bases reformistas para o Brasil. "Virei brasileira achando que isso aqui seria uma democracia nos trópicos, e tome 21 anos de ditadura, tome concentração de renda, tome milagre econômico", disse, estalando os dedos, no Senado.

É deste período o ensaio "Além da Estagnação", presente no livro "Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro", que completa 50 anos, o mais importante de sua obra.

Escrito em parceria com o hoje senador José Serra (PSDB), o ensaio é considerado um dos marcos da obra da autora dentro de seu período na Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), órgão que defendia a adoção do planejamento econômico e de medidas protecionistas pelo Estado.

No texto, Conceição e Serra contestam a tese de Furtado sobre a derrocada da economia brasileira em meados dos anos 1960, presente no artigo "Desenvolvimento e Estagnação na América Latina: um Enfoque Estruturalista".

"O ensaio ‘Além da Estagnação’ teve por contribuição principal mostrar como, infelizmente, o crescimento do período do chamado milagre se fazia de forma perversa, com concentração da renda. Ao contrário do que postulavam os estagnacionistas, estava sendo possível crescer concentrando a renda —e pior ainda, a concentração de renda alimentava um processo de crescimento acelerado", afirma o economista Ricardo Bielschowsky, autor de "Pensamento Econômico Brasileiro" e colega de Conceição na UFRJ.

"O Furtado foi o grande intérprete do subdesenvolvimento, e a Conceição, da dinâmica econômica", completa ele. "A obra dela pode ser dividida em dois grandes períodos: até as proximidades de 1980, na era desenvolvimentista, e depois dela. Ou seja, o primeiro gira em torno da presença do crescimento, e o segundo trata de elementos que causam sua ausência."

À época da publicação do ensaio, o Ministério da Fazenda era comandado pelo economista Delfim Netto. "Nossos pensamentos frequentemente diferiam, mas sempre considerei as suas críticas. Foi a inteligência mais barulhenta que conheci", afirma ele hoje.

Conceição considera o ex-ministro uma das melhores cabeças do país. Embora crítica da concentração de renda, reconhece que tanto Delfim quanto o segundo PND (Plano Nacional de Desenvolvimento), do governo Ernesto Geisel, conferiram certa pujança ao capitalismo brasileiro.

VIDA ACADÊMICA

De volta ao Rio, em 1972 —após um período no Chile, onde trabalhou no governo Allende—, Conceição reassumiu sua cadeira na UFRJ. Três meses depois, foi convidada pela Unicamp a coordenar a pós-graduação de economia da instituição.

"Zeferino Vaz [fundador da universidade] nos levou para lá", conta o economista Luiz Gonzaga Belluzzo. "[Ele dizia]: ‘São todos esquerdistas, mas são bons’."

A dupla de economistas se conheceu em 1966, quando Belluzzo era estudante e assistiu a uma palestra de Conceição. O reencontro, sete anos depois, marcou o início de uma amizade e uma troca intelectual que perdura até hoje. "Era um estímulo. Ela não briga com as pessoas, briga com as ideias, se empolga", conta ele.

Conceição passou a conciliar aulas na Unicamp e na UFRJ, onde fundou o IEI (Instituto de Economia Industrial), um dos centros mais vibrantes do pensamento econômico brasileiro nos anos 1970 e 1980.
Em sua trajetória acadêmica, a professora ajudou a formar três gerações de economistas. Entre eles, Serra, Pedro Malan, ex-ministro da Fazenda de FHC, e a ex-presidente Dilma Rousseff (PT).

Em 1975, às vésperas de um embarque para Santiago, foi presa pela ditadura no Galeão. Passou alguns dias desaparecida.

Liberta por intervenção do então ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen, Conceição mandou-lhe a seguinte mensagem: "Olá, Mário, tudo bem? Nem vou agradecer porque você não fez nada mais do que sua obrigação".

REDEMOCRATIZAÇÃO E INFLAÇÃO

Em 1980, Conceição tornou-se membro da Executiva Nacional do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), ao qual havia se filiado em 1978. Tinha como seus principais interlocutores dentro da legenda Ulysses Guimarães, uma das lideranças civis da redemocratização, e Fernando Henrique.

"Foi uma influência muito grande, mas não era uma pessoa propriamente ligada ao partido, era muito mais por ideias. Era uma ligação, como tudo que estava acontecendo na época, conflituosa, mas havia uma grande identidade de ponto de vista, sobretudo no que concerne a um pensamento comprometido com a dinâmica da política brasileira", afirma o ex-presidente.

Em 1986, Conceição ganhou destaque fora do meio acadêmico e político ao comentar com a voz embargada e lágrimas escorrendo, na TV Globo, o Plano Cruzado, que pretendia dar fim à inflação. "Eu estou muito contente de ver uma equipe econômica que redime este país, que dá uma contribuição política, que ajuda o governo a encontrar seu rumo."

Baseado no congelamento de preços, o Cruzado resultou de uma equipe que incluía Belluzzo e o economista André Lara Resende. O plano foi elaborado em sigilo, mas Conceição teve acesso a ele, por meio de Ulysses Guimarães, pouco antes de ser submetido à aprovação.

PLANO REAL

Em julho de 1994, Conceição despede-se de seus leitores da Folha, onde ajudava a balizar o debate econômico em suas colunas, para dar início a uma nova fase como política profissional, candidata a uma vaga na Câmara dos Deputados pelo PT do Rio. Havia se desligado do MDB em 1989, após a derrota de Ulysses nas eleições presidenciais.

Em 1994, Conceição era uma das principais críticas do Plano Real. Disse que se tratava de um "Cruzado dos ricos" e que criaria uma realidade paralela, na qual a classe média baixa e os pobres não poderiam medir as perdas sofridas. "Ela fez uma crítica equivocada", afirma Belluzzo.

Ao longo do governo FHC, ela opôs-se também à abertura econômica, à desproteção de setores produtivos nacionais e à financeirização da economia.

"Hoje eu acho que ela tinha razão. Houve uma financeirização em relação ao capital produtivo. A teoria macroeconômica do neoliberalismo era a posição hegemônica. Agora está começando a haver uma revisão", afirma o economista André Lara Resende, um dos pais do Real e ex-presidente do BNDES no governo FHC.

O economista tem sido voz dissonante e solitária contra essa hegemonia no debate econômico brasileiro, por meio de livros como "Consenso e Contrassenso - Por uma Economia não Dogmática".

Em 1995, Conceição partiu para Brasília como a segunda deputada federal mais votada do PT pelo Rio. Apesar do sucesso eleitoral, não guardou boas lembranças. "Foi uma estreia política formal triste. Foi a única vez que fui ao sacrifício político", declarou.

Uma vez no poder, FHC deu a si mesmo a missão de encerrar o legado estatal de Getúlio Vargas. Para isso, era necessário abrir a economia e diminuir o peso do Estado por meio de privatizações.

Dar fim a todo aquele aparato que os então deputados Conceição, Delfim e Roberto Campos —embora este último há muito já estivesse convertido em ardoroso pregador liberal e crítico do estatismo— ajudaram a construir décadas antes. "Roberto Campos e eu nos divertíamos com a grossa pancadaria que ela aplicava no ilustre Fernando Henrique Cardoso", conta Delfim.

Integrante da Comissão de Finanças e Tributação, ela tentou passar uma reforma tributária. "Não tive o menor sucesso. Nem eu, nem ninguém, como é óbvio", disse ela no Senado.

O fracasso foi estendido a outras comissões. "Perdi na de Energia. Doutor Roberto Campos estava lá. Chamava de ‘dinossauro’ a Petrobras. Perdi a paciência. Disse que era melhor ser dinossauro que ser lagartixa. Ele ficou aborrecido." A congressista explicou que não se referia a ele. Depois, complementou: "O senhor também, à sua maneira, é um dinossauro… rex".

Na audiência que votou o fim do monopólio da Petrobras na extração do petróleo, Conceição foi escolhida pelo PT para representar o partido. Vestida de preto, com uma fitinha verde e amarela, deu seu voto contrário. "Foi uma tristeza. Ali eu quase chorei."

"O FHC passou o que quis e o que não quis [no Congresso]. A Conceição viveu isso de dentro. Ela cumpriu um papel importante, era a professora da bancada do PT. A maior parte dos quadros do partido não tinha a menor noção de nada [do que estava em votação]", afirma a economista Gloria Maria Moraes da Costa, que foi aluna da deputada e coordenadora de sua campanha.

Uma das derrotas de Conceição foi a não aprovação de um imposto para grandes fortunas, de autoria de FHC quando senador (1983-1992). Hoje o ex-presidente diz que teria sido importante a aprovação desse projeto. "A grande fortuna no Brasil ficou intocável, e isso não é bom."

Embora a esquerda tenha convencionado referir-se ao governo FHC como um período neoliberal, é importante entender que havia tensões dentro da área econômica de sua gestão, simbolizadas pelos então ministros Pedro Malan, da Fazenda, e José Serra, do Planejamento.

O primeiro era mais voltado à abertura e à internacionalização da economia; o segundo, às ideias de proteção de determinados setores. "Isso [tratar o governo como neoliberal] é uma caricatura. Mas a caricatura guarda alguma relação com a realidade", afirma Lara Resende.

"Os dois [Malan e Serra] mencionavam a Maria Conceição [nas reuniões]. Notei que ela era realmente muito influente", afirma FHC.

"Em algumas coisas, ela poderia ter alguma razão, mas, de qualquer maneira, o que nós fizemos era o que nós podíamos fazer. Naquele momento, era o que se aconselhava fazer, era o possível. E o resultado está aí, o Brasil cresceu."

O ex-presidente, em seus diários, afirma que a professora o tratou de "modo desabrido" durante a campanha eleitoral. Conta que, em jantar no qual Celso Furtado também estava presente, a tratou friamente, queixando-se de que ela não foi "nem desleal, foi atrevida, não tem o direito de dizer o que disse durante a campanha, uma mulher que me conhece a vida toda".

Questionado, FHC diz não se lembrar a que se referia. "Eu não me lembro, mas provavelmente porque apoiou algum adversário meu", afirma. "Eu não me lembro de ter rompido [com ela], muito menos de ter reatado [risos]. Não sou uma pessoa de guardar rancores."

LULA LÁ

Conceição celebrou muito a vitória de Lula em 2002. Afirmou, no início, que o governo tinha pouco "raio de manobra", em razão do endividamento do Estado e das altas taxas de juros. A "pax", todavia, durou pouco.

Em abril de 2003, em entrevista à Folhasoltou o verbo contra a opção do PT por políticas focalizadas na área social —ou seja, políticas que atingem determinados grupos—, em detrimento de programas universais.

"Tive de ouvir o dr. Delfim Netto defender a Constituinte de 1988, onde estão consagrados os direitos universais nas três áreas: saúde, assistência social e Previdência Social. Isso vinha sendo construído como políticas universais desde o tempo da ditadura; logo, não é um problema de ser conservador. É um problema de ser pateta ou de má-fé."

Suas críticas, porém, foram escasseando ao longo do governo Lula. Chegou aos 80 anos, em 2010, otimista, apesar do alerta feito um ano antes, no evento da Unicamp. "Espero não me equivocar, mas, se me equivocar, não estarei viva para ver."

Na eleição que opôs seus dois ex-alunos, Dilma e Serra, declarou apoio à primeira, que saiu vitoriosa. Ambos foram procurados pela reportagem em mais de uma ocasião, mas, mesmo manifestando interesse, não deram retorno.

EPÍLOGO

Em 2019, o Brasil parecia ter cumprido o vaticínio de Conceição de dez anos atrás: o país, que antes decolava na capa da revista The Economist e crescia com distribuição de renda em um mundo em recessão e aumento da desigualdade, acabava de entrar para a lista das democracias liberais em crise com o início do governo de Jair Bolsonaro (PL).

Uma união de militares, extrema direita e milicianos fez boa parte do Brasil achar feio o que era espelho.
Um pouco antes disso a participação de Conceição no debate público já começava a rarear, embora tenha se manifestado contra o impeachment de Dilma e a prisão de Lula.

Em 2019, ainda vivendo no bairro do Cosme Velho, no Rio, lançou sua última obra, "Maria da Conceição: Vida, Ideias, Teorias e Política", um compilado de ensaios.

No final de 2021, após uma fratura, Conceição mudou-se para Nova Friburgo (RJ). Aos 92 anos, ocupa seus dias com visitas de amigas economistas, do casal de filhos e de familiares, e telefonemas de Belluzzo. Desde a queda, sumiram com seu cigarro. Após 70 anos de vício, ela deixou de fumar. Por motivos de saúde, não pôde dar entrevista para esta reportagem.

Em uma das visitas, Conceição foi informada de que volta e meia se tornava um dos assuntos mais comentados na internet, por causa de trechos de suas aulas na Unicamp e da entrevista do Roda Viva veiculados no YouTube e em redes sociais.

Sua fala enérgica e sem pudores inspirou diversos memes, que tiveram o efeito imprevisto de formar uma nova geração de admiradores de sua obra. Antes da internet, no começo dos anos 1990, ela já havia inspirado uma personagem da "Escolinha do Professor Raimundo" (Globo), dona Maria da Recessão Colares, fumante, com sotaque português, que esbravejava sobre a economia do país.

Conceição, que nem sequer tem celular, divertiu-se ao saber que sua lição nas salas de aula, como o exemplo a seguir, ainda sobrevive.

"Nós não somos da elite dominante desse país. A não ser que vocês tenham alguma pretensão a ser. Eu não tenho. Então não é chá e simpatia. Isso é um curso rebelde! Nós perdemos! Nós somos derrotados! Se vocês não fossem derrotados, não vinham para esta universidade [Unicamp], iam pra USP, pra PUC [Rio]. Ou pra Harvard. Estamos lutando pela hegemonia? Imagine! Estamos lutando apenas pra não ficar malucos. Para não dizer besteira demais."

*Jornalista e mestrando em ciência política pela UFF (Universidade Federal Fluminense)

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Comentário Mauricio David:

Muitos me contactaram querendo saber sobre o velório da nossa amada Conceição. A família decidiu que a cremação da Ceiça será uma cerimônia privada, fechada e reduzida apenas aos familiares. Melhor assim, mas ainda acho que ela merecia um funeral como o do também muito querido Darcy Ribeiro, que teve o seu corpo conduzido da Academia Brasileira de Letras até o Cemitério de São João Batista, em Botafogo, levado o caixão por um carro do Corpo de Bombeiros seguido a pé por uma multidão imensa. Não sei não, acho que a Conceição merecia um funeral assim. Por que não no antigo Salão da Reitoria da antiga Universidade do Brasil (UB), hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde a Conceição fez seu curso de Economia, foi assistente do seu antigo professor Octávio Gouveia de Bulhões e ajudou a criar (e foi depois Professora Titular e Emérita) o Instituto de Economia, e a seguir conduzida para a cremação acompanhada por sua legião de amigos e admiradores ? Família tem cada coisa...

MD

P.S.1 :  A Conceição era impagável (em todos os sentidos do termo “impagável”...). Jamais, em seus 94 anos de vida, prestou-se a “vender” as suas idéias e pensamentos... Considero que uma das coisas mais valiosas de Ceiça foi ter dito certa vez : “ "Nós não somos da elite dominante desse país. A não ser que vocês tenham alguma pretensão a ser. Eu não tenho. Então não é chá e simpatia. Isso é um curso rebelde! Nós perdemos! Nós somos derrotados! Se vocês não fossem derrotados, não vinham para esta universidade [Unicamp], iam pra USP, pra PUC [Rio]. Ou pra Harvard. Estamos lutando pela hegemonia? Imagine! Estamos lutando apenas pra não ficar malucos. Para não dizer besteira demais."

Ora, dizer “Nós perdemos ! Nós somos derrotados !” é a coisa mais fenomenal que já ouvi um(a) economista dizer. Só ouvi algo semelhante com o Darcy Ribeiro dizendo na Sorbonne, em Paris, quando recebeu o título de “Doutor Honoris Causa”, algo assim (estou dizendo de memória) “Perdemos, fomos derrotados, mas eu não gostaria de ter estado do lado dos que venceram !” (Castelo Branco, Costa e Silva, Garrastazú e Geisel, no Brasil, Pinochet, no Chile, Videla e cia, na Argentina...MD). 

OK, Ceiça ! Divirjo radicalmente desta sua auto-avaliação tão negativa. Ao final das contas, você venceu ! Você é o nosso El Cid Campeador, que depois de morta vencerá todos os seus adversários... Você, a nossa Cid Campeadora, no final das contas venceu, vence e vencerá...

P.S.2 : Que asco me provoca em ver toda esta gente que tanto maltratou a Conceição agora querer faturar a amizade da nossa pura donzela portuguesa que se apaixonou pelo Brasil...

(1) Por que insistem tanto em dizer que a Dilma e o Serra “foram alunos” da Conceição... Quando ? Onde ?

E o Mercadante, dizendo que a Conceição foi alta funcionária do BNDES... Menos,Aloizio, menos... Dá uma olhada na folha funcional do BNDES... Alta funcionária, quando ? Elogiar está bem, mas mentir exageradamente é indevido...

(2) E o Lula e a Dilma, tão oportunistas, esparramando fotos dela com eles e se derramando em elogios... A Conceição era unanimemente reconhecida como a maior ( e supostamente a mais influente) economista do PT. Lula governou por dois períodos e agora reina pelo terceiro. A Dilma por um período e meio. Em total, estiveram mais de 14 anos no Poder. Quantas vezes chamaram a Conceição (deputada do PT entre 1995 e 1998) para tomar sequer uma cafezinho no Palácio do Planalto ou do Alvorada ? Sequer foi cogitada para algúm cargo ou posto nos 4 governos petistas. Quando voltei do meu doutorado, em Paris, e fui trabalhar com o Bresser em Brasília, certo dia a Conceição me convidou para tomar o café da manhã com ela no hotel em que residia em Brasília (já não me lembro bem, mas creio que ela ficava no Kubistchek Plaza...). Era 1995 ou 1996, Conceição estava no primeiro ou segundo ano do seu mandato. Ali, na conversa na intimidade, pude ver a sua relativa mágoa com o ostracismo que lhe impunham, os supostos amigos petistas... Certo que a Conceição esculhambava a tudo e a todos, o Palocci, por exemplo, sofreu horrores nas suas mãos. O Fernando Henrique, então, não se fala... O Delfim Netto – que foi sempre tão bombardeado por ela, nas suas aulas e entrevistasse artigos de jornal – sempre dizia que se divertia muito, junto com o Roberto Campos (os dois czares da Economia nos governos militares...) com o bombardeio dela ao Fernando Henrique nos seus dois períodos de governo. Conceição desistiu de renovar o seu mandato de deputada, alegando um incômodo nas costas que lhe impunha grande sacrifício em viajar de aviões ou em ficar longas horas debatendo no plenário e nas comissões da Câmara de Deputados. Elegante como era ela no fundo, estou certo de que ela ocultou sempre o verdadeiro motivo : o ostracismo que lhe impuseram os seus “companheiros” do PT... A derradeira humilhação foi quando ela tentou falar com a Dilma, várias vezes, quando a “ex-aluna” (até nisso tentaram faturar o prestígio militante da velha guerreira...) se elegeu em 2010 ou se reelegeu em 2014). Lembro-me que, estando no exterior, li em jornais brasileiros que ela chegou a “suplicar” com o Emir Sader (prócer petista também posto para escanteio...) que conseguisse que ela fosse recebida pela Dilma... Em vão, como podem adivinhar... Cáspite ! Como é a natureza humana... Agora viraram todos ex-alunos, agora reconhecem todos os “companheiros” a sua genialidade e combatividade, agora tiram do fundo do baú velhas fotos com a velha guerreira para exibir pela imprensa afora... 

P.S.2 : Quero frisar que nunca fui aluno da Conceição, mas simplesmente seu amigo e admirador (sem ser seguidor fanático) por muitos anos... Gostava mais do seu jeito meio dramático e teatral, da sua militância, da sua “portas abertas” para todos, das suas lições de engajamento militante e de luta perseverante por tudo aquilo em que acreditava... Estas são as suas melhores lições deixadas para seus filhos Laura e Bruno, seus netos e bisneto, e para a sua legião de ex-alunos (os verdadeiros, não os inventados pela imprensa desinformada...) e admiradores. Espero que ela seja mesmo a nossa Cid Campeadora, que depois de morta possa continuar inspirando a todos que ficaram para atrás no penoso trajeto da vida...

MD