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sábado, 5 de abril de 2025

Trump, protecionismo e a história como farsa - Leonardo Weller (Folha de S. Paulo)

Trump, protecionismo e a história como farsa

Leonardo Weller*

Folha de S. Paulo, 5/04/2025

É bem capaz que o presidente americano pague um preço amargo pela barafunda saudosista em que está se metendo

 

Donald Trump chocou o mundo com o surpreendente pacote protecionista anunciado no dia 2 de abril, data por ele batizada de "Dia da Libertação". Segundo a revista britânica The Economist, a tarifa média dos EUA deve se elevar dos atuais 2% para nada menos do que 24%, patamar inconcebível há décadas. O presidente apresenta seu violento tarifaço como um retorno ao passado. Reiteradamente Trump afirma que altas tarifas servirão para reindustrializar seu país, fazendo a América "great again".

Há um fundo de verdade no saudosismo protecionista de Trump. No entanto, como é de praxe com idealizações da história que tentam trazer o passado para o presente, também há muito de engodo e cilada nesta tentativa de guinada autárquica.

A história da política comercial estadunidense é marcada pelo protecionismo. O governo de Washington permaneceu à margem do liberalismo do século 19, quando o Reino Unido liderou um inédito processo europeu de abertura comercial. Na contramão do que se passava no outro lado do Atlântico, os EUA elevaram suas tarifas para quase 50% após a Guerra Civil, nos anos 1860. Política comercial foi, junto com escravidão, um dos temas contenciosos do conflito.

Enquanto o Sul defendia a redução de barreiras às importações, o Norte, em pleno processo de industrialização, almejava reservar o mercado interno para os bens produzidos em suas fábricas. A União nortista ganhou e levou: a escravidão acabou e o protecionismo se recrudesceu.

Segundo o historiador econômico Robert Allen, em seu artigo "Excepcionalismo americano como um problema na história global" ("American exceptionalism as a problem in Global History"), as altas tarifas ajudaram os EUA a se industrializarem. Com vastos recursos naturais, aquela economia tinha vantagens comparativas em commodities, assim como o resto do continente americano. Para Allen, foi graças ao protecionismo que as fábricas estadunidenses resistiram à competição britânica, condição necessária para que, no século 20, assumissem a liderança industrial do mundo.

Uma segunda rodada protecionista ocorreu em 1930, no início da Grande Depressão, quando o presidente Hoover sancionou uma lei que elevava tarifas no intuito desesperado de conter a crise econômica. O resultado foi uma onda de retaliações ao redor do mundo. Estudos históricos recentes mostram que a medida influiu na abrupta queda do comércio global, embora não tenha sido a causa da depressão. De todo modo, o aumento das tarifas foi uma iniciativa errada em uma conjuntura difícil, tornando-a ainda pior.

Os EUA finalmente reduziram suas tarifas no pós-guerra ao comandarem o Acordo Geral de Tarifas e Comércio. A liberalização comercial contribuiu para o crescimento mundial verificado no período, durante o qual economias da ÁsiaEuropa e América Latina cresceram mais do que a estadunidense. A pujança global era vista com bons olhos em Washington: entendia-se que o sucesso do comércio mundial ajudaria a conter o comunismo. A Guerra Fria não era o único motivo da liberalização do pós-guerra, mas certamente foi um de seus condicionantes mais importantes.

Em retrospecto, até que demorou para que o liberalismo do pós-guerra ruísse, haja vista que o Muro de Berlim caiu há mais de três décadas. Desde então, a China se tornou o motor da indústria mundial e o Ocidente —inclusive os EUA— se desindustrializou.

O protecionismo trumpista tem, portanto, algum cabimento histórico. Mas o retorno ao passado é impossível. Os estadunidenses simplesmente não estão aptos a trabalharem como os chineses —o documentário "American Factory" é uma divertida ilustração deste fato. O tarifaço de Trump penalizará tanto os consumidores quanto o que sobrou da indústria. Após décadas se beneficiando de importados baratos, os EUA não estão preparados para a escassez de bens que virá a reboque, com quebras de cadeias produtivas e alta da inflação.

É de se esperar uma forte reação política interna. No final, é bem capaz que o próprio Trump pague um preço amargo pela barafunda saudosista em que está se metendo –e levando consigo seus compatriotas e o resto do mundo.

 

*Doutor em história econômica pela London School of Economics, professor da FGV/EESP e autor de "Democracia negociada: política partidária no Brasil da Nova República"

 



quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

A agenda de Trump - Deirdre Nansen McCloskey Folha de S. Paulo

Trump acaba de provocar uma economista transgênero que não deixará passar o ataque a todos os LGTBQI+, e responderá à altura. PRA


Introdução de Maurício David:
Quando eu vivia em Santiago do Chile no começo dos meus anos de exílio e era um mero estudante de economia na Escola de Economia da Universidade Católica do Chile (berço dos posteriormente famosos “Chicago boys” que viriam a ser o núcleo de economistas neoliberais que formularam as políticas econômicas de Pinochet no Chile pós-golpe militar de 1973), McCloskey era um economista mais ou menos conhecido ( menos do que mais, na verdade, mas não totalmente desconhecido...) nos Estados Unidos (um professor – vejam bem que escrevi professor, e não professora), da qual havia lido alguns artigos interessantes sobre metodologia econômica. Passou-se algum tempo e o professor McCloskey descobriu o seu lado feminino, passou a usar elegantes trajes femininos e cabelos longos cacheados e mudou o seu nome para Deirdre para grande escândalo dos seus colegas à época ( hoje não provocaria muito escândalo, mas lembrem-se que estou falando do final dos anos 60 e começo dos anos 70... Imaginem só o escândalo que ainda provocaria no Brasil de hoje se o presidente Lula de repente descobrisse o seu lado feminino, passasse a usar elegantes roupas femininas e perucas cacheadas e se casasse com o Ministro-sindicalista Luís Marinho... nem a deputada petista trans Erika Hilton aguentaria o baque...). Hoje, esta entrevista da agora professora não provoca escândalo, apenas curiosidade... Mas ela está com medo de perder direitos... Arre !
MD

A agenda de Trump
Deirdre Nansen McCloskey
Folha de S. Paulo, quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Muitas de suas propostas serão contestadas em tribunal, e o Judiciário ainda não está totalmente do seu lado

Eu moro em Washington e nesta segunda a cidade estava bloqueada para a segunda posse de Donald Trump. Serei diretamente afetada pela implementação da sua agenda de usar o poder coercitivo do Estado federal para atacar imigrantes, funcionários públicos federais e gays, porque uma de suas ordens será que o Departamento de Estado emita passaportes e outros documentos conforme o gênero em que você nasceu. Quando o meu for renovado, em janeiro de 2027, ele terá que dizer gênero "masculino" em vez de "feminino". Uma pessoa rica como eu não precisa se preocupar muito. Mas pessoas trans pobres serão as únicas prejudicadas.

Ele não pode obter tudo o que quer, porque os Estados Unidos ainda são uma nação de leis. Muitas de suas propostas serão contestadas em tribunal, e o Judiciário ainda não está totalmente do lado de Trump. E o Exército, crucialmente, ainda não é político, como sempre foi, surpreendentemente. Vocês, brasileiros, sabem bem como são importantes um Judiciário independente e um Exército apolítico.
É verdade que Trump tem maiorias, embora muito pequenas, em ambas as casas do Congresso. Se ele quiser tornar os servidores federais menos seguros em seus empregos, pode fazê-lo. E os congressistas, especialmente na câmara baixa, estão aterrorizados com as ameaças dele de se opor à reeleição em dois anos de qualquer um que vote contra a sua agenda.

Suas ameaças se tornam verossímeis por dois fatos. Primeiro, a disposição de muitos americanos, embora não seja uma grande maioria, é conservadora, e muitos são populistas trumpistas que agora votam com entusiasmo. E, segundo, o sistema "primário" que cresceu nos últimos 50 anos facilita para os conservadores radicais entrarem na câmara baixa.
Antigamente, os candidatos a cargos de nossos meros dois grandes partidos eram escolhidos como são no Brasil, por políticos profissionais em segredo, em "salas cheias de fumaça", como diz a expressão americana. Os políticos apresentavam candidatos que achavam que venceriam a chamada eleição "geral", aquela que realmente coloca as pessoas no poder.
Mas hoje os candidatos de ambos os partidos enfrentam uma eleição primária anterior, que geralmente é restrita a pessoas que se declararam anteriormente a favor de um dos partidos. Crucialmente, o meio do eleitorado não se preocupa em votar nas primárias. Os extremos sim. Portanto, hoje em dia, os democratas acabam com candidatos de esquerda mais radicais e os republicanos com candidatos mais radicalmente conservadores.

Em 1972, por exemplo, eu ainda era um pouco de esquerda, ainda não como sou hoje, totalmente fora do espectro comum —uma liberal essencial sentada em nossa pequena casa na árvore olhando assustada para os partidos estatistas no espectro. E, como eu era contra a Guerra do Vietnã em curso sob o então presidente Nixon, trabalhei como observadora de votação para o democrata radical antiguerra George McGovern, que tinha saído do sistema primário. Na eleição geral, ele perdeu em cada um dos 50 estados, exceto meu Massachusetts natal.

O presidente dos EUA é importante para os brasileiros, nem preciso dizer. Observem atentamente.

domingo, 12 de janeiro de 2025

Responsabilidade compartilhada - Marcos Lisboa (Folha de S. Paulo)

 Responsabilidade compartilhada

Marcos Lisboa
Folha de S. Paulo, domingo, 12 de janeiro de 2025
Desequilíbrio fiscal é obra de muitas mãos

Tornou-se lugar-comum criticar o governo federal pelo desequilíbrio fiscal.
O Executivo tem a sua parcela de responsabilidade, mas o problema é bem mais complexo, e distinto, do que afirma o contraponto "a direita que não quer pagar imposto, e a esquerda não quer cortar despesa".
Existem muitas regras que tornam a despesa do Estado brasileiro mais rígida do que em outros países, assim como diversos privilégios tributários. Elas contam com amplo apoio da esquerda e da direita, e refletem o sucesso de diversos grupos de pressão da sociedade.
A reforma tributária foi abalroada por diversos setores, cada um justificando que seu caso era particular, e que não poderia pagar a alíquota padrão a ser cobrada do restante da sociedade.
Empresas de profissionais liberais, como médicos, economistas e advogados, faturando milhões de reais por ano, conseguiram alíquotas reduzidas.
Vale mencionar que já existe um benefício tributário para empresas que faturam até R$ 78 milhões por ano. Os regimes especiais permitem pagar uma alíquota menor de imposto sobre o lucro do que as empresas no regime geral.
Os dados mostravam que a desigualdade de renda cairia bem mais com o aumento bem focalizado do Bolsa Família do que com a desoneração da cesta básica. Contudo, prevaleceram os interesses dos produtores em detrimento das famílias mais pobres. Com apoio da esquerda e da direita.
A reforma concedeu benefícios tributários para o setor de aviação regional e o transporte coletivo, entre várias outras atividades.
A desoneração da folha salarial foi criada há mais de uma década por um governo de esquerda como uma medida temporária, para beneficiar algumas empresas. Ela continua em vigor e pode ter custado mais de R$ 20 bilhões em 2024, segundo técnicos do governo.
A concessão de tratamento diferenciado é prática usual no Brasil. As regras permitem privilégios tributários e crédito subsidiado para empresas privadas, ou remuneração acima do teto constitucional para servidores do Judiciário.
Esses benefícios são custeados pelo restante da sociedade, às vezes por mecanismos criativos.
O FGTS é uma poupança forçada do trabalhador com carteira que recebe uma remuneração menor do que se fosse investida em títulos públicos. Os recursos subsidiam empréstimos para empresas privadas.
A contribuição para o Sistema S incide, economicamente, sobre o trabalhador formal. E parte dos recursos é destinada aos sindicatos patronais, como as federações e confederações da indústria, do comércio ou dos serviços.
Às vezes, pode surpreender quem apoiou algumas medidas.
Há alguns anos, João Doria, então governador de São Paulo, tentou reduzir os privilégios tributários para empresas do setor privado. A reação foi avassaladora e a medida não prosperou.
Recentemente, Tarcísio de Freitas, um governador ainda mais identificado com a direita, finalmente conseguiu uma redução desses privilégios.
O setor de energia tem sido inundado por regras que estabelecem benefícios para algumas empresas em detrimento dos demais, desde a capitalização da Eletrobras. Os muitos subsídios cruzados acabam caindo na conta de energia.
Por vezes, o processo de captura do Estado decorre de uma iniciativa temporária que promete desenvolvimento de um setor. Os benefícios tributários para a Zona Franca de Manaus tinham prazo para terminar. Décadas depois, seguem sendo renovados.
Outras vezes, a motivação seria uma crise excepcional que justificaria uma intervenção pública momentânea, como ocorreu durante a pandemia.
Um exemplo é o Perse, que beneficiou o setor de eventos. Segundo relatório da Receita Federal, há empresas beneficiadas em alojamento e alimentação; atividades administrativas; indústria de transformação, entre muitas outras. A conta passou de R$ 7 bilhões entre abril e outubro de 2024.
Vale ressaltar: além de menor cobrança de tributos indiretos, foi igualmente reduzida a tributação sobre o lucro, não exatamente um caso de crise.
Marcos Mendes e eu sistematizamos 42 medidas de concessão de benefícios aprovadas na segunda metade do governo anterior, em 6 outubro de 2022, no Brazil Journal.
As propostas seguiram um padrão usual: auxílios com impacto social, como a ampliação do Bolsa Família, lideravam uma extensa lista de benefícios para grupos organizados.
Eram muitos os caronas: taxistas, caminhoneiros, templos religiosos, transferências para estados e municípios e novos benefícios para empresas do setor privado, do etanol a semicondutores e automóveis, de equipamentos de biogás ao setor de portos. A lista segue...
Com duas exceções, as principais medidas tiveram a aprovação da maioria dos congressistas, à direita e à esquerda.
Desde a pandemia, foram transferidos R$ 69 bilhões de recursos do Tesouro a fundos garantidores de empréstimos subsidiados para empresas, como registrou Marcos Mendes. O atual governo contou com o apoio do Congresso para aumentar os gastos públicos em cerca de R$ 245 bilhões desde a transição em 2022.
O Executivo tem sua parcela de responsabilidade. Mas o mesmo ocorre com as demais instâncias do setor público, assim como com os grupos privados que obtêm favores oficiais.
A criatividade de tribunais do Judiciário parece não ter limite para ampliar a remuneração dos juízes. O Legislativo defende as emendas parlamentares, já na casa dos R$ 40 bilhões por ano.
Fica o contraste. Muitos grupos denunciam com indignação as regras que favorecem os demais. Ao mesmo tempo, defendem com virulência os seus próprios privilégios.
A imprensa se beneficia da desoneração da folha de pagamentos. Mas critica duramente as emendas parlamentares.
Empresários reclamam da carga tributária. Por outro lado, defendem vigorosamente os privilégios que recebem do poder público, como regimes tributários especiais ou acesso a créditos subsidiados.
Associações de profissionais liberais vão na linha de frente na defesa da República, mas se recusam a pagar tributos como os que oneram as demais empresas.
A retórica "esquerda versus direita" por vezes encobre os truques do nosso Estado patrimonialista.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Rubens Paiva, por Elio Gaspari

Que este artigo possa envergonhar os torturadores e assassinos e faça a Justiça cumprir o seu dever, no caso de um crime imprescritível.



sábado, 21 de setembro de 2024

Brasil e China convocam 19 países para reunião sobre paz na Ucrânia - Ricardo Della Coletta (Folha de S. Paulo)

Brasil e China convocam 19 países para reunião sobre paz na Ucrânia

Folha de S. Paulo | Mundo
21 de setembro de 2024

Encontro busca angariar apoio de nações em desenvolvimento para plano de cessar-fogo

Ricardo Della Coletta

Folha de S. Paulo, 21/09/2024

NOVA YORK A lista final de convidados para a reunião que Celso Amorim, assessor internacional do presidente Lula (PT), está organizando com a China para discutir um processo de paz no Leste Europeu tem 19 países, todos do chamado Sul Global, termo não oficial para se referir a nações em desenvolvimento. Nem Rússia nem Ucrânia, as partes diretamente envolvidas na guerra, foram convidadas.

A reunião está prevista para a próxima sexta-feira (27), pouco depois da Assembleia-Geral da ONU em Nova York.

A Folha teve acesso à lista, que tem duas categorias de países. A primeira reúne Estados que se engajaram mais de perto no processo e passaram a participar dos preparativos. São eles: África do Sul, Arábia Saudita, Egito e Indonésia. Os sauditas já se envolveram em negociações sobre a Ucrânia no passado, enquanto o Egito tem expertise como mediador na guerra Israel-Hamas.

A partir dessa atuação conjunta, os organizadores chegaram a um grupo de países que, segundo eles, sinalizaram disposição de enviar um representante para o encontro em Nova York.

Aém do primeiro grupo, a lista de convidados é composta por Emirados Árabes Unidos, Tailândia, Vietnã, Etiópia, Zâmbia, Nigéria, Senegal, Bolívia, Colômbia, México, Argélia, Cazaquistão, Malásia, Quênia e Azerbaijão.

A presença dos nomes na lista não significa necessariamente que esses países vão participar do encontro nem em qual nível - se representado por um ministro ou por um funcionário de escalão inferior. Mas mostra que os organizadores os consideram inclinados a apoiar a proposta sino-brasileira.

Um interlocutor ouvido pela reportagem sob anonimato ressaltou que alguns dos participantes tendem a enviar seus embaixadores na ONU, uma vez que seus chanceleres podem já ter deixado Nova York na data do encontro.

Como a Folha mostrou, Brasil e China estão organizando a reunião para divulgar a proposta conjunta de um plano de paz para Ucrânia e Rússia. O documento foi anunciado em maio, durante uma visita de Celso Amorim a Pequim, e assinado por ele e por Wang Yi, ministro das Relações Exteriores da China.

O plano consiste em seis pontos, entre os quais a realização de uma conferência internacional de paz "que seja reconhecida tanto pela Rússia quanto pela Ucrânia, com participação igualitária de todas as partes relevantes".

A proposta engloba a rejeição ao uso de armas de destruição em massa e aos ataques contra usinas nucleares - e rejeita a "divisão do mundo em grupos políticos ou econômicos isolados".

Os termos do documento, no entanto, foram rejeitados pelo presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski - que chamou a proposta de destrutiva - e por aliados de Kiev no Ocidente. Em linhas gerais, estes consideram que a abordagem sino-brasileira premia a Rússia e autorizaria o governo de Vladimir Putin a anexar territórios ocupados.

Na quarta-feira (18), Lula conversou por telefone com Putin e discutiu a proposta de paz.

Amorim, ex-chanceler e principal conselheiro de Lula para temas internacionais, está pessoalmente envolvido na iniciativa. O presidente já não estará em Nova York no dia da reunião, de modo que Amorim deve conduzir o encontro ao lado do chanceler chinês. O Brasil pode ser representado ainda pelo ministro Mauro Vieira, mas sua participação ainda não está confirmada.

Ao anunciar um plano conjunto com a China, na prática o governo Lula também marcou distância de uma conferência de paz realizada na Suíça em junho. Lula escalou apenas uma observadora para o encontro e não endossou a declaração final da conferência.
 

 

domingo, 23 de junho de 2024

Os militares brasileiros custam muito caro; proporcionalmente mais do que nos outros países - Editorial da Folha de S. Paulo

 Militares custosos

Folha de S. Paulo/Editorial/ 23Jun24

Disparidade entre Previdência das Forças Armadas e dos civis exige reforma ampla

O déficit das contas federais e a dificuldade do governo petista em lidar com o problema provocam debate urgente sobre gastos, até agora praticamente intocados. A reforma da Previdência das Forças Armadas é um exemplo dessa pauta.

O gasto com militares da ativa equivale a só 57% daquele com militares na reserva, reformados e pensionistas. No caso dos civis, a proporção é de 156% —no último ano até abril, desconsideradas sentenças judiciais e precatórios.

A despesa com inativos das Forças está em 0,53% do PIB por ano (R$ 58,9 bilhões); com os civis, em 0,84% do produto (R$ 92,9 bilhões). Mas os beneficiários militares somam 313 mil, ante 796 mil civis.

Segundo dados do Tribunal de Contas da União, publicados pela Folha, o déficit por beneficiário no INSS ronda os R$ 9.400. Entre civis, são R$ 69 mil; já entre os militares, a conta vai a R$ 159 mil.

Servidores das Forças se aposentam mais cedo e mantêm seus vencimentos quando inativos. Sobrevivem regimes especiais de proteção para pensionistas. Sua Previdência não sofreu reforma ampla neste século, como a dos civis.

Os militares argumentam que trata-se de compensação para especificidades da carreira —não têm hora extra, adicional noturno nem sindicatos e são obrigados a mudanças constantes de cidade.

No entanto cerca de metade dos trabalhadores brasileiros não possui os direitos de contratados formais nos setores privado e público. Ademais, não é na Previdência que se deve corrigir desigualdade do mercado de trabalho. Ainda que a condição militar deva ser levada em conta, a disparidade na aposentadoria é exagerada.

Em comparação internacional, o gasto nas Forças do Brasil é alto. É fato que a despesa com servidores federais (ativos, inativos e pensionistas) tem diminuído, de 4,26% do PIB em 2008 para 3,17% do PIB atualmente, redução considerável, em particular entre os civis.

Ainda assim, é urgente uma reforma administrativa, também de organização e métodos, a fim de modernizar o trabalho e dirigi-lo aonde é mais necessário. O serviço público militar não pode ficar fora dessa revisão geral.


segunda-feira, 10 de junho de 2024

Maria da Conceição Tavares (1930-2024) marca debate econômico de JK ao TikTok - Danilo Thomaz (Folha de S. Paulo); comentário Maurício David

FSP, domingo, 9 de junho de 2024 (reproduzindo material antigo)

Maria da Conceição Tavares (1930-2024) marca debate econômico de JK ao TikTok


Danilo Thomaz* / Folha de S. Paulo (15.10.22)

Maria da Conceição Tavares marcou o debate público brasileiro das últimas décadas, tanto por suas ideias quanto por sua figura teatral. Referência central nos estudos sobre crescimento e planejamento econômico, formou três gerações de economistas. No plano pessoal, sua postura inconformada, enérgica e desbocada inspirou até personagem de programa de humor. Aos 92, é redescoberta por novas gerações após virar meme na internet.

Não poderia haver melhor momento para o Instituto de Economia da Unicamp, que começou a funcionar em agosto de 1968, comemorar seus 40 anos. Era 2009, e os países ricos estavam recolhendo os destroços do que havia restado da crise de 2008, fruto de quase três décadas de desregulação financeira.

Já o Brasil, que nunca embarcara com a mesma intensidade no que se convencionou chamar de neoliberalismo, via a economia se recuperar rapidamente com a ação dirigida estatal. Como, aliás, já vinha acontecendo naquele segundo governo Lula. Era a vitória política e ideológica da chamada Escola de Campinas, mais voltada à participação do Estado na economia.

Uma das principais formuladoras da tradição dessa escola estava na celebração da Unicamp: a economista Maria da Conceição Tavares. Convidada a falar no evento, não se limitou a ser mera espectadora enquanto não chegava o dia e a hora de sua palestra.

Se um convidado dizia algo de que discordava, rebatia, "não é assim!". Se alguém falasse uma besteira, dizia "é uma bobagem!". Se errasse, corrigia no mesmo instante: "Está errado!".

A única poupada de críticas foi a então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. "Eu não gosto de brigar com mulher", a própria Conceição já dissera antes, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 1995.

Fumante inveterada difícil de conter, Conceição sentou-se em uma cadeira na entrada do auditório, lugar reservado a ela pela organização do evento, onde poderia fumar sem incomodar a plateia, ouvir e, claro, intervir nos debates.

Até que chegou o momento de sua fala. Conceição começou citando o romance "O Retrato de Dorian Gray", do escritor irlandês Oscar Wilde. No clássico, um aristocrata faz um pacto demoníaco para ter a juventude eterna, enquanto um quadro com seu retrato envelhece.

A economista tinha o receio de que o Brasil terminasse como o aristocrata hedonista: horrorizado ao encarar o próprio retrato. No plano pessoal, seu receio era ter nascido em uma crise, na Europa, e morrer em outra, no Brasil —após toda uma vida contra a corrente.

NASCIMENTO E EXÍLIO

Maria da Conceição de Almeida Tavares nasceu em Anadia (Portugal) em 1930, a pouco mais de 50 km de Coimbra, mas cresceu e estudou em Lisboa. Mudou-se para o Brasil em fevereiro de 1954, junto do primeiro marido, Pedro Soares.

"Cheguei aqui e levei um susto. Porque o Getúlio morreu logo depois. Julguei que era uma democracia, vindo lá do Salazar, e me enganei", disse no Roda Viva.

Nesse instante, a então deputada federal pelo PT abriu um sorriso que contraiu os olhos, um dos raros momentos de suavidade em suas manifestações públicas. "Mas depois tivemos Juscelino, lembra? Aí íamos construir Brasília, uma democracia nos trópicos, o desenvolvimento."

O primeiro emprego de Conceição foi como estatística do Inic (Instituto Nacional de Imigração e Colonização), hoje Incra, onde deu-se conta da desigualdade no país.

Essa consciência a levou a estudar economia. Ingressou no curso em 1957, quando adotou a cidadania brasileira, na Universidade do Brasil, hoje UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro.

SUPERANDO O SUBDESENVOLVIMENTO

No ano seguinte, tornou-se analista matemática do que hoje se chama BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), à época presidido pelo economista Roberto Campos, um dos criadores e articuladores do Plano de Metas de JK, que buscava dar um salto no processo de desenvolvimento. Mas como era possível um liberal, como Campos, defender o planejamento estatal da economia?

Conceição, Campos, Celso Furtado, colegas de ambos no BNDES, e o sociólogo e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, entre outros, são representantes de uma geração que tinha por objetivo compreender e superar a problemática do subdesenvolvimento nacional.

"Nós criamos a noção de desenvolvimento", afirma FHC à Folha. "Estávamos no mesmo clima que se respirava no Brasil. Então mesmo que não estivéssemos próximos [no terreno das ideias], nós ‘brigávamos’ pelo contexto de compreensão mútua. Eu li quase todos os textos que ela escreveu. Eu posso ter discordado dela mais de uma vez, mas tenho que reconhecer que ela foi uma grande idealista."

DITADURA

O período ditatorial fez erodir os sonhos da geração que buscava um desenvolvimento em bases reformistas para o Brasil. "Virei brasileira achando que isso aqui seria uma democracia nos trópicos, e tome 21 anos de ditadura, tome concentração de renda, tome milagre econômico", disse, estalando os dedos, no Senado.

É deste período o ensaio "Além da Estagnação", presente no livro "Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro", que completa 50 anos, o mais importante de sua obra.

Escrito em parceria com o hoje senador José Serra (PSDB), o ensaio é considerado um dos marcos da obra da autora dentro de seu período na Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), órgão que defendia a adoção do planejamento econômico e de medidas protecionistas pelo Estado.

No texto, Conceição e Serra contestam a tese de Furtado sobre a derrocada da economia brasileira em meados dos anos 1960, presente no artigo "Desenvolvimento e Estagnação na América Latina: um Enfoque Estruturalista".

"O ensaio ‘Além da Estagnação’ teve por contribuição principal mostrar como, infelizmente, o crescimento do período do chamado milagre se fazia de forma perversa, com concentração da renda. Ao contrário do que postulavam os estagnacionistas, estava sendo possível crescer concentrando a renda —e pior ainda, a concentração de renda alimentava um processo de crescimento acelerado", afirma o economista Ricardo Bielschowsky, autor de "Pensamento Econômico Brasileiro" e colega de Conceição na UFRJ.

"O Furtado foi o grande intérprete do subdesenvolvimento, e a Conceição, da dinâmica econômica", completa ele. "A obra dela pode ser dividida em dois grandes períodos: até as proximidades de 1980, na era desenvolvimentista, e depois dela. Ou seja, o primeiro gira em torno da presença do crescimento, e o segundo trata de elementos que causam sua ausência."

À época da publicação do ensaio, o Ministério da Fazenda era comandado pelo economista Delfim Netto. "Nossos pensamentos frequentemente diferiam, mas sempre considerei as suas críticas. Foi a inteligência mais barulhenta que conheci", afirma ele hoje.

Conceição considera o ex-ministro uma das melhores cabeças do país. Embora crítica da concentração de renda, reconhece que tanto Delfim quanto o segundo PND (Plano Nacional de Desenvolvimento), do governo Ernesto Geisel, conferiram certa pujança ao capitalismo brasileiro.

VIDA ACADÊMICA

De volta ao Rio, em 1972 —após um período no Chile, onde trabalhou no governo Allende—, Conceição reassumiu sua cadeira na UFRJ. Três meses depois, foi convidada pela Unicamp a coordenar a pós-graduação de economia da instituição.

"Zeferino Vaz [fundador da universidade] nos levou para lá", conta o economista Luiz Gonzaga Belluzzo. "[Ele dizia]: ‘São todos esquerdistas, mas são bons’."

A dupla de economistas se conheceu em 1966, quando Belluzzo era estudante e assistiu a uma palestra de Conceição. O reencontro, sete anos depois, marcou o início de uma amizade e uma troca intelectual que perdura até hoje. "Era um estímulo. Ela não briga com as pessoas, briga com as ideias, se empolga", conta ele.

Conceição passou a conciliar aulas na Unicamp e na UFRJ, onde fundou o IEI (Instituto de Economia Industrial), um dos centros mais vibrantes do pensamento econômico brasileiro nos anos 1970 e 1980.
Em sua trajetória acadêmica, a professora ajudou a formar três gerações de economistas. Entre eles, Serra, Pedro Malan, ex-ministro da Fazenda de FHC, e a ex-presidente Dilma Rousseff (PT).

Em 1975, às vésperas de um embarque para Santiago, foi presa pela ditadura no Galeão. Passou alguns dias desaparecida.

Liberta por intervenção do então ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen, Conceição mandou-lhe a seguinte mensagem: "Olá, Mário, tudo bem? Nem vou agradecer porque você não fez nada mais do que sua obrigação".

REDEMOCRATIZAÇÃO E INFLAÇÃO

Em 1980, Conceição tornou-se membro da Executiva Nacional do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), ao qual havia se filiado em 1978. Tinha como seus principais interlocutores dentro da legenda Ulysses Guimarães, uma das lideranças civis da redemocratização, e Fernando Henrique.

"Foi uma influência muito grande, mas não era uma pessoa propriamente ligada ao partido, era muito mais por ideias. Era uma ligação, como tudo que estava acontecendo na época, conflituosa, mas havia uma grande identidade de ponto de vista, sobretudo no que concerne a um pensamento comprometido com a dinâmica da política brasileira", afirma o ex-presidente.

Em 1986, Conceição ganhou destaque fora do meio acadêmico e político ao comentar com a voz embargada e lágrimas escorrendo, na TV Globo, o Plano Cruzado, que pretendia dar fim à inflação. "Eu estou muito contente de ver uma equipe econômica que redime este país, que dá uma contribuição política, que ajuda o governo a encontrar seu rumo."

Baseado no congelamento de preços, o Cruzado resultou de uma equipe que incluía Belluzzo e o economista André Lara Resende. O plano foi elaborado em sigilo, mas Conceição teve acesso a ele, por meio de Ulysses Guimarães, pouco antes de ser submetido à aprovação.

PLANO REAL

Em julho de 1994, Conceição despede-se de seus leitores da Folha, onde ajudava a balizar o debate econômico em suas colunas, para dar início a uma nova fase como política profissional, candidata a uma vaga na Câmara dos Deputados pelo PT do Rio. Havia se desligado do MDB em 1989, após a derrota de Ulysses nas eleições presidenciais.

Em 1994, Conceição era uma das principais críticas do Plano Real. Disse que se tratava de um "Cruzado dos ricos" e que criaria uma realidade paralela, na qual a classe média baixa e os pobres não poderiam medir as perdas sofridas. "Ela fez uma crítica equivocada", afirma Belluzzo.

Ao longo do governo FHC, ela opôs-se também à abertura econômica, à desproteção de setores produtivos nacionais e à financeirização da economia.

"Hoje eu acho que ela tinha razão. Houve uma financeirização em relação ao capital produtivo. A teoria macroeconômica do neoliberalismo era a posição hegemônica. Agora está começando a haver uma revisão", afirma o economista André Lara Resende, um dos pais do Real e ex-presidente do BNDES no governo FHC.

O economista tem sido voz dissonante e solitária contra essa hegemonia no debate econômico brasileiro, por meio de livros como "Consenso e Contrassenso - Por uma Economia não Dogmática".

Em 1995, Conceição partiu para Brasília como a segunda deputada federal mais votada do PT pelo Rio. Apesar do sucesso eleitoral, não guardou boas lembranças. "Foi uma estreia política formal triste. Foi a única vez que fui ao sacrifício político", declarou.

Uma vez no poder, FHC deu a si mesmo a missão de encerrar o legado estatal de Getúlio Vargas. Para isso, era necessário abrir a economia e diminuir o peso do Estado por meio de privatizações.

Dar fim a todo aquele aparato que os então deputados Conceição, Delfim e Roberto Campos —embora este último há muito já estivesse convertido em ardoroso pregador liberal e crítico do estatismo— ajudaram a construir décadas antes. "Roberto Campos e eu nos divertíamos com a grossa pancadaria que ela aplicava no ilustre Fernando Henrique Cardoso", conta Delfim.

Integrante da Comissão de Finanças e Tributação, ela tentou passar uma reforma tributária. "Não tive o menor sucesso. Nem eu, nem ninguém, como é óbvio", disse ela no Senado.

O fracasso foi estendido a outras comissões. "Perdi na de Energia. Doutor Roberto Campos estava lá. Chamava de ‘dinossauro’ a Petrobras. Perdi a paciência. Disse que era melhor ser dinossauro que ser lagartixa. Ele ficou aborrecido." A congressista explicou que não se referia a ele. Depois, complementou: "O senhor também, à sua maneira, é um dinossauro… rex".

Na audiência que votou o fim do monopólio da Petrobras na extração do petróleo, Conceição foi escolhida pelo PT para representar o partido. Vestida de preto, com uma fitinha verde e amarela, deu seu voto contrário. "Foi uma tristeza. Ali eu quase chorei."

"O FHC passou o que quis e o que não quis [no Congresso]. A Conceição viveu isso de dentro. Ela cumpriu um papel importante, era a professora da bancada do PT. A maior parte dos quadros do partido não tinha a menor noção de nada [do que estava em votação]", afirma a economista Gloria Maria Moraes da Costa, que foi aluna da deputada e coordenadora de sua campanha.

Uma das derrotas de Conceição foi a não aprovação de um imposto para grandes fortunas, de autoria de FHC quando senador (1983-1992). Hoje o ex-presidente diz que teria sido importante a aprovação desse projeto. "A grande fortuna no Brasil ficou intocável, e isso não é bom."

Embora a esquerda tenha convencionado referir-se ao governo FHC como um período neoliberal, é importante entender que havia tensões dentro da área econômica de sua gestão, simbolizadas pelos então ministros Pedro Malan, da Fazenda, e José Serra, do Planejamento.

O primeiro era mais voltado à abertura e à internacionalização da economia; o segundo, às ideias de proteção de determinados setores. "Isso [tratar o governo como neoliberal] é uma caricatura. Mas a caricatura guarda alguma relação com a realidade", afirma Lara Resende.

"Os dois [Malan e Serra] mencionavam a Maria Conceição [nas reuniões]. Notei que ela era realmente muito influente", afirma FHC.

"Em algumas coisas, ela poderia ter alguma razão, mas, de qualquer maneira, o que nós fizemos era o que nós podíamos fazer. Naquele momento, era o que se aconselhava fazer, era o possível. E o resultado está aí, o Brasil cresceu."

O ex-presidente, em seus diários, afirma que a professora o tratou de "modo desabrido" durante a campanha eleitoral. Conta que, em jantar no qual Celso Furtado também estava presente, a tratou friamente, queixando-se de que ela não foi "nem desleal, foi atrevida, não tem o direito de dizer o que disse durante a campanha, uma mulher que me conhece a vida toda".

Questionado, FHC diz não se lembrar a que se referia. "Eu não me lembro, mas provavelmente porque apoiou algum adversário meu", afirma. "Eu não me lembro de ter rompido [com ela], muito menos de ter reatado [risos]. Não sou uma pessoa de guardar rancores."

LULA LÁ

Conceição celebrou muito a vitória de Lula em 2002. Afirmou, no início, que o governo tinha pouco "raio de manobra", em razão do endividamento do Estado e das altas taxas de juros. A "pax", todavia, durou pouco.

Em abril de 2003, em entrevista à Folhasoltou o verbo contra a opção do PT por políticas focalizadas na área social —ou seja, políticas que atingem determinados grupos—, em detrimento de programas universais.

"Tive de ouvir o dr. Delfim Netto defender a Constituinte de 1988, onde estão consagrados os direitos universais nas três áreas: saúde, assistência social e Previdência Social. Isso vinha sendo construído como políticas universais desde o tempo da ditadura; logo, não é um problema de ser conservador. É um problema de ser pateta ou de má-fé."

Suas críticas, porém, foram escasseando ao longo do governo Lula. Chegou aos 80 anos, em 2010, otimista, apesar do alerta feito um ano antes, no evento da Unicamp. "Espero não me equivocar, mas, se me equivocar, não estarei viva para ver."

Na eleição que opôs seus dois ex-alunos, Dilma e Serra, declarou apoio à primeira, que saiu vitoriosa. Ambos foram procurados pela reportagem em mais de uma ocasião, mas, mesmo manifestando interesse, não deram retorno.

EPÍLOGO

Em 2019, o Brasil parecia ter cumprido o vaticínio de Conceição de dez anos atrás: o país, que antes decolava na capa da revista The Economist e crescia com distribuição de renda em um mundo em recessão e aumento da desigualdade, acabava de entrar para a lista das democracias liberais em crise com o início do governo de Jair Bolsonaro (PL).

Uma união de militares, extrema direita e milicianos fez boa parte do Brasil achar feio o que era espelho.
Um pouco antes disso a participação de Conceição no debate público já começava a rarear, embora tenha se manifestado contra o impeachment de Dilma e a prisão de Lula.

Em 2019, ainda vivendo no bairro do Cosme Velho, no Rio, lançou sua última obra, "Maria da Conceição: Vida, Ideias, Teorias e Política", um compilado de ensaios.

No final de 2021, após uma fratura, Conceição mudou-se para Nova Friburgo (RJ). Aos 92 anos, ocupa seus dias com visitas de amigas economistas, do casal de filhos e de familiares, e telefonemas de Belluzzo. Desde a queda, sumiram com seu cigarro. Após 70 anos de vício, ela deixou de fumar. Por motivos de saúde, não pôde dar entrevista para esta reportagem.

Em uma das visitas, Conceição foi informada de que volta e meia se tornava um dos assuntos mais comentados na internet, por causa de trechos de suas aulas na Unicamp e da entrevista do Roda Viva veiculados no YouTube e em redes sociais.

Sua fala enérgica e sem pudores inspirou diversos memes, que tiveram o efeito imprevisto de formar uma nova geração de admiradores de sua obra. Antes da internet, no começo dos anos 1990, ela já havia inspirado uma personagem da "Escolinha do Professor Raimundo" (Globo), dona Maria da Recessão Colares, fumante, com sotaque português, que esbravejava sobre a economia do país.

Conceição, que nem sequer tem celular, divertiu-se ao saber que sua lição nas salas de aula, como o exemplo a seguir, ainda sobrevive.

"Nós não somos da elite dominante desse país. A não ser que vocês tenham alguma pretensão a ser. Eu não tenho. Então não é chá e simpatia. Isso é um curso rebelde! Nós perdemos! Nós somos derrotados! Se vocês não fossem derrotados, não vinham para esta universidade [Unicamp], iam pra USP, pra PUC [Rio]. Ou pra Harvard. Estamos lutando pela hegemonia? Imagine! Estamos lutando apenas pra não ficar malucos. Para não dizer besteira demais."

*Jornalista e mestrando em ciência política pela UFF (Universidade Federal Fluminense)

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Comentário Mauricio David:

Muitos me contactaram querendo saber sobre o velório da nossa amada Conceição. A família decidiu que a cremação da Ceiça será uma cerimônia privada, fechada e reduzida apenas aos familiares. Melhor assim, mas ainda acho que ela merecia um funeral como o do também muito querido Darcy Ribeiro, que teve o seu corpo conduzido da Academia Brasileira de Letras até o Cemitério de São João Batista, em Botafogo, levado o caixão por um carro do Corpo de Bombeiros seguido a pé por uma multidão imensa. Não sei não, acho que a Conceição merecia um funeral assim. Por que não no antigo Salão da Reitoria da antiga Universidade do Brasil (UB), hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde a Conceição fez seu curso de Economia, foi assistente do seu antigo professor Octávio Gouveia de Bulhões e ajudou a criar (e foi depois Professora Titular e Emérita) o Instituto de Economia, e a seguir conduzida para a cremação acompanhada por sua legião de amigos e admiradores ? Família tem cada coisa...

MD

P.S.1 :  A Conceição era impagável (em todos os sentidos do termo “impagável”...). Jamais, em seus 94 anos de vida, prestou-se a “vender” as suas idéias e pensamentos... Considero que uma das coisas mais valiosas de Ceiça foi ter dito certa vez : “ "Nós não somos da elite dominante desse país. A não ser que vocês tenham alguma pretensão a ser. Eu não tenho. Então não é chá e simpatia. Isso é um curso rebelde! Nós perdemos! Nós somos derrotados! Se vocês não fossem derrotados, não vinham para esta universidade [Unicamp], iam pra USP, pra PUC [Rio]. Ou pra Harvard. Estamos lutando pela hegemonia? Imagine! Estamos lutando apenas pra não ficar malucos. Para não dizer besteira demais."

Ora, dizer “Nós perdemos ! Nós somos derrotados !” é a coisa mais fenomenal que já ouvi um(a) economista dizer. Só ouvi algo semelhante com o Darcy Ribeiro dizendo na Sorbonne, em Paris, quando recebeu o título de “Doutor Honoris Causa”, algo assim (estou dizendo de memória) “Perdemos, fomos derrotados, mas eu não gostaria de ter estado do lado dos que venceram !” (Castelo Branco, Costa e Silva, Garrastazú e Geisel, no Brasil, Pinochet, no Chile, Videla e cia, na Argentina...MD). 

OK, Ceiça ! Divirjo radicalmente desta sua auto-avaliação tão negativa. Ao final das contas, você venceu ! Você é o nosso El Cid Campeador, que depois de morta vencerá todos os seus adversários... Você, a nossa Cid Campeadora, no final das contas venceu, vence e vencerá...

P.S.2 : Que asco me provoca em ver toda esta gente que tanto maltratou a Conceição agora querer faturar a amizade da nossa pura donzela portuguesa que se apaixonou pelo Brasil...

(1) Por que insistem tanto em dizer que a Dilma e o Serra “foram alunos” da Conceição... Quando ? Onde ?

E o Mercadante, dizendo que a Conceição foi alta funcionária do BNDES... Menos,Aloizio, menos... Dá uma olhada na folha funcional do BNDES... Alta funcionária, quando ? Elogiar está bem, mas mentir exageradamente é indevido...

(2) E o Lula e a Dilma, tão oportunistas, esparramando fotos dela com eles e se derramando em elogios... A Conceição era unanimemente reconhecida como a maior ( e supostamente a mais influente) economista do PT. Lula governou por dois períodos e agora reina pelo terceiro. A Dilma por um período e meio. Em total, estiveram mais de 14 anos no Poder. Quantas vezes chamaram a Conceição (deputada do PT entre 1995 e 1998) para tomar sequer uma cafezinho no Palácio do Planalto ou do Alvorada ? Sequer foi cogitada para algúm cargo ou posto nos 4 governos petistas. Quando voltei do meu doutorado, em Paris, e fui trabalhar com o Bresser em Brasília, certo dia a Conceição me convidou para tomar o café da manhã com ela no hotel em que residia em Brasília (já não me lembro bem, mas creio que ela ficava no Kubistchek Plaza...). Era 1995 ou 1996, Conceição estava no primeiro ou segundo ano do seu mandato. Ali, na conversa na intimidade, pude ver a sua relativa mágoa com o ostracismo que lhe impunham, os supostos amigos petistas... Certo que a Conceição esculhambava a tudo e a todos, o Palocci, por exemplo, sofreu horrores nas suas mãos. O Fernando Henrique, então, não se fala... O Delfim Netto – que foi sempre tão bombardeado por ela, nas suas aulas e entrevistasse artigos de jornal – sempre dizia que se divertia muito, junto com o Roberto Campos (os dois czares da Economia nos governos militares...) com o bombardeio dela ao Fernando Henrique nos seus dois períodos de governo. Conceição desistiu de renovar o seu mandato de deputada, alegando um incômodo nas costas que lhe impunha grande sacrifício em viajar de aviões ou em ficar longas horas debatendo no plenário e nas comissões da Câmara de Deputados. Elegante como era ela no fundo, estou certo de que ela ocultou sempre o verdadeiro motivo : o ostracismo que lhe impuseram os seus “companheiros” do PT... A derradeira humilhação foi quando ela tentou falar com a Dilma, várias vezes, quando a “ex-aluna” (até nisso tentaram faturar o prestígio militante da velha guerreira...) se elegeu em 2010 ou se reelegeu em 2014). Lembro-me que, estando no exterior, li em jornais brasileiros que ela chegou a “suplicar” com o Emir Sader (prócer petista também posto para escanteio...) que conseguisse que ela fosse recebida pela Dilma... Em vão, como podem adivinhar... Cáspite ! Como é a natureza humana... Agora viraram todos ex-alunos, agora reconhecem todos os “companheiros” a sua genialidade e combatividade, agora tiram do fundo do baú velhas fotos com a velha guerreira para exibir pela imprensa afora... 

P.S.2 : Quero frisar que nunca fui aluno da Conceição, mas simplesmente seu amigo e admirador (sem ser seguidor fanático) por muitos anos... Gostava mais do seu jeito meio dramático e teatral, da sua militância, da sua “portas abertas” para todos, das suas lições de engajamento militante e de luta perseverante por tudo aquilo em que acreditava... Estas são as suas melhores lições deixadas para seus filhos Laura e Bruno, seus netos e bisneto, e para a sua legião de ex-alunos (os verdadeiros, não os inventados pela imprensa desinformada...) e admiradores. Espero que ela seja mesmo a nossa Cid Campeadora, que depois de morta possa continuar inspirando a todos que ficaram para atrás no penoso trajeto da vida...

MD