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sábado, 28 de setembro de 2019

Monteiro Lobato: um agitador petrolífero - Paulo Roberto de Almeida

Este artigo me foi encomendado pela Revista de História da Biblioteca Nacional, que infelizmente já não existe mais. Ao buscar hoje meus materiais sobre o escritor paulista, fui verificar o registro e constatei que ele não mais se encontrava no site original da revista, daí minha transcrição neste espaço, o que o torna disponível a um número maior de leitores pela primeira vez.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 28 de setembro de 2019


Monteiro Lobato: pioneiro do petróleo no Brasil
Escritor antecipou, meio século atrás, a condição do Brasil como grande produtor

Paulo Roberto de Almeida
Publicado sob o título “Um Agitador Petrolífero”, Revista de História da Biblioteca Nacional (Edição Especial n. 1, História da Ciência, outubro 2010, p. 40-43; ISSN: 1808-4001).

O nome de José Bento Monteiro Lobato domina a primeira história do petróleo no Brasil. Despertado para a importância crucial do petróleo para o desenvolvimento nacional pelo exemplo dos Estados Unidos, ele começou cedo: já em 1918, fundou a Empresa Paulista de Petróleo, sem que, no entanto, dela adviessem resultados concretos, à falta de capitais, equipamentos e competências. Durante sua estada como adido comercial no Consulado do Brasil em Nova York, entre 1928 e 1931, Lobato aprofundou seus conhecimentos no setor. De volta ao Brasil, empreendeu campanhas de mobilização pública e de incitamento à ação do Estado em direção da libertação do Brasil do petróleo importado.
Suas iniciativas eram dotadas de otimismo exagerado e o que mais ele acumulou, ao longo dos anos, foram frustrações e decepções com prospecções mal sucedidas. Os insucessos não o esmoreceram; Lobato conduziu, através da imprensa e de sua editora, um esforço intenso para conscientizar o país e as autoridades da necessidade de encontrar petróleo, contra a “má-vontade da geologia”.
Em 1934, Lobato escrevia a um amigo: “Se o governo não me atrapalhar, dou ferro e petróleo ao Brasil em quantidades rockefellerianas”. Investindo contra as autoridades do setor, ele se convenceu, nessa época, que o principal culpado pela não descoberta de petróleo era o Serviço Geológico Nacional, cuja política, para ele, encampava a dos “trusts” internacionais: “não tirar petróleo e não deixar que ninguém o tire”.
As Forças Armadas, conscientes da fragilidade estratégica do País, impulsionavam os esforços nessa área. A elas foi dedicado seu livro-denúncia, O Escândalo do Petróleo, que teve três edições no mês do seu lançamento (agosto de 1936) e várias outras ao longo dos anos. O papel fundamental de Lobato, nessa fase, foi o de um agitador petrolífero, quase um panfletário. Ele chegou a exibir uma atitude conspiratória, acusando os “trusts” internacionais e as próprias autoridades nacionais de agir contra a extração de petróleo no País:
O petróleo está hoje praticamente monopolizado por dois imensos trusts, a Standard Oil e a Royal Dutch & Shell. Como dominaram o petróleo, dominaram também as finanças, os bancos, o mercado do dinheiro; e como dominaram o dinheiro, dominaram também os governos e as máquinas administrativas. Esta rede de dominação constitui o que chamamos os Interesses Ocultos. (...) Os trusts sabem de tudo [e] lá entre si combinaram: – Nada mais fácil do que botar um tapa-olho nessa gente. Com um bom tapa-olho, eles, que vegetam de cócoras sobre um oceano de petróleo, ficarão a vida inteira a comprar o petróleo nosso; enquanto isso, iremos adquirindo de mansinho suas terras potencialmente petrolíferas, para as termos como reservas futuras. Quando nossos atuais campos se esgotarem, então exploraremos os “nossos” campos do Brasil.[1]

A origem do livro foi uma carta aberta dirigida por Lobato ao Ministro da Agricultura, denunciando dois técnicos estrangeiros do Departamento Nacional de Produção Mineral pela “venda de segredos do subsolo a empresas estrangeiras”. Diante da grave denúncia, o presidente Getúlio Vargas determinou a instalação de uma Comissão de Inquérito, à qual Lobato ofereceu um depoimento escrito, que veio a ser o núcleo de seu livro.
Para o escritor paulista, a Lei de Minas, elaborada pelo DNPM, criara embaraços “para impedir que os trusts estrangeiros se apossassem das riquezas do nosso subsolo. Mas como para embaraçar os estrangeiros fosse necessário também embaraçar os nacionais, resultou o que temos hoje: o trancamento da exploração do subsolo, tanto para nacionais como para estrangeiros – exatamente o que os trusts queriam...”[2] Lobato desconfiava “de todas as entidades estrangeiras que se metem em petróleo no Brasil, já que a intenção confessada não é tirá-lo, e sim, impedir que o tiremos”.[3] Curiosamente, mesmo denunciando a ação dos “trusts” internacionais, Lobato não era contra a participação do capital estrangeiro na exploração do petróleo, e lamentava a postura nacionalista do Código de Minas:
Não sou chauvinista, nem inimigo da técnica e das empresas estrangeiras. Reconheço a nossa absoluta incapacidade de fazer qualquer coisa sem recurso ao estrangeiro, à ciência estrangeira, à técnica estrangeira, à experiência estrangeira, ao capital estrangeiro, ao material estrangeiro. Tenho olhos bastante claros para ver que tudo quanto apresentamos de progresso vem da colaboração estrangeira. E nesse caso do petróleo nada faremos de positivo, se insistirmos em afastar o estrangeiro e ficarmos a mexer na terra com as nossas colheres de pau.[4]

Frustrado com o insucesso de sua campanha junto aos adultos, Monteiro Lobato leva o tema ao público infantil: em outubro de 1937 é lançado O Poço do Visconde, apresentado como um livro de “geologia para crianças”, mas que constituía um manifesto em favor da descoberta e da exploração do petróleo no Brasil.
Não obstante o empenho das autoridades na viabilização da exploração do petróleo, Monteiro Lobato estava convencido de que o governo agia contra as companhias privadas, sabotando suas atividades de empreendedor. Escrevendo, em 1938, a Getúlio Vargas, ele investia contra o diretor do Departamento Nacional da Produção Mineral, autor do Código de Minas, acusando-o de ser “agente secreto dos Poderes Ocultos hostis ao petróleo brasileiro”. Em janeiro de 1940, o presidente sancionou o novo Código de Minas, confirmando todas as disposições nacionalistas existentes e exigindo, dos candidatos ao direito de pesquisar ou lavrar jazidas, “prova de capacidade financeira”, o que foi recebido por Monteiro Lobato como um óbice às suas iniciativas.
Em carta ao general Góis Monteiro, chefe do Estado Maior do Exército, no início de 1940, ele volta às acusações: “sou obrigado a continuar na campanha, não mais pelo livro ou pelos jornais, porque já não temos a palavra livre, e sim por meio de cartas aos homens do Poder”. Ele então acusa o CNP de agir em favor dos “interesses do imperialismo da Standard Oil e da Royal Dutch”, perpetuando “a nossa situação de colônia econômica dos trustes internacionais”. Sua carta mais desafiadora, em maio de 1940, foi dirigida ao próprio chefe de Estado, quando acusou o CNP de perseguir as empresas nacionais, de criar embaraços à exploração do subsolo e de manter a “idéia secreta” do monopólio estatal.
Getúlio Vargas consultou o presidente do CNP, general Júlio Horta Barbosa, que, em agosto de 1940, desmentia as acusações de Lobato: “àqueles que se dispõem a cumprir a lei o Conselho tem tudo facilitado, mas ao que pretendem burlá-la, como é o caso do Sr. Monteiro Lobato, este organismo, como é de seu dever, vem, não só se opondo, como também dando publicamente as razões [de] porque o faz”. Entre as irregularidades das empresas de Lobato eram apontadas a insuficiente provisão de fundos e a nacionalidade estrangeira de alguns dos seus sócios. Ato contínuo, Horta Barbosa enviou ofício ao Tribunal de Segurança Nacional no qual pedia abertura de inquérito contra o escritor. Esta é a origem das duas prisões de Lobato, em janeiro e em março de 1941, por “injúrias aos poderes públicos”.
Monteiro Lobato se batia pelo petróleo nacional com todas as suas forças, movido bem mais pelo instinto do que pelo conhecimento técnico e pela boa informação geológica. Sua atividade empresarial foi quase amadora – daí a razão do não-credenciamento de suas “empresas de petróleo” pelo CNP – e sua agitação panfletária estava no limite das ofensas às autoridades governamentais. Ele tocava, porém, nos pontos que a seu ver dificultavam e atrasavam a exploração do petróleo no país. Numa carta a Getúlio Vargas de maio de 1940, ele assim se pronunciava em relação ao pretendido monopólio estatal que se cogitava criar nessa área: “Outro aspecto do monopólio é a impossibilidade de o Governo criar com ele a grande indústria do petróleo de que o Brasil precisa. O senhor não ignora a incapacidade do Estado, no mundo inteiro, para dirigir empresas industriais, incapacidade por demais evidente no Brasil. O Lóide Brasileiro e a Central do Brasil são casos típicos.”
Monteiro Lobato se insurgia contra geólogos e funcionários do governo que não estivessem de acordo com suas iniciativas empresariais, confundindo muitas vezes a cautela necessária com que eles viam seus rompantes de entusiasmo pela causa do petróleo com o que ele considerava ser uma sabotagem deliberada em torno desses empreendimentos. Grande escritor, mas dotado de conhecimentos escassos na geologia do petróleo, Lobato agitou mais do que qualquer outro homem público o problema do petróleo no Brasil. Foi um nacionalista sem ser contrário ao capital estrangeiro, e antecipou uma realidade que se materializaria meio século depois de sua morte, em 1948.

Saiba Mais:
Azevedo, Carmen Lucia de; Camargos, Marcia Mascarenhas de Rezende; Sacchetta, Vladimir. Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia (3a. ed.; São Paulo: Senac, 2001)
Lobato, Monteiro. O Escândalo do Petróleo (4a. ed.; São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936)
Vargas, Getúlio. A Política Nacionalista do Petróleo no Brasil (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1964)
Victor, Mario. A Batalha do Petróleo Brasileiro (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970)


[1] Cf. Monteiro Lobato, O Escândalo do Petróleo (4a. ed.; São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936), p. 15.
[2] Cf. Monteiro Lobato, O Escândalo do Petróleo, op. cit., p. 119-120.
[3] Idem, p. 128.
[4] Idem, p. 127-128.

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Monteiro Lobato e a reforma do mundo: novas edições

'A Reforma da Natureza' antecipa debates sobre Monteiro Lobato

Personagens do Sítio são convidados para uma conferência mundial da paz em livro que ganha nova edição


Antonio Gonçalves Filho
O Estado de S.Paulo, 16 Fevereiro 2019 

Sexto livro da série de obras de Monteiro Lobato voltada para colecionadores, que a Biblioteca Azul acaba de publicar, A Reforma da Natureza vem ao encontro das advertências inseridas no texto de J. Roberto Whitaker Penteado, sobre os perigos de “reescrever” Lobato agora que as obras do escritor caíram em domínio público. Num mundo submetido à uniformização cultural, A Reforma da Natureza é um manifesto contra gente autoritária que defende a cartilha da homogeneização. Lobato, no entanto, nunca foi homem de se curvar. Certo ou errado – e ele foi, por exemplo, injusto com a pintora modernista Anita Malfatti –, sempre disse o que pensava sobre o Brasil e o mundo, os políticos e os educadores. Principalmente, foi um crítico severo de nossa mania reformista.

Monteiro Lobato
O escritor brasileiro Monteiro Lobato Foto: Wikimedia Commons
A propósito, o livro trata também de ditadura. A Reforma da Natureza começa justamente quando Dona Benta e Tia Nastácia, as duas matronas do Sítio do Picapau Amarelo, e o Visconde de Sabugosa, são convidados para uma conferência mundial da paz, representando a humanidade e o bom senso contra ditadores que arrasaram a Europa na última grande guerra. Vão todos, menos a boneca Emília, que pretende aproveitar a ausência deles para fazer suas experiências malucas com a natureza – que, de forma involuntária, remetem, na segunda parte do livro, quando a turma do Sítio volta da Europa, aos perversos experimentos genéticos do doutor Mengele. Com a ajuda do visconde de Sabugosa, que conheceu “diversos cientistas notabilíssimos” no continente europeu, Emília monta um laboratório e transforma em monstros pantagruélicos inocentes minhocas, grilos e centopeias.
Porém, é a primeira parte de A Reforma da Natureza que confronta o discurso politicamente correto. A retórica de Lobato é considerada pouco didática aos olhos contemporâneos, a começar pelo personagem da fábula do reformador da natureza contada por dona Benta e que inspirou Emília a fazer suas trapalhadas: Américo Pisca-Pisca, cujo nome define uma possível vítima de blefaroespasmo. Referência de Emília, que critica seu hábito de piscar, mas não o de reformar, Américo bota defeito em tudo e quer “corrigir” a natureza, a começar por colocar abóboras em jabuticabeiras. Conclusão: seria ele a primeira vítima de sua reforma. Ao dormir à sombra de uma jabuticabeira, desperta com um jabuticaba caindo sobre o próprio nariz – e abandona, definitivamente, a reforma, o que serve como advertência para futuros “revisores” de Monteiro Lobato.
Nessa jornada reformista contra a natureza, a inconformada Emília submete também a amiga Rã (inspirada numa garota carioca, Maria de Lurdes) aos seus caprichos. Sente certa identificação com a menina porque ela também é “emilíssima”, uma verdadeira representante da turma “do contra”. Emília, ao encontrar a amiga, confirma que, entre outras atividades, pretende também reformar as palavras, antecipando os “revisores” inconformados com a obsessão supremacista de Lobato no tratamento de tia Nastácia, além de insinuar que dona Benta, a “democracia em pessoa”, volta da Europa com jeito de ditadora, ao rejeitar a maioria das reformas que a boneca fez na natureza – ela ordena, e não pede, que Emília desfaça o que fez, colocando as jabuticabas de novo nas árvores e a abóboras no chão.
Segundo conclusão de estudiosos que analisaram a reação de alunos à leitura de A Reforma da Natureza, a obra despertou nas crianças um notável interesse por questões ambientais. A irreverência de Lobato no trato de questões científicas tornaram o uso da literatura infantil do escritor comum nas aulas de ciências, embora existam professores que considerem inadequada ou ultrapassada a visão de ciência do escritor para fins didáticos. E o que dizer da insistência de Lobato se referir à Nastácia como “negra”? Lobato, de fato, apresenta Nastácia como supersticiosa e inimiga da ciência – ela chama de feitiçaria a invenção da panela que apita por Emília.
Lobato, que se correspondia com defensores da eugenia, escreveu uma pioneira obra de ficção, O Presidente Negro, que, de certa maneira, antecipou em décadas a chegada de Obama à presidência. Só que Lobato não acreditava em democracia racial. No livro, os negros são submetidos a alisamento de cabelo com raios que esterilizam os afrodescendentes. Nada edificante, claro, mas sua linguagem deve ser analisada considerando o contexto, o discurso eugenista e as discussões sobre diferenças entre raças típicas dos anos 1920 e 1930. Nada indica que seus revisores levem em conta essa e outras questões no futuro. O “sítio” de Lobato, é provável, vai passar por uma reforma daquelas por ter caído em domínio público. Vamos ver se o alicerce do edifício suporta o peso dessas mudanças.