O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Meus livros podem ser vistos nas páginas da Amazon. Outras opiniões rápidas podem ser encontradas no Facebook ou no Threads. Grande parte de meus ensaios e artigos, inclusive livros inteiros, estão disponíveis em Academia.edu: https://unb.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida

Site pessoal: www.pralmeida.net.
Mostrando postagens com marcador O Cafezinho. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador O Cafezinho. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Uma nova ordem mundial nascente? Tianjin 2025: o momento histórico - Miguel do Rosário (O Cafezinho)

 

A vingança de Melos

Se, no futuro, historiadores tiverem de escolher uma data para marcar o início da nova ordem mundial, o encontro realizado em Tianjin entre 31 de agosto e 1º de setembro de 2025 será um forte candidato. Naquele fim de semana, com Washington impondo tarifas punitivas e insultando aliados tradicionais, a cidade portuária chinesa recebeu líderes […]

1 comentário
Siga-nos no Siga-nos no Google News
Modi e Xi, 31 de agosto de 2025. Tianjin, China

Se, no futuro, historiadores tiverem de escolher uma data para marcar o início da nova ordem mundial, o encontro realizado em Tianjin entre 31 de agosto e 1º de setembro de 2025 será um forte candidato. Naquele fim de semana, com Washington impondo tarifas punitivas e insultando aliados tradicionais, a cidade portuária chinesa recebeu líderes de 26 nações que representam quase metade da humanidade. Os Estados Unidos se isolam pela coerção; o resto do mundo se organiza pela cooperação.

O paralelo histórico é inevitável, mas as diferenças são profundas. Em abril de 1955, 29 países emergentes reuniram-se em Bandung, na Indonésia, para lançar o primeiro movimento de não-alinhados da história moderna. Eram nações pobres, recém-independentes, em busca de um caminho entre as superpotências da Guerra Fria. Setenta anos depois, em Tianjin, já não são países fracos pedindo espaço, e sim potências econômicas redesenhando o mundo. A diferença de peso entre Bandung e Tianjin é clara: em 1955, os participantes somavam uma fração mínima da economia global; em 2025, os países reunidos na China concentram entre 35% e 40% do PIB mundial.

A China de 1955, representada por Zhou Enlai em Bandung, tinha papel quase irrelevante na manufatura global. A China de 2025, anfitriã em Tianjin, responde por cerca de 30% da produção industrial mundial e é a segunda maior economia do planeta. Em setores estratégicos, sua dominância é ainda mais nítida: 80% da produção de placas solares, 85% do processamento de terras raras e 60% da fabricação de carros elétricos. Essa transformação não é apenas chinesa; simboliza uma mudança tectônica que redefine o equilíbrio de poder. O encontro só poderia ocorrer na China porque apenas ela reúne, hoje, o peso econômico, tecnológico e diplomático necessário para sediar reunião dessa magnitude.

Há também uma diferença conceitual entre Bandung e Tianjin. Em 1955, os líderes apostaram no “não-alinhamento”, uma neutralidade que a história mostrou ser impossível. O Diálogo de Melos, narrado por Tucídides na História da Guerra do Peloponeso, ilustra o ponto. Em 416 a.C., os mélios pediram a Atenas o direito de permanecer neutros; a resposta foi a destruição da ilha: todos os homens foram mortos, mulheres e crianças escravizadas. As superpotências nunca toleraram neutralidade. No século XX, os Estados Unidos assumiram o papel de uma Atenas moderna, impondo ao mundo o ultimato: “quem não está conosco, está contra nós”. Bandung fracassou porque seus participantes eram, no fundo, novos mélios – sem força para resistir quando a hegemonia decidiu esmagá-los.

Dados exclusivos revelam o realinhamento

Dados obtidos com exclusividade pelo O Cafezinho junto ao banco de dados online da Alfândega chinesa revelam a dimensão dessa transformação geopolítica. Entre janeiro de 2019 e julho de 2025, o comércio exterior da China cresceu de forma sustentada, alcançando, em 2025, média móvel de 12 meses superior a US$ 520 bilhões – um aumento de 35% em relação ao início do período. Todos os números referem-se à corrente de comércio mensal, calculada pela média móvel de 12 meses para suavizar sazonalidades.

A recomposição dos parceiros comerciais é ainda mais reveladora. A participação dos Estados Unidos no comércio exterior chinês caiu de 13,5% em janeiro de 2019 para 10,3% em julho de 2025 – queda de 24% em termos relativos. No mesmo intervalo, os países do BRICS expandido (membros plenos e parceiros) passaram de 19,7% para 25,9%, alta de 31% em termos relativos. Os percentuais são calculados mensalmente com base na média móvel de 12 meses da corrente de comércio total.

Essa transferência líquida de 9,4 pontos percentuais – dos Estados Unidos para o BRICS – tem alcance histórico. Em valores absolutos, o BRICS movimenta hoje US$ 81 bilhões a mais que os Estados Unidos no comércio com a China, diferença equivalente ao PIB de países como Uruguai ou Croácia.

O novo Diálogo de Melos: quando os “fracos” têm armas nucleares

A diferença fundamental entre o Bandung original e o atual realinhamento está no poder de fato dos participantes. Quando Washington tenta repetir um “Diálogo de Melos” moderno, com ultimatos do tipo “escolha um lado”, a resposta deixa de ser submissão: é Tianjin – um realinhamento que não pede permissão.

Os protagonistas de 2025 aprenderam a lição. China, Rússia, Índia e outros não buscam “não-alinhamento” – neutralidade impossível –, mas sim realinhamento ativo em torno de uma multipolaridade que constroem. Quando o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, ignora quatro ligações consecutivas do presidente americano, Donald Trump, e voa para encontrar Xi Jinping em Tianjin, não está sendo neutro: escolhe o lado da autonomia estratégica.

O encontro entre Xi e Modi, em 31 de agosto, foi particularmente simbólico. Era a primeira visita de um líder indiano à China em sete anos, exatamente no momento em que Washington aplicava tarifas de 50% a produtos indianos e autoridades americanas multiplicavam insultos. Trump chamou a Índia de “brutal” e disse que o país tem “economia morta”; o secretário do Tesouro, Scott Bessent, acusou a Índia de “apenas lucrar, revendendo” petróleo russo. Peter Navarro, assessor comercial, foi além: disse que a Índia é “lavanderia de dinheiro para a Rússia” e declarou que “esta é a guerra de Modi”, ao acusar o país de “usar nossos dólares para comprar petróleo russo”.

A resposta de Modi mostrou o tiro no pé da Casa Branca: em vez de ceder a ultimatos, a Índia aproximou-se ainda mais da China. Xi Jinping recebeu o primeiro-ministro com a frase “China e Índia são parceiros de cooperação, não rivais”, propondo um “pas de deux cooperativo do dragão e do elefante”. A reação indiana foi fazer o oposto do que Washington exigia: escolheu o caminho da soberania. Enquanto os Estados Unidos oferecem ultimatos e ofensas, Pequim oferece parceria e respeito mútuo.

Os dados confirmam que o pragmatismo econômico já aparece nos números. Mesmo com tensões fronteiriças históricas, a participação da Índia no comércio exterior chinês subiu de 2,1% para 2,4% entre janeiro de 2019 e julho de 2025 – avanço de 14% em termos relativos no período de seis anos e meio. A série mensal, suavizada por média móvel de 12 meses, indica tendência consistente de aproximação comercial.

A ASEAN: o bloco em maior ascensão

Talvez o dado mais impressionante seja o avanço da ASEAN entre 2019 e 2025. O bloco do Sudeste Asiático, com 650 milhões de habitantes, saltou de 12,7% para 16,5% de participação no comércio exterior chinês – crescimento de 30% em termos relativos, superando até o BRICS em dinamismo. A série mensal, com média móvel de 12 meses, mostra o maior ganho relativo entre todos os blocos analisados.

Esse crescimento importa porque indica que o realinhamento não é apenas obra de grandes potências, mas de blocos regionais inteiros que optam por uma integração que prescinde dos Estados Unidos. Países como Vietnã, Tailândia, Malásia e Singapura – alguns, aliados tradicionais de Washington – estão priorizando a integração econômica asiática em detrimento da dependência americana.

O Brasil e a cooperação Sul-Sul

A participação brasileira no comércio exterior chinês passou de 2,5% para 2,9% entre janeiro de 2019 e julho de 2025, alta de 16% em termos relativos no período, em paralelo ao aprofundamento das relações bilaterais e à expansão do BRICS.

Essa aproximação acelera justamente quando Washington aplica tarifas punitivas a produtos brasileiros e revoga vistos de autoridades nacionais. Pesquisa Genial/Quaest divulgada em agosto de 2025 confirma que a reorientação econômica já aparece na opinião pública: pela primeira vez, brasileiros veem a China mais favoravelmente (49%) do que os Estados Unidos (44%).

A ironia suprema: Trump criando o mundo que queria destruir

A grande ironia é que Donald Trump, ao tentar conter a ascensão chinesa e forçar países a “escolherem um lado”, acelerou o processo que pretendia impedir. Tarifas punitivas, insultos diplomáticos e ultimatos criaram o ambiente para que China, Rússia, Índia, Brasil e dezenas de outros países concluíssem que, para preservar a soberania, precisavam organizar-se coletivamente.

Quando mais de 20 países suspendem, em bloco, o envio de encomendas aos Estados Unidos após o fim de isenções tarifárias – política vigente desde 1938 –, quando a França cogita retaliar empresas digitais americanas, quando a Índia adota medidas restritivas e o Brasil estuda respostas comerciais, fica claro: o isolamento não é dos outros, é dos próprios Estados Unidos.

Tianjin 2025: o momento histórico

O encontro de Tianjin não foi apenas mais uma cúpula diplomática. Foi o momento em que o mundo multipolar deixou de ser aspiração e tornou-se realidade concreta. Quando Vladimir Putin chega à China com três vice-primeiros-ministros e mais de dez ministros para seu sexto encontro com Xi Jinping em 2025; quando António Guterres, secretário-geral da ONU, participa da cúpula da SCO (Organização para Cooperação de Xangai), legitimando o multilateralismo asiático; quando Modi e Xi falam em “parceria do dragão e do elefante” — não se trata de diplomacia de rotina.

Estamos vendo o nascimento de uma nova ordem mundial.

Os dados obtidos por O Cafezinho, a partir da Alfândega chinesa, confirmam o realinhamento: entre janeiro de 2019 e julho de 2025, a participação americana no comércio exterior chinês caiu 24%, enquanto o BRICS cresceu 31% e a ASEAN, 30%. É a medida precisa de um movimento geopolítico que redefine o século XXI. Todos os dados são mensais e calculados por média móvel de 12 meses para suavizar variações sazonais.

Os novos mélios têm US$ 40 trilhões

Diferentemente do Bandung original, que fracassou porque seus participantes eram economicamente fracos e militarmente vulneráveis, o movimento atual — mais que “não-alinhado”, um verdadeiro realinhamento — tem poder para sustentar suas escolhas: 3,5 bilhões de pessoas, US$ 35–40 trilhões de PIB, armas nucleares, controle de recursos energéticos e tecnologias de ponta.

Quando Washington tenta hoje reeditar o “os fortes fazem o que podem”, a resposta já não é a submissão dos fracos. É Tianjin: a demonstração de que os novos mélios têm poder suficiente para escrever suas próprias regras. Diferentemente dos mélios originais, massacrados pelos atenienses, estes novos mélios dispõem de dissuasão nuclear, cerca de US$ 40 trilhões de PIB e 45% da população mundial.

O encontro de 31 de agosto de 2025, em Tianjin, não foi apenas um marco diplomático. Foi o momento em que a história virou a página: o dia em que o mundo descobriu que a multipolaridade havia deixado de ser sonho para se tornar força irresistível.

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Neoliberais anti-China tomam conta da política externa do Brasil - Miguel do Rosário (O Cafezinho)

 PRA: "O jornalista, obviamente, é míope, ao falar de neoliberais do Itamaraty. A política externa é a do presidente. O Itamaraty só faz diplomacia, constrangido pela política externa personalista do presidente. Como o jornalista é pró-China, não se poderia esperar outra coisa. A matéria tem pontos interessantes, pois revela o que pensam os militantes do PT em matéria internacional."

Neoliberais anti-China tomam conta da política externa do Brasil

O Cafezinho, 4/11/2024

https://www.ocafezinho.com/2024/11/04/exclusivo-neoliberais-anti-china-tomam-conta-da-politica-externa-do-brasil/

A política externa brasileira vai mal.

O Itamaraty, concebido como um órgão eminentemente técnico, para assessorar o poder eleito, vem assumindo posições políticas cada vez mais independentes.

É mais grave que isso: o Itamaraty está indo na direção oposta daquela apontada pelo presidente Lula, expressa em todos seus discursos, de fortalecimento do mundo multipolar e combate à desigualdade no mundo.

As consequências políticas para Lula, para o governo e para o pais serão profundas. Uma política externa confusa, medrosa, sem visão estratégica, pode comprometer a reeleição do presidente e, sobretudo, destruir por décadas os sonhos de emancipar economicamente o Brasil.

Vamos contextualizar os motivos que me levam a abrir esse artigo com declarações tão duras e críticas contra um governo no qual ainda depositamos tão ardentes esperanças.

O debate ocorrido nos últimos dias, sobre a adesão, ou melhor, a não-adesão do Brasil à Rota do Cinturão e da Seda, produziu uma intensa agitação nas comunidades que discutem a política externa brasileira, em especial aquelas que lidam mais diretamente com relação do Brasil com os Brics e com o gigante da Ásia.

A entrevista de Celso Amorim ao Globo, afastando a possibilidade do Brasil assinar um “tratado” de adesão ao projeto chinês, e falando antes em “sinergia” de projetos, pegou mal na China, segundo fontes do Cafezinho.

Amorim, brilhante diplomata, procurou contornar o mal estar criado por essa entrevista.

Procurado por mim, jurou que isso não significa nenhuma posição anti-China do governo, e que o conceito de sinergia deve ser considerado como a melhor maneira do Brasil se aproximar do projeto chinês conhecido pela sigla em inglês BRI (Belt and Road Iniciative), ou Cinturão e Rota da Seda.

Procurei também o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que gentilmente conversou comigo durante alguns minutos, e usou o mesmo termo de Amorim (mostrando que o governo alinhou o discurso sobre a China): o Brasil irá procurar estabelecer uma “sinergia” entre os dois países.

“A viagem de ministros e secretários de governo à China, recentemente, foi motivada pelo desejo do governo de estabelecer sinergias entre o projeto nacional de desenvolvimento do Brasil e o projeto chinês”, disse Haddad ao Cafezinho.

“Não entendo muito bem essa ideia do Brasil aderir ao projeto de outro país”, disse Haddad, para justificar a preferência pelo conceito de sinergia.

O ministro disse ainda que o governo está tentando atrair investimentos chineses para a órbita do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), em especial para os projetos vinculados à principal aposta do órgão, o Nova Indústria Brasil (NIB). “É aí que vamos tentar a sinergia entre os investimentos chineses e esses projetos mais sofisticados – energia, trens, etc – de que você fala”, explicou o ministro.

“Já está acontecendo”, disse Haddad, sobre o aprofundamento das relações entre Brasil e China, aí incluindo a famosa sinergia entre o projeto nacional e o chinês.

Entretanto, essas falas não surtiram nenhum efeito entre os observadores mais atentos, que viram nas declarações dos representantes do governo um recuo estratégico, com enormes proporções e consequências geopolíticas, na relação do Brasil com a China.

Eu entrei em contato com muitas pessoas, no Brasil e na China, que se debruçam há anos sobre as relações diplomáticas, comerciais e geopolíticas entre os dois países, para entender com o máximo de objetividade porque essa percepção foi tão marcante.

Evandro Menezes de Carvalho, por exemplo, é um dos maiores especialistas em China no Brasil. Professor de Direito Internacional na Faculdade de Direito na UFF e na FGV, tem pós-doutorado na Universidade de Pequim e na Facultade de Direito de Xangai. É professor também na Universidade de Pequim, e tem dividido sua vida entre China e Brasil. Ganhou há pouco um dos prêmios do Estado chinês mais importantes do país, o de “Amigo da China”, entregue a ele diretamente pelo primeiro ministro.

Carvalho entendeu as falas de Amorim como malabarismo retórico e como um “não vacilante” à adesão do Brasil à Rota da Seda. Ele entende ainda que o conceito de “sinergia” não faz jus à magnitude de oportunidades que uma posição mais assertiva e corajosa do presidente Lula poderia trazer ao país, caso assinasse um Memorando de Entendimento, durante a visita do presidente da China ao Brasil, Xi Jinping, entre os dias 18 e 20 de novembro.

“Considerar a relação com a China apenas na perspectiva bilateral é não enxergar as potencialidades desta parceria no âmbito regional. A China parece ter uma visão e uma execução de política externa na América do Sul mais integrada do que o próprio Brasil. Os projetos de rodovias na Bolívia, os projetos elétricos no Uruguai, a ferrovia de Belgrano na Argentina são exemplos de projetos na América do Sul inseridos no âmbito da BRI. Sem contar outros projetos no resto da América Latina tais como o porto de águas profundas em Antígua e Barbuda, o parque industrial em Trinidade e Tobago e a estrada Norte-Sul na Jamaica. Vale ressaltar que entre 2000 e 2022, o comércio entre China e América Latina aumentou 35 vezes ultrapassando, em 2023, a marca de 480 bilhões de dólares. A China se tornou o segundo maior parceiro comercial da região. Durante a APEC [Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, ou Asia-Pacific Economic Cooperation, em inglês], Lula verá a inauguração do Porto de Chancay, um megaprojeto que pode encurtar em um terço o tempo médio que os produtos brasileiros levam para chegar ao Oriente. O Brasil poderá se beneficiar deste porto se levar adiante o projeto do Corredor Ferroviário Bioceânico com 3.750 quilômetros de extensão, ligando o Porto de Santos ao Porto de Chancay, passando por Bolívia. A BRI tem algo a nos dizer sobre isso?”, diz o professor, em texto recente sobre essa polêmica do Brasil aderir ou não à Rota.

“Não colou”, diz Rodrigo do Val Ferreira, consultor brasileiro residente em Xangai, que mantém contato frequente com autoridades e empresas chinesas, sobre o esforço retórico do governo em substituir uma declaração mais clara e explícita de adesão à Rota pelo uso do conceito ambíguo de “sinergia” entre projetos do Brasil e da China.

Segundo ele, a percepção na China é de “surpresa e decepção, e isso mancha as celebrações de 50 anos entre os dois países”. A própria famosa ideia de neutralidade do Brasil, diz Rodrigo, estaria começando a ser questionada.

“A ICR [Iniciativa do Cinturão e da Rota] não exigia exclusividade, não exigia tomar partido, nem sequer se comprometer a qualquer projeto específico, e escolhemos mesmo assim a não relação. Tenho minhas dúvidas se por medo ou ideologia. E espero que por medo.

No A Governança da China, em seu primeiro volume, Xi quando se refere à América Latina, discorre: Na China há um provérbio que diz: ‘Na longa distância se conhece a força de um cavalo; no decorrer do tempo se conhece o coração de uma pessoa’. E segue tecendo elogios à cooperação com a América Latina.

Receio, nosso cavalo, justo no momento mais importante de se construir confiança, empacou”, declara Rodrigo, sem ocultar sua frustração.

O sentimento crítico em relação à política externa do Brasil, todavia, não começou agora, e as declarações de Amorim foram apenas a mensagem mais recente, e no momento mais emblemático, pois ocorre às vésperas da chegada de Xi Jinping ao Brasil.

Uma série de acontecimentos bem mais concretos, contudo, vem dando sinais da mudança de rumo na política externa do país.

Em nome da transparência, e de um debate franco e aberto que o tema merece, vamos dar nomes aos bois.

O embaixador Eduardo Paes Saboia, secretário do Itamaraty para Ásia e Pacífico, é conhecido por suas posições anti-Brics e anti-China, o que é totalmente contraproducente, quase irracional, para a importância estratégica do cargo que ocupa. Ele é o “sherpa” do Brasil nos Brics, ou seja, o principal negociador brasileiro. E é contra os Brics. Segundo minhas fontes, Saboia fala abertamente contra os Brics com seus interlocutores.

Ou seja, o representante mais importante do Brasil nos Brics e que também é o representante mais importante do Brasil na China é contra os Brics e a China. A posição de Saboia, no entanto, nunca foi desconhecida, pois ele é notoriamente um quadro de posições políticas reacionárias, motivo pelo qual foi nomeado para o cargo pelo presidente Jair Bolsonaro. O incrível é ele continuar lá sob o governo Lula.

A embaixadora Maria Laura da Rocha, secretária geral do Ministério de Relações Exteriores, não apenas tem posições abertamente contra a China, como andou militando, nos últimos meses, de ministério em ministério, para defender que o Brasil não aderisse à Rota da Seda.

Tatiana Rosito, secretária de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda, também é vista como um quadro político hostil à adesão do Brasil ao projeto da Rota da Seda.

O embaixador do Brasil na China, Marcos Galvão, é igualmente um quadro conservador, com poucas luzes sobre as grandes oportunidades que se abririam para o Brasil, caso optasse por ampliar a parceria com o gigante asiático.

Ou seja, toda a máquina diplomática do Estado, com posições estratégicas na relação com a Ásia, e quase todo o pessoal encarregado de assuntos de ordem geopolítica, tem posições hostis à China, o que explica a dificuldade do Brasil em aprofundar parcerias com o gigante asiático.

Quando Lula e Xi Jinping se encontrarem, em algumas semanas, muita coisa estará em disputa. Toda palavra, símbolo, gesto, será analisado minuciosamente pelo mundo inteiro.

Para o brasileiro Rafael Henrique Zerbetto, um jovem linguista que reside e trabalha em Pequim, a fórmula diplomática encontrada pelo Brasil para não assinar um memorando de adesão à Rota, e ao mesmo tempo surfar no fluxo de investimentos chineses associados ao projeto, serão vistos como uma tentativa pouco disfarçada de ser “esperto”, embora objetivamente não o seja. Outros países, com postura mais assertiva e corajosa, acabarão levando vantagem sobre o Brasil.

Zerbetto, que é um entusiasta e um estudioso da Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR), lembra que o memorando de adesão não é, de fato, um tratado vinculativo, tampouco exclusivista. É bastante genérico, mas também é uma grande porta que se abriria para o início de uma série de iniciativas a serem financiadas pela China, em favor do Brasil. Apenas os projetos que interessarem ao Brasil, que forem estratégicos para o Brasil, serão incluídos na parceria. Sua condução seria inteiramente controlada e supervisionada pelo Brasil.

Tanto Zerbetto quanto outros com quem conversei lembram ainda que a Rota da Seda vai muito além dos projetos em infra-estrutura. Daí inclusive a mediocridade do conceito de “sinergia”. Falar em sinergia põe de lado a complexidade holística da Rota, que incluiria abertura de mercados para produtos culturais do Brasil, como filmes, livros, jogos, além de um aumento exponencial do intercâmbio científico, profissional e acadêmico.

Iara Vidal, jornalista brasileira especializada em China, lembra ainda que o Brasil pode desenvolver laços com a China para além do comércio de commodities e parcerias em infraestrutura. “É muito importante parcerias entre a China Media Group [principal grupo de mídia do país, estatal] e empresas nacionais no campo do audiovisual”, diz ela. Outros campos a serem explorados, e que seriam facilitados com uma adesão do Brasil à Rota da Seda, seriam os setores de economia criativa, como a moda. “A China tem desenvolvido ferramentas muito inovadoras para lidar, por exemplo, com a questão do uso do poliéster, que podemos implementar no Brasil. É o caso da iniciativa de substituir o plástico por bambu. Nossa indústria têxtil poderia se beneficiar dessa ideia que está em perfeita sintonia com a neoindustrialização e a economia verde. Poderia renovar esse segmento aproveitando que o setor brasileiro de moda tem a única cadeia produtiva completa do Ocidente, em uma indústria que gera muito emprego, principalmente para mulheres e jovens.”

Uma adesão corajosa do Brasil à Iniciativa do Cinturão e da Rota da Seda poderia dar a marca que hoje falta ao governo Lula. É a oportunidade do século, pois a China tem exatamente aquilo de que precisamos nesse momento: recursos financeiros em abundância, desenvolvimento científico e tecnológico em todas as áreas, uma classe média que deve chegar a 800 milhões de pessoas em alguns anos, para citar apenas alguns.

Tanto o medo de melindrar o império, quanto uma ideologia reacionária (e preconceituosa) anti-China, uma mistura venenosa que parece ter se infiltrado no governo, são antes de tudo uma colossal estupidez, porque os Estados Unidos e a Europa apenas irão respeitar o Brasil, como já disse Lula tantas vezes, se o Brasil aprender a respeitar a si mesmo. E perder a oportunidade de abraçar esta grande nação amiga, a China, seria uma grande falta de respeito do Brasil consigo mesmo e com o futuro da nossa juventude.

Além disso, somente a China tem os recursos, a engenharia institucional, e a velocidade de execução que o governo Lula precisa para implementar projetos grandiosos o suficiente para melhorar a vida do povo e ganhar com folga as eleições de 2026. Apesar da economia estar crescendo e o desemprego caindo, mesmo isso não será suficiente para barrar a onda reacionária que vemos se levantar no país.

Um projeto Minha Casa Meu Sol, com distribuição financiada de placas fotovoltaicas e baterias de lítio para todas as casas e edifícios no Brasil, reduzindo drasticamente as despesas domésticas com eletricidade, seria uma iniciativa para ganhar no primeiro turno em 2026.

Escolher algumas cidades brasileiras para implementação de vastos sistemas de metrô, com auxílio da China, seria outra boa ideia, não apenas para ganhar em 2026 mas sobretudo para apontar uma solução para o estrangulamento desesperador em que se encontram os brasileiros que vivem em grandes cidades.

A construção de um protótipo inicial de trem de alta velocidade, ligando duas cidades importantes brasileiras, também ajudaria o governo a desenvolver uma marca e esmagar a extrema direita nas próximas eleições.

Nenhum projeto desses pode vir dos EUA, tampouco da Europa. Só a China oferece a possibilidade de realização de sonhos dessa magnitude. O governo Lula precisa meditar sobre as próprias palavras do presidente em seus discursos: quando o presidente fala em combater a desigualdade no país, deve se lembrar que isso apenas será possível com a modernização do transporte urbano, maior uso de energia solar e conquista de novos mercados para nossos produtos culturais, para mencionar alguns benefícios que uma parceria com a China nos ajudariam a desenvolver.

Se o governo Lula, porém, decidiu perder o jogo antes mesmo de terminar a segunda metade da gestão, então vai ficar muito mais complicado construir uma estratégia vencedora.

Quer dizer, pode acontecer o pior: a direita vencerá as eleições em 2026, com um candidato como Tarcísio, e um de seus primeiros atos será assinar um memorando de adesão à Rota da Seda. Se o governo do PT não quer aderir, para não melindrar nem os EUA nem os setores reacionários incrustrados na própria administração, um governo de extrema direita, que não precisará “provar” que não é hostil aos EUA, terá toda a facilidade em estabeler mais relações com a China.

Com a corrente de comércio entre Brasil e China chegando a US$ 163 bilhões de dólares nos últimos 12 meses, quase 100% de aumento em dez anos, e com a perspectiva de crescer ainda mais nos próximos dez anos, me parece evidente que os dois países estão fadados a estabelecer parcerias cada vez mais profundas e estratégicas. Se isso será feito sob o governo Lula, com foco em ciência e preocupação social, ou sob um governo de direita, com foco na construção de grandes corredores de escoamento de commodities, ainda não sabemos.

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.