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segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Neoliberais anti-China tomam conta da política externa do Brasil - Miguel do Rosário (O Cafezinho)

 PRA: "O jornalista, obviamente, é míope, ao falar de neoliberais do Itamaraty. A política externa é a do presidente. O Itamaraty só faz diplomacia, constrangido pela política externa personalista do presidente. Como o jornalista é pró-China, não se poderia esperar outra coisa. A matéria tem pontos interessantes, pois revela o que pensam os militantes do PT em matéria internacional."

Neoliberais anti-China tomam conta da política externa do Brasil

O Cafezinho, 4/11/2024

https://www.ocafezinho.com/2024/11/04/exclusivo-neoliberais-anti-china-tomam-conta-da-politica-externa-do-brasil/

A política externa brasileira vai mal.

O Itamaraty, concebido como um órgão eminentemente técnico, para assessorar o poder eleito, vem assumindo posições políticas cada vez mais independentes.

É mais grave que isso: o Itamaraty está indo na direção oposta daquela apontada pelo presidente Lula, expressa em todos seus discursos, de fortalecimento do mundo multipolar e combate à desigualdade no mundo.

As consequências políticas para Lula, para o governo e para o pais serão profundas. Uma política externa confusa, medrosa, sem visão estratégica, pode comprometer a reeleição do presidente e, sobretudo, destruir por décadas os sonhos de emancipar economicamente o Brasil.

Vamos contextualizar os motivos que me levam a abrir esse artigo com declarações tão duras e críticas contra um governo no qual ainda depositamos tão ardentes esperanças.

O debate ocorrido nos últimos dias, sobre a adesão, ou melhor, a não-adesão do Brasil à Rota do Cinturão e da Seda, produziu uma intensa agitação nas comunidades que discutem a política externa brasileira, em especial aquelas que lidam mais diretamente com relação do Brasil com os Brics e com o gigante da Ásia.

A entrevista de Celso Amorim ao Globo, afastando a possibilidade do Brasil assinar um “tratado” de adesão ao projeto chinês, e falando antes em “sinergia” de projetos, pegou mal na China, segundo fontes do Cafezinho.

Amorim, brilhante diplomata, procurou contornar o mal estar criado por essa entrevista.

Procurado por mim, jurou que isso não significa nenhuma posição anti-China do governo, e que o conceito de sinergia deve ser considerado como a melhor maneira do Brasil se aproximar do projeto chinês conhecido pela sigla em inglês BRI (Belt and Road Iniciative), ou Cinturão e Rota da Seda.

Procurei também o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que gentilmente conversou comigo durante alguns minutos, e usou o mesmo termo de Amorim (mostrando que o governo alinhou o discurso sobre a China): o Brasil irá procurar estabelecer uma “sinergia” entre os dois países.

“A viagem de ministros e secretários de governo à China, recentemente, foi motivada pelo desejo do governo de estabelecer sinergias entre o projeto nacional de desenvolvimento do Brasil e o projeto chinês”, disse Haddad ao Cafezinho.

“Não entendo muito bem essa ideia do Brasil aderir ao projeto de outro país”, disse Haddad, para justificar a preferência pelo conceito de sinergia.

O ministro disse ainda que o governo está tentando atrair investimentos chineses para a órbita do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), em especial para os projetos vinculados à principal aposta do órgão, o Nova Indústria Brasil (NIB). “É aí que vamos tentar a sinergia entre os investimentos chineses e esses projetos mais sofisticados – energia, trens, etc – de que você fala”, explicou o ministro.

“Já está acontecendo”, disse Haddad, sobre o aprofundamento das relações entre Brasil e China, aí incluindo a famosa sinergia entre o projeto nacional e o chinês.

Entretanto, essas falas não surtiram nenhum efeito entre os observadores mais atentos, que viram nas declarações dos representantes do governo um recuo estratégico, com enormes proporções e consequências geopolíticas, na relação do Brasil com a China.

Eu entrei em contato com muitas pessoas, no Brasil e na China, que se debruçam há anos sobre as relações diplomáticas, comerciais e geopolíticas entre os dois países, para entender com o máximo de objetividade porque essa percepção foi tão marcante.

Evandro Menezes de Carvalho, por exemplo, é um dos maiores especialistas em China no Brasil. Professor de Direito Internacional na Faculdade de Direito na UFF e na FGV, tem pós-doutorado na Universidade de Pequim e na Facultade de Direito de Xangai. É professor também na Universidade de Pequim, e tem dividido sua vida entre China e Brasil. Ganhou há pouco um dos prêmios do Estado chinês mais importantes do país, o de “Amigo da China”, entregue a ele diretamente pelo primeiro ministro.

Carvalho entendeu as falas de Amorim como malabarismo retórico e como um “não vacilante” à adesão do Brasil à Rota da Seda. Ele entende ainda que o conceito de “sinergia” não faz jus à magnitude de oportunidades que uma posição mais assertiva e corajosa do presidente Lula poderia trazer ao país, caso assinasse um Memorando de Entendimento, durante a visita do presidente da China ao Brasil, Xi Jinping, entre os dias 18 e 20 de novembro.

“Considerar a relação com a China apenas na perspectiva bilateral é não enxergar as potencialidades desta parceria no âmbito regional. A China parece ter uma visão e uma execução de política externa na América do Sul mais integrada do que o próprio Brasil. Os projetos de rodovias na Bolívia, os projetos elétricos no Uruguai, a ferrovia de Belgrano na Argentina são exemplos de projetos na América do Sul inseridos no âmbito da BRI. Sem contar outros projetos no resto da América Latina tais como o porto de águas profundas em Antígua e Barbuda, o parque industrial em Trinidade e Tobago e a estrada Norte-Sul na Jamaica. Vale ressaltar que entre 2000 e 2022, o comércio entre China e América Latina aumentou 35 vezes ultrapassando, em 2023, a marca de 480 bilhões de dólares. A China se tornou o segundo maior parceiro comercial da região. Durante a APEC [Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, ou Asia-Pacific Economic Cooperation, em inglês], Lula verá a inauguração do Porto de Chancay, um megaprojeto que pode encurtar em um terço o tempo médio que os produtos brasileiros levam para chegar ao Oriente. O Brasil poderá se beneficiar deste porto se levar adiante o projeto do Corredor Ferroviário Bioceânico com 3.750 quilômetros de extensão, ligando o Porto de Santos ao Porto de Chancay, passando por Bolívia. A BRI tem algo a nos dizer sobre isso?”, diz o professor, em texto recente sobre essa polêmica do Brasil aderir ou não à Rota.

“Não colou”, diz Rodrigo do Val Ferreira, consultor brasileiro residente em Xangai, que mantém contato frequente com autoridades e empresas chinesas, sobre o esforço retórico do governo em substituir uma declaração mais clara e explícita de adesão à Rota pelo uso do conceito ambíguo de “sinergia” entre projetos do Brasil e da China.

Segundo ele, a percepção na China é de “surpresa e decepção, e isso mancha as celebrações de 50 anos entre os dois países”. A própria famosa ideia de neutralidade do Brasil, diz Rodrigo, estaria começando a ser questionada.

“A ICR [Iniciativa do Cinturão e da Rota] não exigia exclusividade, não exigia tomar partido, nem sequer se comprometer a qualquer projeto específico, e escolhemos mesmo assim a não relação. Tenho minhas dúvidas se por medo ou ideologia. E espero que por medo.

No A Governança da China, em seu primeiro volume, Xi quando se refere à América Latina, discorre: Na China há um provérbio que diz: ‘Na longa distância se conhece a força de um cavalo; no decorrer do tempo se conhece o coração de uma pessoa’. E segue tecendo elogios à cooperação com a América Latina.

Receio, nosso cavalo, justo no momento mais importante de se construir confiança, empacou”, declara Rodrigo, sem ocultar sua frustração.

O sentimento crítico em relação à política externa do Brasil, todavia, não começou agora, e as declarações de Amorim foram apenas a mensagem mais recente, e no momento mais emblemático, pois ocorre às vésperas da chegada de Xi Jinping ao Brasil.

Uma série de acontecimentos bem mais concretos, contudo, vem dando sinais da mudança de rumo na política externa do país.

Em nome da transparência, e de um debate franco e aberto que o tema merece, vamos dar nomes aos bois.

O embaixador Eduardo Paes Saboia, secretário do Itamaraty para Ásia e Pacífico, é conhecido por suas posições anti-Brics e anti-China, o que é totalmente contraproducente, quase irracional, para a importância estratégica do cargo que ocupa. Ele é o “sherpa” do Brasil nos Brics, ou seja, o principal negociador brasileiro. E é contra os Brics. Segundo minhas fontes, Saboia fala abertamente contra os Brics com seus interlocutores.

Ou seja, o representante mais importante do Brasil nos Brics e que também é o representante mais importante do Brasil na China é contra os Brics e a China. A posição de Saboia, no entanto, nunca foi desconhecida, pois ele é notoriamente um quadro de posições políticas reacionárias, motivo pelo qual foi nomeado para o cargo pelo presidente Jair Bolsonaro. O incrível é ele continuar lá sob o governo Lula.

A embaixadora Maria Laura da Rocha, secretária geral do Ministério de Relações Exteriores, não apenas tem posições abertamente contra a China, como andou militando, nos últimos meses, de ministério em ministério, para defender que o Brasil não aderisse à Rota da Seda.

Tatiana Rosito, secretária de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda, também é vista como um quadro político hostil à adesão do Brasil ao projeto da Rota da Seda.

O embaixador do Brasil na China, Marcos Galvão, é igualmente um quadro conservador, com poucas luzes sobre as grandes oportunidades que se abririam para o Brasil, caso optasse por ampliar a parceria com o gigante asiático.

Ou seja, toda a máquina diplomática do Estado, com posições estratégicas na relação com a Ásia, e quase todo o pessoal encarregado de assuntos de ordem geopolítica, tem posições hostis à China, o que explica a dificuldade do Brasil em aprofundar parcerias com o gigante asiático.

Quando Lula e Xi Jinping se encontrarem, em algumas semanas, muita coisa estará em disputa. Toda palavra, símbolo, gesto, será analisado minuciosamente pelo mundo inteiro.

Para o brasileiro Rafael Henrique Zerbetto, um jovem linguista que reside e trabalha em Pequim, a fórmula diplomática encontrada pelo Brasil para não assinar um memorando de adesão à Rota, e ao mesmo tempo surfar no fluxo de investimentos chineses associados ao projeto, serão vistos como uma tentativa pouco disfarçada de ser “esperto”, embora objetivamente não o seja. Outros países, com postura mais assertiva e corajosa, acabarão levando vantagem sobre o Brasil.

Zerbetto, que é um entusiasta e um estudioso da Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR), lembra que o memorando de adesão não é, de fato, um tratado vinculativo, tampouco exclusivista. É bastante genérico, mas também é uma grande porta que se abriria para o início de uma série de iniciativas a serem financiadas pela China, em favor do Brasil. Apenas os projetos que interessarem ao Brasil, que forem estratégicos para o Brasil, serão incluídos na parceria. Sua condução seria inteiramente controlada e supervisionada pelo Brasil.

Tanto Zerbetto quanto outros com quem conversei lembram ainda que a Rota da Seda vai muito além dos projetos em infra-estrutura. Daí inclusive a mediocridade do conceito de “sinergia”. Falar em sinergia põe de lado a complexidade holística da Rota, que incluiria abertura de mercados para produtos culturais do Brasil, como filmes, livros, jogos, além de um aumento exponencial do intercâmbio científico, profissional e acadêmico.

Iara Vidal, jornalista brasileira especializada em China, lembra ainda que o Brasil pode desenvolver laços com a China para além do comércio de commodities e parcerias em infraestrutura. “É muito importante parcerias entre a China Media Group [principal grupo de mídia do país, estatal] e empresas nacionais no campo do audiovisual”, diz ela. Outros campos a serem explorados, e que seriam facilitados com uma adesão do Brasil à Rota da Seda, seriam os setores de economia criativa, como a moda. “A China tem desenvolvido ferramentas muito inovadoras para lidar, por exemplo, com a questão do uso do poliéster, que podemos implementar no Brasil. É o caso da iniciativa de substituir o plástico por bambu. Nossa indústria têxtil poderia se beneficiar dessa ideia que está em perfeita sintonia com a neoindustrialização e a economia verde. Poderia renovar esse segmento aproveitando que o setor brasileiro de moda tem a única cadeia produtiva completa do Ocidente, em uma indústria que gera muito emprego, principalmente para mulheres e jovens.”

Uma adesão corajosa do Brasil à Iniciativa do Cinturão e da Rota da Seda poderia dar a marca que hoje falta ao governo Lula. É a oportunidade do século, pois a China tem exatamente aquilo de que precisamos nesse momento: recursos financeiros em abundância, desenvolvimento científico e tecnológico em todas as áreas, uma classe média que deve chegar a 800 milhões de pessoas em alguns anos, para citar apenas alguns.

Tanto o medo de melindrar o império, quanto uma ideologia reacionária (e preconceituosa) anti-China, uma mistura venenosa que parece ter se infiltrado no governo, são antes de tudo uma colossal estupidez, porque os Estados Unidos e a Europa apenas irão respeitar o Brasil, como já disse Lula tantas vezes, se o Brasil aprender a respeitar a si mesmo. E perder a oportunidade de abraçar esta grande nação amiga, a China, seria uma grande falta de respeito do Brasil consigo mesmo e com o futuro da nossa juventude.

Além disso, somente a China tem os recursos, a engenharia institucional, e a velocidade de execução que o governo Lula precisa para implementar projetos grandiosos o suficiente para melhorar a vida do povo e ganhar com folga as eleições de 2026. Apesar da economia estar crescendo e o desemprego caindo, mesmo isso não será suficiente para barrar a onda reacionária que vemos se levantar no país.

Um projeto Minha Casa Meu Sol, com distribuição financiada de placas fotovoltaicas e baterias de lítio para todas as casas e edifícios no Brasil, reduzindo drasticamente as despesas domésticas com eletricidade, seria uma iniciativa para ganhar no primeiro turno em 2026.

Escolher algumas cidades brasileiras para implementação de vastos sistemas de metrô, com auxílio da China, seria outra boa ideia, não apenas para ganhar em 2026 mas sobretudo para apontar uma solução para o estrangulamento desesperador em que se encontram os brasileiros que vivem em grandes cidades.

A construção de um protótipo inicial de trem de alta velocidade, ligando duas cidades importantes brasileiras, também ajudaria o governo a desenvolver uma marca e esmagar a extrema direita nas próximas eleições.

Nenhum projeto desses pode vir dos EUA, tampouco da Europa. Só a China oferece a possibilidade de realização de sonhos dessa magnitude. O governo Lula precisa meditar sobre as próprias palavras do presidente em seus discursos: quando o presidente fala em combater a desigualdade no país, deve se lembrar que isso apenas será possível com a modernização do transporte urbano, maior uso de energia solar e conquista de novos mercados para nossos produtos culturais, para mencionar alguns benefícios que uma parceria com a China nos ajudariam a desenvolver.

Se o governo Lula, porém, decidiu perder o jogo antes mesmo de terminar a segunda metade da gestão, então vai ficar muito mais complicado construir uma estratégia vencedora.

Quer dizer, pode acontecer o pior: a direita vencerá as eleições em 2026, com um candidato como Tarcísio, e um de seus primeiros atos será assinar um memorando de adesão à Rota da Seda. Se o governo do PT não quer aderir, para não melindrar nem os EUA nem os setores reacionários incrustrados na própria administração, um governo de extrema direita, que não precisará “provar” que não é hostil aos EUA, terá toda a facilidade em estabeler mais relações com a China.

Com a corrente de comércio entre Brasil e China chegando a US$ 163 bilhões de dólares nos últimos 12 meses, quase 100% de aumento em dez anos, e com a perspectiva de crescer ainda mais nos próximos dez anos, me parece evidente que os dois países estão fadados a estabelecer parcerias cada vez mais profundas e estratégicas. Se isso será feito sob o governo Lula, com foco em ciência e preocupação social, ou sob um governo de direita, com foco na construção de grandes corredores de escoamento de commodities, ainda não sabemos.

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.