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segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Sobre a responsabilidade dos intelectuais - Paulo Roberto de Almeida

A propósito do debate sobre a corrupção dos "intelequituais", lembrei-me de um antigo artigo meu, publicado numa revista "esquerdista" (moderada), que deve ter deixado os seus leitores e colaboradores muito incomodados.

Um ano depois, minhas colaborações a essa revista cessaram, por decisão do comitê editorial.
Não só por esse artigo, mas por várias outras polêmicas, eu havia provocado demais os acadêmicos gramscianos.
O artigo era este aqui:


2103. “Sobre a responsabilidade dos intelectuais: devemos cobrar-lhes os efeitos práticos de suas prescrições teóricas?”, Brasília, 19 janeiro 2010, 12 p. Argumentos de natureza política e histórica sobre a falência do marxismo aplicado, elaborado com base no trabalho 2039: “Um intercâmbio acadêmico sobre a responsabilidade do Intelectual”. Revisto em 3/02/2010. Espaço Acadêmico (vol. 9, n. 105, fevereiro 2010, p. 149-159; ISSN: 1519-6186; link: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/9275/5252). Relação de Publicados n 952.

O trabalho precedente, citado na ficha acima, é este aqui:

2039. “Um intercâmbio acadêmico sobre a responsabilidade do Intelectual”, Brasília, 21 agosto 2009, 2 p. Intercâmbio com Antonio Ozai sobre Marx e os marxistas, a propósito de seu post “Marx e os marxismos” (Blog do Ozai: http://antonio-ozai.blogspot.com/2009/06/marx-e-os-marxismos.html). Circulado na lista Diplomaticas e postado em meu blog Diplomatizzando (21.08.2009; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2009/08/1302-um-intercambio-academico-sobre.html). Serviu de base à elaboração do trabalho n. 2103: “Sobre a responsabilidade dos intelectuais: devemos cobrar-lhes os efeitos práticos de suas prescrições teóricas?”, Brasília, 19 janeiro 2010, 12 p. Argumentos de natureza política e histórica sobre a falência do marxismo aplicado. Espaço Acadêmico (vol. 9, n. 105, fevereiro 2010, p. 149-159). 

Transcrevo abaixo esse artigo:


Sobre a responsabilidade dos intelectuais
Devemos cobrar-lhes os efeitos práticos de suas prescrições teóricas?

Paulo Roberto de Almeida
Espaço Acadêmico (vol. 9, n. 105, fevereiro 2010, p. 149-159; ISSN: 1519-6186; link: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/9275/5252).


Aproveito para dizer logo o que motiva este meu pequeno ensaio: deveriam intelectuais do século 19, como Marx e Engels, ser considerados culpados (ou inocentes, segundo argumentam alguns) pelo que sucedeu, no século 20, a sociedades tão diversas quanto a Rússia, a China, Cuba ou Coréia do Norte? Ou seja, levam eles alguma culpa pelos milhões de mortos provocados pelos experimentos socialistas em cada um desses países (e em vários outros mais)? Estariam eles na origem do mal?
Interrompo para um breve parênteses: permito-me sugerir aos que acreditam que esses ‘milhões de mortos’ são apenas um ‘pequeno detalhe da história’ e que o socialismo é, a despeito dos ‘poucos erros’ cometidos’, uma boa coisa – posto que seus princípios fundadores, os de uma sociedade sem classes, igualitária, livre do capitalismo, seriam ‘essencialmente positivos’ –, que eles desistam de ler este ensaio aqui mesmo. Pessoas que preferem ignorar fatos concretos do século 20 talvez não devam ser perturbadas em suas crenças; elas tem todo o direito de manter as fantasias de seu mundo imaginário. Não me dirijo a essas pessoas; apenas àquelas que não pretendem esconder a realidade, e que sabem, objetivamente, que os socialismos reais provocaram dezenas de milhões de mortos ao longo do século 20. Fecha parênteses.
Volto a perguntar: podemos concordar com aqueles que pretendem isentar os intelectuais pelas conseqüências práticas que decorrem de suas doutrinas e de seus ensinamentos? Em outros termos, deveríamos aderir ao velho mote que diz que a teoria é uma coisa, mas que a prática é outra, muito diferente daquela? Em suma, vamos concordar com a escusa de que só poderíamos ser considerados culpados por aquilo que fizermos, objetivamente, não existindo a figura da ‘culpa intelectual’?
Levanto estas questões a propósito de um debate, entrecortado, que mantive com um colega acadêmico, que me disse que Marx não era responsável pelos mortos do Gulag, assim como Jesus Cristo não poderia ser considerado responsável pelas cruzadas, pela Inquisição, pelas perseguições aos heréticos, enfim, por todos os crimes cometidos em nome da religião cristã ou da Igreja Católica.
Minha resposta, na época, foi a de que, no primeiro caso, deveríamos, sim, considerar Marx culpado pelos crimes cometidos em nome de sua doutrina, ao longo de um século 20 especialmente mortífero – no qual o fascismo e outras perseguições odiosas também exibem sua cota de responsabilidade por vários milhões de mortos, mas em escala inferior aos do socialismo de cunho marxista – mas que, no segundo caso, as culpas objetivas precisariam ter sua ‘filiação’ traçada aos argumentos usados pelos perpetradores desses crimes. Expliquei-me: se, por acaso, as pregações de Jesus Cristo abrigassem qualquer incitação à morte de “desviantes” – de qualquer tipo –, ele poderia, ou deveria, sim, ser responsabilizado por aqueles perversidades apontadas; mas restaria provar essa vinculação de modo objetivo, com provas documentais (e eu lançava o desafio, a qualquer pessoa, de encontrar nos textos dos evangelhos alguma incitação aos fenômenos descritos acima). Esse era o estado do debate, infelizmente interrompido, não por minha iniciativa, mas que pretendo retomar agora.

Uma visita rápida a Norberto Bobbio
Antes, contudo, de voltar aos meus argumentos, permito-me citar um trecho de um dos ensaios mais conhecidos do famoso jurista italiano: “Quale Socialismo?” (publicado originalmente em MondOperaio, a. 29, n. 5, dez. 1976, p. 55-63), do qual transcrevo (e traduzo do italiano) o seguinte trecho, irônico, para dizer o mínimo:

Não gostaria de deixar passar em silêncio uma outra tese...: a tese segundo a qual Marx não deve ser considerado responsável pelas más aplicações da sua teoria (por exemplo, o stalinismo), não mais do que Locke, Montesquieu ou Croce podem ser considerados responsáveis pelas más formas do Estado representativo que temos sob nossos olhos. Me surpreende que um estudioso sério... não leve em consideração que uma opinião desse tipo conduz diretamente à tese, tão cara aos ‘evasores’, da ‘irresponsabilidade dos intelectuais’. Um intelectual pode sustentar qualquer coisa: sempre é inocente.
Nietzsche pode ter escrito perorações longas de um quilometro (somando fragmentos de duas ou três linhas obsessivamente repetidas) em defesa do instinto contra a razão, da vontade de potência contra a democracia pacífica, da moral dos senhores contra a dos escravos, para desmascarar ‘a conjuração universal das manadas, contra os pastores, animais predadores, solitários e cesarísticos’, mas o nazismo não tem nada a ver com isso. Pareto pode ter tratado depreciativamente e diminuído a burguesia do seu tempo por não ter sabido contrapor a violência contrarrevolucionária à violência revolucionária, mas o fascismo está fora de questão. Hegel pode ter escrito que o Estado é tudo e o indivíduo nada (‘Tudo o que o homem é, ele deve ao Estado: apenas neste ele tem a sua essência’), mas aqueles, Gentile à frente, que fizeram dele o precursor do Estado ético da memória fascista, apenas divagaram, e o teórico da ética do Estado, sobretudo agora que tornou-se o pai de Marx, é puro como um anjo.
Marx e seu amigo Engels desmantelaram o Estado representativo, sustentaram que todo Estado, pelo simples fato de ser Estado, é uma ditadura, que a passagem do Estado burguês ao Estado proletário seria simplesmente a passagem de uma ditadura a outra, sempre sustentaram que o importante era que se mudasse o sujeito histórico e tudo teria corrido melhor, independentemente das formas (se entende jurídicas) sob as quais o novo sujeito se teria ‘organizado’, e agora [1976] nos permitimos nos surpreender pelo fato de que os Estados socialistas continuam a ser ditaduras e que seus chefes se proclamam os únicos intérpretes do marxismo-leninismo? Que Marx acreditasse de boa fé que a democracia proletária, pelo simples fato de ser proletária, fosse mais democrática do que a burguesa, e que assim estivesse na origem de um novo Estado que apressasse o processo de extinção do Estado, não nos exime de observar que a única prova que ele teve à sua disposição, as instituições da Comuna de Paris, eram muito fugazes para que se pudesse construir uma teoria sobre elas; a história, até aqui, não lhe deu razão.
Depois, não é de fato verdade que Locke, Montesquieu e Croce tenham sido absolvidos. Por quem? Não, certamente, pelos escritores marxistas. Com as obras anti-Locke, as anti-Montesquieu (existe uma, inclusive, de Althusser) e as anti-Croce, chamados recorrentemente de ideólogos da classe burguesa, de ‘lacaios’ da classe dominante, ou de porta-bandeiras da reação, se poderia preencher toda uma estante de biblioteca. Aquilo que é lícito aos marxistas não deveria ser lícito a escritores não marxistas com respeito a Marx, a Engels ou a Lênin?
Muito cômodo, de fato muito cômodo, separar as obras intelectuais da história que elas geraram e daquela que elas ajudaram a gerar, mesmo pela via indireta, e colocá-las em uma espécie de status naturae incorruptae, em um estado de perpétua inocência, não maculadas pela lama da história. Nós, pequenos, pequeníssimos, somos ou não somos responsáveis pelo que escrevemos? Claro que somos. E por que escreveríamos se não acreditássemos que alguém fosse ler? Nós, portanto, somos responsáveis, e os grandes, que dispõem de uma audiência bem mais vasta e duradoura, não o são?[1]

No mesmo sentido vai a observação crítica do sociólogo alemão Ralf Dahrendorf, numa conferência proferida na Columbia University, em1994, quando ele advertia que “os intelectuais têm responsabilidade pública. Onde eles se calam, as sociedades perdem seu futuro.[2]

Desvios cristãos e marxistas: similares, semelhantes, comparáveis?
Pois bem, volto agora ao debate supracitado sobre a responsabilidade dos intelectuais sobre eventuais consequências de seus escritos e propostas. Um dos argumentos comumente usados em meios acadêmicos para isentar os teóricos ‘fundacionais’ de qualquer responsabilidade sobre o que fizeram seus seguidores a partir das teses originais, no caso os crimes do socialismo no século 20, é o de que seria preciso diferenciar Marx dos marxismos. Ou seja, Marx, que disse uma vez que não era ‘marxista’, não teria nada a ver com a obra prática de seus seguidores, suas recomendações quanto à derrubada do poder da burguesia e a implantação da ‘ditadura do proletariado’ não seriam absolutamente consideradas uma causa direta dos totalitarismos que se reivindicaram de seu nome no século passado.
A justificativa corre aproximadamente segundo esta linha: da mesma forma que não podemos responsabilizar Jesus Cristo pelo que os cristãos fizeram e fazem em seu nome, também seria absurdo identificar de forma absoluta a teoria de Karl Marx com as práticas, e mesmo as interpretações teóricas, dos seus seguidores. Em outros termos, não podemos ter certeza de que aquilo que foi construído em nome do marxismo seria a expressão verdadeira da obra marxiana. Uma justificativa derivada é a de que, como muitos disputam o legado histórico, a tradição intelectual que a obra original representa, não se poderia, por isso mesmo, vincular os malfeitos práticos que foram cometidos em nome da doutrina ao formulador original das proposições.
A primeira dificuldade, intelectual e prática, desse tipo de argumentação é a própria equiparação de Karl Marx a Jesus Cristo: ela não é apenas simplória e desprovida de qualquer equivalência histórica real, mas é profundamente enganosa quanto ao conteúdo mesmo das mensagens de cada um. Senão vejamos.
Equiparar Cristo e Marx – de maneira totalmente arbitrária e de uma forma completamente anacrônica do ponto de vista da metodologia histórica – para, em seguida, desculpá-los, prévia e automaticamente, de qualquer bobagem, besteiras ou mesmo crimes, que seguidores, discípulos ou quaisquer outros indivíduos posteriores possam ter cometido em nome da doutrina original, é uma operação no mínimo indevida, e no limite desonesta intelectualmente. Cristo, ao que se sabe, é um personagem histórico sobre o qual não temos fontes originais completas e isentas de qualquer dúvida interpretativa, o que obviamente não é o caso de Marx, cidadão com registros históricos disponíveis e obras publicadas em vida. Cristo, de seu lado, não parece ter feito obra teórica ou empírica registrada diretamente, ou seja, ele não foi autor de nenhum manuscrito, a não ser de parábolas, ensinamentos, predicações e outras formas de transmissão oral de princípios, valores, concepções, das quais tomamos conhecimento pelo registro indireto e posterior de quatro evangelistas e alguns comentaristas esparsos, dos quais apenas dois conviveram ou foram contemporâneos do personagem histórico.
Ou seja, no plano teórico, não se poderia imputar diretamente a Jesus Cristo qualquer responsabilidade pelo uso que seguidores fizeram dessas predicações, pois o próprio personagem não guarda conexão direta, pelo menos registrada, com as fontes alegadas da doutrina. Mas, ainda que se fizesse tal vinculação, seria preciso também provar, no plano prático, que os crimes realmente cometidos em nome do cristianismo – que seria o ‘marxismo’ dos cristãos – podem ser vinculados a pregações, normas, projetos e programas que encontrariam sustentação na doutrina original; quais seriam estes?: conversão forçada do ‘gentio’, eliminação de heréticos, perseguição e tortura de ‘dissidentes’, censura ao pensamento e à expressão de outras religiões, proibição de reuniões e movimentos organizados com o fito de disseminar doutrinas julgadas em desacordo com a linha original, interdição de obras expressando opiniões divergentes ou contrarias à ‘boa doutrina’ etc. Quais são as ‘parábolas’ fundadoras desses crimes? Como e de onde citar?: “Cf. Jesus Cristo, apud Marcos, Mateus...”?
O desafio aos que pretendem fazer esse tipo de equiparação é significativo: pode-se, com alguma certeza histórica, imputar a Cristo alguma, uma sequer, das barbaridades que seus discípulos e seguidores fizeram em seu nome, em termos de massacres de heréticos, cruzadas contra os infiéis, perseguição de desviantes? Ainda que não se saiba, ao certo, se os evangelistas foram ou não fiéis às suas prescrições (de resto, esparsas) – que é o que se poderia alegar em defesa de Marx, contra alguns ‘marxistas infiéis’ –, quais seriam, de toda forma, os textos ou recomendações doutrinais que poderiam sustentar aqueles ‘trabalhos práticos’ de cunho repressivo? Ao contrário, as mensagens ‘transmitidas’ parecem padecer de certa ingenuidade  humanitária e, sobretudo, exalam recomendações que poderiam ser julgadas, por qualquer pessoa normal, como excessivamente tolerantes ou ingênuas; aquela coisa de ‘oferecer a outra face’, em lugar de simplesmente aplicar a lei do Talião, ou diretamente passar o adversário na espada, como alguns recomendariam.
Existe, pois, um obstáculo ‘estrutural’ a esse tipo de equiparação que marxistas ‘tolerantes’ pretendem fazer em direção de Marx ou mesmo de Lênin (embora neste caso as desculpas se tornem ainda mais forçadas). Não acredito que qualquer tipo de exegese – do tipo da que se poderia fazer com o Alcorão, por exemplo – chegaria jamais a encontrar alguma filiação genética ou mesmo filosófica entre o comportamento de cristãos intolerantes de séculos posteriores e o conjunto de referências conceituais e prescrições de cunho moral atribuíveis ao personagem original da doutrina cristã. A pretensa similaridade de funções ou de papéis é inepta no plano conceitual e totalmente incabível no plano da prática.

O que Marx tem a ver com o socialismo do século 20?
Minha tese é muito simples: desculpar Marx pelo que fizeram os marxistas em seu nome não é apenas ilógico, no plano formal, como é totalmente equivocado no plano material, ou seja, no da história concreta da humanidade desde o final do século 19 até os nossos dias. Marx não apenas assinou textos, como recomendou a revolução proletária, a expropriação violenta da burguesia e a implantação de uma ditadura do proletariado como forma de transição para o socialismo, recomendações seguidas fielmente (e até agravadas) por Lênin, que mandou simplesmente eliminar fisicamente todos os que pertenciam à classe inimiga, independentemente de culpa individual.
Deve-se, em primeiro lugar, descartar como ridícula a alegação de que Marx não pode ser responsabilizado pelo que ocorreu muito depois que seus escritos foram elaborados e eventualmente circulados, num contexto – o do século 19 – totalmente diferente daquele que prevaleceu no século 20, dominado por guerras terríveis, deslanchadas por contradições inter-imperialistas, segundo a conhecida interpretação leninista. O equívoco aqui cometido consiste em pretender escusar o arquiteto pela obra mal feita dos engenheiros que lhe seguiram, ou seja, isentar Marx, autor da primeira concepção e do próprio plano das fundações, pela edificação viciada, mas teoricamente justificada, perpetrada por Lênin e seguidores.
Não é possível, simplesmente, escusar Marx pela autoria intelectual da obra prática posterior de seus discípulos, posto que, de forma alguma, ele pretende se isentar, ele próprio, de uma responsabilidade já anunciada desde a 11a. tese sobre Feuerbach. De resto, basta reler Miséria da Filosofia, para constatar o desprezo com que ele trata Proudhon e os ‘socialistas utópicos’; Marx não tinha qualquer respeito ou tolerância com aqueles que ele considerava seus adversários intelectuais; aliás, ele os esmagaria pessoalmente se pudesse. Pode-se também reler os textos dos bakuninistas sobre Marx e todas as diatribes inter-tribais que dividiram, desde essa época, blanquistas, revolucionários profissionais ou simples terroristas.
Marx era um homem de partido, e como tal atuou, desde os tempos da Liga dos Comunistas, passando pela Primeira Internacional e mais adiante, pela Comuna de Paris, até as últimas etapas de sua vida. Desde o Manifesto Comunista (1848) até Lutas de Classe na França (1871) e a Crítica do Programa de Gotha (1875), o trabalho organizacional e as prescrições quanto a medidas imediatas e de médio prazo para a constituição do Estado revolucionário, sob a ditadura do proletariado, ocupam grande espaço em sua obra e são por demais evidentes para serem descartadas como simples recomendações teóricas, sem conexão com o mundo real. As vinculações são tão diretas que a paternidade foi reconhecida em primeira mão por aqueles mesmos que pretendiam representar fielmente o seu pensamento, a começar por Lênin.

O que fez Lênin para aplicar as ideias de Marx, e as suas...
Os discípulos tentaram seguir fielmente o que Marx escreveu e recomendou e, portanto, a mesma responsabilidade incumbe a todos os demais seguidores do credo, tanto no plano intelectual, como prático. Não é preciso ter lido Solzenitzyn e seu ciclo sobre o Arquipélago do Gulag para constatar aquilo que os próprios comunistas já sabiam desde os tempos de Lênin e Trotsky, pelo menos. Aliás, o próprio Solzenitzyn traça, em seu Lênin em Zurique, um poderoso retrato intelectual, e psicológico, do líder exilado, revelando em termos claros as bases do que viria depois, como obra intelectual e prática.[3]
No terreno das ideias, os vínculos são evidentes. Basta verificar o que se lia nas universidades soviéticas e chinesas ao tempo da construção do socialismo: os pais fundadores, obviamente. Tudo isso é história, agora. Mas o que se pensa que constitui leitura obrigatória, em Havana ou Pyong-Yang?: Adam Smith,[4] John Stuart Mill, Alfred Marshall? Marx e Lênin ainda estão no currículo acadêmico nesses lugares, assim como estiveram anteriormente nas economias precursoras. Dessa forma, Marx deve ser plenamente responsabilizado pelos desastres econômicos do socialismo, que fizeram tantas vítimas, talvez mais, do que os crimes diretos de Stalin e Mao Tsé-Tung. As fomes e privações ocorridas na Ucrânia, nos anos 1930, e na China, na passagem dos anos 1960, foram o resultado direto das concepções econômicas originais, tanto quanto do voluntarismo de Stalin e Mao, provavelmente os ditadores absolutos num século que conheceu vários outros da mesma espécie.
Não se pode, contudo, isentar Lênin das barbaridades stalinistas e maoístas do século 20. Muitos true believers acreditam que Lênin teria sido um líder genial, e que apenas Stalin foi o monstro assassino de velhos bolcheviques e o criador dos primeiros campos de concentração claramente políticos[5]. Na verdade, a raiz de tudo, do Gulag, dos julgamentos fraudulentos, da crueldade inaudita contra os ‘inimigos de classe’, está em Lênin, que deve ser considerado como plenamente responsável pelo maior sistema escravocrata da era moderna, por ele montado, mas incrementado e desenvolvido em dimensões verdadeiramente ‘industriais’ por Stalin.
Lênin, o verdadeiro inventor do terror moderno, apreciava Robespierre e sua ‘justiça expedita’: desde os primeiros dias da revolução de 1917 ordenou à Cheka, a polícia política criada para esmagar a ameaça ‘contra-revolucionária’, que fuzilasse sem hesitação não só os opositores declarados do novo regime, mas também os representantes da classe proprietária em geral, capitalistas, grandes comerciantes e latifundiários, religiosos, enfim, os potenciais ‘inimigos de classe’. Criador do Gulag, em sua primeira emanação, ele justificava assim o trabalho da Cheka: “A Cheka não é uma comissão de investigação nem um tribunal. É um órgão de luta atuando na frente de batalha de uma guerra civil. Não julga o inimigo: abate-o... Nós não estamos lutando contra indivíduos. Estamos exterminando a burguesia como uma classe. A nossa primeira pergunta é: a que classe o indivíduo pertence, quais são suas origens, criação, educação ou profissão? Estas perguntas definem o destino do acusado. Esta é a essência do Terror Vermelho.”[6]
Stalin se encarregou de aplicar sistematicamente as recomendações de Lênin, e o fez de forma completa, começando por incorporar como ‘clientes’ da máquina de terror administrada por ele os seus próprios colegas de partido. A amplitude da repressão, ampliada e desenvolvida no seu mais alto grau no Gulag de Stalin, justifica que apliquemos a este a categoria de genocídio, noção que costuma estar associada apenas aos terríveis experimentos raciais nazistas, antes e durante a Segunda Guerra Mundial. Independentemente de suas funções ‘didáticas’, de intimidação direta e aberta contra a própria população da União Soviética, o Gulag teve um importante papel econômico na história do socialismo naquele país, chegando a representar, a produção de um terço do seu ouro, muito do carvão e da madeira e grandes quantidades de outras matérias-primas. Os prisioneiros passaram a trabalhar em qualquer tipo de indústria, vivendo num país dentro de outro país.[7]
O sistema do Gulag, que chegou a reunir 476 campos em diferentes cantos da URSS, constituía um Estado dentro do Estado, regulando diversos aspectos de um universo concentracionário que não teve precedentes, teve poucos imitadores efetivos (a despeito da terrível eficácia mortífera dos campos de concentração nazistas) e certo número de seguidores, sendo os mais efetivos exemplos os sistemas ‘correcionais’ da Coréia do Norte e de Cuba (o do Khmer Vermelho, no Camboja, era mais o de uma ‘máquina de matar’, como tinha sido o caso mais extremo de todos, o nazista).
De acordo com os próprios dados do sistema,[8] o número de prisioneiros passou de cerca de 200 mil no início dos anos 1930 para 2,5 milhões no momento da morte de Stalin. O turnover, obviamente, foi muito maior: muitos prisioneiros morreram, alguns escaparam (poucos), vários eram incorporados ao Exército Vermelho ou à própria administração dos campos (cruel ironia). As ‘taxas de desaparecimentos’ refletiram também as terríveis condições de vida na URSS: passou-se de 4,8% de mortos em 1932 para 15,3% no ano seguinte, o que indica o impacto da epidemia de fome induzida pela coletivização stalinista da agricultura, que matou 6 ou 7 milhões de cidadãos ‘livres’ igualmente. A taxa de mortos sobe para seu máximo de 25% em 1942, para declinar para menos de 1% nos anos 1950, quando o sistema ‘industrial’ do Gulag já tinha sido instalado em sua plenitude.
No total, 2,7 milhões de cidadãos soviéticos podem ter morrido no sistema do Gulag, o que de todo modo representa apenas uma pequena parte dos desaparecidos durante todo o regime stalinista e uma parte ainda menor dos sacrificados pelo sistema soviético.[9] Os autores do Livro Negro do Comunismo estimam em 20 milhões as vítimas do regime soviético, o que pode ser uma indicação plausível da realidade (outros colocam entre 12 e 15 milhões de mortos). Vários historiadores se aproximam da cifra de 28 milhões de cidadãos soviéticos para o número total de ‘clientes’ de todo o sistema concentracionário soviético, em sua longa história de ‘terror vermelho.[10]
O Gulag foi a face mais visível da tragédia soviética, mas certamente não a única ou exclusiva. O terrível legado do socialismo do século 20 comporta ainda sua modalidade chinesa: com efeito, se outros experimentos centralizadores e concentradores no domínio econômico também produziram pequenas e grandes catástrofes – como os sistemas fascistas do entre guerras, bem como o próprio socialismo soviético, convertido em escravismo moderno desde o início da industrialização forçada de Stalin – ao longo de suas histórias respectivas, poucas aventuras humanas igualaram o monumental fracasso econômico e social que foi o experimento socialista chinês, em sua modalidade específica de maoísmo delirante.
Os historiadores – e os demógrafos – ainda não possuem os números definitivos, mas é provável que a trajetória maoísta tenha provocado algo como 50 a 60 milhões de vítimas, o que faz de Mao Tsé-Tung o campeão absoluto no registro das mortandades provocadas pelo homem ao longo do século 20, bem à frente de Hitler e de Stalin. Entre os mortos de fome e por canibalismo do “grande salto para a frente”, entre o final dos anos 1950 e começo dos 60, passando pelos assassinados e massacrados da revolução cultural, de meados dessa década, e todos os encarcerados e reprimidos do Gulag chinês ao longo de 30 anos, o maoísmo conseguiu drenar como poucas dinastias antigas as veias da sociedade chinesa.[11] Todavia, o Khmer Vermelho, no Camboja, pode ter sido responsável, proporcionalmente à população do país, por uma maior “produtividade” na eliminação de pessoas inocentes.

O que isso tem a ver com a responsabilidade dos intelectuais?
A compilação acima, de algumas estatísticas (apenas), sobre as experiências de exterminação de simples cidadãos – muitos, inclusive, comunistas sinceros, talvez sinceros demais – não precisaria ser feita se os cenáculos freqüentados pelos assim chamados intelectuais não fossem caracterizadas por dois comportamentos típicos de uma atitude ao mesmo tempo defensiva e evasiva: por um lado, se tenta diminuir o impacto desses terríveis processos de eliminação de cidadãos – ou seja, a violação repetida, continuada, extensiva, dos direitos humanos de milhões de pessoas; e, por outro, se assiste ao continuado esforço de rejeitar as economias de mercado e as democracias burguesas, edulcorando (ou melhor, deformando) a verdadeira história do socialismo no século 20 (provavelmente ainda agora, no século 21). As duas reações devem ser entendidas, no contexto desta discussão, como uma tentativa de desculpar os ‘pais fundadores’ da doutrina, alegando os costumeiros desvios.
Não por outra razão o marxismo se encontra hoje em crise, e ela não é, simplesmente, derivada de diferenças de interpretação teórica em torno do “que Marx verdadeiramente quis dizer”, e sim em decorrência desse vínculo estrutural entre a sua doutrina e suas consequências práticas no século que se passou. Uma nova, e breve, visita, a Norberto Bobbio pode resumir a questão:

A crise atual não deriva de um erro de previsão, mas da constatação incontrovertível de um fato real: a falência catastrófica da primeira tentativa de realizar uma sociedade comunista em nome de Marx e do marxismo, ou então de Marx na companhia de Engels, seguido de Lênin e depois de Stalin no decurso de uma sucessão interpretada como uma filiação, ou derivação do mesmo pai. A comparação entre as igrejas tradicionais e a igreja comunista foi feita tantas vezes que parece uma banalidade ou uma perversidade entre adversários irredutíveis. Mas mesmo sob esse aspecto, isto é, sob o aspecto da verdade fundamentada num princípio de autoridade e de sucessivas autorizações de outras autoridades, é surpreendente. Existem aqueles que, em face de fatos reais, tremendamente perturbadores como Auschwitz, chegaram a falar da ‘falência de Deus’ (...). Por que, em face do gulag stalinista não se deveria falar da falência de Marx?[12]

Em outros termos, com base no registro de enormes violências cometidas pelos socialismos reais, em nome de Marx e Lênin, ao longo do século 20, que todos os supostos intelectuais conhecem, ou pelo menos deveriam necessariamente conhecer, parece, por um lado, inexplicável, e por outro lado, inaceitável, que os mesmos personagens que frequentam as mesmas academias que todos frequentamos, pretendam não apenas diminuir, minimizar, ou claramente ignorar a dimensão desses crimes, como pretendam, sem qualquer espírito crítico, sustentar as mesmas teses e propostas de organização da sociedade que provocaram as situações descritas acima.
Pode-se honestamente considerar a continuada defesa de equívocos históricos e políticos por parte desses acadêmicos como sendo derivada de um insuficiente conhecimento da história, ou, então, provocada por uma ignorância metodológica fundamental quanto ao modo de funcionamento econômico das sociedades – equívocos, diga-se de passagem, que a ‘economia política’ distorcida do marxismo contribui para alimentar – mas é mais difícil aceitar, obviamente, a postura daqueles que preferem deliberadamente ignorar essas evidências amplamente conhecidas e registradas nos melhores livros de história. No mínimo, se trata de miopia voluntária, no limite de um tipo de atitude intelectualmente desonesta e inaceitável.
Pode-se considerar, igualmente, que os ‘marxistas’ brasileiros – as aspas se devem a que poucos, atualmente, parecem ter lido Marx, como se depreende dos escritos primários que circulam em certos periódicos – jamais conheceram os socialismos reais (aliás, em rápido desaparecimento, a ponto, talvez, de justificar a criação de algum museu de antiguidades nessa área, para ajudar no esclarecimento dos mais jovens).[13] De fato, os acadêmicos mais jovens jamais tiveram contato direto com as realidades descritas aqui, posto que não conheceram qualquer tipo de socialismo e não podem, por isso mesmo, sequer imaginar que, por trás das belas consignas revolucionárias (emolduradas por alguns ícones tão falsos quanto desconhecidos, como o de Ché Guevara), se esconde um dos empreendimentos mais nefastos já conhecido na história da humanidade
Estes argumentos não se referem apenas à dimensão dos desastres econômicos e dos sofrimentos sociais infligidos a populações inteiras por uma ou duas gerações (e se supõe que isso seja por demais conhecido de todos, em vista das estantes vazias dos empórios socialistas). Deve-se mencionar, principalmente, os crimes cometidos contra os direitos humanos mais elementares, ou ainda aqueles situados no plano das misérias morais do socialismo: um regime de mentiras, de fraudes, de delações organizadas, de regimes policialescos e de mediocridades intelectuais como jamais ocorreu em muitas, talvez a maioria, das ditaduras ditas de direita denunciadas pelos mesmos acadêmicos que pretendem ainda defender a causa do socialismo marxista.
Em relação a esses regimes, que por boa parte do século 20 se estenderam a territórios e populações imensas durante praticamente três gerações, pode-se parafrasear a conhecida frase marxiana do 18 Brumário: doravante, se espera apenas que a história jamais se repita, sequer como farsa.
Não é correto que a ignorância do processo histórico possa ser invocada em defesa dos que continuam a exibir equívocos monumentais do tipo aqui discutido; em todo caso, um procedimento básico se aplica aos que fazem da academia o centro de suas atividades: a honestidade intelectual é a primeira exigência de quem trabalha com o registro dos fatos históricos e sua interpretação no plano das ciências humanas. Espero apenas que esta não seja mais uma frase vazia...

Brasília, 19 janeiro 2010.
Revisto: 3/02/2010.


[1] Cf. “Quale socialismo?”, In: Norberto Bobbio, Etica e Politica: scritti di impegno civile (Milano: Arnoldo Mondadori, 2009), p. 1306-1308; existe edição brasileira dessa obra: Qual Socialismo? (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987).
[2] Cf. Ralf Dahrendorf, Após 1989: Moral, Revolução e Sociedade Civil (São Paulo: Paz e Terra, 1995), conferência: “A responsabilidade pública dos intelectuais: contra o novo medo do esclarecimento” (27.11.1994); esclarecimento talvez deva ser traduzido como Iluminismo.
[3] Cf. Alexander Solzenitzyn, Lénine à Zurich (Paris: Seuil, 1975).
[4] Caberia, aliás, corrigir o título do último livro de Giovanni Arrighi: Adam Smith vai a Pequim; deve ser o contrário, posto que não ocorreu nenhuma mudança na postura do filósofo escocês, nem sua obra foi corrigida; os chineses é que caminharam em direção da Escócia.
[5] Os primeiros campos de concentração, para maior precisão, foram feitos pelos ingleses na guerra dos Boers, na África do Sul, mas tinham, em princípio, utilidade militar-estratégica.
[6] Citado por Paul Johnson, Tempos Modernos: o mundo dos anos 20 aos 80 (2ª ed.; Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1998), p. 35.
[7] Ver o livro de Anne Applebaum: Gulag: uma história dos campos de prisioneiros soviéticos (Rio de Janeiro: Ediouro, 2004).
[8] Segundo estatísticas da própria NKVD, que foi sucessora da Cheka e antecessora do KGB, informações consolidadas num apêndice ao livro de Applebaum, op. cit.
[9] Um número provavelmente maior foi sacrificado na fome epidêmica, em grande parte induzida por Stalin, no curso do violento processo de “deskulakização” conduzida na Ucrânia no início dos anos 1930; ocorreram cenas de canibalismo que depois seriam repetidas no “grande salto para a frente” da China (1958-1962).
[10] Ver Stéphane Courtois et alii (orgs.), Le Livre noir du communisme. Crimes, terreur, répression (Paris: Robert Laffont, 1997).
[11] Uma tentativa de balanço, não definitiva até abertura dos arquivos do regime comunista chinês e até trabalhos mais acurados dos demógrafos profissionais, do custo humano do experimento comunista na China foi efetuada por Jean-Louis Margolin, no capítulo “Chine: une longue marche dans la nuit”, In: Courtois, Le Livre noir du communisme, op. cit.
[12] Cf. Bobbio, Etica e Política, op. cit., p. 1374; ensaio: “Invito a rileggere Marx” (1993).
[13] Um exemplo da penúria de idéias – e também do excesso de impropérios – desferidos a propósito de uma simples resenha de um desses livros quer sequer mereceriam figurar numa biblioteca que poderia ser hipoteticamente classificada na estante do marxismo, pode ser encontrado em um artigo do autor que seguiu-se à resenha em questão: “Marxistas totalmente contornáveis” [Resenha de Jorge Nóvoa (org.): Incontornável Marx (Salvador/São Paulo: Unesp/UFBA, 2007)], Espaço Acadêmico (ano 7, n. 84, maio 2008, disponível: http://www.espacoacademico.com.br/084/84res_pra.htm); “Manifesto Comunista, ou quase...:  dedicado a “marquissistas” à beira de um ataque de nervos (a propósito de uma simples resenha)”, Espaço Acadêmico (ano 8, n. 85, junho de 2008; disponível: http://www.espacoacademico.com.br/085/85pra.htm).

Brasil: dificuldades economicas da transicao politica - PRA no Estoril Politica Forum

Uma foto quando de minha apresentação no Estoril Political Forum do último mês de junho.

O trabalho apresentado está aqui: 

3125. Brazil as a Failing State (or, is it already a Failed State?)”, Brasília, 12 June 2017, 15 p. Note of opinion drafted for the Estoril Political Forum, Panel Brazil, June 27, 2017. Divulgado no blog Diplomatizzando (26/06/2017; link: http://diplomatizzando.blogspot.pt/2017/06/brasil-existe-uma-crise-da-democracia.html).

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Perspectivas da politica externa em um Brasil em redefinicao (Encontro da ABRI) - Paulo Roberto de Almeida

Notas para apresentação-debate em mesa redonda do 5o. Encontro Nacional da ABRI, realizado em Belo Horizonte, em julho último.



Paulo Roberto de Almeida
Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, IPRI-Funag
Professor de Economia Política nos programas de mestrado e doutorado
em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).
 [Notas para mesa redonda; 5o. Encontro da ABRI; BH, 27/07/2017]


O que está em redefinição: o mundo ou o Brasil?
Recebo convite para falar das “Perspectivas da política externa brasileira em um mundo em redefinição”, em mesa redonda no quadro do quinto encontro nacional da ABRI, Associação Brasileira de Relações Internacionais, em Belo Horizonte. O título da mesa redonda se encaixa no tema geral do encontro: “Redefinindo a diplomacia em um mundo em transformação”. Esse tema geral é apresentado da seguinte maneira: “Há no ambiente internacional contemporâneo um desafio bastante óbvio para a atividade diplomática: a redefinição do relacionamento entre os Estados, à luz do elevado grau de incerteza associado à ascensão de diversos deles a novas posições de influência e protagonismo — em alguns casos, duradoura e consistente; em outros, uma trajetória mais errática, ambígua e ainda indefinida.” Suponho que o Brasil esteja nesse segundo caso, ou pelo menos assim pensaram os autores do texto de apresentação do encontro.
Minha primeira reação é considerar que a segunda parte do título da mesa redonda, a expressão “um mundo em redefinição”, constitui uma redundância ou uma tautologia. O mundo está sempre em redefinição, qualquer que seja o momento retido para falar a seu respeito, algumas vezes de forma mais pronunciada, em outras vezes de forma menos evidente, mas sempre em constante redefinição, pois esta é sua característica essencial, incontornável, aliás imutável. Tudo é movimento, diria um antigo filósofo grego, e assim deve continuar. As razões são perfeitamente conhecidas: dinâmicas e letargias econômicas; alternâncias, mudanças ou mesmo rupturas políticas, sobretudo nas democracias de mercado; mutações sociais e demográficas; tensões e conflitos entre Estados ou entre líderes políticos; tais são os elementos que compõem os ambientes nacionais, os cenários regionais, ou o sistema internacional de poderes reconhecidos. Tais cenários apresentam essa tendência, talvez irritante aos olhos dos conservadores, que é a de estar sempre mudando (algumas vezes para pior).
Em todo caso, se o mundo está ou não em redefinição, em determinadas fases ou momentos da história, isso pode ser um assunto de preocupações e afazeres acadêmicos, mas raramente o é para um diplomata, pois este toma o ambiente mutante dos sistemas regionais ou o do cenário internacional como um dado essencial para o seu trabalho analítico e de formulação de posições destinada a iluminar a tomada de decisões em sua esfera de atuação. Ou seja, longe de ser um dado secundário, essa tal de “redefinição do mundo” perpassa todo e qualquer ambiente próprio de trabalho no qual se exercem acadêmicos e diplomatas. Não há propriamente algo que possam fazer, acadêmicos ou diplomatas, a propósito dessas supostas redefinições do mundo, a não ser tentar entender, interpretar corretamente e indicar possíveis tendências em relação a “coisas” relativamente fora do seu alcance, no sentido em que seria vão esperar qualquer tentativa de influenciar a direção das mudanças esperadas, ou imprimir ao processo uma direção determinada. No caso do Brasil tal incapacidade parece evidente: o país consegue influenciar, se tanto, copas do mundo de futebol, algum desabastecimento de café (mas cada vez menos, pois já existem outros grandes fornecedores no mercado) e, agora, uma novidade “literária”: graças à Odebrecht, o Brasil figura com destaque no livro Guinness dos recordes de corrupção, hemisférica e mundial.
Prefiro, portanto, falar das perspectivas da política externa num Brasil em redefinição, pois é um fato que o Brasil se encontra em um governo de transição, embora ainda não saibamos bem para qual direção. Na verdade nem sabemos se teremos governo no próximo mês ou até o final do ano. E vamos fingir que nós, acadêmicos ou diplomatas, conseguimos exibir alguma inteligência na definição de perspectivas para a política externa num Brasil em redefinição. Vamos então ver o que um acadêmico disfarçado de diplomata teria a dizer sobre essa política externa nesse Brasil em transformação para algo desconhecido: seria para algo melhor, ajuste feito, crescimento de novo, ou algum desastre pela frente, desastre econômico, política delinquente?

O que é esta tal de redefinição do Brasil? Alguém prevê melhoras?
Admitindo-se que o Brasil é o país que necessita de “redefinições”, por ter permanecido atrasado durante muito tempo, vejamos quais seriam as perspectivas de uma política externa adequada às novas circunstâncias sob as quais o Brasil precisa necessariamente viver. Existem várias dimensões associadas a uma eventual política externa futura do Brasil, isto é, diferente da atual, sendo que algumas são impostas pela agenda internacional, outras derivadas das próprias opções e iniciativas brasileiras.
Eu começaria por estas últimas, pois como já sugerido é o Brasil que necessita de redefinições adotadas por vontade própria, sob o comando de seus próprios líderes e representantes setoriais, inclusive neste caso os responsáveis pela chancelaria e os decisores da política externa. Aplicando o princípio do first things first, comecemos pelo mais importante: a despeito de o maior atraso brasileiro ser mais exatamente mental e não propriamente material, temos de começar pelo que é factível fazer, e mudar mentalidades é algo muito difícil de acontecer. Sendo a modernização econômica o aspecto mais urgente a ser objeto de políticas decisivas de inserção do Brasil na economia global, isto significa abandonar todas as políticas introvertidas, protecionistas ou autárquicas adotadas nas últimas décadas, em especial no período lulopetista (na verdade, algumas dessas atitudes nos acompanham desde sempre, apenas amenizadas temporariamente em raras fases de nosso processo de desenvolvimento).
O Mercosul, por exemplo, retrocedeu tremendamente durante o período lulopetista, ao longo do qual as autoridades políticas no mais alto escalão consentiram em aceitar as salvaguardas ilegais impostas pela Argentina e até tiveram a petulância de requerer a concordância dos exportadores brasileiros para tais práticas ilegais. Na política comercial, de modo geral, o Brasil se encontra hoje na incômoda e vergonhosa posição de se ver condenado num painel da OMC por ter infringido normas básicas nessa área, tanto em matéria de subsídios à produção, quanto no que tange discriminação à oferta estrangeira, ou seja, desrespeito ao princípio do tratamento nacional. Na esfera dos investimentos estrangeiros, os governos lulopetistas recusaram ratificar todos os acordos de promoção e proteção recíproca de investimentos (APPIs) que o Brasil havia voluntariamente aceito, vários deles, aliás, assinados pelo mesmo chanceler do lulopetismo em sua primeira encarnação como ministro do governo Itamar Franco, num outro período de transição.
Em várias esferas, o Brasil lulopetista conseguiu enorme projeção internacional para o seu governo, o que lhe trouxe imenso prestígio externo e grande aprovação por parte da academia. Acadêmicos gramscianos, ou mesmo desprovidos de qualquer base ideológica preferencial, são propensos a aceitar acriticamente certos gestos simbólicos de caneladas no império, e de resistência simulada a projetos de potências hegemônicas. A militância, de seu lado, ficou entusiasmada com todas essas alianças bolivarianas feitas ao longo do período, com a formação de “parcerias estratégicas” com países supostamente identificados com projetos alternativos aos das antigas potências coloniais e com essa preferência por uma “nova geografia do comércio internacional”. Fazendo, entretanto, um balanço objetivo dos resultados efetivos dos grandes objetivos do lulopetismo diplomático – conquista de uma cadeira permanente no CSNU, reforço e ampliação do Mercosul, conclusão bem sucedida das negociações comerciais da Rodada Doha – o que emerge são rotundos fracassos em toda a linha, sem considerar aqui o lado criminoso de diversos projetos conduzidos com recursos do BNDES, sem que garantias apropriadas fossem oferecidas para diversos desses financiamentos geralmente feitos com perfeitas ditaduras e regimes corruptos (o lado negro do formidável ativismo externo do lulopetismo mafioso).

O que será a política externa no futuro imediato? Brilhante? Razoável?
Em resumo, o Brasil precisaria abandonar todo um capítulo de política econômica externa caracterizado por vários ismos anacrônicos: protecionismo, nacionalismo, isolacionismo, intervencionismo, que se somaram a diversos outros ismos tradicionais, como o patrimonialismo, o corporativismo, o fisiologismo, o nepotismo, o prebendalismo, o burocratismo, etc.
Nesse sentido, a demanda por ingresso na OCDE pode e deve ajudar muito nesse aggiornamento da política econômica, embora a tendência seja a de que os negociadores nacionais insistam em, tentem preservar o máximo das características atuais da economia brasileira, que é tudo aquilo que precisa realmente mudar num sentido mais liberal e globalizador. No plano da política global, aliás, não creio que se deva investir tempo, energia e recursos nessa pretensão de se conquistar uma cadeira permanente no CSNU: trata-se de um objetivo fútil, típico de quem se crê melhor do que realmente é. Quando, e se, a Carta da ONU for reformada, o Brasil parece ser um candidato natural a ocupar um lugar permanente, e nem precisaria fazer campanha para tal objetivo: a cadeira virá, quase que por inércia ou por ação da lei de gravidade.
No plano regional, essas alusões à liderança, geralmente autopropostas, são no mínimo ridículas, quando não inconvenientes, no limite prejudiciais à própria pretensão do país fazer da América do Sul um espaço econômico unificado, uma zona de paz e de segurança conectada fisicamente, um continente democrático e respeitador dos direitos humanos, partilhando mecanismos regulatórios comuns ou harmônicos entre si de maneira a explorar conjuntamente os imensos recursos de que dispõe o continente, em alimentação, energia, matérias primas, comunicações, enfim, uma ampla gama de bens e serviços ofertados e intercambiados segundo os velhos princípios do livre comércio e da abertura aos investimentos externos.
Mas pode a política externa do Brasil caminhar para tal revolução copernicana em seus fundamentos conceituais, em seus propósitos ambiciosos, em suas grandes linhas de atuação? Poder pode, ou poderia, se depender apenas de seus diplomatas, que são capazes de todas as mudanças que se revelarem parte do imperativo categórico determinado pelo Príncipe de plantão. Em outros termos, os diplomatas se adaptam a quaisquer ordens e instruções que emanem do Príncipe, e unicamente do Príncipe que os comande. Os diplomatas são assim.
Seria, no entanto, por demais esperar que surja, assim como que por encanto, um Príncipe iluminado, esclarecido, inteligente, corajoso, consciente da necessidade de abertura econômica, de liberalização comercial, que tome todas as iniciativas necessárias em prol da plena aceitação da globalização, o que requereria, antes de qualquer outra coisa, um desarme psicológico por parte das elites atrasadas do Brasil? Pode-se esperar que uma tal personalidade ideal, um estadista modernizador seja eleito por um desses golpes de sorte, por alguma astúcia da história, e empreenda o duro caminho do estabelecimento de plenas liberdades econômicas e transforme, por vera arte do convencimento, a superestrutura mental da sociedade brasileira? Registre-se que tal empreendimento exigiria, no mínimo, o desmantelamento de todo um arcabouço regulatório, que teima em amarrar os empresários, e os próprios trabalhadores, em grilhões burocráticos muito piores do que os do antigo cartorialismo português?
Mesmo que tal Príncipe existisse – o que já é uma dessas apostas que qualquer broker londrino não aceitaria por menos de que dez contra um – e fosse eleito por uma feliz conjunção de circunstâncias favoráveis, com tantos nomes horríveis circulando nas pesquisas de opinião, ele teria de haver-se, em primeiro lugar, com toda a fragmentação partidária, com um Congresso verdadeiramente representativo da sociedade brasileira, ou seja, corporativo ao extremo, disfuncional, além de disfuncional por causa dos muitos lobbies e grupos de interesse bastante fortes ali representados. Ele teria, ademais, de confrontar-se com outras fontes de poder, a maior parte delas comprometida com uma mentalidade anacrônica, favorável ao protecionismo, à introversão, a um nacionalismo rastaquera, em uma palavra, a mesma carga de atraso mental já referida.
Os demais grandes temas da agenda diplomática do Brasil não mudarão muito, ou praticamente nada. A política externa brasileira continuará seguindo o farol do multilateralismo principista além de todo o aparato conceitual do politicamente correto nos vários itens dessa agenda: direitos humanos, meio ambiente, não proliferação, cooperação ao desenvolvimento, preferência pelo chamado Sul global, com os Palops à frente, integração retórica na América do Sul, enfim toda a gama mais de transpiração do que de inspiração a que já estamos acostumados desde longos anos. Em uma palavra, o Brasil continuará a ser o que sempre foi: um país ricamente dotado em recursos naturais mas insuficientemente desenvolvido, lutando contra suas próprias contradições e limitações, mas também continuando a agitar os velhos fantasmas internacionais de sempre. Estes seriam: a assimetria nas relações internacionais – o que é um dado do sistema internacional; a desigualdade de representação nos organismos internacionais; a baixa disposição dos países avançados em matéria de acesso a tecnologias favoráveis ao desenvolvimento dos países em desenvolvimento; o monopólio nuclear das grandes potências e o seu total descompromisso com o desarmamento nuclear; enfim, temas e agendas que já fazem parte da retórica diplomática brasileira desde largo tempo.

Conclusões pouco conclusivas
Imaginemos, por um instante, totalmente  por acaso, que seria possível traçar uma política externa ideal, sem pretensões megalomaníacas, uma política engajada na construção de um país satisfeito consigo mesmo, sem angústias terceiro-mundistas ou projetos de grande potência, propenso a abrir-se a todos os vizinhos de maneira ampla e sem qualquer critério de reciprocidade, apenas acolhendo bens e serviços, trabalhadores, em bases unilaterais, de maneira generosa, um país apto a contribuir para a formação de um espaço econômico integrado, como seria teoricamente possível ocorrer se o Brasil fosse esse país dotado de uma política externa ideal. Mas esta é uma projeção utópica que não parece próxima de realizar-se no futuro previsível.
A única coisa que deveria realmente mudar, no âmbito mais geral das políticas públicas, mas envolvendo também a política externa, seria um compromisso inarredável com ampla abertura externa, em especial com as liberdades econômicas vinculadas ao exercício das atividades produtivas, expostas estas à concorrência externa. Mudará isto?
Não acredito! O Brasil, e sua política externa, é um país que preza um alto grau de soberania econômica, e orgulhoso de assim proceder, o que significa que continuará patinando no mesmo lugar pelo futuro previsível. Isso também nos garantirá um crescimento medíocre nos anos à frente.
Os diplomatas poderiam ajudar nessa tarefa de modernização mental das elites e da própria agenda brasileira de modernização globalizante? Não tenho certeza disso. Eles sempre foram, são e continuarão sendo educados no mesmo espírito do nacionalismo desenvolvimentista que caracteriza as elites brasileiras desde sempre. O que significa que eles continuarão submissos ao consenso nacional que é também o que emerge de Príncipes timoratos e concordantes com os interesses de suas elites gatopardianas.
O mundo, em maior ou menor transformação, seguirá o seu curso, ou seja, passando por constantes mudanças, sobretudo econômicas. O Brasil também seguirá o seu curso, que é o de progredir a passos pequenos, hesitantes, em direção a um futuro indefinido. Existem motivos de preocupação? Talvez, mas como já dizia Mario de Andrade em 1924: “progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade.”

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/06/2017; Em voo Brasília-Lisboa, 23-24/2017; Lisboa, 25-26/06/2017.