A propósito do debate sobre a corrupção dos "intelequituais", lembrei-me de um antigo artigo meu, publicado numa revista "esquerdista" (moderada), que deve ter deixado os seus leitores e colaboradores muito incomodados.
Um ano depois, minhas colaborações a essa revista cessaram, por decisão do comitê editorial.
Não só por esse artigo, mas por várias outras polêmicas, eu havia provocado demais os acadêmicos gramscianos.
O artigo era este aqui:
2103. “Sobre a responsabilidade dos intelectuais: devemos
cobrar-lhes os efeitos práticos de suas prescrições teóricas?”, Brasília, 19
janeiro 2010, 12 p. Argumentos de natureza política e histórica sobre a
falência do marxismo aplicado, elaborado com base no trabalho 2039: “Um
intercâmbio acadêmico sobre a responsabilidade do Intelectual”. Revisto em
3/02/2010. Espaço Acadêmico (vol. 9,
n. 105, fevereiro 2010, p. 149-159; ISSN: 1519-6186; link: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/9275/5252).
Relação de Publicados n 952.
O trabalho precedente, citado na ficha acima, é este aqui:
2039. “Um intercâmbio acadêmico sobre a responsabilidade do
Intelectual”, Brasília,
21 agosto 2009, 2 p. Intercâmbio com Antonio Ozai sobre Marx e os marxistas, a
propósito de seu post “Marx e os marxismos” (Blog do Ozai: http://antonio-ozai.blogspot.com/2009/06/marx-e-os-marxismos.html).
Circulado na lista Diplomaticas e postado em meu blog Diplomatizzando (21.08.2009; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2009/08/1302-um-intercambio-academico-sobre.html).
Serviu de base à elaboração do trabalho n. 2103: “Sobre a responsabilidade dos
intelectuais: devemos cobrar-lhes os efeitos práticos de suas prescrições
teóricas?”, Brasília, 19 janeiro 2010, 12 p. Argumentos de natureza política e
histórica sobre a falência do marxismo aplicado. Espaço Acadêmico (vol. 9, n. 105, fevereiro 2010, p. 149-159).
Transcrevo abaixo esse artigo:
Sobre a responsabilidade dos intelectuais
Devemos
cobrar-lhes os efeitos práticos de suas prescrições teóricas?
Paulo Roberto de Almeida
Aproveito para dizer logo o
que motiva este meu pequeno ensaio: deveriam intelectuais do século 19, como
Marx e Engels, ser considerados culpados (ou inocentes, segundo argumentam
alguns) pelo que sucedeu, no século 20, a sociedades tão diversas quanto a
Rússia, a China, Cuba ou Coréia do Norte? Ou seja, levam eles alguma culpa
pelos milhões de mortos provocados pelos experimentos socialistas em cada um
desses países (e em vários outros mais)? Estariam eles na origem do mal?
Interrompo para um breve parênteses:
permito-me sugerir aos que acreditam que esses ‘milhões de mortos’ são apenas
um ‘pequeno detalhe da história’ e que o socialismo é, a despeito dos ‘poucos erros’
cometidos’, uma boa coisa – posto que seus princípios fundadores, os de uma
sociedade sem classes, igualitária, livre do capitalismo, seriam ‘essencialmente
positivos’ –, que eles desistam de ler este ensaio aqui mesmo. Pessoas que
preferem ignorar fatos concretos do século 20 talvez não devam ser perturbadas
em suas crenças; elas tem todo o direito de manter as fantasias de seu mundo
imaginário. Não me dirijo a essas pessoas; apenas àquelas que não pretendem
esconder a realidade, e que sabem, objetivamente, que os socialismos reais
provocaram dezenas de milhões de mortos ao longo do século 20. Fecha
parênteses.
Volto a perguntar: podemos
concordar com aqueles que pretendem isentar os intelectuais pelas conseqüências
práticas que decorrem de suas doutrinas e de seus ensinamentos? Em outros
termos, deveríamos aderir ao velho mote que diz que a teoria é uma coisa, mas
que a prática é outra, muito diferente daquela? Em suma, vamos concordar com a
escusa de que só poderíamos ser considerados culpados por aquilo que fizermos,
objetivamente, não existindo a figura da ‘culpa intelectual’?
Levanto estas questões a
propósito de um debate, entrecortado, que mantive com um colega acadêmico, que me
disse que Marx não era responsável pelos mortos do Gulag, assim como Jesus
Cristo não poderia ser considerado responsável pelas cruzadas, pela Inquisição,
pelas perseguições aos heréticos, enfim, por todos os crimes cometidos em nome
da religião cristã ou da Igreja Católica.
Minha resposta, na época, foi
a de que, no primeiro caso, deveríamos, sim, considerar Marx culpado pelos
crimes cometidos em nome de sua doutrina, ao longo de um século 20
especialmente mortífero – no qual o fascismo e outras perseguições odiosas
também exibem sua cota de responsabilidade por vários milhões de mortos, mas em
escala inferior aos do socialismo de cunho marxista – mas que, no segundo caso,
as culpas objetivas precisariam ter sua ‘filiação’ traçada aos argumentos
usados pelos perpetradores desses crimes. Expliquei-me: se, por acaso, as
pregações de Jesus Cristo abrigassem qualquer incitação à morte de “desviantes”
– de qualquer tipo –, ele poderia, ou deveria, sim, ser responsabilizado por aqueles
perversidades apontadas; mas restaria provar essa vinculação de modo objetivo,
com provas documentais (e eu lançava o desafio, a qualquer pessoa, de encontrar
nos textos dos evangelhos alguma incitação aos fenômenos descritos acima). Esse
era o estado do debate, infelizmente interrompido, não por minha iniciativa,
mas que pretendo retomar agora.
Uma
visita rápida a Norberto Bobbio
Antes, contudo, de voltar aos
meus argumentos, permito-me citar um trecho de um dos ensaios mais conhecidos
do famoso jurista italiano: “Quale Socialismo?” (publicado originalmente em MondOperaio, a. 29, n. 5, dez. 1976, p.
55-63), do qual transcrevo (e traduzo do italiano) o seguinte trecho, irônico,
para dizer o mínimo:
Não gostaria de deixar passar em
silêncio uma outra tese...: a tese segundo a qual Marx não deve ser considerado
responsável pelas más aplicações da sua teoria (por exemplo, o stalinismo), não
mais do que Locke, Montesquieu ou Croce podem ser considerados responsáveis
pelas más formas do Estado representativo que temos sob nossos olhos. Me
surpreende que um estudioso sério... não leve em consideração que uma opinião
desse tipo conduz diretamente à tese, tão cara aos ‘evasores’, da
‘irresponsabilidade dos intelectuais’. Um intelectual pode sustentar qualquer
coisa: sempre é inocente.
Nietzsche pode ter escrito
perorações longas de um quilometro (somando fragmentos de duas ou três linhas
obsessivamente repetidas) em defesa do instinto contra a razão, da vontade de
potência contra a democracia pacífica, da moral dos senhores contra a dos
escravos, para desmascarar ‘a conjuração universal das manadas, contra os
pastores, animais predadores, solitários e cesarísticos’, mas o nazismo não tem
nada a ver com isso. Pareto pode ter tratado depreciativamente e diminuído a
burguesia do seu tempo por não ter sabido contrapor a violência contrarrevolucionária
à violência revolucionária, mas o fascismo está fora de questão. Hegel pode ter
escrito que o Estado é tudo e o indivíduo nada (‘Tudo o que o homem é, ele deve
ao Estado: apenas neste ele tem a sua essência’), mas aqueles, Gentile à
frente, que fizeram dele o precursor do Estado ético da memória fascista,
apenas divagaram, e o teórico da ética do Estado, sobretudo agora que tornou-se
o pai de Marx, é puro como um anjo.
Marx e seu amigo Engels
desmantelaram o Estado representativo, sustentaram que todo Estado, pelo
simples fato de ser Estado, é uma ditadura, que a passagem do Estado burguês ao
Estado proletário seria simplesmente a passagem de uma ditadura a outra, sempre
sustentaram que o importante era que se mudasse o sujeito histórico e tudo
teria corrido melhor, independentemente das formas (se entende jurídicas) sob
as quais o novo sujeito se teria ‘organizado’, e agora [1976] nos permitimos
nos surpreender pelo fato de que os Estados socialistas continuam a ser
ditaduras e que seus chefes se proclamam os únicos intérpretes do
marxismo-leninismo? Que Marx acreditasse de boa fé que a democracia proletária,
pelo simples fato de ser proletária, fosse mais democrática do que a burguesa,
e que assim estivesse na origem de um novo Estado que apressasse o processo de
extinção do Estado, não nos exime de observar que a única prova que ele teve à
sua disposição, as instituições da Comuna de Paris, eram muito fugazes para que
se pudesse construir uma teoria sobre elas; a história, até aqui, não lhe deu
razão.
Depois, não é de fato verdade
que Locke, Montesquieu e Croce tenham sido absolvidos. Por quem? Não,
certamente, pelos escritores marxistas. Com as obras anti-Locke, as anti-Montesquieu
(existe uma, inclusive, de Althusser) e as anti-Croce, chamados recorrentemente
de ideólogos da classe burguesa, de ‘lacaios’ da classe dominante, ou de porta-bandeiras
da reação, se poderia preencher toda uma estante de biblioteca. Aquilo que é
lícito aos marxistas não deveria ser lícito a escritores não marxistas com
respeito a Marx, a Engels ou a Lênin?
Muito cômodo, de fato muito cômodo,
separar as obras intelectuais da história que elas geraram e daquela que elas ajudaram
a gerar, mesmo pela via indireta, e colocá-las em uma espécie de status naturae incorruptae, em um estado
de perpétua inocência, não maculadas pela lama da história. Nós, pequenos,
pequeníssimos, somos ou não somos responsáveis pelo que escrevemos? Claro que
somos. E por que escreveríamos se não acreditássemos que alguém fosse ler? Nós,
portanto, somos responsáveis, e os grandes, que dispõem de uma audiência bem
mais vasta e duradoura, não o são?
No mesmo sentido vai a
observação crítica do sociólogo alemão Ralf Dahrendorf, numa conferência proferida na Columbia University, em1994, quando ele advertia
que “os intelectuais têm responsabilidade
pública. Onde eles se calam, as sociedades perdem seu futuro.”
Desvios
cristãos e marxistas: similares, semelhantes, comparáveis?
Pois bem, volto agora ao
debate supracitado sobre a responsabilidade dos intelectuais sobre eventuais
consequências de seus escritos e propostas. Um dos argumentos comumente usados
em meios acadêmicos para isentar os teóricos ‘fundacionais’ de qualquer responsabilidade
sobre o que fizeram seus seguidores a partir das teses originais, no caso os
crimes do socialismo no século 20, é o de que seria preciso diferenciar Marx dos marxismos. Ou seja, Marx, que
disse uma vez que não era ‘marxista’, não teria nada a ver com a obra prática
de seus seguidores, suas recomendações quanto à derrubada do poder da burguesia
e a implantação da ‘ditadura do proletariado’ não seriam absolutamente
consideradas uma causa direta dos totalitarismos que se reivindicaram de seu
nome no século passado.
A justificativa corre aproximadamente segundo esta
linha: da mesma forma que não podemos responsabilizar Jesus Cristo pelo que os
cristãos fizeram e fazem em seu nome, também seria absurdo identificar de forma
absoluta a teoria de Karl Marx com as práticas, e mesmo as interpretações
teóricas, dos seus seguidores. Em outros termos, não podemos ter certeza de que
aquilo que foi construído em nome do marxismo seria a expressão verdadeira da
obra marxiana. Uma justificativa derivada é a de que, como muitos disputam o
legado histórico, a tradição intelectual que a obra original representa, não se
poderia, por isso mesmo, vincular os malfeitos práticos que foram cometidos em
nome da doutrina ao formulador original das proposições.
A primeira dificuldade,
intelectual e prática, desse tipo de argumentação é a própria equiparação de
Karl Marx a Jesus Cristo: ela não é apenas simplória e desprovida de qualquer
equivalência histórica real, mas é profundamente enganosa quanto ao conteúdo
mesmo das mensagens de cada um. Senão vejamos.
Equiparar Cristo e Marx – de
maneira totalmente arbitrária e de uma forma completamente anacrônica do ponto
de vista da metodologia histórica – para, em seguida, desculpá-los, prévia e
automaticamente, de qualquer bobagem, besteiras ou mesmo crimes, que
seguidores, discípulos ou quaisquer outros indivíduos posteriores possam ter
cometido em nome da doutrina original, é uma operação no mínimo indevida, e no
limite desonesta intelectualmente. Cristo, ao que se sabe, é um personagem
histórico sobre o qual não temos fontes originais completas e isentas de
qualquer dúvida interpretativa, o que obviamente não é o caso de Marx, cidadão
com registros históricos disponíveis e obras publicadas em vida. Cristo, de seu
lado, não parece ter feito obra teórica ou empírica registrada diretamente, ou
seja, ele não foi autor de nenhum manuscrito, a não ser de parábolas,
ensinamentos, predicações e outras formas de transmissão oral de princípios,
valores, concepções, das quais tomamos conhecimento pelo registro indireto e
posterior de quatro evangelistas e alguns comentaristas esparsos, dos quais
apenas dois conviveram ou foram contemporâneos do personagem histórico.
Ou seja, no plano teórico, não
se poderia imputar diretamente a Jesus Cristo qualquer responsabilidade pelo
uso que seguidores fizeram dessas predicações, pois o próprio personagem não
guarda conexão direta, pelo menos registrada, com as fontes alegadas da
doutrina. Mas, ainda que se fizesse tal vinculação, seria preciso também provar,
no plano prático, que os crimes realmente cometidos em nome do cristianismo –
que seria o ‘marxismo’ dos cristãos – podem ser vinculados a pregações, normas,
projetos e programas que encontrariam sustentação na doutrina original; quais seriam
estes?: conversão forçada do ‘gentio’, eliminação de heréticos, perseguição e
tortura de ‘dissidentes’, censura ao pensamento e à expressão de outras
religiões, proibição de reuniões e movimentos organizados com o fito de
disseminar doutrinas julgadas em desacordo com a linha original, interdição de
obras expressando opiniões divergentes ou contrarias à ‘boa doutrina’ etc.
Quais são as ‘parábolas’ fundadoras desses crimes? Como e de onde citar?: “Cf.
Jesus Cristo, apud Marcos, Mateus...”?
O desafio aos que pretendem fazer esse tipo de
equiparação é significativo: pode-se, com alguma certeza histórica, imputar a
Cristo alguma, uma sequer, das barbaridades que seus discípulos e seguidores
fizeram em seu nome, em termos de massacres de heréticos, cruzadas contra os infiéis,
perseguição de desviantes? Ainda que não se saiba, ao certo, se os evangelistas
foram ou não fiéis às suas prescrições (de resto, esparsas) – que é o que se
poderia alegar em defesa de Marx, contra alguns ‘marxistas infiéis’ –, quais
seriam, de toda forma, os textos ou recomendações doutrinais que poderiam
sustentar aqueles ‘trabalhos práticos’ de cunho repressivo? Ao contrário, as
mensagens ‘transmitidas’ parecem padecer de certa ingenuidade humanitária e, sobretudo, exalam
recomendações que poderiam ser julgadas, por qualquer pessoa normal, como
excessivamente tolerantes ou ingênuas; aquela coisa de ‘oferecer a outra face’,
em lugar de simplesmente aplicar a lei do Talião, ou diretamente passar o
adversário na espada, como alguns recomendariam.
Existe, pois, um obstáculo ‘estrutural’ a esse tipo
de equiparação que marxistas ‘tolerantes’ pretendem fazer em direção de Marx ou
mesmo de Lênin (embora neste caso as desculpas se tornem ainda mais forçadas).
Não acredito que qualquer tipo de exegese – do tipo da que se poderia fazer com
o Alcorão, por exemplo – chegaria jamais a encontrar alguma filiação genética
ou mesmo filosófica entre o comportamento de cristãos intolerantes de séculos
posteriores e o conjunto de referências conceituais e prescrições de cunho
moral atribuíveis ao personagem original da doutrina cristã. A pretensa
similaridade de funções ou de papéis é inepta no plano conceitual e totalmente
incabível no plano da prática.
O
que Marx tem a ver com o socialismo do século 20?
Minha tese é muito simples: desculpar Marx pelo que fizeram os marxistas em seu
nome não é apenas ilógico, no plano formal, como é totalmente equivocado no
plano material, ou seja, no da história concreta da humanidade desde o final do
século 19 até os nossos dias. Marx não apenas assinou textos, como recomendou a
revolução proletária, a expropriação violenta da burguesia e a implantação de
uma ditadura do proletariado como forma de transição para o socialismo,
recomendações seguidas fielmente (e até agravadas) por Lênin, que mandou
simplesmente eliminar fisicamente todos os que pertenciam à classe inimiga,
independentemente de culpa individual.
Deve-se, em primeiro lugar, descartar como ridícula
a alegação de que Marx não pode ser responsabilizado pelo que ocorreu muito
depois que seus escritos foram elaborados e eventualmente circulados, num
contexto – o do século 19 – totalmente diferente daquele que prevaleceu no
século 20, dominado por guerras terríveis, deslanchadas por contradições
inter-imperialistas, segundo a conhecida interpretação leninista. O equívoco aqui
cometido consiste em pretender escusar o arquiteto pela obra mal feita dos
engenheiros que lhe seguiram, ou seja, isentar Marx, autor da primeira
concepção e do próprio plano das fundações, pela edificação viciada, mas
teoricamente justificada, perpetrada por Lênin e seguidores.
Não é possível, simplesmente, escusar Marx pela
autoria intelectual da obra prática posterior de seus discípulos, posto que, de
forma alguma, ele pretende se isentar, ele próprio, de uma responsabilidade já
anunciada desde a 11a. tese sobre Feuerbach. De resto, basta reler Miséria da Filosofia, para constatar o
desprezo com que ele trata Proudhon e os ‘socialistas utópicos’; Marx não tinha
qualquer respeito ou tolerância com aqueles que ele considerava seus adversários
intelectuais; aliás, ele os esmagaria pessoalmente se pudesse. Pode-se também
reler os textos dos bakuninistas sobre Marx e todas as diatribes inter-tribais
que dividiram, desde essa época, blanquistas, revolucionários profissionais ou
simples terroristas.
Marx era um homem de partido, e como tal atuou,
desde os tempos da Liga dos Comunistas, passando pela Primeira Internacional e
mais adiante, pela Comuna de Paris, até as últimas etapas de sua vida. Desde o Manifesto Comunista (1848) até Lutas de Classe na França (1871) e a Crítica do Programa de Gotha (1875), o
trabalho organizacional e as prescrições quanto a medidas imediatas e de médio
prazo para a constituição do Estado revolucionário, sob a ditadura do proletariado,
ocupam grande espaço em sua obra e são por demais evidentes para serem
descartadas como simples recomendações teóricas, sem conexão com o mundo real.
As vinculações são tão diretas que a paternidade foi reconhecida em primeira
mão por aqueles mesmos que pretendiam representar fielmente o seu pensamento, a
começar por Lênin.
O que fez Lênin para aplicar as ideias de Marx, e as suas...
Os discípulos tentaram seguir fielmente o que Marx
escreveu e recomendou e, portanto, a mesma responsabilidade incumbe a todos os
demais seguidores do credo, tanto no plano intelectual, como prático. Não é
preciso ter lido Solzenitzyn e seu ciclo sobre o Arquipélago do Gulag para constatar aquilo que os próprios
comunistas já sabiam desde os tempos de Lênin e Trotsky, pelo menos. Aliás, o
próprio Solzenitzyn traça, em seu Lênin
em Zurique, um poderoso retrato intelectual, e psicológico, do líder
exilado, revelando em termos claros as bases do que viria depois, como obra
intelectual e prática.
No terreno das ideias, os vínculos são evidentes.
Basta verificar o que se lia nas universidades soviéticas e chinesas ao tempo
da construção do socialismo: os pais fundadores, obviamente. Tudo isso é
história, agora. Mas o que se pensa que constitui leitura obrigatória, em
Havana ou Pyong-Yang?: Adam Smith, John
Stuart Mill, Alfred Marshall? Marx e Lênin ainda estão no currículo acadêmico
nesses lugares, assim como estiveram anteriormente nas economias precursoras.
Dessa forma, Marx deve ser plenamente responsabilizado pelos desastres econômicos
do socialismo, que fizeram tantas vítimas, talvez mais, do que os crimes
diretos de Stalin e Mao Tsé-Tung. As fomes e privações ocorridas na Ucrânia,
nos anos 1930, e na China, na passagem dos anos 1960, foram o resultado direto
das concepções econômicas originais, tanto quanto do voluntarismo de Stalin e
Mao, provavelmente os ditadores absolutos num século que conheceu vários outros
da mesma espécie.
Não se pode, contudo, isentar Lênin das barbaridades
stalinistas e maoístas do século 20. Muitos true
believers acreditam que Lênin teria sido um líder genial, e que apenas Stalin
foi o monstro assassino de velhos bolcheviques e o criador dos primeiros campos
de concentração claramente políticos. Na
verdade, a raiz de tudo, do Gulag, dos julgamentos fraudulentos, da crueldade
inaudita contra os ‘inimigos de classe’, está em Lênin, que deve ser
considerado como plenamente responsável pelo maior sistema escravocrata da era
moderna, por ele montado, mas incrementado e desenvolvido em dimensões
verdadeiramente ‘industriais’ por Stalin.
Lênin, o verdadeiro inventor
do terror moderno, apreciava Robespierre e sua ‘justiça expedita’: desde os
primeiros dias da revolução de 1917 ordenou à Cheka, a polícia política criada
para esmagar a ameaça ‘contra-revolucionária’, que fuzilasse sem hesitação não
só os opositores declarados do novo regime, mas também os representantes da
classe proprietária em geral, capitalistas, grandes comerciantes e
latifundiários, religiosos, enfim, os potenciais ‘inimigos de classe’. Criador
do Gulag, em sua primeira emanação, ele justificava assim o trabalho da Cheka:
“A Cheka não é uma comissão de investigação nem um tribunal. É um órgão de luta
atuando na frente de batalha de uma guerra civil. Não julga o inimigo:
abate-o... Nós não estamos lutando contra indivíduos. Estamos exterminando a
burguesia como uma classe. A nossa primeira pergunta é: a que classe o
indivíduo pertence, quais são suas origens, criação, educação ou profissão?
Estas perguntas definem o destino do acusado. Esta é a essência do Terror
Vermelho.”
Stalin se encarregou de
aplicar sistematicamente as recomendações de Lênin, e o fez de forma completa, começando
por incorporar como ‘clientes’ da máquina de terror administrada por ele os
seus próprios colegas de partido. A amplitude da repressão, ampliada e
desenvolvida no seu mais alto grau no Gulag de Stalin, justifica que apliquemos
a este a categoria de genocídio, noção que costuma estar associada apenas aos
terríveis experimentos raciais nazistas, antes e durante a Segunda Guerra
Mundial. Independentemente de suas funções ‘didáticas’, de intimidação direta e
aberta contra a própria população da União Soviética, o Gulag teve um
importante papel econômico na história do socialismo naquele país, chegando a
representar, a produção de um terço do seu ouro, muito do carvão e da madeira e
grandes quantidades de outras matérias-primas. Os prisioneiros passaram a
trabalhar em qualquer tipo de indústria, vivendo num país dentro de outro país.
O sistema do Gulag, que chegou
a reunir 476 campos em diferentes cantos da URSS, constituía um Estado dentro
do Estado, regulando diversos aspectos de um universo concentracionário que não
teve precedentes, teve poucos imitadores efetivos (a despeito da terrível
eficácia mortífera dos campos de concentração nazistas) e certo número de
seguidores, sendo os mais efetivos exemplos os sistemas ‘correcionais’ da
Coréia do Norte e de Cuba (o do Khmer Vermelho, no Camboja, era mais o de uma ‘máquina
de matar’, como tinha sido o caso mais extremo de todos, o nazista).
De acordo com os próprios
dados do sistema, o número de prisioneiros
passou de cerca de 200 mil no início dos anos 1930 para 2,5 milhões no momento
da morte de Stalin. O turnover,
obviamente, foi muito maior: muitos prisioneiros morreram, alguns escaparam
(poucos), vários eram incorporados ao Exército Vermelho ou à própria
administração dos campos (cruel ironia). As ‘taxas de desaparecimentos’
refletiram também as terríveis condições de vida na URSS: passou-se de 4,8% de
mortos em 1932 para 15,3% no ano seguinte, o que indica o impacto da epidemia
de fome induzida pela coletivização stalinista da agricultura, que matou 6 ou 7
milhões de cidadãos ‘livres’ igualmente. A taxa de mortos sobe para seu máximo
de 25% em 1942, para declinar para menos de 1% nos anos 1950, quando o sistema
‘industrial’ do Gulag já tinha sido instalado em sua plenitude.
No total, 2,7 milhões de
cidadãos soviéticos podem ter morrido no sistema do Gulag, o que de todo modo
representa apenas uma pequena parte dos desaparecidos durante todo o regime
stalinista e uma parte ainda menor dos sacrificados pelo sistema soviético.
Os autores do Livro Negro do Comunismo estimam em 20 milhões as vítimas
do regime soviético, o que pode ser uma indicação plausível da realidade (outros
colocam entre 12 e 15 milhões de mortos). Vários historiadores se aproximam da
cifra de 28 milhões de cidadãos soviéticos para o número total de ‘clientes’ de
todo o sistema concentracionário soviético, em sua longa história de ‘terror
vermelho.
O Gulag foi a face mais
visível da tragédia soviética, mas certamente não a única ou exclusiva. O
terrível legado do socialismo do século 20 comporta ainda sua modalidade
chinesa: com efeito, se outros experimentos
centralizadores e concentradores no domínio econômico também produziram
pequenas e grandes catástrofes – como os sistemas fascistas do entre guerras,
bem como o próprio socialismo soviético, convertido em escravismo moderno desde
o início da industrialização forçada de Stalin – ao longo de suas histórias
respectivas, poucas aventuras humanas igualaram o monumental fracasso econômico
e social que foi o experimento socialista chinês, em sua modalidade específica
de maoísmo delirante.
Os
historiadores – e os demógrafos – ainda não possuem os números definitivos, mas
é provável que a trajetória maoísta tenha provocado algo como 50 a 60 milhões
de vítimas, o que faz de Mao Tsé-Tung o campeão absoluto no registro das
mortandades provocadas pelo homem ao longo do século 20, bem à frente de Hitler
e de Stalin. Entre os mortos de fome e por canibalismo do “grande salto para a
frente”, entre o final dos anos 1950 e começo dos 60, passando pelos assassinados
e massacrados da revolução cultural, de meados dessa década, e todos os
encarcerados e reprimidos do Gulag chinês ao longo de 30 anos, o maoísmo
conseguiu drenar como poucas dinastias antigas as veias da sociedade chinesa.
Todavia, o Khmer Vermelho, no Camboja, pode ter sido responsável,
proporcionalmente à população do país, por uma maior “produtividade” na
eliminação de pessoas inocentes.
O que isso tem a ver com a responsabilidade dos intelectuais?
A compilação acima, de algumas
estatísticas (apenas), sobre as experiências de exterminação de simples
cidadãos – muitos, inclusive, comunistas sinceros, talvez sinceros demais – não
precisaria ser feita se os cenáculos freqüentados pelos assim chamados
intelectuais não fossem caracterizadas por dois comportamentos típicos de uma
atitude ao mesmo tempo defensiva e evasiva: por um lado, se tenta diminuir o
impacto desses terríveis processos de eliminação de cidadãos – ou seja, a
violação repetida, continuada, extensiva, dos direitos humanos de milhões de
pessoas; e, por outro, se assiste ao continuado esforço de rejeitar as
economias de mercado e as democracias burguesas, edulcorando (ou melhor,
deformando) a verdadeira história do socialismo no século 20 (provavelmente
ainda agora, no século 21). As duas reações devem ser entendidas, no contexto
desta discussão, como uma tentativa de desculpar os ‘pais fundadores’ da
doutrina, alegando os costumeiros desvios.
Não por outra razão o marxismo
se encontra hoje em crise, e ela não é, simplesmente, derivada de diferenças de
interpretação teórica em torno do “que Marx verdadeiramente quis dizer”, e sim
em decorrência desse vínculo estrutural entre a sua doutrina e suas
consequências práticas no século que se passou. Uma nova, e breve, visita, a
Norberto Bobbio pode resumir a questão:
A crise atual não deriva de um
erro de previsão, mas da constatação incontrovertível de um fato real: a
falência catastrófica da primeira tentativa de realizar uma sociedade comunista
em nome de Marx e do marxismo, ou então de Marx na companhia de Engels, seguido
de Lênin e depois de Stalin no decurso de uma sucessão interpretada como uma
filiação, ou derivação do mesmo pai. A comparação entre as igrejas tradicionais
e a igreja comunista foi feita tantas vezes que parece uma banalidade ou uma
perversidade entre adversários irredutíveis. Mas mesmo sob esse aspecto, isto
é, sob o aspecto da verdade fundamentada num princípio de autoridade e de
sucessivas autorizações de outras autoridades, é surpreendente. Existem aqueles
que, em face de fatos reais, tremendamente perturbadores como Auschwitz,
chegaram a falar da ‘falência de Deus’ (...). Por que, em face do gulag
stalinista não se deveria falar da falência de Marx?
Em outros termos, com base no registro de enormes violências
cometidas pelos socialismos reais, em nome de Marx e Lênin, ao longo do século
20, que todos os supostos intelectuais conhecem, ou pelo menos deveriam
necessariamente conhecer, parece, por um lado, inexplicável, e por outro lado,
inaceitável, que os mesmos personagens que frequentam as mesmas academias que
todos frequentamos, pretendam não apenas diminuir, minimizar, ou claramente
ignorar a dimensão desses crimes, como pretendam, sem qualquer espírito
crítico, sustentar as mesmas teses e propostas de organização da sociedade que
provocaram as situações descritas acima.
Pode-se honestamente considerar a continuada defesa
de equívocos históricos e políticos por parte desses acadêmicos como sendo
derivada de um insuficiente conhecimento da história, ou, então, provocada por uma
ignorância metodológica fundamental quanto ao modo de funcionamento econômico
das sociedades – equívocos, diga-se de passagem, que a ‘economia política’
distorcida do marxismo contribui para alimentar – mas é mais difícil aceitar,
obviamente, a postura daqueles que preferem deliberadamente ignorar essas
evidências amplamente conhecidas e registradas nos melhores livros de história.
No mínimo, se trata de miopia voluntária, no limite de um tipo de atitude
intelectualmente desonesta e inaceitável.
Pode-se considerar, igualmente, que os ‘marxistas’
brasileiros – as aspas se devem a que poucos, atualmente, parecem ter lido
Marx, como se depreende dos escritos primários que circulam em certos
periódicos – jamais conheceram os socialismos reais (aliás, em rápido
desaparecimento, a ponto, talvez, de justificar a criação de algum museu de
antiguidades nessa área, para ajudar no esclarecimento dos mais jovens). De
fato, os acadêmicos mais jovens jamais tiveram contato direto com as realidades
descritas aqui, posto que não conheceram qualquer tipo de socialismo e não
podem, por isso mesmo, sequer imaginar que, por trás das belas consignas
revolucionárias (emolduradas por alguns ícones tão falsos quanto desconhecidos,
como o de Ché Guevara), se esconde um dos empreendimentos mais nefastos já
conhecido na história da humanidade
Estes argumentos não se referem apenas à dimensão
dos desastres econômicos e dos sofrimentos sociais infligidos a populações
inteiras por uma ou duas gerações (e se supõe que isso seja por demais
conhecido de todos, em vista das estantes vazias dos empórios socialistas). Deve-se
mencionar, principalmente, os crimes cometidos contra os direitos humanos mais
elementares, ou ainda aqueles situados no plano das misérias morais do
socialismo: um regime de mentiras, de fraudes, de delações organizadas, de
regimes policialescos e de mediocridades intelectuais como jamais ocorreu em
muitas, talvez a maioria, das ditaduras ditas de direita denunciadas pelos
mesmos acadêmicos que pretendem ainda defender a causa do socialismo marxista.
Em relação a esses regimes,
que por boa parte do século 20 se estenderam a territórios e populações imensas
durante praticamente três gerações, pode-se parafrasear a conhecida frase
marxiana do 18 Brumário: doravante,
se espera apenas que a história jamais se repita, sequer como farsa.
Não é correto que a ignorância
do processo histórico possa ser invocada em defesa dos que continuam a exibir
equívocos monumentais do tipo aqui discutido; em todo caso, um procedimento
básico se aplica aos que fazem da academia o centro de suas atividades: a honestidade intelectual é a primeira exigência de
quem trabalha com o registro dos fatos históricos e sua interpretação no plano
das ciências humanas. Espero apenas que esta não seja mais uma frase vazia...
Brasília, 19 janeiro 2010.
Revisto: 3/02/2010.
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