Para
Flavio Gordon, a inteligência de esquerda, que apoia o PT, também deveria
responder pela corrupção ocorrida nos governos petistas
‘Os intelectuais se tornaram cúmplices do
poder’, afirma antropólogo
José
Fucs, O Estado de S. Paulo, 02
Setembro 2017
O
antropólogo social carioca Flavio Gordon, de 38 anos, já apoiou o PT e esteve
até na posse de Lula em Brasília, em 2003. Nos últimos anos, dizendo-se
decepcionado com as práticas do partido no poder e incensado pelas ideias de
pensadores conservadores, como o filósofo e cientista político alemão Eric
Voegelin e o filósofo brasileiro Olavo de Carvalho, Gordon deu uma guinada
ideológica radical para a direita. Em seu novo livro A Corrupção da Inteligência
– Intelectuais e Poder no Brasil (Ed. Record), ele analisa como a esquerda
brasileira conquistou a hegemonia na área cultural e faz uma crítica
contundente ao papel submisso da intelectualidade nos governos petistas. Em
entrevista ao Estado, Gordon diz que os intelectuais de esquerda “se tornaram
cúmplices do poder” e também devem ser responsabilizados pelos desvios
ocorridos nos governos petistas.
O
antropólogo Flavio Gordon, autor do livro 'A Corrupção da Inteligência' Foto:
Wilton Junior/Estadão
Para começar, o senhor poderia dizer a que
exatamente se refere no livro ao falar dos “intelectuais”? Quem se enquadra
nessa categoria?
Uso
o termo “intelectual” em dois sentidos, um mais direto e outro mais crítico. O
sentido mais direto baseia-se no conceito adotado por Thomas Sowell,
intelectual e economista americano. No livro Intelectuais e Sociedade, ele
inclui nessa categoria, sem qualquer juízo de valor, todos os que vivem das palavras,
que se comunicam com o público, a “classe falante”. São professores e
estudantes universitários, principalmente das chamadas humanidades,
jornalistas, escritores, críticos, pessoas que lidam com a formação da opinião
pública. O sentido mais crítico, no qual me concentrei, é o de Antonio Gramsci,
o ideólogo do Partido Comunista Italiano, que vê o intelectual mais no sentido orgânico,
como aquele que exerce uma influência política em nome de um determinado
partido, que expressa mais ou menos os interesses da classe que ele pretende
representar. O Gramsci ampliou o conceito de intelectual e incluiu artistas e
influenciadores de opinião. Para ele, qualquer uma pode ser um intelectual e
contribuir para reforçar uma determinada visão política e ideológica na
sociedade. No livro, eu uso também o termo “inteligência” em dois sentidos
ambivalentes. Pode significar tanto a “classe” dos intelectuais, quando se
aproxima do conceito russo de inteligentsia, como um atributo individual.
Quando o senhor fala em “corrupção dos
intelectuais” o que quer dizer com isso?
Estou
me referindo a um processo em que os intelectuais abdicam de sua função
primordial, de compreender e explicar a realidade, e querem interferir nos
acontecimentos, em especial nos campos político e social. O problema não é os
intelectuais se posicionarem politicamente. Isso sempre aconteceu, é natural. O
grande problema é conceber a atividade intelectual exclusivamente como militância
política. Um autor em que me baseio muito para criticar essa postura é o
francês Julien Benda. Ele escreveu um livro clássico em 1927 sobre isso,
intitulado A Traição dos Intelectuais, que teve muita influência na minha
formulação.
Na prática, como esse fenômeno se
manifestou no Brasil?
Depois
da vitória do Lula, em 2002, os intelectuais, que tradicionalmente assumem um
papel crítico em relação aos governos, se tornaram cúmplices do poder. A partir
do momento que o PT dominou a máquina estatal, o “aparelhamento” se
intensificou na área cultural. Houve um processo de “instrumentalização” da
cultura, em função dos interesses partidários, nas universidades, editoras, redações
de jornais, na chamada indústria cultural como um todo. Muitos intelectuais
tornaram-se meros reprodutores do discurso oficial do partido e do governo.
Outros ficaram em silêncio, adotaram uma postura de cumplicidade muda, com
receio de sofrer represálias, ser mal vistos, prejudicar seus ciclos de
relações. Foi um triste espetáculo.
O senhor pode citar um exemplo dessa
“promiscuidade” dos intelectuais com o poder no País?
O
caso do impeachment da Dilma foi escandaloso. Havia uma posição quase unânime
na academia, principalmente nas ciências humanas, contrária ao impeachment da
Dilma Rousseff. Tivemos até reitores de universidades federais se aproveitando
de seu papel institucional para tomar posição contrária ao impeachment, de uma
maneira claramente partidária e ideológica. Houve professors universitários de
destaque chegando a comparar o impeachment da Dilma com o nazismo. O intelectual,
o estudioso, tem de saber que uma coisa não teve nada a ver a outra. Se ele
está disposto a sacrificar a própria reputação, a própria credibilidade,
falando uma coisa dessas, é porque realmente a inteligência dele já está
bastante corrompida.
Historicamente, de que forma se iniciou
esse processo no País? Como se criaram as condições para que isso acontecesse?
A
partir da década de 1960, começou a haver uma ocupação de espaço no modelo
gramsciano, que prega a realização de uma revolução cultural antes da revolução
política. A ideia é que antes de se tomar poder do Estado deve se preparar o
terreno para quando os comunistas chegarem ao poder. Isso aconteceu nas
universidades, nas editoras e também nas redações dos jornais. Criou-se todo um
mecanismo de seleção de pessoas e de prestígios baseado nessa ideia de
afinidade político-ideológica de esquerda. Passou-se a associar qualquer
intelectual que não fosse de esquerda à ditadura. O pensamento conservador,
liberal, foi sendo gradativamente banido, tido como não legítimo. A direita no Brasil
se transformou num espantalho, numa fantasmagoria.
Até
a década de 1950, isso não ocorria. Existia um debate profundo, até violento,
entre grandes intelectuais brasileiros, das mais diversas orientações
políticas, inclusive nos jornais. As discussões eram públicas. Hoje, na
universidade, as opiniões são quase homogêneas. Mesmo que as pessoas não
concordem com essa visão, elas acabam não se manifestando para não ter
problemas.
Como o PT entra nisso?
Essa
influência crescente do Gramsci no Brasil acabou provocando a saída de membros
do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que não concordavam com a visão soviética
de Luis Carlos Prestes, que era o grande líder da sigla. Muitos dos
intelectuais que introduziram Gramsci no Brasil depois foram fazer parte do PT,
no final da década de 1970 e começo da década de 1980, como os editores da
Civilização Brasileira, os tradutores Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho,
que morreu há pouco tempo, cuja participação na fundação do PT foi fundamental.
Então, o PT já nasceu mais ou menos nesse contexto, de mudança de postura de
integrantes do Partido Comunista para uma visão mais cultural. Aí, muito antes
de chegar ao poder, com a eleição do Lula, o PT já tinha conquistado essa
hegemonia cultural, como preconizava Antonio Gramsci. Quando o PT chegou ao
poder, foi quase como uma coisa inevitável. Toda a narrativa era “finalmente
chegou o Partido dos Trabalhadores”, “o encontro do Brasil consigo mesmo”,
"a festa da democracia". Já havia todo um exército de intelectuais,
jornalistas, formadores de opinião criando essa narrativa, preparando a
sociedade para receber o PT. Quando o partido conseguiu chegar ao poder do
Estado, já com a hegemonia cultural, foi muito mais complicado tirá-lo de lá.
No livro, o senhor diz que, por causa
dessa postura, os intelectuais que sustentavam o PT também deveriam ser
responsabilizados pelo que aconteceu nos governos petistas. Faz sentido culpá-los
pelo envolvimento do partido em atos de corrupção?
Evidentemente,
não digo que haja uma relação direta entre os políticos do PT envolvidos em
corrupção e os intelectuais que os apoiam. O vínculo dos intelectuais com os
acontecimentos se dá pela forma como eles abordam ainda hoje a corrupção
praticada pelos integrantes do partido. O PT foi a única agremiação que tinha
por trás um exército de “corruptos intelectuais”, como eu os chamo, que lhe
dava respaldo cultural e intelectual. Foi uma corrupção respaldada pela
ideologia, a serviço de uma causa, em vez da corrupção tradicionalmente
praticada no País. Quando você tem uma justificativa moral para o seu delito,
ele tende a ser ainda mais grave, a se espalhar e a atrair mais adeptos.
A corrupção dos intelectuais nos governos do PT foi respaldada
pela ideologia, estava a serviço de uma causa
Até que ponto os intelectuais tiveram um
papel tão relevante na ascensão do Lula e do PT, como o senhor diz?
O
poder cultural é de muito longo prazo. Há o poder econômico, o político, o
militar e o cultural. Apesar de menos impactante de imediato, no longo prazo é
o poder intelectual que vai moldando o imaginário das pessoas, construindo as
narrativas, sedimentando as emoções e os sentimentos das pessoas. Então, o
processo de conquista do poder pelo PT foi muito de longo prazo. Isso começou
com um círculo pequeno de intelectuais, quando as ideias do Gramsci começaram a
chegar para valer no Brasil, nos final dos anos 1960, bem antes de o PT surgir.
Aos poucos, a coisa foi se espalhando e atingindo aquelas pessoas que estão na
periferia da academia, que se formaram, mas não seguiram carreira acadêmica, como
jornalistas e publicitários, que são muito suscetíveis à influência desses
medalhões acadêmicos. A partir daí, as ideias começaram a circular através
desses mediadores e foram chegando nos valores, na indústria cultural, na
televisão. Foi isso que permitiu ao PT gozar durante muito tempo de certa imunidade
de críticas. O PT era tratado até pouco tempo atrás como o partido da ética. Em
vários momentos, criticar o Lula era algo visto como preconceito de classe, de
região. Trata-se de um mecanismo supereficiente de silenciar as críticas e de
proteção aos políticos petistas.
Agora, o senhor afirma que sem o apoio dos
intelectuais o Lula e o PT não teriam chegado aonde chegaram. Não há certo
exagero nessa visão?
Acredito
que não, porque é justamente isso que cria a imagem mítica do Lula, em
contradição com a realidade dos fatos. É isso que faz com que exista uma
militância disposta a segui-lo, porque tem toda uma camada de mistificação,
criada pelos intelectuais, pelos agentes culturais, impedindo as pessoas de visualizar
a realidade. Só isso explica que, nesta altura do campeonato, o Lula ainda
tenha algum capital político. Se fosse qualquer outro, que não se beneficiasse
dessa hegemonia cultural, já estaria liquidado.
Eu
costumo usar o exemplo do Demóstenes Torres, do DEM, que era um nome
conservador. Depois que se revelou aquele escândalo dele, da ligação com o
Carlinhos Cachoeira, aquela coisa toda, a carreira do homem simplesmente
acabou. Ninguém saiu na rua para defender o Demóstenes Torres. Não houve
intelectuais, jornalistas, artistas defendendo o Demóstenes. Isso é que chamo
de poder cultural, para manter os cargos de poder, promover a mistificação dos
políticos do partido. Sem isso, um partido não se mantém durante muito tempo no
poder.
O senhor não está sobrevalorizando o papel
dos intelectuais no PT?
Um
dos insights que eu tive para escrever o livro foi tratar o PT não como Partido
dos Trabalhadores, mas como Partido dos Intelectuais. Para mim, a base do PT
são os intelectuais. O PT nunca teria chegado às dimensões que chegou sem o
apoio dos intelectuais. Houve o movimento sindicalista, mas se o PT fosse só
isso teria sido um fenômeno restrito. Tanto que a base que sobrou hoje, depois
de o PT virar um partido relativamente popular, durante um período efêmero na
sua história, foram os intelectuais, os acadêmicos, os universitários marxistas
e gramscianos. Na verdade, o reduto do PT está na intelectualidade, na
inteligência de esquerda brasileira. Inclusive, quando o PT surgiu, gabava-se muito
disso.
Esse grupo que o senhor menciona, apesar
de muito ativo politicamente, sempre foi muito pequeno. Como conseguiu alcançar
esses resultados?
Há
um grupo mais ativo, doutrinário, que é pequeno, mas muito bem posicionado. Há
também os medalhões acadêmicos nas principais universidades federais, que usam
suas posições para fortalecer essa hegemonia. Finalmente, há o grupo dos que se
acomodam por causa desse mecanismo de hegemonia de que eu falei. Ele não se
envolve no processo de maneira consciente, para que o deixem O PT nunca teria
chegado às dimensões que chegou sem o apoio dos intelectuais em paz, para que
possa seguir sua carreira acadêmica sem percalços, porque se não fizer isso vai
sofrer muita pressão. No livro O Poder
dos Sem Poder, o escritor e intelectual tcheco Václav Havel desenvolve o
conceito do sistema pós-totalitário, num contexto que a União Soviética e os
países satélites estão iniciando um processo de abertura. Mas mesmo com essa
abertura, ele mostra que o sistema não acabou, mas tornou-se um totalitarismo
mais silencioso, mais sutil. Isso acontece não só na academia, mas nas redações
também. Tenho muitos amigos jornalistas que dizem que, em certos momentos, têm medo
de expressar suas opiniões.
Ao falar da hegemonia cultural da esquerda
no Brasil, o senhor critica também o PSDB. Qual o papel do PSDB nisso tudo?
Acredito
que o PSDB teve um papel fundamental. Não o PSDB como um todo, mas o seu núcleo
duro, o Fernando Henrique Cardoso, o José Serra. O Fernando Henrique,
principalmente, foi um dos que estavam plenamente conscientes da estratégia de
repartir o campo político brasileiro entre versões de esquerda, de banir a
legitimidade política de qualquer coisa que não pertencesse às correntes da esquerda.
A única direita permitida passou a ser a direita da esquerda. O PT e o PSDB têm
as suas origens intelectuais na Universidade de São Paulo (USP) e travam uma
disputa intestina pela hegemonia político-cultural da esquerda no país. O PSDB
segue uma linha mais social-democrata, que pensa mais em resultados de longo
prazo. Um termo que ficou muito na moda e agora acabou se tornando meio ridículo,
mas que tem uma base real, é o tal do socialismo fabiano. De tanto o pessoal
ter feito mau uso do termo, ele acabou perdendo o sentido, mas é bom recuperar
o significado original. Ele designa os socialistas britânicos que tentavam um
modo gradualista de instaurar o socialismo. No Brasil atual, essa turma é o
PSDB. O PT tem uma visão mais radical, mais imediatista. Mas eles são “inimigos-irmãos”,
como socialistas e comunistas na Europa, girondinos e jacobinos, mencheviques e
bolcheviques. No fundo, com a estratégia do Gramsci, essas coisas se fundiam,
havia muito diálogo entre eles. Essa oposição entre PT e PSDB é mais jogo de
cena. Ela se dá muito mais em contexto eleitoral, de disputa de cargos, do que
no contexto de disputa política no sentido mais nobre do termo.
Dentro do PSDB também tem gente como o
João Doria, prefeito de São Paulo, e o Geraldo Alckmin, governador paulista.
Não é preciso separar essas correntes que atuam no PSDB?
É
verdade, há diferenças. Mas o Doria está surgindo agora. A gente não sabe
direito o que ele é, nem se vai permanecer no PSDB. Agora, ele é meio um
outsider do PSDB, tanto que não conta nem um pouco com a simpatia desse núcleo
duro. O Alckmin, também, é um pouco democrata cristão, um pouco mais centrista.
De todo modo, a esquerda se expande através de suas diferenças. Isso está meio
que no DNA da esquerda, a ideia de uma evolução dialética. A direita, ao
contrário, costuma se enfraquecer com os rachas internos. No momento,
inclusive, a direita está vivendo uma disputa acirrada, muito feia, no Brasil.
De repente, surgiu um pequeno espaço para a direita no País e tem gente indo
com muita sede ao pote. Com a oportunidade de conquista do poder, acaba havendo
uma disputa por posição, de vaidades. Mas é meio natural, nesse processo de
renascimento da direita no País nos últimos anos, que cada um puxe para o seu
lado.
O senhor afirma que, nos governos do PT, a
esquerda recorreu a todos os expedientes possíveis para reforçar sua hegemonia
na área cultural. Como isso aconteceu?
Basicamente,
por meio do assassinato de reputação, da mobilização de agentes de influência
em jornais, na academia, para deslegitimar quem ousasse alertar a opinião
pública para o que vinha ocorrendo. A esquerda fazia associações entre os
críticos ao PT e a elite, dizia que eles não gostavam do povo. Na A esquerda
associava os críticos do PT à elite, para deslegitimar quem ousasse alertar a
opinião pública época da União Soviética, os comunistas já faziam isso para
demonizar os críticos do partido. É um fenômeno que autor frances Jean Sévillia
chamou de “terrorismo intelectual”, em referência
ao papel desempenhado pelos intelectuais franceses depois da Segunda Guerra,
que se aplica perfeitamente ao que aconteceu nas últimas décadas no Brasil e se
intensificou nos governos do PT. Tivemos até alguns casos de violência, como
ocorreu com aquela blogueira cubana, a Yoani Sánchez. Ela foi recebida por um
grupo de militantes estudantis com muita violência e até impedida de dar
palestras no País na base da força.
O senhor também tem uma postura muito
crítica em relação ao Jornalismo nesse processo. Afirma que o Jornalismo, como
a academia, foi essencial para sustentar o projeto do PT. Quer dizer que, no final,
a culpa de tudo que aconteceu é da Imprensa?
Acredito
que a Imprensa tem uma parte significativa de culpa, por ter evitado por muito
tempo fazer críticas mais contundentes ao PT. A criação do Foro de São Paulo,
organizado por Lula e Fidel Castro, durante muito tempo quase não repercutiu na
Imprensa. Basta fazer pesquisa nos arquivos dos jornais. Toda aquela ligação do
PT com a Venezuela, a Bolívia, o Equador, que era um projeto continental, o socialismo
do século 21, não recebeu o tratamento devido. Depois do colapso da União
Soviética, eles tinham o projeto de reconquistar o terreno perdido, de fazer na
América Latina uma espécie de nova União Soviética. Ainda hoje todo o
simbolismo é aquele simbolismo arcaico do comunismo, do imperialismo americano,
é o mesmo vocabulário que se usava na década de 1960. A Imprensa teve um papel
muito importante em não tornar isso conhecido e colocar esse tema no debate
público. Não estou dizendo, obviamente, que todo mundo na Imprensa é petista
Agora, até os críticos do PT restringiam suas críticas a alguns pontos e
deixavam outras questões importantes de lado. Criticavam a corrupção, a má
gestão, mas não tratavam desse projeto em comum, do Foro de São Paulo, desse
projeto totalitário.
Mesmo
os críticos da esquerda brasileira acabam cedendo à narrativa da esquerda
europeia e americana ao cobrir os acontecimentos na Europa e nos Estados
Unidos.
Em sua opinião, como essa postura da
Imprensa se manifesta no dia a dia?
Algumas
agendas são tratadas como se fossem uma unanimidade. Por exemplo, o aborto.
Quase toda a imprensa aborda isso como um direito das mulheres, uma evolução, e
trata quem é contra como atrasado, arcaico, fundamentalista. Com as questões do
direito ao porte de arma, da maioridade penal, acontece a mesma coisa. Nas
redações, a maioria dos jornalistas – você sente isso pela cobertura – é contrária
a essas ideias. O próprio vocabulário usado no noticiário reforça essa
percepção. Toda ideia que sai um pouco da bolha dos jornalistas é tratada de
forma pejorativa. Toda a direita costuma ganhar os sufixos ultra ou extrema,
mas você não vê quase nunca o uso do termo “extrema esquerda” ou “ultraesquerdista”.
O ex-ombudsman do New York Times, Arthur Brisbane, falava que havia um progressivismo
cultural nas redações dos grandes jornais americanos. Não vejo esse tipo de
autocrítica no Brasil, com raras exceções.
O senhor conta no livro que não apenas
votou no Lula em 2002, como foi à Brasília, para a posse. Hoje, se diz um
liberal conservador. O que o levou a essa guinada ideológica? Alguma decepção,
algum ressentimento?
Foram
várias coisas que se combinaram para eu dar essa virada à direta De um lado,
percebi que nunca fui de esquerda por convicção. Era de esquerda porque todo
mundo era, porque ser de esquerda era, digamos, como respirar. Fazia parte da
cultura da minha geração. Se não fosse de esquerda, não era bem aceito nos
lugares, virava praticamente um ET. Por outro lado, estudei no IFCS, o
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, que é um dos núcleos da
esquerda carioca há décadas. Com a convivência muito próxima com o pessoal de
esquerda, fui percebendo uma série de incongruências entre o que eles falavam e
o que faziam. Eu lembro que um dos momentos em que tive de profunda vergonha de
mim mesmo foi no começo da faculdade. Eu me vi numa situação com um grupo de militantes
estudantis do PC do B e do PT, fechando a Avenida Passos, no centro do Rio de
Janeiro, na hora do rush, protestando contra o FMI, e o Fernando Henrique, no
governo dele. Aí, eu observei o olhar descompromissado da população que
circulava na região, os motoristas, o pessoal indo para o trabalho, e fiquei
morrendo de vergonha. Aquilo me marcou profundamente. Eu pensei: essa manifestação
aqui está falando do povo, mas não do povo real e sim de uma criação poética da
própria esquerda. O pessoal não estava preocupado com as pessoas de carne e
osso.
Os principais nomes do pensamento conservador são inexistentes na
academia brasileira
Quais foram os pensadores que mais
influenciaram essa sua guinada à direita?
Comecei
a tomar contato com a literatura conservadora mais recentemente, com autores
como o economista americano Thomas Sowell e o filósofo e cientista político
alemão Eric Voegelin, e fui me identificando com essas ideias. Vi que tinha um
substrato filosófico, teórico, para essas coisas em que eu sempre acreditei.
Sempre fui um pouco desconfiado com a ideia de tentar realizar ideias criadas
em laboratório. O filósofo Olavo de Carvalho também foi muito importante para
mim nesse processo, um autor que me abriu uma série de referências que não tive
na faculdade. Os principais nomes do pensamento conservador são inexistentes
dentro da academia brasileira. Comecei a me voltar para uma tradição mais
clássica e também para a filosofia medieval, escolástica. Li bastante Santo
Agostinho, que teve um impacto muito profundo em mim. Tudo isso foi
sedimentando uma visão mais sólida e mais consistente. Comecei a ler também
muitos críticos da esquerda, ex-intelectuais de esquerda, sobretudo do leste
europeu. Além disso, é claro, teve também todo o efeito da atuação da esquerda
quando assumiu o poder no Brasil. Comecei a ver que era uma coisa perigosa, o
aparelhamento, a mentalidade totalitária de lidar com a sociedade, o inchaço do
Estado, tudo isso que aconteceu no País. No fundo, essa minha virada ideológica
foi uma redescoberta, meio que uma volta às ideias que eu havia abandonado
durante uma parte da vida para me acomodar ao ambiente que me circundava.
O senhor afirma que o Olavo de Carvalho
foi um dos teóricos que marcaram o seu pensamento. Ele já se declarou várias
vezes a favor da candidatura do deputado Jair Bolsonaro à presidência em 2018.
O senhor concorda com ele?
O
debate de nomes agora é muito prematuro. Mas acho que o Jair Bolsonaro
representa uma parte das pessoas que se levantaram contra a esquerda durante
esse período. É uma candidatura legítima, que representa os anseios de uma
parte da direita brasileira, que não estão sendo correspondidos pela estrutura
política do País, que não vinham tendo canais de expressão. Mas prefiro não
entrar em discussões eleitorais no momento. Falta um ano ainda para as eleições
e precisamos ver se esses nomes que estão surgindo agora vão se efetivar, quais
partidos terão candidatos. Acredito que é o momento de discutir a política no
sentido mais amplo, questões sociais mais profundas.
Na economia, as declarações de Bolsonaro
mostram que as ideias dele são muito próximas das que o PT, o Lula e a Dilma
defendem, como uma intervenção estatal muito forte na economia, aquela coisa do
“Brasil grande” do Geisel. Como alguém que se diz liberal-conservador pode
apoiá-lo, com essa plataforma econômica?
Mais
uma vez, prefiro não entrar nessa discussão agora. Acho que não tem muito a ver
com as questões mais duradouras de que trato no livro. A própria economia deve
ser vista dentro de um contexto cultural. O Brasil tem muitos problemas a
resolver antes de a gente discutir programas econômicos.
A candidatura de Jair Bolsonaro representa os anseios de uma parte
da direita brasileira
O senhor diz que o livro foi a sua “carta de
alforria”. Por quê?
Estou
me referindo especificamente à linguagem da academia. Durante mais de 11 anos,
eu me viciei pelo falso rigor, cheio de jargões e tecnicismos que predomina na
academia, distante da linguagem culta e da boa escrita. O livro é uma espécie
de libertação dessas amarras, onde eu pude me expressar como quis, de forma
mais compreensível, sem ficar preso às etiquetas acadêmicas. Olhar para quem
está fora da academia, não significa rebaixar a linguagem, mas falar linguagem
culta comum, que as pessoas letradas vão entender.
A Corrupção da Inteligência
Autor:
Flavio Gordon
Editora:
Record
364
páginas, R$ 44,90
Capa do livro 'A Corrupção da Inteligência', de Flavio
Gordon
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