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sábado, 9 de setembro de 2017

A decadencia moral do Brasil: OAB e Paulo Roberto de Almeida

Ao ler esta nota, lembrei-me de um antigo trabalho meu, de mais de dez anos atrás, no qual eu já denunciava o quadro de degradação morale ética em curso no Brasil:

OAB denuncia "quadro de degradação moral e institucional" no Brasil

Em nota subscrita pelo presidente do Conselho Federal Claudio Lamachia, a principal entidade da advocacia alerta que 'a sucessão de escândalos há três anos incorporou-se dramaticamente à rotina do país'.

"Trata-se de um escândalo dentro do escândalo", diz Lamachia, que aduziu:

- O cidadão-contribuinte, que paga a conta de tais desmandos, não entende como quantias estratosféricas circularam no sistema bancário, com frequência e desenvoltura, sem que os órgãos incumbidos de monitorá-las tenham cumprindo esse dever elementar. Se os órgãos de fiscalização tivessem cumprido sua missão 'tais aberrações não teriam assumido as proporções a que assistimos, levando o país à maior crise política, econômica e moral de sua história'. Como se explica o trânsito de malas e malas com dinheiro vivo, na escala dos milhões, como as encontradas no apartamento do ex-ministro Geddel Vieira Lima? Sabe-se que o saque bancário, além de determinado limite, exige esclarecimentos, que os titulares daquelas fortunas não prestaram. O país exige essa explicação.

OAB aponta, ainda, para as revelações do ex-ministro Antônio Palocci (Fazenda/Casa Civil) que, na última quarta-feira, interrogado pelo juiz federal Sérgio Moro entregou os ex-presidentes Lula e Dilma como envolvidos em um 'pacto de sangue' com a empreiteira Odebrecht.

Meu trabalho era este aqui: 

747. “Pequeno manual prático da decadência (recomendável em caráter preventivo...)”, número especial  sobre “O Brasil que saiu das urnas”, da revista Digesto Econômico, revista da Associação Comercial de São Paulo (ano 62, n. 441, jan-fev 2007, p. 38-47; ISSN: 0101-4218; disponível em duas partes no site da revista; links: (a) http://www.dcomercio.com.br/especiais/digesto/digesto_03/05.htm; (b) http://www.dcomercio.com.br/especiais/digesto/digesto_03/05a.htm). Relação de Trabalhos n. 1717. 
Disponível neste link de meu blog Diplomatizzando
(recomendável em caráter preventivo...)
Paulo Roberto de Almeida
Colaboração a número especial da revista Digesto Econômico
Revista da Associação Comercial de São Paulo.
 (ano 62, n. 441, jan.-fev. 2007, p. 38-47; ISSN: 0101-4218)
O conceito de decadência está histórica e usualmente associado às imagens – e também às realidades – de declínio econômico, de disfuncionalidade política, de regressão social, de queda relativa nos padrões de vida, de desordem institucional, de involução moral, quando não ao caos gerador de conflitos exacerbados e possível elemento-motor (“gatilho”) do colapso de toda uma sociedade. No plano histórico, é costume citar os precedentes dos impérios romano, bizantino, chinês, otomano ou britânico como exemplos ilustrativos de decadência – processos que, por vezes, se arrastaram durante décadas, quando não séculos –, levando essas sociedades a fases de crise sistêmica ou de estagnação total, precipitando-as em “colapsos” mais ou menos prolongados e ao seu desaparecimento ou, até, à dominação por povos mais dinâmicos e empreendedores, alguns deles, aliás, suplantando os exemplos citados que tinham brilhado em épocas anteriores. Numa perspectiva recente, costuma-se citar a Grã-Bretanha contemporânea, isto é, pós-imperial e pós-Segunda Guerra, e até mesmo a Argentina pós-1930 como exemplos reais e acabados de processos lentos e agônicos de decadência econômica, pelo menos durante algumas décadas. Exemplos eloquentes de decadência certamente não faltam nos livros de história.
No entanto, não é essa a percepção que possam ter tido as sociedades referidas em relação ao seu próprio itinerário histórico, isto é, os povos e protagonistas contemporâneos dos processos gerais descritos sumariamente acima. Muitas vezes, o declínio econômico e a decadência política se dão em meio a extraordinários surtos de vigor artístico e de fervor intelectual, com intensos debates e mobilização social perpassando todas as categorias e classes da sociedade em questão. O estado de “regressão” nem é percebido como tal, uma vez que: a economia consegue ainda produzir em condições quase “normais”; as trocas materiais e os intercâmbios intelectuais se fazem ainda pelos canais habituais; os indicadores objetivos de padrões de vida continuam a apresentar traços de “progresso” – ainda que de recuo relativo na perspectiva internacional ou regional – e que a sociedade ainda não soçobrou na “anomia” e na “desorganização”, a que são normalmente associados essas noções de decadência ou de declínio.
O fato é que a decadência pode ter elementos difusos de todos esses processos citados acima, mas pode não ser percebida como tal pelos próprios integrantes da sociedade em questão. O sentimento geral dos cidadãos pode ser, simplesmente, de um certo malaise, de um mal-estar vago e indefinido, partilhado por diferentes estratos sociais e percebido como tal por intelectuais, mas raramente expresso de forma direta e cabal nos discursos das autoridades ou traduzidos nas propostas de ação por candidatos alternativos ao poder político. “Entra-se” em decadência muitas vezes sem o saber, como aquele personagem de Molière que fazia prosa involuntariamente.
Proponho-me, neste curto ensaio analítico, traçar os elementos principais de uma pequena radiografia da decadência, de maneira a subsidiar, talvez, diagnósticos mais precisos de situações concretas que possam preocupar os leitores eventuais deste “manual” de identificação dos sinais precursores de uma decadência anunciada (não necessariamente percebida). Assim, pode-se saber que um país, ou uma sociedade, está em decadência quando:
1. O sentimento de mal-estar se torna generalizado na sociedade, ainda que possa ser difuso.
2. Os avanços econômicos são lentos, ou menores, em relação a outros povos e sociedades.
3. Os progressos sociais são igualmente lentos ou repartidos de maneira desigual.
4. A lei passa a não ser mais respeitada pelos cidadãos ou pelos próprios agentes públicos.
5. As elites se tornam autocentradas, focadas exclusivamente no seu benefício próprio.
6. A corrupção é disseminada nos diversos canais de intermediação dos intercâmbios sociais.
7. Há uma desafeição pelas causas nacionais, com ascensão de corporatismos e particularismos.
8. A cultura da integração na corrente nacional é substituída por reivindicações exclusivistas.
9. A geração corrente não se preocupa com a seguinte, nos planos fiscal, ambiental ou outros.
10. Ocorre a degradação moral ou ética nos costumes, a despeito mesmo de “avanços” materiais.
Algumas considerações rápidas sobre cada um dos elementos listados, sumariamente, acima são necessárias, se quisermos que este “minitratado” da decadência possa ser efetivamente utilizado como uma espécie de manual para sua prevenção ou para a eventual correção de curso. Serei, tanto quanto possível, conciso, sem ater-me a exemplos conhecidos em processos concretos, mais ou menos identificados pelo leitor ocasional.
1. Malaise generalizado e difuso na sociedade.
Na verdade, o mal-estar que costuma atingir sociedades e povos em decadência efetiva é mais um resultado dos próprios processos de “involução” já em curso, do que um sinal precursor desse itinerário “regressista”. De fato, o sentimento de incerteza quanto ao futuro costuma perpassar de maneira difusa os diferentes estratos sociais mobilizados nas atividades correntes da sociedade em questão. A literatura consegue captar, antes mesmo de diagnósticos “sociológicos”, essa sensação de desconforto em relação aos padrões vigentes, que é também vista e interpretada nas artes em geral, por meio de peças e demonstrações de “ruptura” em relação às normas sociais comumente aceitas e “consumidas” pelos estratos sociais incluídos nas transações correntes. O sentimento de fin d’une époque, ou de esgotamento de um “ciclo”, é geralmente percebido pelos espíritos mais argutos, mas o desconforto com o “estado reinante” das coisas se dissemina de modo generalizado em camadas mais amplas da sociedade. Ocorre uma desafeição em relação à cultura predominante, mas não se consegue propor ou viabilizar padrões ou modelos alternativos que sejam eficientes ou implementáveis. Os custos da transição para “algo mais racional” são considerados por todos como muito elevados, em vista dos pactos vigentes, e a sociedade se acomoda na resignação e no déjà vu.
2. Avanços econômicos lentos, em perspectiva comparada.
A decadência não significa, necessariamente, retrocesso econômico absoluto ou mesmo uma deterioração das condições prevalecentes no plano da organização social da produção. Ao contrário, podem até ocorrer avanços tecnológicos, progressos científicos e melhoras nos padrões vigentes de produção, tendo em vista capacidades técnicas e habilidades gerenciais já acumuladas pela sociedade. Uma sociedade pode avançar, em suas próprias realizações, e mesmo assim ser ultrapassada relativamente por outras, mais dinâmicas, empreendedoras e inovadoras. O declínio relativo é geralmente o resultado de uma queda nos índices de produtividade, a perda progressiva de competitividade, um recuo nos espaços anteriormente ocupados no âmbito internacional e um lento movimento para escalões inferiores em rankings setoriais de classificação de países.
Os processos de divergência entre os povos e sociedades resultam, geralmente, de longas fases de crescimento (ou falta de), mais do que de altas taxas ocasionais de expansão do produto. O desenvolvimento pode ocorrer pari-passu a baixas taxas – mas sustentadas – de crescimento econômico, sendo que expansões rápidas podem ser contrarrestadas por surtos inflacionários ou crises sistêmicas que produzem perdas do produto social e erosão do poder de compra da moeda nacional. O elemento propulsor do processo de desenvolvimento são os ganhos de produtividade, que produzem, no registro histórico, os fenômenos de convergência ou de divergência entre os povos e economias nacionais. As sociedades humanas progrediram muito lentamente durante os milhares de anos de revolução agrícola neolítica e civilizacional-urbana, para conhecer, dois séculos e meio de rápidos progressos nos indicadores de bem-estar a partir da primeira e da segunda revolução industrial. A partir desta, os progressos se tornaram contínuos, autogerados e induzidos pelo próprio avanço científico-tecnológico anterior, configurando aquilo que, em termos marxistas, poderia ser chamado de “modo inventivo de produção”. Este foi, antes de qualquer outra, uma peculiaridade das sociedades ditas “ocidentais”, mas tende a se disseminar ao conjunto do planeta, com o término dos obstáculos políticos ao processo de globalização.
Nem todas as sociedades conseguem replicar ou reproduzir, mesmo por mimetismo, o padrão de progresso tecnológico do Ocidente desenvolvido. Mas todas elas se encontram, hoje, medianamente dotadas de condições mínimas para fazê-lo, a partir dos progressos dos meios de comunicação e de difusão dos conhecimentos científicos (amplamente disponíveis nos veículos existentes, à diferença do know-how e da tecnologia proprietária, estes bem mais restritos). O fato de uma sociedade recuar economicamente, ainda que de modo relativo, pode ser explicado, tão simplesmente, por sua incapacidade em dotar os seus cidadãos dos requisitos mínimos de ensino formal e de educação elementar, suscetíveis de os converterem em “absorvedores” do saber técnico já disponível universalmente nos canais abertos de difusão de conhecimento. Não se trata aqui, necessariamente, de padrões de ensino pós-graduado ou especializado, mas basicamente da existência de ensino fundamental de boa qualidade para o conjunto dos cidadãos.
3. Distribuição desigual dos lentos progressos sociais alcançados.
Comportamentos “rentistas”, isto é, apropriação de bens públicos por grupos organizados que têm acesso aos canais oficiais de distribuição de recursos, geram um desestímulo à inovação e à produção pelos agentes econômicos privados. Isso pode ocorrer, e geralmente ocorre, no caso da disponibilidade de abundantes recursos naturais – terras, minérios, commodities primárias – que passam a ser explorados por via de algum tipo de organização estatal, mesmo indireta. Fala-se da “maldição do petróleo”, por exemplo, como um caso típico de ganhos fáceis apropriados de maneira desigual por elites que se organizam para “redistribuir” esses recursos abundantes, o que desvia a atenção dos agentes privados de investimentos em atividades alternativas: toda a atenção passa a ser focada na “captura” da renda disponível na economia nacional.
Mesmo na ausência de uma fonte abundante de recursos naturais, comportamentos rentistas podem disseminar entre os estratos dominantes – ou dirigentes – na sociedade, se a regulação institucional é feita mais por via estatal do que por meio da própria sociedade. O Estado sempre constituiu um poderoso meio de redistribuição da riqueza social para os grupos que o controlam e manipulam em seu favor. Não há aqui nenhuma prevenção a priori contra o Estado, uma vez que ele é necessário mesmo para criar o laissez-faire, ou seja, lutar contra os trusts e cartéis, assegurar a competição, garantir o cumprimento dos contratos e, de forma geral, defender os direitos de propriedade. Ocorre, porém, que o Estado é também um forte indutor de redistributivismo regressivo, isto é, o recolhimento compulsório de recursos de todos os cidadãos, produtores e consumidores, e o seu “redirecionamento” segundo critérios políticos determinados.
Em todos os casos de declínio conhecidos, o Estado serviu precisamente para esse tipo de redistribuição perversa dos recursos públicos, gerando o fenômeno conhecido pelos economistas como “crowding-out”, isto é, a captura da poupança privada pelo próprio Estado e pelos rentistas profissionais e sua apropriação pelo próprio Estado (e seus amigos), o que provoca deseconomias de escala e erosão do investimento produtivo. Os grupos politicamente mais bem articulados conseguem acesso aos planejadores e legisladores do orçamento público, deixando ao relento os setores menos organizados. Isso geralmente implica em concentração de renda e ausência de um mercado interno dinâmico. Os exemplos de declínio e de estagnação coincidem, justamente, com o que Veblen chamaria de “consumo conspícuo” das elites, em total indiferença em relação ao conjunto dos cidadãos.
Não se pense, por fim, que tudo se faz em benefício do “grande capital monopolista” e em detrimento da “classe trabalhadora”. Sindicatos são máquinas organizadas para criar escassez de mão-de-obra e para produzir desemprego, atuando em perfeita sincronia – nem sempre funcional, é verdade – com os sindicatos de patrões, com vistas a extorquir recursos do resto da sociedade desorganizada. Viceja, nos casos típicos de declínio econômico prolongado, uma espécie de “pacto perverso”, pelo qual ambos sindicatos entram em conluio – algumas vezes de forma involuntária ou até inconsciente – em favor de seus ganhos respectivos, repassando os custos para o resto da sociedade. A desigualdade distributiva nem sempre é “aristocrática”...
4. Não acatamento da lei pelos cidadãos e pelos próprios agentes públicos.
A decadência, como já afirmado, nem sempre se traduz em pobreza material, ao contrário, pois sociedades decadentes são, igualmente, sistemas de relativa abundância, pelo menos para os privilegiados. Mas, a decadência verdadeira sempre implica em miséria moral, a começar por um sistemático, no começo sutil, depois disseminado, desrespeito à lei e às boas normas de convivência. Uma sociedade não começa a decair com o aumento da delinquência comum e com a expansão da criminalidade de baixa extração, mas justamente com o desprezo pela lei por parte dos poderosos e dos próprios encarregados de manter a ordem. Sociedades patrimonialistas são naturalmente mais propensas a esse tipo de corrupção moral, como evidenciado na trajetória do império otomano, mas nem mesmo sistemas “tecnocráticos” estão imunes a esse tipo de evolução involutiva, se é possível este tipo de trajetória. O império chinês, com seu imenso corpo de mandarins bem treinados, talvez tenha conhecido itinerário semelhante, antes mesmo de o país ser invadido e humilhado pelos imperialistas ocidentais (e depois japoneses).
O desrespeito à lei, ou mesmo a contravenção pura e simples por parte dos poderosos, constituem o traço mais visível do declínio moral de uma sociedade. Quando as suas elites, em especial o seu corpo dirigente, recorrem a expedientes escusos, quando não a práticas claramente criminosas, para extrair benefícios para si, pode-se constatar que a sociedade caminha célere para a sua decadência. Não se deve, porém, confundir, artifícios ilegais, ou no limite da legalidade, empregados por algumas elites econômicas – como caixa dois, elisão ou evasão fiscal ou ainda pagamentos por fora – como representando necessariamente sinônimo de decadência. O setor produtivo pode ser especialmente competitivo e gerencialmente capaz, apenas que penalizado por um Estado voraz, por dirigentes políticos de comportamento predatório, sendo levado a utilizar-se do recurso a esse tipo de expediente como uma forma de “defesa patrimonial”. É, aliás, o que fazem a maioria dos cidadãos que buscam evadir o fisco, uma vez que adquiriram a consciência de que os impostos pagos diretamente e os tributos recolhidos indiretamente não retornam proporcionalmente sob a forma de serviços públicos.
A ilegalidade se dissemina paulatinamente na sociedade e se converte em uma “segunda natureza” do cidadão comum e do empresário: ninguém se “arrisca” a ser totalmente honesto, uma vez que isto representaria a inviabilidade do seu negócio ou a “extração compulsória” seria demais onerosa no plano das rendas individuais. Pouco a pouco, a corrupção e a contravenção se instalam em todos os poros da sociedade e ela, sem perceber, caminha rapidamente para o que chamamos de decadência.
5. Elites distantes da sociedade e focadas no seu benefício próprio.
Esta é uma outra manifestação do mesmo comportamento descrito acima, apenas que os meios são absolutamente legais, ainda que ilegítimos, e redundam quase sempre nos mesmos efeitos já referenciados no rentismo perverso e no redistributivismo desigual. Responsáveis políticos se ocupam não tanto de legislar para a sociedade, mas em causa própria. Os meios passam a absorver uma proporção crescente dos recursos voltados para determinados fins. Isto geralmente se dá no setor legislativo, mas pode perfeitamente ocorrer nos meios judiciários e, igualmente, em corporações de ofício que se organizam burocraticamente no âmbito do poder executivo. A representação política deixa de constituir um mandato conferido pela sociedade para o desempenho das funções que lhe são próprias para converter-se em um fim em si mesmo.
Esses traços de comportamento não são exclusivos da representação política, embora eles sempre se reproduzam no estamento político. Elites rentistas, de modo geral, desenvolvem essa indiferença em relação à sociedade, cuja simbologia mais famosa – ainda que provavelmente equivocada – é historicamente representada pela frase de Maria Antonieta sobre os brioches que o povo deveria comer, no lugar do pão comum. Elites aristocráticas do ancien Régime, na França e na Rússia czarista, foram em grande medida responsáveis pela desafeição do povo em relação às suas elites, contribuindo para a derrocada dos respectivos regimes políticos ao se operar um claro divórcio entre suas concepções do mundo. O apartheid social, mais até no plano mental do que no âmbito material, costuma ser construído por minorias ativas, nem todas elas privilegiadas, mas sempre elitistas em relação à massa da sociedade.
Por vezes, uma elite “subversiva” se apossa do poder e passa a exibir os mesmos traços de comportamento que o das elites antes privilegiadas, numa típica reprodução da fábula contida em Animal Farm, segundo a qual “todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”.
6. Corrupção disseminada nas transações sociais de maneira geral.
O cimento mais poderoso em todas as sociedades organizadas é a confiança: não só na palavra dada, no plano individual, mas também na moeda, na observância da lei em caráter impessoal, no cumprimento dos contratos e, sobretudo, na certeza da punição em caso de ações “desviantes”. O que mantém o poder de compra de uma moeda, por exemplo, não é tanto a força absoluta de uma economia, mas a confiança de que seu valor de face não será abalado por atos arbitrários das autoridades emissoras, medidas intervencionistas que afetem sua liquidez ou alguma ameaça de confisco, mesmo indireto.
A incerteza jurídica – por vezes trazida pelos próprios juízes, que não se contentam em interpretar a lei, preferindo criá-la, ou colocá-la a serviço de alguma causa “social” – está na origem do desrespeito aos contratos e, portanto, no aumento dos custos de transação. Setores da sociedade passam a desenvolver formas próprias, geralmente informais, de intercâmbio, que podem englobar um volume crescente de atividades. Sociedades decadentes são, geralmente, sociedades nas quais a informalidade recobre grande parte da população economicamente ativa e uma fração significativa do produto social. Um Estado “extrator” pode também ser o responsável direto pela “expulsão” do mercado formal de agentes econômicos privados que não encontram nenhuma vantagem em se colocar à margem da legalidade, mas que não conseguem se enquadrar nas regras existentes. Na verdade um cipoal de regulamentos estabelecido justamente para vigiar o cumprimento de uma legislação barroca no plano regulatório.
A sociedade como um todo passa a se acostumar com a modalidade informal de se completarem as transações e, ao fim e ao cabo, os intercâmbios legais passam a cobrir uma fração cada vez menor do conjunto das trocas sociais. A sociedade de “desconfiança” afeta a todos os participantes do mercado, gerando graus crescentes de anomia e de deterioração dos costumes básicos. A sociedade em questão está “pronta” para aprofundar seu processo de decadência.
7. Avanço dos corporatismos e particularismos, em detrimento das “causas nacionais”.
A fragmentação da representação política e social nos diversos corpos constitutivos da sociedade cria uma colcha de retalhos de difícil administração institucional. Para que grandes reformas estruturais se façam – e toda sociedade requer, periodicamente, adaptação às novas condições ambientais externas e às suas próprias transformações internas, demográficas e outras –, as diferentes partes da sociedade precisam estabelecer um pacto de convivência, no qual todos cedem um pouco para que as mudanças possam ser implementadas. A perseguição de objetivos particularistas por grupos sociais organizados, geralmente com vistas a se alcançar metas setoriais e exclusivas, inviabiliza qualquer “projeto nacional” digno desse nome (ainda que essa figura seja antes um mito do que uma realidade, pois “projetos” bem executados geralmente resultam da ação decisiva de uma pequena elite de “iluminados”, quando não de um líder carismático atuando como estadista).
O fato é que os processos de decadência também são caracterizados pela existência de “projetos fragmentários”, condizentes com o perfil já fortemente sindicalizado dessa sociedade. Não é incomum a representação política passar da dominância de próceres cosmopolitas, da elite, mas dotados de uma visão do mundo não provinciana, para “delegados de categoria”, eleitos por um grupo de interesse restrito (de caráter sindical, setorial ou religioso). O processo legislativo se divide então em uma miríade de demandas particularistas, que esquartejam o orçamento nacional e transformam o planejamento público em uma assemblagem de partes heteróclitas. Congela-se a possibilidade de atuar nas grandes causas, pois o mercado político converte-se num bazar de compra e venda de projetos setoriais e fragmentários. Um indicador fiável dessa tendência é dada por meio de consulta a um calendário-agenda: a sociedade estará tão mais próxima da decadência quanto mais dias do ano são dedicados a homenagear categorias profissionais...
8. Grupos sociais particulares pretendem distinguir-se do conjunto da sociedade.
A chamada “identidade nacional” – um conceito difuso e frequentemente mal interpretado – constitui um dos traços mais conspícuos da psicologia de massas. Uma sociedade dinâmica ostenta um forte sentimento de inclusividade e de identificação com os símbolos nacionais, sejam eles realidades históricas tangíveis, sejam eles simples mitos criados para fortalecer o processo de Nation building. Em qualquer hipótese, o sentimento de pertencimento – status de appartenance ou membership – a um corpo social ou humano relativamente homogêneo é um poderoso cimento da identidade nacional, o que não impede, obviamente, particularidades regionais, traços étnicos ou especificidades culturais próprias a sociedades complexas, racialmente diversas e dotadas de origens “multinacionais”. O ideal de toda sociedade integrada e orgulhosa de sê-lo é, justamente, conseguir passar do estágio simplesmente “multinacional” para o de “sociedade multirracial”, o que deveria ser o objetivo de toda comunidade inclusiva, uma vez que tal característica destrói as próprias bases de qualquer manifestação de racismo ou apartheid.
A desafeição em relação à fusão dos particularismos raciais ou culturais no mainstream social e humano nacional enfraquece a noção de identidade nacional e reforça a noção artificial de aparteísmo. Este tipo de divisor precisa ser construído politicamente, uma vez que se adota como suposto básico a unidade fundamental do gênero humano. A divisão é, geralmente, obra de ativistas e militantes de uma causa que se julga legítima, cujas raízes encontram fundamentação histórica em opressões seculares, que se pretende transplantar para o presente, como forma de preservar antigas particularidades raciais, linguísticas ou religiosas, que já estavam prontas a se fundir no poderoso molde nacional. A conformação política de uma cultura distinta da nacional reforça manifestações de racismo ao contrário, pois que as propostas são geralmente feitas para eliminar supostos focos de “racismo”. O apartheid também pode ser construído por minorias...
9. Irresponsabilidade intergeracional, nos terrenos fiscal ou ambiental, entre outros.
O desejo de preservar o status quo, ou a inconsciência quanto à constante necessidade de ajustes e adaptações às condições “ambientais”, nacionais ou internacionais, sempre cambiantes, fazem com que gerações do presente eventualmente atuem de maneira irresponsável em relação àquelas que as sucederão. Historicamente, o problema sempre esteve associado à depredação do meio ambiente e à extinção de espécies animais, alterando o equilíbrio natural e ameaçando a sustentabilidade de sistemas econômicos inteiros. Contemporaneamente, a questão tende a se revestir de características econômicas bem marcadas, tendo a ver com a trajetória avassaladora do Estado moderno e sua voracidade fiscal, não em benefício próprio, obviamente, uma vez que o Estado é uma entidade impessoal, mas em favor de grupos ou categorias dispondo de condições de acesso e de manipulação dos mecanismos de intervenção pública.
Nos casos mais graves, o conjunto da sociedade pode atuar de maneira irresponsável, ao sustentar escolhas que representam uma clara preferência pelo bem-estar presente, em detrimento do amanhã. Seja nos esquemas de previdência social, seja nas instituições educacionais, ou ainda em matéria de déficits orçamentários e dívida pública, opções erradas e a visão imediatista dos responsáveis políticos, sustentados pela inconsciência da maioria, criam pesadas hipotecas de médio e longo prazo que deverão, em algum momento, ser resgatadas pelos sucessores, aqui entendidos como o conjunto da sociedade de uma ou duas gerações mais à frente. O declínio pode até não ser visível no próprio momento das decisões, mas o que se está fazendo, na verdade, é “contratar” a decadência futura.
10. Degradação ética e moral, independentemente de “progressos” técnicos.
Edward Gibbon, em seu justamente celebrado História do Declínio e Queda do Império Romano, tende a ver a decadência de Roma como o resultado da perda de “valores cívicos” por parte dos cidadãos do império, a começar pelos patrícios, que delegaram aos bárbaros tarefas que eles deveriam ter assumido diretamente. Ele também atacou a influência do cristianismo, como possível fator de afastamento do antigo espírito marcial e guerreiro, que tinha feito, no início, o sucesso da república e do império. Seja como for, a perda de objetivos claros quanto ao futuro, certa resignação em face das dificuldades do presente e a busca de prazeres imediatos em lugar da frugalidade produtiva e empreendedora podem ser sinais precursores da decadência.
Curiosamente, nenhum dos exemplos históricos tidos como ilustrativos ou emblemáticos desse tipo de processo pode ser considerado um insucesso absoluto na cultura ou nas artes. O vigor da produção cultural continua a todo vapor no momento mesmo em que essas sociedades passam a enfrentar problemas na economia e na inovação. Não há um elemento singular ou único que “anuncie” a decadência, mas um conjunto de comportamentos sociais e de reações que indica forte deterioração da solidariedade social e uma crescente anomia em relação aos valores básicos da sociedade. A falta de confiança nas instituições políticas e a forte desconfiança das motivações de outros grupos sociais fazem com que líderes e liderados não mais se sintam comprometidos com o mesmo conjunto de valores, passando a ocorrer manifestações de introversão e de egoísmo que logo superam a identificação com a pátria e a nação.
Em síntese, existe um “espírito” de decadência quando os setores produtivos, em especial os empresários mais politicamente ativos, se mostram resignados ante a presença avassaladora do Estado, que lhes tolhe os movimentos, impõe regras e lhes retira a substância da atividade econômica, que é o lucro e os excedentes para investir. Existe decadência quando os intelectuais e os universitários, de uma forma geral, se conformam ante o culto à ignorância exibido por certos grupos sociais ou líderes supostamente carismáticos ou “salvacionistas”. Existe decadência quando autoridades nacionais, a começar pelos encarregados da preservação da ordem jurídica e institucional, deixam de lado suas obrigações profissionais para cuidar de prosaicos interesses pessoais, pecuniários antes de tudo. Existe decadência quando o cidadão comum não vê qualquer motivo para preservar o patrimônio coletivo, demonstrando total inconsciência quanto ao dever de respeitar a herança das gerações precedentes e a necessidade de repassar às que seguirão a sua própria um ambiente melhor do que aquele recebido dos ancestrais.
Em suma, os sinais materiais, ou externos, da decadência nem sempre são os que contam na avaliação dos “progressos” dessa inacreditável marcha para trás na jornada das sociedades. A insensatez quanto aos rumos da história também se manifesta, antes de tudo, por uma pura e simples inconsciência. Manuais práticos de decadência podem ser um preventivo útil na inversão da trajetória. Basta saber consultá-los...
Brasília, 31 janeiro 2007.

sábado, 28 de maio de 2011

A decadencia economica brasileira: um trabalho perdido

Já que estamos falando de problemas brasileiros para crescer, vamos dramatizar o quadro.
Não que eu queira ser pessimista, mas por puro acaso.
Eu estava compondo uma lista de livros sobre relações internacionais e de política externa do Brasil, e dentro dela os livros escritos por diplomatas (em qualquer gênero, aliás), quando deparei com este registro, de um trabalho que já não me lembrava mais ter escrito:

1557. “A decadência econômica brasileira: uma inevitável tendência pelos próximos vinte anos?
Brasília, 7 de março de 2006, 5 p.
Publicado no blog do Instituto Millenium em 8.03.06 (link). Reproduzido no site do Instituto Internacional de Planejamento Educacional (link).
Desparecidos nestes links nos dois sites.
Relação de publicados nº 630.

Procurei nos links, e eles obviamente já não funcionavam mais. Por isso vai aqui postado gentilmente.
Não, não sou pessimista, apenas realista...
Paulo Roberto de Almeida

A decadência econômica brasileira: uma inevitável tendência pelos próximos vinte anos?
Paulo Roberto de Almeida

Peço desculpas aos meus leitores pelo tom passavelmente pessimista, quando não francamente niilista, do título deste artigo, mas é que não pude evitar certa sensação de desalento (e talvez também de inveja) ao ler sobre o recente e espetacular recorde na captação de investimentos estrangeiros diretos pela Grã-Bretanha no decorrer de 2005. Nada menos do que US$ 209 bilhões, ultrapassando em muito o segundo colocado, os EUA, que figuram há muitos anos no primeiro lugar, tanto como receptor quanto como principal investidor, seguido, nos últimos dez anos, pela China, como segundo colocado do lado da captação (com cerca de US$ 60 bilhões) e primeiro dos países emergentes. Comparados aos pouco mais de US$ 15 bilhões obtidos pelo Brasil em 2005, a cifra é realmente impressionante para qualquer país engajado no processo de globalização. Mesmo descontando-se, da cifra britânica, US$ 100 bilhões relativos a operações da Shell, que concentrou suas operações a partir da Holanda, remetendo então recursos aos sócios ingleses, ainda assim a Grã-Bretanha ultrapassa os EUA, que “só” atraíram 106 bilhões de dólares em 2005.
Trata-se de um notável feito da economia britânica, hoje, inquestionavelmente, o melhor lugar europeu – e provavelmente mundial, pelo lado financeiro – para se fazer negócios e desenvolver novos projetos, nas diversas áreas da nova e da velha economia, quer seja a indústria manufatureira, quer sejam os “novos serviços”, um conglomerado de atividades que junta tecnologias da informação e pesquisa de ponta em nano ou em biotecnologia. Ele é tanto mais notável em vista do fato de que, duas décadas atrás, a Grã-Bretanha era um dos piores lugares do mundo para se começar novos negócios ou mesmo para manter os existentes. Como isso foi possível?
Lembro-me de que quando eu estava terminando minha tese de doutoramento, em 1984, uma digressão aborrecidamente sociológica sobre os desempenhos capitalistas em escala comparada, a Grã-Bretanha era o protótipo mesmo da decadência econômica, o exemplo acabado de declínio industrial, um modelo notório do atraso tecnológico, da desesperança científica – com sua exportação contínua de cérebros para os EUA – e do desalento político, de que eram testemunhos os freqüentes movimentos grevistas, que conseguiam paralisar até mesmo o enterro dos mortos (um serviço obviamente estatal). Em escala e em estilo talvez diferentes de um outro notável exemplo de decadência, o da Argentina, mas numa dimensão provavelmente comparável à da nação “peronista”, pela amplitude e profundidade do declínio econômico auto-infligido, a Grã-Bretanha, promotora e pioneira da primeira revolução industrial e centro indisputável das finanças internacionais nos 150 anos que seguem aos conflitos napoleônicos, tinha sido vítima, durante todo o século XX, mas mais especialmente no decorrer dos anos 60 e 70 desse século, de um dos mais acabados processos de decadência econômica a que nos foi dado assistir na história econômica mundial.
Lembro-me também que minha bibliografia sobre o “caso” inglês vinha marcada pelos conceitos de “decline”, “fall”, “end” e vários outros do gênero. Naqueles tempos – final dos anos 1970 e início da década seguinte – não parecia haver nenhum limite para a extensão da decadência britânica. Ela era feita de baixo crescimento, inflação, déficits orçamentários e de transações correntes, desvalorização da libra, “sucateamento” da indústria e dos transportes, deterioração dos serviços públicos – notadamente nas áreas da saúde e da educação –, aumento da violência nas metrópoles, enrijecimento dos conflitos sociais, empobrecimento dos equipamentos urbanos, desemprego mais do que residual ou setorial e desesperança geral na sociedade, em especial na juventude. O cenário estava mais para “Laranja Mecânica” do que para “A Wonderful World”, mais para George Orwell do que para Winston Churchill e seu otimismo inveterado quanto ao futuro do império, que aliás já não existia mais, tendo sido irremediavelmente deixado num passado distante de glórias irrecuperáveis.
E, no entanto, vinte anos depois, o que ocorreu? Um notável “renascimento” da indústria e dos negócios na Grã-Bretanha – mais notavelmente ainda na Irlanda vizinha, não esquecer –, um surto de progresso e de modernização que não deixa nada a invejar nos melhores centros da tecnologia mundial, uma recuperação econômica segura, que fez do país o mais dinâmico membro – com a Irlanda – da União Européia, exibindo, ao mesmo tempo, as maiores taxas de crescimento e as menores de desemprego e inflação. Trata-se, como já dito, do melhor lugar para se fazer negócios no continente – mas a Grã-Bretanha sempre brincou com a idéia de que o continente é que vivia “isolado” –, o que vem apoiado no fato de que os investimentos estrangeiros, inclusive dos emergentes da Ásia, têm-se concentrado na ilha. Como foi isso possível, volto a perguntar?
Não pretendo retomar aqui a história da “batalha ideológica” do século XX, já enfaticamente tratada no livro – e vídeo – conjunto de Daniel Yergin e Joseph Stanislaw sobre a luta pelo controle e administração dos commanding heights da economia. Essa batalha política entre os modelos de comando centralizado e de administração pelo mercado se encerrou e não é preciso dizer quem venceu. A Inglaterra lutou o bom combate e conseguiu reverter sua terrível decadência econômica e política. Antes disso, porém, a batalha foi dura: ela teve, primeiro, de ser levada nos “corações e mentes” dos cidadãos britânicos, nos súditos da rainha, para convencê-los de que a decadência não era inevitável ou uma fatalidade do destino, de que era possível, sim, colocar um ponto final na descida para o declínio social e começar lentamente a obra de recuperação. Depois foi preciso se desfazer de velhos mitos – e não apenas mitos, já que respondendo a construções históricas de seu passado mais ou menos “fabiano” – ligados aos papéis respectivos do Estado e do mercado no provimento de emprego e bem-estar social, de modo geral. Foi uma tremenda “reversão de expectativas”, como diria, em relação ao Brasil, o economista Roberto Campos:
Margareth Tatcher teve de sustentar lutas políticas e batalhas literais contra os interesses corporativos consolidados no antigo modelo de “welfare state”, que de “welfare” já não tinha nada e cujo “estado” era um corpo disforme, esgarçado entre as tendências protecionistas da velha indústria, os protestos enraivecidos (mas puramente de retaguarda) dos sindicatos dos setores estatizados e o desalento geral da maioria da população. Foi uma luta terrível para livrar a Grã-Bretanha do “pacto perverso” entre o Labour e a TUC – Trade Union Congress, a confederação sindical – que, durante a maior parte do pós-Segunda Guerra, tinha conduzido o país direto para a decadência, ao garantir aumentos reais de salários para os setores assim protegidos e ao repassar os custos para o conjunto da sociedade. Foi como se, no Brasil, a CUT e a FIESP, por hipótese no exercício do poder central, tivessem “complotado”, durante anos a fio, para se concederem e assim garantirem, reciprocamente, aumentos generosos de preços e de salários, repassando em seguida a conta para os contribuintes e consumidores, o que aliás não deixou de existir, de certo modo, durante as fases de alta inflação no Brasil. Trata-se da mais segura receita para inviabilizar qualquer processo de crescimento com estabilidade que se possa conhecer e ela foi seguida, conscientemente ou não, por vários governos britânicos durante boa parte da segunda metade do século XX na Inglaterra.
Pois bem, isso agora acabou, e a Grã-Bretanha renasce de sua antiga decadência, renovação tanto mais segura de continuar que o “novo Labour” aderiu ao processo e ao modelo iniciados por Lady Tatcher e deles não pretende se desvencilhar. Um pouco, aliás, como vêm fazendo os socialistas e democratas chilenos, que herdaram do período militar uma gestão mais ou menos em ordem e uma economia em franco crescimento nos quadros da globalização e da liberalização comercial. Alguma lição a tirar?
Claro que sim, e a primeira lição a tirar seria, além da inveja, desejar sorte e sucesso continuado a britânicos e chilenos, que podem desfrutar de baixo desemprego, estabilidade de preços, aumento razoável das expectativas de bem-estar, diminuição das “deseconomias” e das externalidades negativas associadas à má gestão da economia, melhora, ainda que gradual, nos padrões gerais dos serviços públicos – ou privados, não importa muito a forma de provimento – relativos à saúde, educação, facilidades urbanas em transporte, segurança etc. Enfim, sem ser preciso nenhuma revolução ou mudança dramática na situação corrente, deve ser melhor viver numa sociedade que conhece progressos incrementais nas condições de vida do que numa outra que, por hipótese, afunde progressivamente na delinqüência, no desemprego, na inflação, na deterioração dos equipamentos sociais, na compressão do poder de compra, na desesperança trazida pela sensação de aumento na corrupção política, enfim, que se debata com vários males de que padecem hoje muitos países ao redor do mundo.
E o que tem nosso país a ver com isso tudo? O Brasil conhece alguns desses males e, felizmente, está ao abrigo de outros, como poderia ser a inflação galopante que ameaça, mais uma vez, a vizinha Argentina, ou a instabilidade política, que já arrastou mais de um presidente para fora dos palácios presidenciais em outros países da região. Mas, nós acabamos de nos converter, junto com o infeliz Haiti, em campeões do baixo crescimento e da carga fiscal, aqui exclusivamente. Mais ainda, conhecendo a trajetória das contas públicas nos próximos anos, não hesito em dizer que teremos anos negros pela frente e, conhecendo também as atuais condições para a atividade empresarial e o ambiente geral dos negócios, tampouco hesito em dizer que o Brasil reúne, sem sombra de dúvida, todos os requisitos para NÃO CRESCER no futuro previsível.
Se essa trajetória não for revertida, a conclusão inevitável me parece ser apenas esta: caminhamos inevitavelmente para a decadência econômica, o baixo crescimento continuado, o desemprego mantido em altas taxas, a desesperança social convertida em humor nacional e o desalento generalizado quanto à capacidade dos nossos políticos em mudar esse quadro de declínio. O Brasil, por certo, não é um país decadente, em espírito ou disposição para a luta, mas ele parece hoje paralisado por um modelo de organização “estatal” da economia que nos garante, apenas e tão somente, isso que vemos: baixo crescimento, incapacidade de investimentos, “despoupança” líquida dos recursos do setor privado por uma máquina estatal prebendalística e perdulária, comportamentos rentistas das corporações que “assaltaram”, literalmente, o Estado, enfim, um quadro negativo de “deseconomias” de escala que nos garante apenas o que já foi mencionado, ou seja, baixo crescimento e perspectivas sombrias para o futuro.
A julgar pela história exemplar de decadência continuada – em certas épocas, mais do que agravada – dos dois casos mais notórios de baixo desempenho econômico no século XX, a Grã-Bretanha e a Argentina, estamos ainda longe de termos atingido o “auge” do declínio. Em outros termos, ainda teremos muitos problemas pela frente, com um espaço ainda aberto para um desempenho ainda mais medíocre da economia e uma deterioração ainda mais sensível dos costumes políticos. Talvez tenhamos de passar, realmente, por vinte anos de decadência, como no exemplo britânico, antes de sequer pensar no caminho da recuperação. Pelo menos é isso que eu concluo, ao constatar, em pesquisas de opinião, que o brasileiro médio ainda confia no Estado como um provedor de “soluções” a seus problemas cotidianos. Pode até ser, mas certamente não será esse Estado que aí se encontra. Reverter esse quadro vai ser difícil, mas não impossível, uma vez que já começamos a reconhecer o problema.
O próprio fato de se poder apontar para a decadência econômica inevitável do Brasil, como acabo de fazer, talvez já seja o primeiro passo para a necessária tomada de consciência e de posição, num sentido contrário à tendência declinista hoje detectada. Esperemos que não tenhamos de esperar por vinte anos, ou mais, de decadência, antes de conhecer uma reversão de tendência. Estou sendo muito pessimista? Talvez, mas não vejo motivos para muito otimismo no momento e nas condições presentes...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 7 de março de 2006.

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