Ao ler esta nota, lembrei-me de um antigo trabalho meu, de mais de dez anos atrás, no qual eu já denunciava o quadro de degradação morale ética em curso no Brasil:
OAB denuncia "quadro de degradação moral e institucional" no Brasil
Em nota subscrita pelo presidente do Conselho Federal Claudio Lamachia, a
principal entidade da advocacia alerta que 'a sucessão de escândalos há
três anos incorporou-se dramaticamente à rotina do país'.
"Trata-se de um escândalo dentro do escândalo", diz Lamachia, que aduziu:
- O cidadão-contribuinte, que paga a conta de tais desmandos, não
entende como quantias estratosféricas circularam no sistema bancário,
com frequência e desenvoltura, sem que os órgãos incumbidos de
monitorá-las tenham cumprindo esse dever elementar. Se os órgãos de
fiscalização tivessem cumprido sua missão 'tais aberrações não teriam
assumido as proporções a que assistimos, levando o país à maior crise
política, econômica e moral de sua história'. Como se explica o trânsito
de malas e malas com dinheiro vivo, na escala dos milhões, como as
encontradas no apartamento do ex-ministro Geddel Vieira Lima? Sabe-se
que o saque bancário, além de determinado limite, exige esclarecimentos,
que os titulares daquelas fortunas não prestaram. O país exige essa
explicação.
OAB aponta, ainda, para as revelações do ex-ministro Antônio Palocci
(Fazenda/Casa Civil) que, na última quarta-feira, interrogado pelo juiz
federal Sérgio Moro entregou os ex-presidentes Lula e Dilma como
envolvidos em um 'pacto de sangue' com a empreiteira Odebrecht.
Meu trabalho era este aqui:
Disponível neste link de meu blog Diplomatizzando:
(recomendável em caráter
preventivo...)
Paulo Roberto
de Almeida
Colaboração a
número especial da revista Digesto
Econômico
Revista da
Associação Comercial de São Paulo.
(ano 62, n. 441, jan.-fev. 2007, p. 38-47;
ISSN: 0101-4218)
O conceito de decadência está histórica e usualmente associado às
imagens – e também às realidades – de declínio econômico, de disfuncionalidade
política, de regressão social, de queda relativa nos padrões de vida, de
desordem institucional, de involução moral, quando não ao caos gerador de
conflitos exacerbados e possível elemento-motor (“gatilho”) do colapso de toda
uma sociedade. No plano histórico, é costume citar os precedentes dos impérios
romano, bizantino, chinês, otomano ou britânico como exemplos ilustrativos de
decadência – processos que, por vezes, se arrastaram durante décadas, quando
não séculos –, levando essas sociedades a fases de crise sistêmica ou de
estagnação total, precipitando-as em “colapsos” mais ou menos prolongados e ao
seu desaparecimento ou, até, à dominação por povos mais dinâmicos e
empreendedores, alguns deles, aliás, suplantando os exemplos citados que tinham
brilhado em épocas anteriores. Numa perspectiva recente, costuma-se citar a
Grã-Bretanha contemporânea, isto é, pós-imperial e pós-Segunda Guerra, e até
mesmo a Argentina pós-1930 como exemplos reais e acabados de processos lentos e
agônicos de decadência econômica, pelo menos durante algumas décadas. Exemplos
eloquentes de decadência certamente não faltam nos livros de história.
No entanto, não é essa a percepção que possam ter tido as sociedades
referidas em relação ao seu próprio itinerário histórico, isto é, os povos e
protagonistas contemporâneos dos processos gerais descritos sumariamente acima.
Muitas vezes, o declínio econômico e a decadência política se dão em meio a
extraordinários surtos de vigor artístico e de fervor intelectual, com intensos
debates e mobilização social perpassando todas as categorias e classes da
sociedade em questão. O estado de “regressão” nem é percebido como tal, uma vez
que: a economia consegue ainda produzir em condições quase “normais”; as trocas
materiais e os intercâmbios intelectuais se fazem ainda pelos canais habituais;
os indicadores objetivos de padrões de vida continuam a apresentar traços de
“progresso” – ainda que de recuo relativo na perspectiva internacional ou
regional – e que a sociedade ainda não soçobrou na “anomia” e na
“desorganização”, a que são normalmente associados essas noções de decadência
ou de declínio.
O fato é que a decadência pode ter elementos difusos de todos esses
processos citados acima, mas pode não ser percebida como tal pelos próprios
integrantes da sociedade em questão. O sentimento geral dos cidadãos pode ser,
simplesmente, de um certo malaise, de
um mal-estar vago e indefinido, partilhado por diferentes estratos sociais e
percebido como tal por intelectuais, mas raramente expresso de forma direta e
cabal nos discursos das autoridades ou traduzidos nas propostas de ação por
candidatos alternativos ao poder político. “Entra-se” em decadência muitas
vezes sem o saber, como aquele personagem de Molière que fazia prosa involuntariamente.
Proponho-me, neste curto ensaio analítico, traçar os elementos
principais de uma pequena radiografia da decadência, de maneira a subsidiar,
talvez, diagnósticos mais precisos de situações concretas que possam preocupar
os leitores eventuais deste “manual” de identificação dos sinais precursores de
uma decadência anunciada (não necessariamente percebida). Assim, pode-se
saber que um país, ou uma sociedade, está em decadência quando:
1. O sentimento de mal-estar se torna generalizado
na sociedade, ainda que possa ser difuso.
2. Os avanços econômicos são lentos, ou menores, em
relação a outros povos e sociedades.
3. Os progressos sociais são igualmente lentos ou
repartidos de maneira desigual.
4. A lei passa a não ser mais respeitada pelos
cidadãos ou pelos próprios agentes públicos.
5. As elites se tornam autocentradas, focadas
exclusivamente no seu benefício próprio.
6. A corrupção é disseminada nos diversos canais de
intermediação dos intercâmbios sociais.
7. Há uma desafeição pelas causas nacionais, com
ascensão de corporatismos e particularismos.
8. A cultura da integração na corrente nacional é
substituída por reivindicações exclusivistas.
9. A geração corrente não se preocupa com a
seguinte, nos planos fiscal, ambiental ou outros.
10. Ocorre a degradação moral ou ética nos
costumes, a despeito mesmo de “avanços” materiais.
Algumas considerações rápidas sobre cada um dos elementos listados,
sumariamente, acima são necessárias, se quisermos que este “minitratado” da
decadência possa ser efetivamente utilizado como uma espécie de manual para sua
prevenção ou para a eventual correção de curso. Serei, tanto quanto possível,
conciso, sem ater-me a exemplos conhecidos em processos concretos, mais ou
menos identificados pelo leitor ocasional.
1. Malaise
generalizado e difuso na sociedade.
Na verdade, o mal-estar que costuma atingir sociedades e povos em
decadência efetiva é mais um resultado dos próprios processos de “involução” já
em curso, do que um sinal precursor desse itinerário “regressista”. De fato, o
sentimento de incerteza quanto ao futuro costuma perpassar de maneira difusa os
diferentes estratos sociais mobilizados nas atividades correntes da sociedade
em questão. A literatura consegue captar, antes mesmo de diagnósticos
“sociológicos”, essa sensação de desconforto em relação aos padrões vigentes,
que é também vista e interpretada nas artes em geral, por meio de peças e
demonstrações de “ruptura” em relação às normas sociais comumente aceitas e
“consumidas” pelos estratos sociais incluídos nas transações correntes. O
sentimento de fin d’une époque, ou de
esgotamento de um “ciclo”, é geralmente percebido pelos espíritos mais argutos,
mas o desconforto com o “estado reinante” das coisas se dissemina de modo
generalizado em camadas mais amplas da sociedade. Ocorre uma desafeição em
relação à cultura predominante, mas não se consegue propor ou viabilizar
padrões ou modelos alternativos que sejam eficientes ou implementáveis. Os
custos da transição para “algo mais racional” são considerados por todos como
muito elevados, em vista dos pactos vigentes, e a sociedade se acomoda na
resignação e no déjà vu.
2. Avanços econômicos lentos, em perspectiva
comparada.
A decadência não significa, necessariamente, retrocesso econômico
absoluto ou mesmo uma deterioração das condições prevalecentes no plano da
organização social da produção. Ao contrário, podem até ocorrer avanços
tecnológicos, progressos científicos e melhoras nos padrões vigentes de
produção, tendo em vista capacidades técnicas e habilidades gerenciais já
acumuladas pela sociedade. Uma sociedade pode avançar, em suas próprias
realizações, e mesmo assim ser ultrapassada relativamente por outras, mais
dinâmicas, empreendedoras e inovadoras. O declínio relativo é geralmente o
resultado de uma queda nos índices de produtividade, a perda progressiva de
competitividade, um recuo nos espaços anteriormente ocupados no âmbito
internacional e um lento movimento para escalões inferiores em rankings setoriais de classificação de
países.
Os processos de divergência entre os povos e sociedades resultam,
geralmente, de longas fases de crescimento (ou falta de), mais do que de altas
taxas ocasionais de expansão do produto. O desenvolvimento pode ocorrer
pari-passu a baixas taxas – mas sustentadas – de crescimento econômico, sendo
que expansões rápidas podem ser contrarrestadas por surtos inflacionários ou
crises sistêmicas que produzem perdas do produto social e erosão do poder de
compra da moeda nacional. O elemento propulsor do processo de desenvolvimento
são os ganhos de produtividade, que produzem, no registro histórico, os
fenômenos de convergência ou de divergência entre os povos e economias
nacionais. As sociedades humanas progrediram muito lentamente durante os
milhares de anos de revolução agrícola neolítica e civilizacional-urbana, para
conhecer, dois séculos e meio de rápidos progressos nos indicadores de
bem-estar a partir da primeira e da segunda revolução industrial. A partir
desta, os progressos se tornaram contínuos, autogerados e induzidos pelo próprio
avanço científico-tecnológico anterior, configurando aquilo que, em termos
marxistas, poderia ser chamado de “modo inventivo de produção”. Este foi, antes
de qualquer outra, uma peculiaridade das sociedades ditas “ocidentais”, mas
tende a se disseminar ao conjunto do planeta, com o término dos obstáculos
políticos ao processo de globalização.
Nem todas as sociedades conseguem replicar ou reproduzir, mesmo por
mimetismo, o padrão de progresso tecnológico do Ocidente desenvolvido. Mas
todas elas se encontram, hoje, medianamente dotadas de condições mínimas para
fazê-lo, a partir dos progressos dos meios de comunicação e de difusão dos
conhecimentos científicos (amplamente disponíveis nos veículos existentes, à
diferença do know-how e da tecnologia
proprietária, estes bem mais restritos). O fato de uma sociedade recuar
economicamente, ainda que de modo relativo, pode ser explicado, tão
simplesmente, por sua incapacidade em dotar os seus cidadãos dos requisitos
mínimos de ensino formal e de educação elementar, suscetíveis de os converterem
em “absorvedores” do saber técnico já disponível universalmente nos canais
abertos de difusão de conhecimento. Não se trata aqui, necessariamente, de
padrões de ensino pós-graduado ou especializado, mas basicamente da existência
de ensino fundamental de boa qualidade para o conjunto dos cidadãos.
3. Distribuição desigual dos lentos progressos sociais
alcançados.
Comportamentos “rentistas”, isto é, apropriação de bens públicos por
grupos organizados que têm acesso aos canais oficiais de distribuição de
recursos, geram um desestímulo à inovação e à produção pelos agentes econômicos
privados. Isso pode ocorrer, e geralmente ocorre, no caso da disponibilidade de
abundantes recursos naturais – terras, minérios, commodities primárias – que passam a ser explorados por via de
algum tipo de organização estatal, mesmo indireta. Fala-se da “maldição do
petróleo”, por exemplo, como um caso típico de ganhos fáceis apropriados de
maneira desigual por elites que se organizam para “redistribuir” esses recursos
abundantes, o que desvia a atenção dos agentes privados de investimentos em
atividades alternativas: toda a atenção passa a ser focada na “captura” da
renda disponível na economia nacional.
Mesmo na ausência de uma fonte abundante de recursos naturais,
comportamentos rentistas podem disseminar entre os estratos dominantes – ou
dirigentes – na sociedade, se a regulação institucional é feita mais por via
estatal do que por meio da própria sociedade. O Estado sempre constituiu um
poderoso meio de redistribuição da riqueza social para os grupos que o
controlam e manipulam em seu favor. Não há aqui nenhuma prevenção a priori contra o Estado, uma vez que
ele é necessário mesmo para criar o laissez-faire,
ou seja, lutar contra os trusts e cartéis, assegurar a competição, garantir o
cumprimento dos contratos e, de forma geral, defender os direitos de
propriedade. Ocorre, porém, que o Estado é também um forte indutor de
redistributivismo regressivo, isto é, o recolhimento compulsório de recursos de
todos os cidadãos, produtores e consumidores, e o seu “redirecionamento”
segundo critérios políticos determinados.
Em todos os casos de declínio conhecidos, o Estado serviu
precisamente para esse tipo de redistribuição perversa dos recursos públicos,
gerando o fenômeno conhecido pelos economistas como “crowding-out”, isto é, a
captura da poupança privada pelo próprio Estado e pelos rentistas profissionais
e sua apropriação pelo próprio Estado (e seus amigos), o que provoca
deseconomias de escala e erosão do investimento produtivo. Os grupos
politicamente mais bem articulados conseguem acesso aos planejadores e
legisladores do orçamento público, deixando ao relento os setores menos
organizados. Isso geralmente implica em concentração de renda e ausência de um mercado
interno dinâmico. Os exemplos de declínio e de estagnação coincidem,
justamente, com o que Veblen chamaria de “consumo conspícuo” das elites, em
total indiferença em relação ao conjunto dos cidadãos.
Não se pense, por fim, que tudo se faz em benefício do “grande
capital monopolista” e em detrimento da “classe trabalhadora”. Sindicatos são
máquinas organizadas para criar escassez de mão-de-obra e para produzir
desemprego, atuando em perfeita sincronia – nem sempre funcional, é verdade –
com os sindicatos de patrões, com vistas a extorquir recursos do resto da
sociedade desorganizada. Viceja, nos casos típicos de declínio econômico
prolongado, uma espécie de “pacto perverso”, pelo qual ambos sindicatos entram
em conluio – algumas vezes de forma involuntária ou até inconsciente – em favor
de seus ganhos respectivos, repassando os custos para o resto da sociedade. A
desigualdade distributiva nem sempre é “aristocrática”...
4. Não acatamento da lei pelos cidadãos e pelos
próprios agentes públicos.
A decadência, como já afirmado, nem sempre se traduz em pobreza
material, ao contrário, pois sociedades decadentes são, igualmente, sistemas de
relativa abundância, pelo menos para os privilegiados. Mas, a decadência
verdadeira sempre implica em miséria moral, a começar por um sistemático, no
começo sutil, depois disseminado, desrespeito à lei e às boas normas de
convivência. Uma sociedade não começa a decair com o aumento da delinquência
comum e com a expansão da criminalidade de baixa extração, mas justamente com o
desprezo pela lei por parte dos poderosos e dos próprios encarregados de manter
a ordem. Sociedades patrimonialistas são naturalmente mais propensas a esse
tipo de corrupção moral, como evidenciado na trajetória do império otomano, mas
nem mesmo sistemas “tecnocráticos” estão imunes a esse tipo de evolução
involutiva, se é possível este tipo de trajetória. O império chinês, com seu
imenso corpo de mandarins bem treinados, talvez tenha conhecido itinerário
semelhante, antes mesmo de o país ser invadido e humilhado pelos imperialistas
ocidentais (e depois japoneses).
O desrespeito à lei, ou mesmo a contravenção pura e simples por
parte dos poderosos, constituem o traço mais visível do declínio moral de uma
sociedade. Quando as suas elites, em especial o seu corpo dirigente, recorrem a
expedientes escusos, quando não a práticas claramente criminosas, para extrair
benefícios para si, pode-se constatar que a sociedade caminha célere para a sua
decadência. Não se deve, porém, confundir, artifícios ilegais, ou no limite da
legalidade, empregados por algumas elites econômicas – como caixa dois, elisão
ou evasão fiscal ou ainda pagamentos por fora – como representando
necessariamente sinônimo de decadência. O setor produtivo pode ser
especialmente competitivo e gerencialmente capaz, apenas que penalizado por um
Estado voraz, por dirigentes políticos de comportamento predatório, sendo
levado a utilizar-se do recurso a esse tipo de expediente como uma forma de
“defesa patrimonial”. É, aliás, o que fazem a maioria dos cidadãos que buscam
evadir o fisco, uma vez que adquiriram a consciência de que os impostos pagos
diretamente e os tributos recolhidos indiretamente não retornam
proporcionalmente sob a forma de serviços públicos.
A ilegalidade se dissemina paulatinamente na sociedade e se converte
em uma “segunda natureza” do cidadão comum e do empresário: ninguém se
“arrisca” a ser totalmente honesto, uma vez que isto representaria a
inviabilidade do seu negócio ou a “extração compulsória” seria demais onerosa
no plano das rendas individuais. Pouco a pouco, a corrupção e a contravenção se
instalam em todos os poros da sociedade e ela, sem perceber, caminha
rapidamente para o que chamamos de decadência.
5. Elites distantes da sociedade e focadas no seu
benefício próprio.
Esta é uma outra manifestação do mesmo comportamento descrito acima,
apenas que os meios são absolutamente legais, ainda que ilegítimos, e redundam
quase sempre nos mesmos efeitos já referenciados no rentismo perverso e no
redistributivismo desigual. Responsáveis políticos se ocupam não tanto de
legislar para a sociedade, mas em causa própria. Os meios passam a absorver uma
proporção crescente dos recursos voltados para determinados fins. Isto
geralmente se dá no setor legislativo, mas pode perfeitamente ocorrer nos meios
judiciários e, igualmente, em corporações de ofício que se organizam
burocraticamente no âmbito do poder executivo. A representação política deixa
de constituir um mandato conferido pela sociedade para o desempenho das funções
que lhe são próprias para converter-se em um fim em si mesmo.
Esses traços de comportamento não são exclusivos da representação
política, embora eles sempre se reproduzam no estamento político. Elites
rentistas, de modo geral, desenvolvem essa indiferença em relação à sociedade,
cuja simbologia mais famosa – ainda que provavelmente equivocada – é
historicamente representada pela frase de Maria Antonieta sobre os brioches que
o povo deveria comer, no lugar do pão comum. Elites aristocráticas do ancien Régime, na França e na Rússia
czarista, foram em grande medida responsáveis pela desafeição do povo em
relação às suas elites, contribuindo para a derrocada dos respectivos regimes
políticos ao se operar um claro divórcio entre suas concepções do mundo. O apartheid social, mais até no plano
mental do que no âmbito material, costuma ser construído por minorias ativas,
nem todas elas privilegiadas, mas sempre elitistas em relação à massa da
sociedade.
Por vezes, uma elite “subversiva” se apossa do poder e passa a
exibir os mesmos traços de comportamento que o das elites antes privilegiadas,
numa típica reprodução da fábula contida em Animal
Farm, segundo a qual “todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que
outros”.
6. Corrupção disseminada nas transações sociais de
maneira geral.
O cimento mais poderoso em todas as sociedades organizadas é a
confiança: não só na palavra dada, no plano individual, mas também na moeda, na
observância da lei em caráter impessoal, no cumprimento dos contratos e,
sobretudo, na certeza da punição em caso de ações “desviantes”. O que mantém o
poder de compra de uma moeda, por exemplo, não é tanto a força absoluta de uma
economia, mas a confiança de que seu valor de face não será abalado por atos
arbitrários das autoridades emissoras, medidas intervencionistas que afetem sua
liquidez ou alguma ameaça de confisco, mesmo indireto.
A incerteza jurídica – por vezes trazida pelos próprios juízes, que
não se contentam em interpretar a lei, preferindo criá-la, ou colocá-la a
serviço de alguma causa “social” – está na origem do desrespeito aos contratos
e, portanto, no aumento dos custos de transação. Setores da sociedade passam a
desenvolver formas próprias, geralmente informais, de intercâmbio, que podem
englobar um volume crescente de atividades. Sociedades decadentes são,
geralmente, sociedades nas quais a informalidade recobre grande parte da
população economicamente ativa e uma fração significativa do produto social. Um
Estado “extrator” pode também ser o responsável direto pela “expulsão” do
mercado formal de agentes econômicos privados que não encontram nenhuma
vantagem em se colocar à margem da legalidade, mas que não conseguem se
enquadrar nas regras existentes. Na verdade um cipoal de regulamentos
estabelecido justamente para vigiar o cumprimento de uma legislação barroca no
plano regulatório.
A sociedade como um todo passa a se acostumar com a modalidade
informal de se completarem as transações e, ao fim e ao cabo, os intercâmbios
legais passam a cobrir uma fração cada vez menor do conjunto das trocas
sociais. A sociedade de “desconfiança” afeta a todos os participantes do
mercado, gerando graus crescentes de anomia e de deterioração dos costumes
básicos. A sociedade em questão está “pronta” para aprofundar seu processo de
decadência.
7. Avanço dos corporatismos e particularismos, em
detrimento das “causas nacionais”.
A fragmentação da representação política e social nos diversos
corpos constitutivos da sociedade cria uma colcha de retalhos de difícil
administração institucional. Para que grandes reformas estruturais se façam – e
toda sociedade requer, periodicamente, adaptação às novas condições ambientais
externas e às suas próprias transformações internas, demográficas e outras –,
as diferentes partes da sociedade precisam estabelecer um pacto de convivência,
no qual todos cedem um pouco para que as mudanças possam ser implementadas. A
perseguição de objetivos particularistas por grupos sociais organizados,
geralmente com vistas a se alcançar metas setoriais e exclusivas, inviabiliza
qualquer “projeto nacional” digno desse nome (ainda que essa figura seja antes
um mito do que uma realidade, pois “projetos” bem executados geralmente
resultam da ação decisiva de uma pequena elite de “iluminados”, quando não de
um líder carismático atuando como estadista).
O fato é que os processos de decadência também são caracterizados
pela existência de “projetos fragmentários”, condizentes com o perfil já
fortemente sindicalizado dessa sociedade. Não é incomum a representação
política passar da dominância de próceres cosmopolitas, da elite, mas dotados
de uma visão do mundo não provinciana, para “delegados de categoria”, eleitos
por um grupo de interesse restrito (de caráter sindical, setorial ou
religioso). O processo legislativo se divide então em uma miríade de demandas
particularistas, que esquartejam o orçamento nacional e transformam o
planejamento público em uma assemblagem de partes heteróclitas. Congela-se a
possibilidade de atuar nas grandes causas, pois o mercado político converte-se
num bazar de compra e venda de projetos setoriais e fragmentários. Um indicador
fiável dessa tendência é dada por meio de consulta a um calendário-agenda: a
sociedade estará tão mais próxima da decadência quanto mais dias do ano são
dedicados a homenagear categorias profissionais...
8. Grupos sociais particulares pretendem distinguir-se
do conjunto da sociedade.
A chamada “identidade nacional” – um conceito difuso e frequentemente
mal interpretado – constitui um dos traços mais conspícuos da psicologia de
massas. Uma sociedade dinâmica ostenta um forte sentimento de inclusividade e
de identificação com os símbolos nacionais, sejam eles realidades históricas
tangíveis, sejam eles simples mitos criados para fortalecer o processo de Nation building. Em qualquer hipótese, o
sentimento de pertencimento – status
de appartenance ou membership – a um corpo social ou humano
relativamente homogêneo é um poderoso cimento da identidade nacional, o que não
impede, obviamente, particularidades regionais, traços étnicos ou
especificidades culturais próprias a sociedades complexas, racialmente diversas
e dotadas de origens “multinacionais”. O ideal de toda sociedade integrada e
orgulhosa de sê-lo é, justamente, conseguir passar do estágio simplesmente
“multinacional” para o de “sociedade multirracial”, o que deveria ser o
objetivo de toda comunidade inclusiva, uma vez que tal característica destrói
as próprias bases de qualquer manifestação de racismo ou apartheid.
A desafeição em relação à fusão dos particularismos raciais ou
culturais no mainstream social e
humano nacional enfraquece a noção de identidade nacional e reforça a noção
artificial de aparteísmo. Este tipo de divisor precisa ser construído
politicamente, uma vez que se adota como suposto básico a unidade fundamental
do gênero humano. A divisão é, geralmente, obra de ativistas e militantes de
uma causa que se julga legítima, cujas raízes encontram fundamentação histórica
em opressões seculares, que se pretende transplantar para o presente, como
forma de preservar antigas particularidades raciais, linguísticas ou
religiosas, que já estavam prontas a se fundir no poderoso molde nacional. A
conformação política de uma cultura distinta da nacional reforça manifestações
de racismo ao contrário, pois que as propostas são geralmente feitas para eliminar
supostos focos de “racismo”. O apartheid também pode ser construído por
minorias...
9. Irresponsabilidade intergeracional, nos terrenos
fiscal ou ambiental, entre outros.
O desejo de preservar o status
quo, ou a inconsciência quanto à constante necessidade de ajustes e
adaptações às condições “ambientais”, nacionais ou internacionais, sempre
cambiantes, fazem com que gerações do presente eventualmente atuem de maneira
irresponsável em relação àquelas que as sucederão. Historicamente, o problema
sempre esteve associado à depredação do meio ambiente e à extinção de espécies
animais, alterando o equilíbrio natural e ameaçando a sustentabilidade de
sistemas econômicos inteiros. Contemporaneamente, a questão tende a se revestir
de características econômicas bem marcadas, tendo a ver com a trajetória
avassaladora do Estado moderno e sua voracidade fiscal, não em benefício
próprio, obviamente, uma vez que o Estado é uma entidade impessoal, mas em
favor de grupos ou categorias dispondo de condições de acesso e de manipulação
dos mecanismos de intervenção pública.
Nos casos mais graves, o conjunto da sociedade pode atuar de maneira
irresponsável, ao sustentar escolhas que representam uma clara preferência pelo
bem-estar presente, em detrimento do amanhã. Seja nos esquemas de previdência
social, seja nas instituições educacionais, ou ainda em matéria de déficits
orçamentários e dívida pública, opções erradas e a visão imediatista dos
responsáveis políticos, sustentados pela inconsciência da maioria, criam pesadas
hipotecas de médio e longo prazo que deverão, em algum momento, ser resgatadas
pelos sucessores, aqui entendidos como o conjunto da sociedade de uma ou duas
gerações mais à frente. O declínio pode até não ser visível no próprio momento
das decisões, mas o que se está fazendo, na verdade, é “contratar” a decadência
futura.
10. Degradação ética e moral, independentemente de
“progressos” técnicos.
Edward Gibbon, em seu justamente celebrado História do Declínio e Queda do Império Romano, tende a ver a
decadência de Roma como o resultado da perda de “valores cívicos” por parte dos
cidadãos do império, a começar pelos patrícios, que delegaram aos bárbaros
tarefas que eles deveriam ter assumido diretamente. Ele também atacou a
influência do cristianismo, como possível fator de afastamento do antigo
espírito marcial e guerreiro, que tinha feito, no início, o sucesso da
república e do império. Seja como for, a perda de objetivos claros quanto ao
futuro, certa resignação em face das dificuldades do presente e a busca de
prazeres imediatos em lugar da frugalidade produtiva e empreendedora podem ser
sinais precursores da decadência.
Curiosamente, nenhum dos exemplos históricos tidos como ilustrativos
ou emblemáticos desse tipo de processo pode ser considerado um insucesso
absoluto na cultura ou nas artes. O vigor da produção cultural continua a todo
vapor no momento mesmo em que essas sociedades passam a enfrentar problemas na
economia e na inovação. Não há um elemento singular ou único que “anuncie” a
decadência, mas um conjunto de comportamentos sociais e de reações que indica
forte deterioração da solidariedade social e uma crescente anomia em relação
aos valores básicos da sociedade. A falta de confiança nas instituições
políticas e a forte desconfiança das motivações de outros grupos sociais fazem
com que líderes e liderados não mais se sintam comprometidos com o mesmo
conjunto de valores, passando a ocorrer manifestações de introversão e de
egoísmo que logo superam a identificação com a pátria e a nação.
Em síntese, existe um “espírito” de decadência quando os setores
produtivos, em especial os empresários mais politicamente ativos, se mostram
resignados ante a presença avassaladora do Estado, que lhes tolhe os
movimentos, impõe regras e lhes retira a substância da atividade econômica, que
é o lucro e os excedentes para investir. Existe decadência quando os
intelectuais e os universitários, de uma forma geral, se conformam ante o culto
à ignorância exibido por certos grupos sociais ou líderes supostamente
carismáticos ou “salvacionistas”. Existe decadência quando autoridades
nacionais, a começar pelos encarregados da preservação da ordem jurídica e
institucional, deixam de lado suas obrigações profissionais para cuidar de
prosaicos interesses pessoais, pecuniários antes de tudo. Existe decadência
quando o cidadão comum não vê qualquer motivo para preservar o patrimônio
coletivo, demonstrando total inconsciência quanto ao dever de respeitar a
herança das gerações precedentes e a necessidade de repassar às que seguirão a sua
própria um ambiente melhor do que aquele recebido dos ancestrais.
Em suma, os sinais materiais, ou externos, da decadência nem sempre
são os que contam na avaliação dos “progressos” dessa inacreditável marcha para
trás na jornada das sociedades. A insensatez quanto aos rumos da história
também se manifesta, antes de tudo, por uma pura e simples inconsciência.
Manuais práticos de decadência podem ser um preventivo útil na inversão da
trajetória. Basta saber consultá-los...
Brasília,
31 janeiro 2007.
Já que estamos falando de problemas brasileiros para crescer, vamos dramatizar o quadro.
Não que eu queira ser pessimista, mas por puro acaso.
Eu estava compondo uma lista de livros sobre relações internacionais e
de política externa do Brasil, e dentro dela os livros escritos por
diplomatas (em qualquer gênero, aliás), quando deparei com este
registro, de um trabalho que já não me lembrava mais ter escrito:
1557. “
A decadência econômica brasileira: uma inevitável tendência pelos próximos vinte anos?”
Brasília, 7 de março de 2006, 5 p.
Publicado no blog do Instituto Millenium em 8.03.06 (
link). Reproduzido no site do Instituto Internacional de Planejamento Educacional (
link).
Desparecidos nestes links nos dois sites.
Relação de publicados nº 630.
Procurei nos links, e eles obviamente já não funcionavam mais. Por isso vai aqui postado gentilmente.
Não, não sou pessimista, apenas realista...
Paulo Roberto de Almeida
A decadência econômica brasileira: uma inevitável tendência pelos próximos vinte anos?
Paulo Roberto de Almeida
Peço desculpas aos meus leitores pelo tom passavelmente pessimista,
quando não francamente niilista, do título deste artigo, mas é que não
pude evitar certa sensação de desalento (e talvez também de inveja) ao
ler sobre o recente e espetacular recorde na captação de investimentos
estrangeiros diretos pela Grã-Bretanha no decorrer de 2005. Nada menos
do que US$ 209 bilhões, ultrapassando em muito o segundo colocado, os
EUA, que figuram há muitos anos no primeiro lugar, tanto como receptor
quanto como principal investidor, seguido, nos últimos dez anos, pela
China, como segundo colocado do lado da captação (com cerca de US$ 60
bilhões) e primeiro dos países emergentes. Comparados aos pouco mais de
US$ 15 bilhões obtidos pelo Brasil em 2005, a cifra é realmente
impressionante para qualquer país engajado no processo de globalização.
Mesmo descontando-se, da cifra britânica, US$ 100 bilhões relativos a
operações da Shell, que concentrou suas operações a partir da Holanda,
remetendo então recursos aos sócios ingleses, ainda assim a Grã-Bretanha
ultrapassa os EUA, que “só” atraíram 106 bilhões de dólares em 2005.
Trata-se de um notável feito da economia britânica, hoje,
inquestionavelmente, o melhor lugar europeu – e provavelmente mundial,
pelo lado financeiro – para se fazer negócios e desenvolver novos
projetos, nas diversas áreas da nova e da velha economia, quer seja a
indústria manufatureira, quer sejam os “novos serviços”, um conglomerado
de atividades que junta tecnologias da informação e pesquisa de ponta
em nano ou em biotecnologia. Ele é tanto mais notável em vista do fato
de que, duas décadas atrás, a Grã-Bretanha era um dos piores lugares do
mundo para se começar novos negócios ou mesmo para manter os existentes.
Como isso foi possível?
Lembro-me de que quando eu estava terminando minha tese de doutoramento,
em 1984, uma digressão aborrecidamente sociológica sobre os desempenhos
capitalistas em escala comparada, a Grã-Bretanha era o protótipo mesmo
da decadência econômica, o exemplo acabado de declínio industrial, um
modelo notório do atraso tecnológico, da desesperança científica – com
sua exportação contínua de cérebros para os EUA – e do desalento
político, de que eram testemunhos os freqüentes movimentos grevistas,
que conseguiam paralisar até mesmo o enterro dos mortos (um serviço
obviamente estatal). Em escala e em estilo talvez diferentes de um outro
notável exemplo de decadência, o da Argentina, mas numa dimensão
provavelmente comparável à da nação “peronista”, pela amplitude e
profundidade do declínio econômico auto-infligido, a Grã-Bretanha,
promotora e pioneira da primeira revolução industrial e centro
indisputável das finanças internacionais nos 150 anos que seguem aos
conflitos napoleônicos, tinha sido vítima, durante todo o século XX, mas
mais especialmente no decorrer dos anos 60 e 70 desse século, de um dos
mais acabados processos de decadência econômica a que nos foi dado
assistir na história econômica mundial.
Lembro-me também que minha bibliografia sobre o “caso” inglês vinha
marcada pelos conceitos de “decline”, “fall”, “end” e vários outros do
gênero. Naqueles tempos – final dos anos 1970 e início da década
seguinte – não parecia haver nenhum limite para a extensão da decadência
britânica. Ela era feita de baixo crescimento, inflação, déficits
orçamentários e de transações correntes, desvalorização da libra,
“sucateamento” da indústria e dos transportes, deterioração dos serviços
públicos – notadamente nas áreas da saúde e da educação –, aumento da
violência nas metrópoles, enrijecimento dos conflitos sociais,
empobrecimento dos equipamentos urbanos, desemprego mais do que residual
ou setorial e desesperança geral na sociedade, em especial na
juventude. O cenário estava mais para “Laranja Mecânica” do que para “A
Wonderful World”, mais para George Orwell do que para Winston Churchill e
seu otimismo inveterado quanto ao futuro do império, que aliás já não
existia mais, tendo sido irremediavelmente deixado num passado distante
de glórias irrecuperáveis.
E, no entanto, vinte anos depois, o que ocorreu? Um notável
“renascimento” da indústria e dos negócios na Grã-Bretanha – mais
notavelmente ainda na Irlanda vizinha, não esquecer –, um surto de
progresso e de modernização que não deixa nada a invejar nos melhores
centros da tecnologia mundial, uma recuperação econômica segura, que fez
do país o mais dinâmico membro – com a Irlanda – da União Européia,
exibindo, ao mesmo tempo, as maiores taxas de crescimento e as menores
de desemprego e inflação. Trata-se, como já dito, do melhor lugar para
se fazer negócios no continente – mas a Grã-Bretanha sempre brincou com a
idéia de que o continente é que vivia “isolado” –, o que vem apoiado no
fato de que os investimentos estrangeiros, inclusive dos emergentes da
Ásia, têm-se concentrado na ilha. Como foi isso possível, volto a
perguntar?
Não pretendo retomar aqui a história da “batalha ideológica” do século
XX, já enfaticamente tratada no livro – e vídeo – conjunto de Daniel
Yergin e Joseph Stanislaw sobre a luta pelo controle e administração dos
commanding heights da economia. Essa batalha política entre os modelos
de comando centralizado e de administração pelo mercado se encerrou e
não é preciso dizer quem venceu. A Inglaterra lutou o bom combate e
conseguiu reverter sua terrível decadência econômica e política. Antes
disso, porém, a batalha foi dura: ela teve, primeiro, de ser levada nos
“corações e mentes” dos cidadãos britânicos, nos súditos da rainha, para
convencê-los de que a decadência não era inevitável ou uma fatalidade
do destino, de que era possível, sim, colocar um ponto final na descida
para o declínio social e começar lentamente a obra de recuperação.
Depois foi preciso se desfazer de velhos mitos – e não apenas mitos, já
que respondendo a construções históricas de seu passado mais ou menos
“fabiano” – ligados aos papéis respectivos do Estado e do mercado no
provimento de emprego e bem-estar social, de modo geral. Foi uma
tremenda “reversão de expectativas”, como diria, em relação ao Brasil, o
economista Roberto Campos:
Margareth Tatcher teve de sustentar lutas políticas e batalhas literais
contra os interesses corporativos consolidados no antigo modelo de
“welfare state”, que de “welfare” já não tinha nada e cujo “estado” era
um corpo disforme, esgarçado entre as tendências protecionistas da velha
indústria, os protestos enraivecidos (mas puramente de retaguarda) dos
sindicatos dos setores estatizados e o desalento geral da maioria da
população. Foi uma luta terrível para livrar a Grã-Bretanha do “pacto
perverso” entre o Labour e a TUC – Trade Union Congress, a confederação
sindical – que, durante a maior parte do pós-Segunda Guerra, tinha
conduzido o país direto para a decadência, ao garantir aumentos reais de
salários para os setores assim protegidos e ao repassar os custos para o
conjunto da sociedade. Foi como se, no Brasil, a CUT e a FIESP, por
hipótese no exercício do poder central, tivessem “complotado”, durante
anos a fio, para se concederem e assim garantirem, reciprocamente,
aumentos generosos de preços e de salários, repassando em seguida a
conta para os contribuintes e consumidores, o que aliás não deixou de
existir, de certo modo, durante as fases de alta inflação no Brasil.
Trata-se da mais segura receita para inviabilizar qualquer processo de
crescimento com estabilidade que se possa conhecer e ela foi seguida,
conscientemente ou não, por vários governos britânicos durante boa parte
da segunda metade do século XX na Inglaterra.
Pois bem, isso agora acabou, e a Grã-Bretanha renasce de sua antiga
decadência, renovação tanto mais segura de continuar que o “novo Labour”
aderiu ao processo e ao modelo iniciados por Lady Tatcher e deles não
pretende se desvencilhar. Um pouco, aliás, como vêm fazendo os
socialistas e democratas chilenos, que herdaram do período militar uma
gestão mais ou menos em ordem e uma economia em franco crescimento nos
quadros da globalização e da liberalização comercial. Alguma lição a
tirar?
Claro que sim, e a primeira lição a tirar seria, além da inveja, desejar
sorte e sucesso continuado a britânicos e chilenos, que podem desfrutar
de baixo desemprego, estabilidade de preços, aumento razoável das
expectativas de bem-estar, diminuição das “deseconomias” e das
externalidades negativas associadas à má gestão da economia, melhora,
ainda que gradual, nos padrões gerais dos serviços públicos – ou
privados, não importa muito a forma de provimento – relativos à saúde,
educação, facilidades urbanas em transporte, segurança etc. Enfim, sem
ser preciso nenhuma revolução ou mudança dramática na situação corrente,
deve ser melhor viver numa sociedade que conhece progressos
incrementais nas condições de vida do que numa outra que, por hipótese,
afunde progressivamente na delinqüência, no desemprego, na inflação, na
deterioração dos equipamentos sociais, na compressão do poder de compra,
na desesperança trazida pela sensação de aumento na corrupção política,
enfim, que se debata com vários males de que padecem hoje muitos países
ao redor do mundo.
E o que tem nosso país a ver com isso tudo? O Brasil conhece alguns
desses males e, felizmente, está ao abrigo de outros, como poderia ser a
inflação galopante que ameaça, mais uma vez, a vizinha Argentina, ou a
instabilidade política, que já arrastou mais de um presidente para fora
dos palácios presidenciais em outros países da região. Mas, nós acabamos
de nos converter, junto com o infeliz Haiti, em campeões do baixo
crescimento e da carga fiscal, aqui exclusivamente. Mais ainda,
conhecendo a trajetória das contas públicas nos próximos anos, não
hesito em dizer que teremos anos negros pela frente e, conhecendo também
as atuais condições para a atividade empresarial e o ambiente geral dos
negócios, tampouco hesito em dizer que o Brasil reúne, sem sombra de
dúvida, todos os requisitos para NÃO CRESCER no futuro previsível.
Se essa trajetória não for revertida, a conclusão inevitável me parece
ser apenas esta: caminhamos inevitavelmente para a decadência econômica,
o baixo crescimento continuado, o desemprego mantido em altas taxas, a
desesperança social convertida em humor nacional e o desalento
generalizado quanto à capacidade dos nossos políticos em mudar esse
quadro de declínio. O Brasil, por certo, não é um país decadente, em
espírito ou disposição para a luta, mas ele parece hoje paralisado por
um modelo de organização “estatal” da economia que nos garante, apenas e
tão somente, isso que vemos: baixo crescimento, incapacidade de
investimentos, “despoupança” líquida dos recursos do setor privado por
uma máquina estatal prebendalística e perdulária, comportamentos
rentistas das corporações que “assaltaram”, literalmente, o Estado,
enfim, um quadro negativo de “deseconomias” de escala que nos garante
apenas o que já foi mencionado, ou seja, baixo crescimento e
perspectivas sombrias para o futuro.
A julgar pela história exemplar de decadência continuada – em certas
épocas, mais do que agravada – dos dois casos mais notórios de baixo
desempenho econômico no século XX, a Grã-Bretanha e a Argentina, estamos
ainda longe de termos atingido o “auge” do declínio. Em outros termos,
ainda teremos muitos problemas pela frente, com um espaço ainda aberto
para um desempenho ainda mais medíocre da economia e uma deterioração
ainda mais sensível dos costumes políticos. Talvez tenhamos de passar,
realmente, por vinte anos de decadência, como no exemplo britânico,
antes de sequer pensar no caminho da recuperação. Pelo menos é isso que
eu concluo, ao constatar, em pesquisas de opinião, que o brasileiro
médio ainda confia no Estado como um provedor de “soluções” a seus
problemas cotidianos. Pode até ser, mas certamente não será esse Estado
que aí se encontra. Reverter esse quadro vai ser difícil, mas não
impossível, uma vez que já começamos a reconhecer o problema.
O próprio fato de se poder apontar para a decadência econômica
inevitável do Brasil, como acabo de fazer, talvez já seja o primeiro
passo para a necessária tomada de consciência e de posição, num sentido
contrário à tendência declinista hoje detectada. Esperemos que não
tenhamos de esperar por vinte anos, ou mais, de decadência, antes de
conhecer uma reversão de tendência. Estou sendo muito pessimista?
Talvez, mas não vejo motivos para muito otimismo no momento e nas
condições presentes...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 7 de março de 2006.