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segunda-feira, 12 de setembro de 2022

A independência do Brasil e a formação da diplomacia brasileira - Paulo Roberto de Almeida

 Um dos meus trabalhos mais recentes (mas eu já estou no trabalho 4238), para uma conversa que vou ter com meu amigo Alex Catharino, na companhia do professor Guilherme Diniz. 

4233. “A Independência do Brasil e a formação da diplomacia brasileira”, Brasília, 8 setembro 2022, 10 p. Notas para evento da Confraria Conservadora, coordenado por Alex Catharino, com a participação de Guilherme Diniz, do curso Ubique (@BrasilBrasil); dia 14/09, 20:00hs. 

Trata-se de uma versão resumida de trabalho mais amplo – mas totalmente diferente na forma e na finalidade – que elaborei para os Cadernos di CHDD, Centro de História e Documentação Diplomática, este aqui: 4234. “Historiografia da independência: síntese bibliográfica comentada”, Brasília, 9 setembro 2022, 19 p. Seleção de obras sobre o processo da independência, para os Cadernos do CHDD. Encaminhado ao embaixador Gelson Fonseca.

 Não vou ler este trabalho no evento de quarta-feira, mas ele pode servir de subsídios aos que se interessam pelo tema: 


A independência do Brasil e a formação da diplomacia brasileira 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Notas para evento da Confraria Conservadora, coordenado por Alex Catharino, com a participação de Guilherme Diniz; dia 14/09, 20:00hs. 

 

1. Historiografia da Independência

O que a independência do Brasil tem a ver com a formação da diplomacia brasileira? A resposta é óbvia: tudo! Assim como domínio sobre um território definido, o monopólio sobre o uso da força, a emissão de uma moeda e o controle sobre entrada e saída de estrangeiros e sobre o comércio exterior são domínios reservados de um Estado constituído, o estabelecimento e o funcionamento de relações exteriores são os atributos necessários de um Estado soberano. Logicamente, o Brasil necessita ter uma diplomacia que seja brasileira, sem qualquer subordinação a Estados estrangeiros. Mas nem sempre foi assim, pelo menos na fase inicial do Império brasileiro, sob o primeiro Reinado.

A independência não é um evento singular, e sim um processo, no caso do Brasil bastante gradual, muito diferente, aliás, dos processos revolucionários ocorridos nas demais colônias hispano-americanas, geralmente ao cabo de guerras contra as forças espanholas, no contexto das guerras napoleônicas na Europa. Permito-me recomendar, a propósito, o livro do colega diplomata Marcelo Raffaelli, que discorreu magistralmente sobre os diversos processos de independência na América Latina nesta obra: Guerras Europeias, Revoluções Americanas: Europa, Estados Unidos e a independência do Brasil e da América Espanhola (São Paulo: Três Estrelas, 2018; capítulos “Espanha e suas colônias; Portugal e o Brasil, de 1808 a 1828,” e “A independência do Brasil – 1”, páginas, 100-102, 196-203 e 219-222). Uma outra obra indispensável para situar a independência do Brasil no contexto regional é o volume III, da História da América Latina, organizada pelo historiador Leslie Bethell, para a Cambridge History of Latin America, cujo título é justamente Da Independência até 1870 (São Paulo: Imprensa Oficial, Edusp; Brasília: Funag, 2001), sendo que o capítulo 4, sobre a independência do Brasil (p. 187-229), é de autoria do próprio Leslie Bethell. O capítulo seguinte, de autoria de D. A. G. Waddell, trata da política internacional e a independência da América Latina (p. 231-265). 

Essas obras pertencem à historiografia mais recente sobre a história do Brasil, que se beneficiariam dos testemunhos dos contemporâneos dos eventos, inclusive de visitantes estrangeiros. Entre estes estão Robert Southey, mas que se limita à história colonial até a chegada dos Braganças e se conclui em 1820, seguida pela obra de John Armitage, que se beneficiou do relacionamento com alguns dos protagonistas do processo da independência, em obra que publicou no final da década, traduzida pela primeira vez em português em 1835 e reeditada no início do século XX. Entre os brasileiros, encontra-se o suspeitíssimo José da Silva Lisboa, que fez um relato dos eventos dos primeiros anos do Império do ponto de vista do próprio imperador, que lhe agraciou com uma cadeira no primeiro senado e com os títulos nobiliárquicos de barão, depois visconde de Cairu. Um relato mais profissional foi feito pelo patrono da historiografia brasileira, Adolfo Varnhagen, em seus três volumes de História Geral do Brasil, publicados em meados do século XIX, com um claro viés cortesão. Mas o volume da independência, justamente, só foi publicado postumamente, pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, com notas do Barão do Rio Branco e outros, em 1916.

No caso do Brasil, mais do que uma verdadeira independência, tratou-se talvez de uma secessão, ou separação, entre dois Estados, evento que já estava na prática consumado desde, talvez, 1808, quando o Brasil se torna sede do Império multicontinental lusitano, e mais seguramente desde 1815, quando nos tornamos um Reino, embora unido ao de Portugal e Algarves. Resulta, portanto, que já tínhamos um governo e seus respectivos ministérios, ou secretarias, sendo que a dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, em Portugal, já tinha sido criada desde 1736 por D. João V, o que consolidou uma tradição de relações com potências estrangeiras desde muito antes. A divisão entre as duas pastas só ocorre em 1822, quando também, pela primeira vez, um brasileiro, no caso José Bonifácio, integra o gabinete do Príncipe Regente. Ele também será o primeiro chanceler do Império, ainda que por pouco tempo. Mas, para nos referirmos apenas ao seu trabalho de condutor das relações exteriores do Brasil, cabe recordar que foi ele quem redigiu as instruções aos representantes de São Paulo às Cortes de Lisboa, em 1821, sendo também o principal redator do manifesto às nações amigas de agosto de 1822, que pode ser considerado o primeiro documento de diplomacia nacional da história do Brasil. 

 

2. A independência e a política externa numa primeira fase

No imediato seguimento da independência do Brasil, o novo Império tinha dois problemas herdados da fase portuguesa de relações exteriores, mas que também expressavam o caráter do antigo Vice-Reino e sua estrutura social. Esses problemas eram: (a) a situação nas fronteiras do sul, guerrilha dos independentistas uruguaios e guerra contra Buenos Aires em torno do Uruguai; (b) a questão do tráfico e da escravidão, que se arrastava desde o Congresso de Viena em 1815 e que vai se prolongar por mais de três décadas, até 1850. Se a primeira questão foi resolvida, a segunda representou uma permanência estrutural que projetou seus efeitos sobre a sociedade durante todo o século XIX. A partir de 1826, com a morte de D. João VI em Portugal, um terceiro problema se acrescenta aos dois primeiros: a sucessão no reino de Portugal, cujo legítimo herdeiro era o próprio imperador do Brasil, que transfere seu domínio para sua filha Maria da Glória, ainda menor, ato que foi imediatamente contestado por seu irmão D. Miguel, vinculado aos absolutistas da Santa Aliança. Resulta que a política externa do Brasil, numa primeira fase, esteve particularmente imbricada em problemas de Portugal, ou criados e mantidos pela antiga política exterior portuguesa, embora, na questão do tráfico e da escravidão, submetida a poderosos interesses brasileiros. 

Um historiador do Primeiro Reinado, Luiz Francisco da Veiga, citado por Ricupero a partir de Sérgio Buarque de Holanda, resume todo o sentido do desastre que foi a guerra da Cisplatina, encerrada pelo armistício entre o Brasil e as Províncias Unidas, patrocinado pela potência hegemônica da época, a Inglaterra:

A revolta da província Cisplatina contra o jugo prepotente do Brasil, representado na pessoa do primeiro imperador, foi não só justa, mas até uma necessidade imperiosa [...]. Foi uma guerra santa, como a brasileira de 1822. A província da Cisplatina era tratada pelo Império como Portugal ou as Cortes portuguesas queriam tratar o Brasil em 1821 e 1822. As mesmas causas produziram os mesmos efeitos; mas na questão do Império com a Cisplatina o antagonismo era maior, por causa da diferença de raça, de língua e de tradição, maior era a razão oriental e, portanto, maior sem a razão brasileira, ou antes imperial. (Sérgio Buarque de Holanda, História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, 1962, II, p. 17-18, nota 1; apud Rubens Ricupero, A Diplomacia na Construção do Brasil. Rio de Janeiro: Versal, 2017, p. 139).

 

A guerra da Cisplatina foi um erro, português, em seguida “brasileiro”, o que tisnou a imagem do novo Império do Brasil, uma designação que já denotava sombrias veleidades expansionistas, o que foi ainda aprofundado, anos depois, pelas contínuas intervenções nas constantes lutas entre blancos e colorados uruguaios, levando a um primeiro confronto com o ditador argentino Rosas, desembocando, mais adiante, na “maldita guerra” provocada pelo ditador paraguaio Solano Lopez contra um gigante pouco preparado para o conflito.

Já a questão do tráfico escravo ocupou as primeiras décadas de construção do instrumento diplomático brasileiro de forma intensa, o que se explica por razões de economia doméstica e internacional. O tráfico escravo mobilizava enormes capitais, conjugando os interesses de traficantes, em grande medida transportadores portugueses, e comerciantes e fazendeiros brasileiros. No plano interno, a prática da escravidão era uma instituição extremamente lucrativa, servindo-se dos poderes públicos, e mesmo de sua capacidade de projeção internacional, para promover ganhos privados.

Finalmente, o envolvimento do imperador com a sucessão no reino de Portugal terminou por irritar os brasileiros, que acabaram por praticamente expulsá-lo do Brasil em 1831. Vários historiadores consideram que 1831 foi a verdadeira independência e o início formal de políticas, interna, externa e institucional, exclusivamente brasileiras. 

 

3. A primeira diplomacia brasileira

Como observou o embaixador Rubens Ricupero, “de agosto de 1822 a julho de 1823, ... José Bonifácio de Andrada e Silva foi o poderoso ministro da Guerra e dos Estrangeiros e, mais do que isso, o virtual primeiro-ministro e chefe do governo” (in: A Diplomacia na Construção do Brasil. Rio de Janeiro: Versal, 2017, p. 121). Seu Manifesto aos Governos e Nações Amigas, de 6 de agosto de 1822, um mês antes da proclamação da Independência, “pode ser considerado como uma espécie de ata de fundação da diplomacia brasileira” (idem). Como também relata o diplomata historiador João Alfredo dos Anjos, “após as primeiras medidas de política interna, José Bonifácio inicia pelo Prata a ação externa do Brasil independente, ainda em maio de 1822, convocando Antônio Manuel Corrêa da Câmara para representar o país em Buenos Aires” (José Bonifácio, primeiro Chanceler do Brasil. Brasília: Funag, 2007, p. 102-103), ou seja, o que era então um efêmero “Reino do Brasil”, que não tardou muito em se desfazer. 

José Bonifácio não logrou obter o reconhecimento de Buenos Aires, inclusive porque tropas portuguesas tinham ocupado o que seria o Uruguai – e que os argentinos consideravam que fazia parte do antigo vice-reinado do Rio da Prata, e que lhes pertencia, portanto, assim como ao parte do sul da Bolívia e o Paraguai – e porque havia muita desconfiança em relação aos vínculos europeus desse Reino unido ao de Portugal, dadas as veleidades da Espanha e de outras monarquias europeias, inclusive a própria Grã-Bretanha, sobre os novos Estados da região.

Em todo caso, José Bonifácio instruiu Corrêa da Câmara a convencer os dirigentes de Buenos Aires sobre a utilidade de uma “Confederação ou Tratado ofensivo e defensivo com o Brasil, para se oporem, com os outros governos da América espanhola, aos cerebrinos manejos da Política Europeia” (Ricupero, 2017, p. 123, citando Anjos, 2007, p. 106-107). O diplomata historiador João Alfredo dos Anjos, autor da biografia do primeiro chanceler, registra que tal proposta antecipa em um ano e meio o discurso de Monroe ao Congresso americano, delineando assim a possibilidade de uma ação conjunta na América do Sul. Enquanto José Bonifacio esteve à frente da diplomacia brasileira, ele se ocupou de promover o que chamava de “Sistema Americano”, ou seja, uma política externa decididamente americana, mas que só retornaria novamente a partir das Regências, depois da abdicação do primeiro imperador. Premido pela reação dos autocratas portugueses contra o novo sistema de monarquia constitucional, o Imperador se ocupou bem mais dos assuntos portugueses do que dos assuntos domésticos ou os da diplomacia brasileira. Entre aqueles estavam: o golpe autocrático do irmão Miguel e a reconquista reacionária do poder real, a morte de D. João VI, o que fazia dele o legítimo herdeiro, sua renúncia em favor da filha, que enfrentou dificuldades para a assunção ao trono, hostilizada novamente pelo tio, sua abdicação e o retorno a Portugal, mas não como Pedro IV e sim como defensor da filha, a retomada das lutas em Portugal, enfim, a morte.

As iniciativas que tinham sido anteriormente tomadas por José Bonifácio para criar uma primeira possível aliança com os argentinos se chocavam, desde o início da presença da família real no Brasil, com a ocupação da província oriental, primeiro por tropas portuguesas, depois brasileiras; as planícies uruguaias permaneceram durante anos agitada pela guerrilha autonomista do primeiro líder independentista, José Gervasio Artigas, o herói (embora fracassado) da autonomia uruguaia. Em 1825, Buenos Aires apoia o desembarque de orientales que passam a lutar contra as forças do Imperador, sob o comando de Juan Antonio Lavalleja. “A guerra correu mal para o Império, cujas forças foram derrotadas na batalha de Passo do Rosário (nome brasileiro) ou Ituzaingó (denominação argentina)”, segundo escreveu Ricupero (2017, p. 138). Depois de várias escaramuças terrestres e navais entre as forças dos dois grandes vizinhos do Rio da Prata – inclusive com bloqueio de Buenos Aires por barcos da Marinha imperial –, decidiu-se, com a mediação inglesa, pela criação de um novo país independente, a República Oriental do Uruguai, em agosto de 1828, garantindo-se, a partir daí, a liberdade de navegação no Rio da Prata, “constante preocupação diplomática e militar dos brasileiros” (Hélio Vianna, História do Brasil. 4ª ed.; São Paulo: Melhoramento, 1966, 3º. vol., p. 32).

A despeito das frustrações e desacertos enfrentados nos dois grandes temas da primeira agenda externa do Brasil no momento da independência e nos anos seguintes – os conflitos com as Províncias Unidas na questão da Cisplatina e os com a Grã-Bretanha, na vergonhosa defesa do tráfico e da escravidão –, a diplomacia profissional brasileira representou, desde o período inicial da construção do Estado, um dos setores mais bem preparados e um dos mais eficientes e constantes na burocracia pública, cujos traços e características essenciais, nessa fase inicial do século XIX, eram, bem mais “patrimoniais” do que propriamente “racionais-legais”. Ao assegurar, nessa etapa formadora da nação, a representatividade internacional do Estado brasileiro, a classe diplomática brasileira contribuiu para a sua construção e fortalecimento. De fato, ao trabalhar, basicamente, no Estado, pelo Estado e para o Estado, ela ajudou a construir, com sua parcela de esforços, a própria identidade brasileira, embora bem mais voltada para a construção da Ordem política do que, propriamente, para a consolidação do progresso social. Mas, a diplomacia, em si, não poderia evitar os traços patrimonialistas e oligárquicos do novo Estado: ela também era uma de suas expressões mais acabadas, como eram, aliás, todas as demais diplomacias do mundo de Estados organizados então existentes. 

A despeito de não existir, formalmente, antes da conquista da autonomia nacional, ela começa a aprender de certa forma por osmose, uma vez que as relações internacionais do Brasil passaram a estar inseridas no quadro do primeiro grande arranjo “multilateral” do início do século XIX. No Congresso de Viena, em 1815, estiveram representadas apenas oito nações “cristãs”, o Brasil no contexto do “Reino Unido” ao de Portugal, em virtude da relação privilegiada da Coroa lusitana com a Grã-Bretanha e basicamente no contexto de seu envolvimento, embora involuntário, com o grande “drama napoleônico” que agitou a Europa na sequência da Revolução francesa. As relações de força e de poder desenhadas naquela primeira grande conferência diplomática da era contemporânea continuaram a dominar os desenvolvimentos diplomáticos (e militares) durante a maior parte do século XIX, tendo o Brasil se inserido desde o início no contexto regional, o que compreendeu igualmente a “doutrina Monroe”. Nessa primeira fase, caracterizada pelo “realismo cru” do início do século XIX, navios de guerra das nações “civilizadas” se achavam no direito de violar impunemente, em nome de um conceito peculiar de “justiça”, as águas territoriais de países periféricos e, como ocorreu em algumas ocasiões, até mesmo os portos brasileiros.

Pelas características que exibia o serviço diplomático brasileiro naquela primeira fase – com um corpo diplomático vivendo no exterior, mas separado do corpo consular, e dispondo apenas de poucos servidores na Secretaria de Estado no Rio de Janeiro –, a diplomacia profissional contribuiu bem mais para a consolidação do Estado do que propriamente para a construção da nação, como afirma, não sem certa razão, o embaixador Rubens Ricupero, em sua obra já clássica de história diplomática (2017). Pode-se, no entanto, concordar com sua avaliação geral dos serviços prestados à nação pela diplomacia profissional, julgamento que também pode servir de conclusão a este ensaio: 

A diplomacia em geral fez sua parte e até não se saiu mal em comparação a alguns outros setores. Chegou-se, porém, ao ponto extremo em que não mais é possível que um setor possa continuar a construir, se outros elementos mais poderosos, como o sistema político, comprazem-se em demolir. A partir de agora, mais ainda que no passado, a construção do Brasil terá de ser integral, e a contribuição da diplomacia na edificação dependerá da regeneração do todo. (Ricupero, 2017, p. 739)

 

A diplomacia brasileira da independência pagou um alto preço na sua imagem externa em virtude das heranças recebidas do período português. A continuidade do tráfico e a da escravidão, no período brasileiro, a partir das Regências, não ajudou muito na construção de uma imagem melhor. Sua reconstrução viria aos poucos, de maneira muito lenta, talvez, para padrões civilizatórios mais aceitáveis no plano global. Esta é uma das características estruturais do Brasil, que não pode ser superada unicamente pela sua diplomacia.

 

4. A formação da diplomacia brasileira

A diplomacia da jovem nação independente, no alvorecer da independência nacional, era toda ela portuguesa, com a notável exceção, justamente, do primeiro chanceler, o já maduro José Bonifácio de Andrada e Silva, que foi também o primeiro brasileiro a integrar um gabinete português, na regência do príncipe Dom Pedro. Os que se agregaram, de modo improvisado, às primeiras missões de representação no exterior também eram portugueses naturalizados brasileiros, ou brasileiros saídos de Coimbra e de algumas outras faculdades no exterior. Os ingressados por simples designação, ou por alguns raros concursos nas etapas subsequentes, possuíam a sua própria formação, ou então, foram se tornando experientes no exercício das funções que lhes eram atribuídas a partir das Regências e do Segundo Império. 

Como referido anteriormente, A política externa do Estado do Brasil independente começou antes de o Brasil se tornar independente, e pela metodologia fundamental que faz parte da formação de todo diplomata: a redação de instruções e o despacho de enviados ao exterior para defender os interesses da nação (no caso, ainda não existente). O personagem principal dessa aventura foi obviamente José Bonifácio de Andrada e Silva, virtual primeiro-ministro do príncipe D. Pedro logo após o famoso Fico, em 9 de janeiro de 1822. Já em 24 de maio desse ano ele despachou um representante a Buenos Aires, a pretexto de assuntos consulares e de comércio, e logo depois fez o mesmo para as principais capitais europeias. Como escreveu Jorge Caldeira, “Iriam todos tratar dos interesses brasileiros como algo próprio – e buscar apoio para esse comportamento independente” (José Bonifácio de Andrada e Silva. São Paulo: Editora 34, p. 30). 

Na verdade, José Bonifácio já “expedia instruções” desde antes de ser nomeado para gabinete português de D. Pedro, quando ainda ocupava o cargo de vice-presidente da Junta Provisória de São Paulo, em outubro de 1821, ao redigir “apontamentos” para os deputados dessa província que deveriam ir às Cortes de Lisboa: neles, Bonifácio consignou que esses representantes deveriam tratar dos negócios da União – isto é, do império luso-brasileiro que ele imaginava que deveria se conservar unificado –, dos negócio de Reino do Brasil, que deveria ser em tudo autônomo,– salvo nos assuntos de paz e guerra, comércio exterior e de um tesouro geral dos dois reinos, de onde sairiam os recursos para as despesas em caso de guerra –, inclusive na criação de uma universidade e de uma capital no interior do país, e, finalmente, dos assuntos próprios da província de São Paulo, em favor da qual os deputados saberiam defender tudo de bom para sua terra.

As instruções que Bonifácio escreveu para Corrêa da Câmara, em maio de 1822, enviado a Buenos Aires, assim como a Caldeira Brant, Gameiro Pessoa e Jorge Schaeffer, em agosto seguinte, respectivamente como encarregados de negócios do Brasil junto às cortes de Londres, Paris e Viena, surpreendem o leitor pela abundância de considerações sobre as relações de Brasil e Portugal com esses países, sobre o contexto regional e internacional no qual eles se movimentavam, assim como pelo extremo detalhamento de posturas, dizeres e atitudes que esses representantes deveriam, publicamente ou secretamente, com um ou outro dos interlocutores já por ele designados, em relação às medidas e conexões que eles deveriam ter no tratamento dos legisladores e da imprensa locais, e sobre cada um desses pontos, uma explicação precisa e minuciosa sobre como eles deveriam defender os interesses do Brasil, num momento de visível tensão em face das disposições eu estavam sendo tomadas em Lisboa (onde as Cortes tinham D. João VI virtualmente como “prisioneiro político”). Um dos parágrafos, reproduzido de forma praticamente similar nessas instruções separadas, reza claramente o que o já chanceler do gabinete regencial queria obter dos seus enviados: 

Procurará, portanto, obter desse governo o reconhecimento da independência política deste Reino do Brasil, e da absoluta Regência de s.a.r. [Sua Alteza Real] enquanto sua majestade se achar no afrontoso estado de cativeiro, a que o reduziu o partido faccioso das Cortes de Lisboa. (Caldeira, 2002, p. 151)

 

Mas, tudo isso é pura política externa, e mais de Bonifácio do que propriamente do príncipe regente, e não corresponde, exatamente, ao que se costuma chamar de diplomacia, no sentido da existência de uma instituição própria, estabelecida com esse propósito no Brasil pré-independência. Em todo caso, todas as atitudes tomadas por Bonifácio, naquela fase crucial da evolução do Brasil Reino Unido para o seu novo formato de Império do Brasil, ainda largamente indefinido – pois que tanto ele, quando D. Pedro almejavam, de fato, a unidade do grande império dos Braganças – autorizaram plenamente que o historiador diplomático Oliveira Lima considerasse que Bonifácio foi o responsável pelo “momento fundador da história das relações diplomáticas do Brasil” (in: Carlos Guilherme Mota, “Oliveira Lima e Nossa Formação”, História e Contra História: Perfis e Contrapontos. São Paulo: Globo, 2010, p. 83-110, cf. p. 89). 

Em outros termos, o Brasil já nasceu tendo política externa, autônoma e própria, mas não tinha ainda diplomacia, porque simplesmente não tinha diplomatas. Todos os enviados por Bonifácio, e depois pelos sucessivos chanceleres, eram personalidades da vida pública portuguesa naturalizada – como Duarte da Ponte Ribeiro – ou já brasileira, como a maioria a partir das Regências, que não passaram pela Bildung de alguma instituição, uma vez que ela tinha uma existência muito precária naqueles primeiros anos do Estado independente. Mas, desde 1808, já se tinha política externa, ainda que portuguesa, a partir do Rio de Janeiro. Com efeito, desde março de 1808, o príncipe regente D. João designou D. Rodrigo de Souza Coutinho, depois conde de Linhares, para se exercer como ministro e secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, uma secretaria de Estado que já existia desde meados do século anterior em Portugal. Ao se despedir do Brasil, em abril de 1821, o mesmo D. João, já rei coroado, designou por decreto o Conde dos Arcos como ministro e secretário de Estado dos Negócios do Reino do Brasil e Negócios Estrangeiros. Mas, decreto de maio seguinte, rubricado pelo príncipe regente D. Pedro e referendado por José Bonifácio, mandava separar a “antiga Secretaria dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, subordinando a primeira à dos Negócios do Reino”, que depois da independência passou a ser chamada de Negócios do Império (Marcos Romero, História da organização administrativa da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e das Relações Exteriores (1808-1951). Brasília: Funag, 2019, p. 10). 

Mas, Secretaria “diplomática” de verdade não existia, tanto é que, numa das reuniões da Assembleia Constituinte de setembro de 1823, José Bonifácio, preocupado com a organização das repartições públicas, apresentou uma proposta para que se efetivasse um projeto de lei determinando a estrutura das secretarias de Estado, “o número de empregados efetivos, seus ordenados e emolumentos” (Romero, 2019, p. 10). Mas até 1828, pelo menos, nada se fez, tanto é que todas as secretarias trabalhavam com um reduzido número de oficiais. Em 1826, um projeto de lei remetido pela Assembleia ao Senado estabelecia o funcionamento da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, mas ele não foi aprovado. Esse projeto de lei natimorto tampouco se ocupava de requisitos para o recrutamento ou o treinamento do pessoal da Secretaria, mas ele pelo menos prometia um controle sobre o seu trabalho, como estabelecido no seu artigo 10º (idem, p. 12):

A vigilância sobre o modo por que tais empregados cumprem suas obrigações, suspendendo temporariamente os omissos e inábeis, de que trata o § 8º. [nomeação e remuneração de todos os empregados que servem por diploma imperial], e propondo a sua demissão no caso de a merecerem, podendo em caso de mau serviço demitir aqueles de que trata o § 9º. [amanuenses, praticantes, contínuos, guardas e correios]. 

 

Em setembro de 1828, o Marquês de Aracaty distribuiu em portaria as atribuições dos seis oficiais, os cinco primeiros encarregados das relações com cerca de duas dúzias de Estados reconhecidos, o último dos “decretos, certidões e cartas aos príncipes” (Romero, 2019, p. 13). Em outras palavras, passou-se a ter uma organização administrativa, com pessoal designado, mas não se pode dizer que havia qualquer preocupação com a formação dos funcionários da Secretaria de Estado, e menos ainda com a dos diversos enviados ao Exterior, uma carreira completamente distinta da primeira, cuja designação obedecia ao critério pessoal do imperador ou dos regentes, depois de 1831. 

Foi apenas em 1833 que o Secretário de Estado Aureliano de Souza Coutinho solicitou que a Regência, em nome do imperador, designasse uma comissão composta de oficiais maiores de diversas repartições para estabelecer um regimento regulando o trabalho dos funcionários da Secretaria, seu “número, graduação e mais vantagens dos empregados”, mas ela “não ofereceu os resultados que eram de se desejar” (idem, p. 15). No relatório de 1838, se propunha uma divisão das diversas seções com base nas quais se deveria organizar a Secretaria, com as “necessárias diferenças entre a gestão dos Negócios diplomáticos e Consulares”, assim como a “determinação das condições necessárias para a administração do pessoal, com respeito às habilitações literárias, à aptidão experimental, à natureza do serviço e outras circunstâncias atendíveis para o regular andamento da Repartição”, tudo isso subordinado a um Oficial-Maior respondendo diretamente ao ministro (idem, p. 16). Mas, como informa o mesmo estudioso: “Passaram-se anos sem que providência alguma desse forma às letras de Leis ou Relatórios” (idem, p. 17).

Quem, na verdade, começou a colocar em ordem o ambiente relativamente canhestro da Secretaria dos Negócios Estrangeiros e os fundamentos conceituais da própria diplomacia, assim como um conjunto de diretrizes básicas para a política externa do Império, e do próprio Brasil, foi Paulino José Soares de Sousa, ainda antes de ser agraciado com o título de Visconde do Uruguai. Foi ele quem uniu “ideias” e “diplomacia”, como está brilhantemente descrito no livro de Paulo Fernando Pinheiro Machado: Ideias e diplomacia: O Visconde do Uruguai e o nascimento da política externa brasileira– 1849-1853 (Lisboa: Lisbon International, 2022).

 

5. A consolidação de uma diplomacia nacional: obra de Paulino Soares de Sousa

A organização do corpo diplomático brasileiro e a do próprio funcionamento da diplomacia do Império estava, naquela época, compartimentada em pelo menos três “carreiras” (o termo não se aplica inteiramente) distintas e separadas: os diplomatas propriamente ditos, que passavam a vida circulando entre os postos no exterior, as legações do Império na Europa, nas Américas e algumas na Ásia, os poucos funcionários da Secretaria de Estado no Rio de Janeiro, e os encarregados dos serviços consulares, geralmente dotados de menor consideração hierárquica e política, pois que se ocupando daqueles assuntos que eram desdenhosamente chamados de “secos e molhados”, ou seja, estampilhas cartoriais, vistos e rudimentos da promoção comercial. Foi Paulino que reformou o primeiro Regulamento da Secretaria de Estado – dado por Aureliano de Souza, em 1842 – e que produziu, de sua própria mão, uma sucessão de documentos que fundamentaram, organicamente, o funcionamento do antigo Ministério dos Negócios Estrangeiros, de uma forma que nunca tinha sido feita até então. A importância dessa obra administrativa, mais do que relevante, efetuada em sua segunda gestão como chanceler, merece que esses documentos de organização sejam mencionados por inteiro: 

1) a primeira organização do corpo diplomático brasileiro (Lei n. 614, de 22/08/1851);

2) o segundo regimento do corpo diplomático (Decreto n. 940, de 20/03/1852);

3) o decreto que fixou o número e as categorias das missões diplomáticas (1852);

4) o decreto que determinou uma inédita tabela de remuneração no exterior (1852).

 

Como explicitou o diplomata Flávio Castro, esses quatro diplomas legais “vieram consolidar, em textos próprios, uma série de medidas administrativas, de disposições orgânicas e funcionais do Serviço Diplomático já capituladas, esparsamente, em administrações anteriores” (Flávio Mendes de Oliveira Castro: Itamaraty: dois séculos de história. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, vol. I, p. 93). Mas Paulino fez muito mais: ele se preocupou com a qualidade do capital humano com o qual deveria passar a trabalhar, doravante, a diplomacia brasileira. Como ainda relata Flávio Castro: 

Anexas ao Regulamento Paulino de Souza vieram à luz as

Instruções para o exame dos candidatos ao lugar de Adido de Legação, às quais se refere o Regulamento n. 940, de 20 de março de 1852

que acreditamos ser o primeiro programa oficial exigido para o ingresso na carreira diplomática. A Comissão Examinadora seria composta de três membros, presidida pelo Ministro de Estado. O exame deveria ser prestado publicamente, em sala da Secretaria de Estado, com a duração de duas horas, sendo 20 minutos dedicados a cada uma das seguintes matérias: 

1º. – Conhecimento das línguas modernas, especialmente da inglesa e francesa, devendo o candidato traduzir, escrever e falar esta última.

2º. – História Geral e Geografia Política, História Nacional, e notícia dos Tratados feitos entre o Brasil e as Potências estrangeiras.

3º. – Princípios gerais do Direito das Gentes, e do Direito Público nacional e das principais nações estrangeiras. 

4º. – Princípios gerais de economia política, e do sistema comercial dos principais Estados, e da produção, indústria, importação e exportação do Brasil.

5º. – A parte do Direito Civil relativa às pessoas e princípios fundamentais em matéria de sucessão.

6º. – Estilo diplomático, redação de despachos, notas, relatórios, etc.

O escalonamento da carreira foi assegurado pelo artigo 4º do Regulamento Paulino de Souza, que determinava o processo de ascensão ao cume da hierarquia. O funcionário progrediria ao cargo imediatamente superior, não dando mais margem às interpolações de adventícios. (...)

Os adventícios no Serviço Diplomático de então eram os Embaixadores de fora da carreira..., Chefes e Empregados de Missões Especiais, que poderiam ser também estranhos à carreira. Tais funcionários, se continuassem servindo ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, não teriam os benefícios e vantagens da estabilidade remunerada ou da aposentadoria...

No Regulamento Paulino de Souza não foram estabelecidas normas precisas sobre critérios a seguir para promoções. Há, porém, a referência de que o serviço em Legações de países americanos ou o exercício das funções de Secretário ou de Adido na Legação de Londres, além de outros, seriam motivos de preferências nas promoções... Segundo instruções especiais..., haveria uma revisão da lista de Adidos de 1ª. e 2ª. Classes, ‘a fim de serem eliminados aqueles que houverem dado provas de pouca capacidade, ou tiverem procedimento menos regular’. (Castro, 2009, p. 98-100; ênfases no original)

 

As reformas introduzidas por Paulino constituíram, sem dúvida alguma, a mais importante reforma estrutural jamais efetuada na carreira e no serviço diplomático até então, sendo que um novo Regulamento de organização só seria introduzido em 1859 pelo ministro José Maria da Silva Paranhos. Mas o Visconde do Rio Branco o fez sem tocar, por exemplo, nos requerimentos de seleção de adidos de 1ª. classe, porta obrigatória de ingresso na carreira, o que confirma que Paulino estabeleceu um padrão de qualidade no recrutamento dos servidores do quadro diplomático que seria invariavelmente seguindo, com as pequenas adaptações pertinentes, até os nossos dias. De fato, a aura de excelência do Itamaraty atual deita raízes nas reformas e nos estatutos concebidos, escritos e implementados por Paulino, antes até que ele recebesse a honra de ser elevado ao título de Visconde do Uruguai. 

Se examinarmos, por exemplo, a lista acima das matérias exigidas para a admissão de novos servidores constata-se que esse imenso conhecimento das mais diversas disciplinas continuou a ser exigido dos candidatos à carreira nos 170 anos seguintes, depois que Paulino traçou, pela primeira vez, essa amplitude de domínio de matérias afetas ao trabalho diplomático (e consular também, com variações apropriadas) que o aspirante precisaria ter antes de passar a integrar o reduzido, mas capacitado corpo diplomático brasileiro, uma obra magnífica de Paulino. Com efeito, no seu decreto 941, de 1852, ele também fixou o número e a categoria dos funcionários que caberia manter nas 21 missões diplomáticas que o Império passou a manter no exterior, integradas por 15 a 19 adidos, 7 secretários, 12 encarregados de negócios – no Paraguai, no Chile, conjuntamente na Venezuela, Nova Granada (Colômbia) e Equador, e em nove monarquias europeias –, 2 ministros residentes – na Bolívia e na Prússia e cidades hanseáticas – e 7 Enviados Extraordinários e Ministros Plenipotenciários (que são chamados atualmente de embaixadores), estes nas Américas (Estados Unidos, Confederação Argentina, Uruguai e Peru) e na Europa (Grã-Bretanha, França e Portugal). 

Em outros termos, como amplamente demonstrado por Paulo Fernando Pinheiro Machado, Paulino conduziu, com maestria, não só a política externa do Império, como evidenciado em seu livro. Paulino, o estadista do Regresso, possuindo total domínio de cada um dos assuntos substantivos, soube organizar, nos mínimos detalhes, toda a organização, o funcionamento e a seleção do pessoal diplomático. Ele estabeleceu um padrão de qualidade que, se foi modificado ao sabor da evolução natural da política regional e internacional do Brasil, jamais deixou de se pautar pelo espírito das normas e requerimentos exigentes que Paulino traçou em matéria de desempenho funcional e de rigor intelectual dos diplomatas recrutados para serviço exterior do país. 

Ao lado de outros grandes nomes vindos da Regência, liberais ou conservadores, como Bernardo de Vasconcelos, Honório Hermeto, Eusébio de Queirós Mattoso, Alves Branco e Paranhos, o Visconde do Uruguai foi um dos grandes estadistas e agentes políticos do Império, atuando tanto na esfera política, constitucional, administrativa, quando, principalmente, no nascimento e na consolidação de uma política externa propriamente brasileira, e não mais “portuguesa”, como ele ainda encontrou ao assumir pela primeira vez a chancelaria (em 1843). De 1849 a 1853, ele foi o mestre absoluto do todos os atos na frente externa, mesmo numa agenda tão pouco favorável à imagem do Brasil no exterior, como era a infeliz defesa do tráfico. Paranhos, que o seguiu mais adiante, também teve de se ocupar do dossiê da escravidão, o que ele fez pela Lei do Ventre Livre, em 1871. 

Em meados do século XIX, a diplomacia brasileira estava consolidada. O que foi feito depois, por Paranhos Júnior, o barão do Rio Branco, foi um desenvolvimento da diplomacia construída pelos diplomatas do Império: seus grandes princípios continuaram a reverberar no trabalho do Itamaraty durante praticamente todo o século XX.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4233: 8 setembro 2022, 13 p.





Aquarela Diplomática do Brasil: uma nova coluna - Paulo Roberto de Almeida

Aquarela Diplomática do Brasil, 00: princípios fundamentais 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Primeiro escrito de uma nova coluna, que pretende iniciar uma série de digressões regulares sobre diferentes temas da atualidade diplomática, brasileira e internacional, política e econômica, do presente ou do passado.

 

 

“Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, é, provavelmente, junto com “Garota de Ipanema”, de Antonio Carlos Jobim, a composição musical mais identificada com o nosso país e, certamente, uma das mais famosas, internacionalmente, do nosso repertório musical, a despeito de sua letra rebuscada (mas o mesmo ocorre, por exemplo, com o hino nacional).

Ao recorrer a expressões pouco usuais, como “mulato inzoneiro”, “mulata sestrosa”, o “rei congo no congado”, ou a “merencória luz da lua”, o compositor deve ter deixado mais de um intérprete dubitativo sobre o significado exato desses termos, provavelmente ignorados pelos cantores mais populares. Não obstante, pelo menos pela sua música, a composição manteve-se como um dos mais vibrantes símbolos da brasilidade, tendo recebido inúmeras interpretações e infinitas reproduções, no Brasil e no exterior.

Já o termo aquarela, por sua vez, denota um tipo de pintura feita de cores básicas, diluídas em água, e sobrepostas de modo cuidadoso sobre uma superfície branca, um papel eventualmente rugoso, de modo a ressaltar a delicadeza da composição. Essa técnica deve sua popularidade a certa facilidade de combinação de cores e tons, assim como à relativa facilidade de sua confecção, pois que podendo ser elaborada rapidamente, a partir de esboços imediatos a propósito de uma realidade cambiante. Esse tipo de composição pode abrigar os mais variados temas, não geralmente abstratos, mas os expressivos, sempre em tonalidades claras e transparentes, podendo ser uma reprodução fiel de um cenário real, ou resultante da interpretação livremente pessoal do seu autor, que pode ser tanto um iniciante na técnica, ou algum experimentado profissional da pintura. 

Parto do exemplo da “aquarela”, musical ou pictórica, para designar uma nova série de escritos enfeixados sob esse título comum de “Aquarela Diplomática do Brasil”, que se destina a recolher, a intervalos regulares, minhas reflexões sobre os mais variados aspectos da economia e da política internacionais, mas sobretudo sobre as relações exteriores do Brasil e a sua política externa. Aproveitando-me da “instrução” de Ary Barroso, quanto a abrir a “cortina do passado”, também não faltarão nesta série digressões sobre nossa história diplomática. Para esse novo empreendimento, tomo apoio em mais de quatro décadas de atuação na diplomacia profissional, em geral nas áreas de relações econômicas internacionais e de integração regional, bem como em mais de cinco décadas de estudos e pesquisas sobre os problemas brasileiros, em especial nas áreas de história, de desenvolvimento econômico, de instituições políticas, mais adiante de relações internacionais e política externa. 

Não pretendo estabelecer nenhum padrão rígido para a elaboração individual desta nova série de trabalhos, ou seja, uma definição prévia dos temas a serem tratados, nem fixar antecipadamente uma periodicidade estrita para tratar dos variados temas referenciados acima. A definição dos assuntos, seu tempo, o ritmo, alguma vinculação serial entre eles serão estabelecidos em função da atualidade de certos temas – que, pela sua importância intrínseca, possam apresentar interesse momentâneo – ou pelas simples preferências deste autor. Ou seja, a escolha dos textos, geralmente curtos – embora alguns possam exigir algum desenvolvimento maior –, ficará ao critério do autor, ainda que o noticiário da conjuntura possa determinar prioridades momentâneas.

“Aquarela Diplomática do Brasil” será um experimento tentativo, podendo a série ser abrigada como faço tradicionalmente com meus escritos, no meu blog Diplomatizzando, ou então ser divulgada em outros veículos, segundo minha conveniência e possibilidades dessas ferramentas. A avaliação será feita pelos próprios leitores, embora eu tenha o costume de nunca enviar meus escritos a qualquer lista de recipiendários: apenas coloco os textos à disposição de quem se disponha a ler minhas opiniões e argumentos sobre os assuntos dos quais me ocupo tradicionalmente.

Grato pela atenção.


Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4237: 12 setembro 2022, 2 p.


It’s Time to Prepare for a Ukrainian Victory - Anne Applebaum (The Atlantic)

Uma vitória ucraniana significa uma derrota de Putin. Mas é cedo ainda para prever sua queda como tirano  de Moscou, o neoczar russo. Não existem forças ou candidatos a essa sucessão, com exceção do líder de oposição Alexis Navalny, que se encontra em prisão.

Paulo Roberto de Almeida 

It’s Time to Prepare for a Ukrainian Victory

The liberation of Russian-occupied territory might bring down Vladimir Putin.

domingo, 11 de setembro de 2022

Putin merece um Nuremberg-2 só para ele: leiam Benjamin B. Ferencz sobre o Direito Internacional Humanitário

 

Enforcing International Law—A Way to World Peace: A Documentary History and Analysis

Introduction By Louis B. Sohn*

Athens, Georgia, February 1983

This is the third part of a grand trilogy. In the first two parts, Benjamin B. Ferencz presented collections of documents relating to the efforts to define aggression, the supreme international crime, and to proposals for the establishment of an international criminal court for the punishment of individuals guilty of international crimes. The new book is even more ambitious. Mr. Ferencz has attempted this time to trace, through important documents, the evolution of the idea of enforcing international law on States which have committed a gross violation of a basic principle of international law.

Many years have elapsed since Payson S. Wild wrote an excellent historical book on Sanctions and Treaty Enforcement (Cambridge, Mass.: Harvard Univ. Press, 1934). Ironically, the main international experiment with sanctions, the unsuccessful attempt of the League of Nations to stop Mussolini’s attack on Ethiopia, happened one year later, in 1935. Many books have been written since then, trying to explain why this effort to enforce international law has failed, and more recently there has been another series of books on sanctions against Rhodesia and South Africa.

Mr. Ferencz provides both a history of ideas about international enforcement since ancient times and a thorough documentation of proposals on the subject since the sixteenth century to the present. He points pout that already the first writers on international law have emphasized the importance of devising means for ensuring compliance by States with the rules of international law. He notes that in the nineteenth century international agreements were made which were designed to increase compliance with humanitarian rules of international law not only in times of peace but even in times of war. This lawmaking process culminated in the Hague Conventions of 1899 and 1907, and was followed by the Geneva Conventions of 1929 and 1949 and the Geneva Protocols of 1977.

In earlier centuries law enforcement depended very much on self-help, retaliation and reprisals, as well illustrated in Evelyn S. Colbert’s Retaliation in International Law (New York: Columbia Univ. Press, 1948). Between the seventeenth and nineteenth centuries reprisals were gradually transferred from private hands to public ones and privateers were replaced by naval vessels (see A.E. Hindmarsh, Force in Peace 52-56 (Cambridge, Mass.: Harvard Univ. Press, 1933). Another transfer occurred in the twentieth century, when an effort was made to substitute enforcement of international law by international organizations for enforcement by individual States or groups of States. As noted before, the League of Nations – though successful in some cases – was not able to stop aggression by Axis powers in the 1930’s, not only in Ethiopia, but also in China and Czechoslovakia.

The framers of the United Nations Charter were determined to avoid the mistakes of the League and the eminent French statesman, Joseph Paul-Boncour, reported with pride to the United Nations Conference at an Francisco in 1945 that “this flaw has been eliminated,” as an international force will be placed at the disposal of the Security Council to ensure respect for its decisions. He cited Pascal’s statement that “[s]trength without justice is tyrannical, and justice without strength is a mockery.” The forces to be provided by Member States under Article 43 of the Charter will give the UN “unquestionable superiority…over an aggressor rising alone in rebellion.” He concluded: “That is the great thing, the great historic act accomplished by the San Francisco conference, which gives to the world the hope, based on an oblivious reality, that henceforward it may live in peace.”

Unfortunately this prophecy was not fulfilled, as it was premised on the unity of the permanent members of the Security Council which disintegrated almost immediately after the Second World War was terminated. As Mr. Ferencz documents it in his book, one consequence of the disunity of the Big Powers was the inability to agree on the composition of the United Nations military force. Consequently, when the Korean crisis arose in 1950, the United Nations had to improvise and to rely on voluntary contributions by seventeen States in order to repel the North Korean and Chinese aggression. The United Nations article in other cases has been limited to peacekeeping forces, policing a truce or an armistice line, and to economic sanctions. In some cases, such as the war between Iran and Iraq, the United Nations has not been able to stop the hostilities, and was obliged to concentrate on mediation efforts.

Mr. Ferencz found it necessary to broaden the scope of his book to include documents relating not only to the enforcement of law and maintenance of peace, but also to international law-making, peaceful settlement of disputes and the achievement of economic and social justice. As he points out in his Afterward, there is a close connection between all these aspects of international order. To achieve peace, progress must be made in all areas. Without such progress, international law enforcement will not become a reality. One has to agree also with his statement that it is not rational to conclude that “humankind can invent the means of destroying the world yet lacks the intelligence to prevent it from happening.”

For all those who believe that pour globe is not doomed to destruction and that the combined efforts of people of good will can bring about a better future, this book is an indispensable tool. It documents clearly that, step by step, humanity has made considerable progress toward building the institutions needed to achieve peace and justice, and that only a few additional steps – suggested in several documents included in this book – have to be taken to reach that goal.

* Bemis Professor of International Law

Tableaux de suivi de la guerre russe en Ukraine - DiploWeb: um instrumento utilíssimo, em Francês - Cyril Gloaguen

Tableaux de suivi de la guerre russe en Ukraine
Cyril GLOAGUEN | Ancien attaché naval et militaire en Russie et au Turkménistan, ancien collaborateur des Nations Unies en Abkhazie/Géorgie. Docteur en géopolitique (IFG, Paris, 8 ).
Voici un outil de travail extrêmement précieux. Six tableaux chronologiques pour situer des thèmes majeurs dans le temps et dans l'espace. C’est encore une leçon de méthode sur la construction d’une connaissance solide. Vous trouverez sur Diploweb une courte présentation, la table des matières et le document à télécharger au format PDF.
Tableaux de la guerre russe en Ukraine:

Tableaux de suivi de la guerre russe en Ukraine
Rédacteur : C. Gloaguen
Sources : presse nationale, internationale et russe
Version du 6 septembre 2022
Copyright Septembre 2022-Gloaguen/Diploweb.com

Table des matières
1- Négociations de paix / Cessez-le-feu : déclarations/intentions des 2 camps, 2
2- Evènements pouvant induire la fin du conflit ou un gel des combats, 3
3- Thèmes de propagande utilisés par Moscou depuis le début des opérations, 5
4- Evolution du contenu des « buts de guerre » russes depuis le 24 février 2022, 7
5- Historique de l’accord sur les « export de céréales », 9
6 - Chronologie de la préparation des opérations (côté russe), 12

Os planos de Hitler para o Brasil e para o mundo, segundo Hermann Rauschning, antigo aliado do tirano nazista

Os planos de Hitler para o Brasil e para o mundo, segundo Hermann Rauschning, antigo aliadodo tirano nazista


Paulo Roberto de Almeida

Transcrições de passagens do livro de recordações de personagem do regime nazista.

 

   Herman Rauschning, alemão da Prússia, foi chefe do governo da "cidade livre" de Dantzig, aquele pedaço da Prússia que – depois dos acordos sucessivos ao Tratado de Versalhes de 1919, ao final da Grande Guerra, que definiram o território da Polônia, que estava dominada até então pelos impérios da Prússia, da Áustria-Hungria e da Rússia – ficou do "outro lado" da Prússia oriental, mas estabelecendo um corredor polonês para acesso do novo país independente ao mar do Norte, estabelecendo um território "neutro" em torno da cidade de Dantzig (atual Gdansk, na Polônia).

Confidences du Führer sur son plan de conquête du monde

Traduit de l'Allemand par Albert Lehman, Paris: Coopération, 1939 


Dantzig, "administrada" flexivelmente pela Liga da Nações, pode ter sido a primeira e única cidade "internacional" do mundo, ao lado, talvez, de Xangai, que pertencia formalmente à República da China, mas que era de fato administrada por cônsules estrangeiros (sobretudo das grandes potências, que dominavam seus respectivos bairros estrangeiros sob concessões estabelecidas ainda no Império do Meio). Poderia ter sido também o caso de Jerusalém, mas seu status internacional nunca pode ser estabelecido, em função das guerras entre o Estado de Israel, que dominava seu lado ocidental, e os países árabes desde 1948, sendo que Jerusalém oriental ficou sob jurisdição da Transjordânia, depois reino da Jordânia. 

Rauschning foi aliado de Hitler desde a primeira hora, e era membro do partido nazista, durante quase toda a década de 1930. Entre 1931, com Hitler ainda fora do poder, mas sobretudo depois de 1933, até pelo menos 1934, ele foi recebido diversas vezes por Hitler, seja em Berlim, seja no seu reduto da Baviera. Anotou tudo o que Hitler lhe havia confidenciado, e depois publicou o seu livro, já no início da guerra iniciada em setembro de 1939. Foi traduzido imediatamente para o francês e publicado em Paris com introdução de Marcel Ray. 

Seleciono alguns trechos dessas conversações que interessam o Brasil e o mundo: 

X: Invasão da América Latina (p. 78-81)

    No começo do verão de 1933 [ou seja, Hitler chanceler desde o início do ano, em função de chantagem feita contra o velho presidente Hindemburg], fui testemunho... de uma conversação, bem característica das ideias políticas de Hitler sobre a América. Esta conversação é a prova evidente que, nessa época, o Führer já via bem longe e que se enganava muito se os objetivos políticos do nacional-socialismo se limitavam ao Leste e ao Sudeste da Europa. Nesse dia, Hitler tinha convidado um dos mais antigos e mais importantes membros das SA [as milícias armadas montadas por ele mesmo, ao longo dos anos 1920], que retornava de uma visita à América do Sul. Durante todo o almoço Hitler se tinha interessado fortemente pelos relatos desse viajante e tinha colocado muitas questões a ele. 

    O assunto foi retomado por Hitler no café. Visivelmente, ele tinha um conhecimento muito sumário sobre o Novo Mundo; ele remetia argumentos que ele havia recolhido no acaso de suas leituras. O Brasil o tinha particularmente interessado. "Nós edificaremos uma nova Alemanha no Brasil. Nós encontraremos ali tudo do que teremos necessidade." Ele desenvolve, em torno disso, as grandes linhas de ação que poderia exercer um governo paciente e enérgico, e os resultados que poderiam ser ali obtidos. No Brasil, pensava ele, se encontravam reunidas todas as condições de uma revolução que permitiria, em poucos anos, transformer um Estado governado por mestiços corrompidos em um Domínio germânico. "Em suma, nós temos diretos sobre esse continente, onde os Fugger, os Welser [nomes de banqueiros alemães] e outros pioneiros alemães possuíam no passado domínios ou enclaves de comércio. Nosso dever é o reconstituir esse patrimônio, que uma Alemanha degenerada deixou que se dispersasse. Mas o tempo passou no qual deveríamos ceder espaço à Espanha ou Portugal, e desempenhar em todos os lugares um papel de atrasados..."

    Seu convidado, von Pf..., [ nome subtraído por Rauschning] lhe confirma [a Hitler] as oportunidades que a Alemanha parecia ter justamente no Brasil. "Os Brasileiros têm necessidade de nós, se eles pretendem fazer qualquer coisa no país. O que lhes falta não é tanto o capital para o fazer frutificar e sim o espírito empreendedor e o talento de organização. " Aliás, precisava Pf..., o Brasil começava a se cansar dos Estados Unidos, que pretendiam apenas explorar o país, e não desenvolvê-lo.

    "Nós lhe daremos os dois, replica Hitler, capitais e espírito empreendedor. Nós daremos até uma terceira coisa: nossas ideias políticas. Se existe um continente no qual a democracia é uma insanidade e um meio de suicídio, é justamente a América do Sul. Trata-se de convencer essas pessoas que elas podem sem escrúpulos jogar o seu liberalismo e o seu democratismo no lixo. Eles ainda têm vergonha de exibir os seus bons instintos. Eles ainda acreditam em desempenhar a farsa democrática. Muito bem, nós esperaremos ainda alguns anos, se for preciso, e os ajudaremos a descartar essas coisas. Naturalmente, precisaremos enviar para lá nosso pessoal. Nossa juventude deve aprender a colonizar. É um trabalho que não se faz com burocratas corretos e governos complacentes. O que nós precisamos lá são jovens que não tenham qualquer hesitação. Não se trata de enviá-los na floresta, para desmatar terras virgens. Não, precisamos que pessoas que tenham acesso à boa sociedade. Poderemos usar as colônias alemãs que já existem por lá?" O convidado respondeu que ele não estava muito seguro [disso]. Em sua opinião, seria melhor não perder tempo com a boa sociedade e buscar imediatamente o contato com as massas inferiores, os índios e os mestiços. 

    – "Nós nos serviremos de uns e de outros, meu caro Pf..., interrompeu Hitler com uma ponta de impaciência. Nós precisamos montar dois movimentos diferentes: um movimento leal e um movimento revolucionário. Você pensa que seria muito difícil? Nós já demos a prova, creio, que nós sabemos fazer esse gênero de trabalho... Não temos nenhum intenção de fazer como Guilherme o Conquistador [o invasor normando da Inglaterra em 1066] e desembarcar nossas tropas para conquistar o Brasil com armas na mão. Nossas armas são invisíveis. Nossos 'Conquistadores', meu caro, têm um encargo mais difícil do que os do passado, e suas armas são de um manejo mais delicado". 

    Hitler coloca outras questões sobre as chances da Alemanha na América do Sul. A Argentina e a Bolívia o interessavam em primeiro lugar. Havia, disse ele, boas razões para acreditar que a influência do nacional-socialismo poderia encontrar um terreno favorável nesses países. (..) Aliás, o que acabava de ser dito estava em contradição formal com seus princípios enunciados no Mein Kampf. (...)

    Nesse dia, eu escutei pela primeira vez o programa desmesurado de Hitler para de um Império [Reich] alemão do ultramar. Fui surpreendido de ver que Hitler tinha planos de expansão até o Pacífico. O núcleo dessa colonização seria fornecido pelas ilhas que a Alemanha possuía no passado nos mares do Sul; se acrescentaria a isso colônias holandesas e toda a Nova-Guiné; Hitler declara ainda que seria preciso impedir o Japão de se estender em demasia, e desviá-lo para a China e a Rússia. Hitler sonhava ainda com um domínio alemão na África Central e previa, enfim, um imenso empreendimento revolucionário nos Estados Unidos. Com a queda do Império Britânico, Hitler esperava colocar um final à influência dos anglo-saxões na América do Norte e de substitui-la pela cultura e pela língua alemãs como etapa preliminar à incorporação pura e simples dos Estados Unidos no seu grande Império mundial. "

(...)

XI - A conquista dos Estados Unidos (p. 86)

    Hitler tinha, sobre os Estados Unidos, uma opinião pré-concebida que nada poderia mudar. Em sua opinião, a América do Norte não interviria nunca mais numa guerra europeia. Esse imenso país, com seus milhões de desempregados, estava à beira de um abismo revolucionário do qual apenas ele, Hitler, poderia salvá-lo.

    (...)

    "Eu vos garanto, senhores, que no momento oportuno, eu a moldarei à minha vontade, a vossa América, e que ela será o nosso melhor apoio no dia em que a Alemanha saltará da Europa em direção dos espaços ultramarinos." 

    Ele fez uma pausa e concluiu: "Nós temos em mãos todos os meios de despertar esse povo quando quisermos e, em todos os casos, não haverá um outro Wilson para jogar os Estados Unidos contra a Alemanha." (p. 90)


Existem muitas outras passagens interessantes nessas recordações de Rauschning, que transcreverei oportunamente. 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 11 de setembro de 2022