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domingo, 9 de maio de 2010
A doenca infantil do planejamento no Brasil - Antony Mueller
Antony Mueller (2002)
N. do T.: o texto a seguir é de 2002 e foi escrito antes do primeiro turno das eleições presidenciais - ou seja, é anterior à Era Lula. Fica a cargo do leitor ver se as caractrísticas por ele descritas mudaram de lá pra cá, ou se elas apenas se aprofundaram.
"Ordem e Progresso" tem sido o lema da bandeira brasileira desde que o país se tornou uma república em 1889. As palavras foram tiradas diretamente dos escritos de Auguste Comte. As ideias de Comte foram adotadas no século XIX pelas elites militares e políticas de grande parte da América Latina, e do Brasil em particular.[1] Desde então, o espírito de Auguste Comte tem assombrado o subcontinente, e as consequências práticas dessa ideologia têm sido desastrosas.
O positivismo de Comte é melhor descrito como sendo uma ideologia de engenharia social. Auguste Comte (1798-1857) acreditava que após o estágio teológico e o estágio metafísico, a humanidade iria entrar no estágio principal, o "positivismo", que para ele significava que a sociedade como um todo deveria ser organizada de acordo com conhecimentos científicos.
Comte acreditava que todas as ciências deveriam ser modeladas de acordo com os ideais da física, e que uma nova ciência chamada física social iria surgir no topo da hierarquia intelectual. Essa disciplina iria descobrir as leis sociais que então poderiam ser utilizadas por uma elite para reformar a sociedade como um todo. Da mesma maneira que a medicina extermina doenças, a física social teria que ser aplicada com o intuito de acabar com os malefícios sociais.
O ideal de Comte era uma nova "religião da humanidade". Na sua concepção, as pessoas precisam ser iludidas a crer como autênticas todas as ações que serão instigadas pelos soberanos e seus ajudantes, sendo que estes por sua vez servem aos mais altos ideais da humanidade. Revisando as ideias de Auguste Comte, John Stuart Mill escreveu que essa filosofia política intenciona estabelecer ". . . um despotismo da sociedade sobre o indivíduo que sobrepuja tudo o que já foi contemplado no ideário político dos mais rígidos disciplinadores dentre os antigos filósofos"[2]. Já Ludwig von Mises observou que "Comte pode ser desculpado, já que era louco no completo sentido com que a patologia emprega este vocábulo. Mas como desculpar os seus seguidores?"[3]
O misticismo racionalista que acometeu Comte quando este já estava mentalmente doente no final de sua vida pedia a criação de uma "igreja positivista", na qual -- imitando os rituais da Igreja Católica -- o "culto à humanidade" poderia ser praticado. Ao fim do século XIX, "sociedades positivistas" começaram a se espalhar pelo Brasil, e uma igreja real foi construída no Rio de Janeiro como o lugar onde a adoração dos ideais da humanidade pudesse ser praticada como uma religião.[4]
Até os dias atuais, o sistema brasileiro de ensino superior ainda carrega marcas do positivismo de Comte, e ainda mais forte é a influência da filosofia política positivista entre as altas patentes militares e entre os tecnocratas. O positivismo diz que a linguagem científica é a marca registrada da modernidade, e que para efetuar o progresso é preciso haver uma classe especial -- militar ou tecnocrática -- de pessoas que conheçam as leis da sociedade, e que sejam capazes de estabelecer a ordem e promover esse progresso.
A ideologia predominante de grande parte da elite regente contrasta agudamente com as tradições seguidas pelas pessoas comuns. Como na maioria da América Latina, a cultura popular brasileira é marcada profundamente pela tradição católico-escolástica, com seu ceticismo em relação à modernidade e ao progresso e com sua orientação mais espiritual e religiosa, que rejeita o conceito linear do tempo -- o tempo sendo um movimento progressivo -- em favor de uma visão circular e eterna da vida.[5]
Onde as ideias de Comte mostraram seu maior impacto foi na política econômica. Dado que os militares tiveram um papel central na vida política brasileira e dado que o positivismo havia se tornado o principal paradigma filosófico das escolas militares, a política econômica do Brasil foi marcada por um frenesi intervencionista que afetou e ainda afeta todos os aspectos da vida dos cidadãos.
A ideia do planejamento central para se atingir a modernidade transformou o Brasil em um ambiente fértil para o intervencionismo econômico, sendo que cada novo governo sempre promete o grande salto para frente. Ao invés de remover os obstáculos que impedem o desenvolvimento da iniciativa privada e garantir direitos de propriedade confiáveis, todos os governos presumem ser sua função desenvolver o país através da concessão de privilégios para um pequeno grupo de empresas já existentes.
Desde que se tornou uma república, não houve um só governo brasileiro que não tenha criado um novo plano extenso e abrangente, ou um emaranhado de pacotes, com o propósito de levar ao desenvolvimento. Seguindo a agenda positivista, criar planos de natureza aparentemente científica e utilizar a força do estado para aplicá-los se tornou a marca registrada da política econômica brasileira. Frequentemente, todos esses planos são primeiramente elaborados em um dos poucos centros universitários do país para, então, passarem a formar a agenda de cada novo governo, que geralmente convoca um time de jovens tecnocratas para implementá-los.
Particularmente pomposos quando os governos militares estavam no comando -- como ocorreu nos anos 1930 e 1940, e de 1964 até 1984 --, a invenção e implementação de grandes planos continua até os dias atuais. Independentemente de qual coalizão partidária está no comando, o espírito do positivismo tem sido compartilhado por todos os governos, desde o primeiro até o atual, que aparentemente está praticando uma política econômica que se convencionou chamar de "neoliberal".
Mesmo se contarmos apenas os planos mais importantes, a frequência com que eles se sucederam pelo período de quase um século é espantosa: após seguir o modelo de industrialização por substituição de importações sob o semi-fascista Estado Novo, dos anos 1930 aos anos 1940, o Brasil teve o Plano de Metas na década de 50 e depois o Plano Trienal de desenvolvimento econômico e social. Na década de 70 vieram as séries de Planos de Desenvolvimento Nacional. A década de 80 trouxe o Plano Cruzado, o Plano Bresser e o Plano Verão. A década de 90 começou com o Plano Collor I, que foi seguido pelo Plano Collor II, que foi seguido pelo Plano de Ação Imediata que, por fim, culminou no Plano Real em 1994.
A se julgar pelos seus objetivos declarados, todos esses planos falharam. Durante as últimas seis décadas, o Brasil teve oito diferentes moedas, cada uma com um novo nome, e uma taxa de inflação que sugere que a moeda atual equivaleria a um trilhão de Cruzeiros, a moeda de 1942.[6] Sob uma falsa aparência de modernidade, a mesma rede clientelista formada pelos "donos do Poder"[7] continua a mandar no país. Com o passar do tempo, essa classe atingiu um nível tão grande de privilégios que, comparados ao restante da população, são similares àqueles desfrutados pela nomenklatura na União Soviética. Com isso, esse restante da população teve que se virar e recorrer a algumas maneiras peculiares -- chamados de jeitinho, uma espécie de chutzpah[8] -- para poder sobreviver à sua maneira.
Dentro do sistema positivista, linguagem científica e intervencionismo andam de mãos dadas. A suposta racionalidade do intervencionismo se apóia na premissa de que é possível se saber antecipadamente o resultado específico de uma medida de política econômica. Por conseguinte, quando as coisas saem diferente do esperado - e elas sempre saem - mais intervenção e mais controle são outorgados. O resultado é que os governos são esmagados pelas suas próprias pretensões e humilhados por seus retumbantes fracassos.
O Brasil, que é tão abençoado pela natureza e que tem uma população de grande espírito empreendedor -- o que faz com que o país tenha uma das mais altas taxas de auto-emprego no mundo --, tem permanecido atrasado por causa de uma ideologia corrompida. Até os dias atuais, todos os governos brasileiros se empenharam ao máximo em absorver todos os recursos do país com o intuito de perseguir suas fantasias de modernidade e progresso (é claro que, nesse caso, "modernidade" e "progresso" são conceitos definidos pelo governo, e não pela população). Devido a isso, toda a criatividade espontânea que é inerente ao livre mercado acaba sendo bloqueada.
O Brasil teria seu lugar de destaque garantido se o espírito que tem assombrado esse país fosse proscrito em favor de uma ordem, no verdadeiro sentido da palavra: isto é, um sistema de regras confiáveis baseado nos princípios do direito de propriedade, da responsabilidade individual e do livre mercado.
[1] Leopoldo Zea, Pensamiento positivista latinoamericano, Caracas, Venezuela, 1980 (Biblioteca Ayacucho).
[2] John Stuart Mill, On Liberty, Londres 1869, p. 14 (Longman, Roberts & Green).
[3] Ludwig von Mises, Ação Humana, Alabama 1998, pp. 72 (The Ludwig von Mises Institute, Scholar's Edition).
[4] Ivan Lins, História do positivismo no Brasil, São Paulo 1964, pp. 399 (Companhia Editora Nacional)
[5] A expressão clássica desse tipo de pensamento na América Latina é de José Enrique Rodó: Ariel, Montevidéu 1910 (Libreria Cervantes). Na literatura, esse tipo de pensamento é proeminente até os dias de hoje nos escritos do mais popular escritor brasileiro: Paulo Coelho.
[6] Ruediger Zoller, Prädidenten - Diktatoren - Erlöser, Tabela V, p. 307, em: Eine kleine Geschichte Brasiliens, Frankfurt 2000 (edição suhrkamp).
[7] A descrição clássica é de Raymundo Faoro, em Os Donos do Poder, 2 vols. (Editora Globo: Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro) São Paulo 2000
[8] Descaramento, em iídiche. [N. do T.]
Antony Mueller, nascido na Alemanha, é economista e atualmente mora em Aracaju, onde leciona na Universidade Federal de Sergipe. É acadêmico adjunto do Mises Institute e diretor acadêmico do Instituto Ludwig von Mises Brasil. É o fundador do Continental Economics Institute
Tradução de Leandro Augusto Gomes Roque
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