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segunda-feira, 3 de maio de 2010

Dois desapontamentos: Brasil e Russia - Roberto Campos

O artigo abaixo, do economista e diplomata Roberto Campos, tem mais de dez anos, mas pode ser que contenha ainda ensinamentos úteis. Ele foi postado na internet pelo sempre competente economista Ricardo Bergamini.
Aproveitem. (PRA)

Dois desapontamentos
*Roberto de Oliveira Campos
02/01/2000

O fim do século 20 e o começo de um novo milênio redobram o interesse internacional em análises comparativas de desempenho. Sob esse prisma, há dois grandes países que se tornaram grandes desapontamentos: Brasil e Rússia. Grande desapontamento pela diferença entre o potencial, que é reconhecidamente enorme, e o desempenho, que é admitidamente medíocre. Nenhum desses países têm o direito de ser pobre. Ambos confirmam minha velha teoria de que há países naturalmente ricos mas vocacionalmente pobres (Brasil, Rússia, Venezuela, por exemplo). Há países naturalmente pobres mas vocacionalmente ricos (Japão e Suíça). E há casos raros, como o dos Estados Unidos, que são ricos por natureza e por vocação.

Na Rússia, a atual humilhação é particularmente aguda. Tendo sido uma superpotência nuclear, descobriu que está inaugurando uma nova tipologia de país: é um "novo pobre". Sua renda por habitante é um sexto da japonesa e a dimensão de seu PIB real, comparável ao da Holanda, países de mesquinho território e desprovidos de riquezas naturais. Isso deveria ter ensinado aos nossos nacionalistas a enorme bobagem de se confundir recursos naturais, que são cadáveres geológicos, com riqueza real, que vem da educação e da tecnologia.

O Brasil nunca chegou ao fastígio da superpotência. Mas depois do salto juscelinista dos anos 50 e do "milagre brasileiro" de 1968 até a crise do petróleo, era uma respeitável potência emergente, que parecia condenada ao sucesso, tornando-se grande potência no fim do século. Mas a ele chegamos sofrendo velhas doenças, com um indecente déficit fiscal, um humilhante déficit externo e duas décadas de estagnação.

Haverá semelhanças que expliquem, pelo menos parcialmente, os desapontadores resultados do Brasil e da Rússia, em busca do desenvolvimento sustentável? Alguns analistas apontam três semelhanças no século passado, que projetam sombras negativas sobre o presente. Desde o século 19 essas duas nações, multiculturais e imperiais (o império russo sobreviveu até 1917 e o brasileiro até 1889), apresentaram três perniciosas analogias: a) alta taxa de analfabetismo; b) atraso na abolição da escravatura (servos de gleba ou escravos negros); c) economia patrimonialista. Estatísticas reconstruídas pelo professor Nathaniel Leff, de Harvard, sobre a estrutura educacional no século 19 revelam que Brasil e Rússia eram campeões do analfabetismo. Em 1850, apenas 1% da população brasileira era alfabetizada; na Rússia, 2%. Na Europa Ocidental, a situação era melhor e mais diferenciada: 7% na Holanda, 10% na França e 14% na Inglaterra.

A grande surpresa são os Estados Unidos, que já em 1850 tinham 22% da população alfabetizada, provavelmente pela influência dos puritanos imigrantes, que consideravam a leitura da Bíblia condição indispensável da cidadania. Não é de se subestimar a importância econômica de três traços culturais trazidos pelos dissidentes religiosos: a alfabetização imposta pela leitura da Bíblia; o coral dominical que impõe hábitos de cooperação e disciplina e a rebeldia religiosa, que favorecia a mentalidade não-conformista.

Um segundo fator de semelhança entre Brasil e Rússia no século 19 foi a do mercado de trabalho, pelo prolongamento do regime de servidão. Enquanto na Europa Ocidental o feudalismo se desintegrara ao longo dos séculos 17 e 18, os "servos de gleba" só foram liberados por édito do czar em 1861. No Brasil, a escravatura negra só foi formalmente abolida em 1888. A barateza espoliativa da mão-de-obra sob o regime de servidão teve duas conseqüências: diminuiu o interesse na busca de alternativas tecnológicas para redução do custo da mão-de-obra, e retardou o crescimento do mercado interno, refreando a capacidade de consumo dos não-assalariados.

Um terceiro fator de semelhança foi a cultura patrimonialista dos dois regimes imperiais. Essa cultura era caracterizada pela tênue linha divisória entre a propriedade pública e a propriedade privada; pela intensa capacidade apropriativa do poder dominante através de desapropriações e confisco; pela implantação de monopólios estatais ou de corporações privadas privilegiadas pelo Estado, retardando o advento do capitalismo competitivo. Nenhum desses países absorveu adequadamente dois elementos básicos da cultura capitalista: a soberania do consumidor e o respeito ao contribuinte.

A trajetória neste século foi bastante diferente. A Rússia superou completamente sua deficiência educacional. Cabe mérito ao comunismo o mérito de tê-la transformado numa potência científica e tecnológica. Apenas foi uma tecnologia de base estreita, enviesada para o esforço militar e espacial. Lenin se enganou ao proclamar a eletrificação e a alfabetização como sendo o "binômio do desenvolvimento", esquecendo-se do papel das "instituições". O Brasil está ainda longe de resolver seu problema de educação fundamental de massa, gastando até hoje demais com o beletrismo elitista.

O grande erro russo no século 20 foi a institucionalização do comunismo, esse misto de despotismo político e ineficiência econômica. A Rússia sempre foi vítima de modernizações tiranicamente impostas e não democraticamente referendadas. Assim foram a modernização de Pedro, o Grande, e a industrialização forçada de Stalin.

O Brasil teve sorte em não agravar seus problemas por opções institucionais erradas, aderindo desde o começo do século à democracia política e à economia de mercado, ainda que sem praticá-las continua e competentemente. Na realidade, passamos do mercantilismo patrimonialista ao capitalismo de Estado, sem chegarmos ainda à fase do capitalismo liberal-competitivo. O neoliberalismo, de que tanto se fala, seria até uma doença desejável, mas ainda não fomos contaminados...

*Defensor apaixonado do liberalismo. Economista, diplomata e político também se revelou um intelectual brilhante. De sua intensa produção, resultaram inúmeros artigos e obras como o livro A Lanterna na Popa, uma autobiografia que logo se transformou em best-seller. Foi ministro do Planejamento, senador por Mato Grosso, deputado federal e embaixador em Washington e Londres. Sua carreira começou em 1939, quando prestou concurso para o Itamaraty. Logo foi servir na embaixada brasileira em Washington, e, cinco anos depois, participou da Conferência de Bretton Woods, responsável por desenhar o sistema monetário internacional do pós-guerra.

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