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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Mercosul: dois prefacios mais para o pessimista - Paulo Roberto de Almeida

No ano passado fui solicitado a prefaciar dois livros sobre o Mercosul. Não é meu hábito fazer algo apenas pro-forma, ou seja, puramente encomiástico, elogiando autor ou colaboradores em quaisquer tipos de livros. Nunca fiz isso e acho que nunca farei. O que faço é ler o material e daí extrair reflexões sobre o que ele representa, em termos de estado da arte do conhecimento naquele terreno, e quais lições se deve tirar de todos os argumentos desenvolvidos no livro que tenho em mãos (frequentemente na tela).
Daí que nunca faço prefácios, e sim novos artigos, discutindo algum problema concreto, oferecendo minha visão da questão.
Não tenho culpa, longe disso, se o Mercosul só andou para trás na gestão amadora, e enviesada, dos companheiros.
Como um dos que assistiram ao nascimento do bloco, que escreveu e continua escrevendo muito a respeito, a despeito de não me ocupar profissionalmente do assunto há muito tempo, mas tendo formulado todas as expectativas mais otimistas sobre o processo, eu teria todo interesse em falar bem do Mercosul. Na verdade, o bloco, em si, seus instrumentos, suas ferramentas, não são culpados de nada. São os países que fizeram dele a porcaria que é hoje, algo não apenas irrelevante no plano mundial, mas prejudicial à própria inserção dos países membros na economia mundial. Os companheiros, e os protecionistas que ficam do outro lado do rio, simplesmente destruíram o Mercosul, e isso precisa ser dito. Não que eu o diga em livros publicados, mas posso dizer aqui, pois se trata de um espaço livre.
Aproveito para indicar aqui um outro artigo sobre o Mercosul aos 22 anos:

2473. “O Mercosul aos 22 anos: algo a comemorar?”, Hartford, 24 Março 2013, 4 p. Artigo feito com base no trabalho 1564 (Brasília, 24 de março de 2006), para marcar a passagem de mais um aniversário do bloco. Postado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2013/03/o-mercosul-aos-22-anos-algo-comemorar.html) e linkado no post sobre o livro do Mercosul 21 anos (http://diplomatizzando.blogspot.com/2013/04/mercosul-21-anos-livro-prefacio-de.html).

Enfim, indico abaixo um links para um dos prefácios que preparei recentemente sobre o bloquinho, e transcrevo o segundo prefácio, que ainda não tinha sido postado...
Paulo Roberto de Almeida

1091. “Mercosul: a visão dos primeiros vinte anos e as perspectivas futuras”, In: Erica Simone Almeida Resende e Maria Izabel Mallman (orgs.). Mercosul: 21 anos: Maturidade ou Imaturidade?; (Curitiba: Editora Appris, 2013, 369 p.; p. 5-12; ISBN: 978-85-8192-111-2; link: http://www.editoraappris.com.br/produto/4033190/Mercosul---21-Anos-Maioridade-ou-Imaturidade); Blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2013/04/mercosul-21-anos-livro-prefacio-de.html). Relação de Originais n. 2420.



Transcrevo agora o segundo prefácio, mais político do que econômico: 

1079. “O Mercosul, em todos os seus estados”, In: Elisa Souza Ribeiro: Mercosul: Sobre Democracia e Instituições (Curitiba: Editora CRV, 2012, p. 15-24; ISBN: 978-85-8042-596-3; link da Editora: http://www.editoracrv.com.br/?f=produto_detalhes&pid=3686). Relação de Originais n. 2452.

O Mercosul, em todos os seus estados

Paulo Roberto de Almeida
In: Elisa Souza Ribeiro: Mercosul: Sobre Democracia e Instituições
(Curitiba: Editora CRV, 2012, p. 15-24; ISBN: 978-85-8042-596-3).

Os blocos comerciais, em sua quase totalidade, já nascem com uma carência de legitimidade democrática. Isso se dá logicamente porque as negociações que levam à assinatura do futuro acordo de integração econômica costumam envolver, ab initio, além de concessões mais corriqueiras e aceitas sem dificuldades – geralmente tratando de produtos que são necessária e normalmente importados –, outros aspectos, alguns deles sensíveis, da economia de cada um dos países membros. Cabe também relembrar que elas são, de ordinário, conduzidas em um ambiente fechado, com toda a falta de transparência de que são capazes tecnocratas que prezam mais a confidencialidade de suas tratativas do que a prestação de contas à sociedade ou aos parlamentos (que serão, depois, encarregados de aprovar o acordo final). Daí resultam acusações, muito frequentemente feitas, de “déficit” ou de “lacuna” democrática de que careceriam esses instrumentos de liberalização comercial.
São raros os países – e aqui se destacam, notadamente, os Estados Unidos – nos quais o parlamento dá instruções precisas aos negociadores do executivo sobre que tipo de acordo se pretende ter, e quais os limites das concessões, ou dos arranjos especiais, que estes últimos estão autorizados a oferecer às demais partes. Um mandato assim desenhado pode até atuar em detrimento da qualidade ou da coerência do acordo em causa, pois parlamentos não são, exatamente, templos de coerência econômica ou exemplos consagrados da racionalidade estrito senso. Seus componentes tendem a obedecer às pressões de lobbies ou de seus constituintes, que geralmente não querem muitas mudanças nos arranjos econômicos aos quais já estão acostumados, e que buscam, justamente, proteger de qualquer liberalização mais ameaçadora da segurança dos empregos e da renda baseados nas atividades tradicionais. Ou seja, tampouco uma negociação amplamente supervisionada pelo corpo de representantes da sociedade, que atuam como “cães de guarda” dos tecnocratas governamentais, consegue escapar da acusação de “déficit democrático” em seu produto final, se por acaso o acordo resultante defender mais interesses corporativos, ou carteis regionais, do que o bem-estar da população como um todo.
Existe, portanto, um “pecado original” na relação entre a institucionalidade formal de um esquema de integração econômica e o seu funcionamento efetivo, que muitos pretendem deva ser o mais democrático possível, isto é, sujeito ao escrutínio dos representantes do povo, operando sob o signo da transparência e da responsabilização dos agentes encarregados de sua administração e abrindo-se ao controle e, não raro, à participação dos cidadãos e das organizações sociais representativas. Uma construção desse tipo pode representar o ideal do ponto de vista dos teóricos da integração, mas raramente é encontrada na prática corrente dos esquemas efetivamente existentes. A verdade é que todos os blocos – qualquer que seja a interação que seus país fundadores e seus negociadores tenham tido com os “representantes do povo”, antes ou depois de fechado o acordo – padecem dessa “essência democrática” que eles seriam supostos encarnar em face de cidadãos (ou de críticos acadêmicos) sempre sequiosos por maior participação e demandando graus ainda maiores de transparência nos processos internos a cada um deles. A institucionalidade adotada nunca é julgada suficientemente democrática ou adequadamente transparente, para receber a aprovação de todos os “fiscais” autodesignados da democracia a mais perfeita possível no bloco em exame.
Tomemos, por exemplo, o modelo aparentemente mais acabado, e avançado, de integração econômica, o experimento europeu, que é suposto representar o nec plus ultra dos esquemas possíveis de diluição das soberanias nacionais num esquema comunitário e, portanto, supranacional, de integração. Ele evoluiu de um simples acordo setorial de organização de mercados – o da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, de 1951 – para um acordo completo de mercado comum – pelos tratados de Roma, de 1957 – até chegar nas fases mais avançadas de sua união econômica, notadamente simbolizada pela adoção de uma moeda comum, como previsto no tratado de Maastricht (de 1991, mas complementado por diversos outros instrumentos, inclusive uma espécie de “constituição” que já nasceu emendada e remendada). O que é a União Europeia senão uma imensa catedral gótica, dessas que demoraram décadas, senão séculos, para serem construídas, desde a alta idade média, que demandaram enormes recursos até serem completadas, e que continuam a sorver as finanças dos cidadãos contribuintes na sua manutenção, conservação e ampliação?
A “catedral gótica” que tem sede em Bruxelas – e ramificações um pouco em todas as partes desse continente, que já foi bem mais “animado” pelo espírito guerreiro de seus muitos povos, hoje aparentemente pacificados e unificados no mesmo culto integracionista – é, reconhecidamente, um dos mais complexos edifícios já construídos pelas mãos de simples mortais (no caso, auxiliados por grandes estadistas). Depois de todos os experimentos absolutistas, e até ditatoriais, conhecidos no continente europeu, esse mosaico de povos parece reconciliado definitivamente com o padrão democrático, testado e confirmado pela primeira vez na ilha britânica, nas primícias da era moderna, e gradualmente estendido ao resto do continente; a exigência foi inclusive inscrita nos requisitos de acesso ao clube comunitário, o que aliás atuou positivamente para a consolidação democrática de vários candidatos periféricos ao maná proveniente dos seus membros mais afluentes. Curioso que a cada estremecer da atividade econômica no continente – e as turbulências foram muitas, especialmente na fase atual de inadimplência de dívidas soberanas – os membros correm para a catedral gótica de Bruxelas e proclamam que a solução para os seus muitos problemas é um pouco mais de construção gótica, ou seja, uma outra nave na ala esquerda, uma cripta monetária na ala direita, uma extensão social do espaço comum, para abrigar mais e mais cidadãos, enfim, uma ampliação regular e constante do belo edifício que demorou tanto tempo para ser construído e que continua a requerer tantos recursos para ser mantido.
Tudo isso, obviamente, em nome da democracia e da participação dos cidadãos no processo comunitário, já que nenhuma instituição intergovernamental consegue mais  legitimar qualquer empreendimento desse tipo sem referir-se ao bem-estar daqueles que pagam os salários dos tecnocratas. Foi justamente em função da avaliação de uma parte desses pagantes, quanto aos custos reais e os benefícios reais e presumidos do processo de integração, que a Grã-Bretanha sempre se caracterizou pela existência de um núcleo sólido de opositores ao seu ingresso no esquema comunitário, ou de qualquer extensão deste a esferas ainda mais complexas da atividade econômica dos países membros, tendo ela, aliás, liderado, em 1960, o processo mais flexível de criação de um bloco de livre comércio, na hoje diminuta Efta (com apenas quatro membros remanescentes), além de ter sido uma constante contestadora dos exercícios de aprofundamento do escopo comunitário. Não apenas em função de posturas doutrinais consistentemente favoráveis a mercados concorrenciais e ao livre comércio – bem mais enfáticas no período da primeira-ministra Margareth Thatcher –, mas também em virtude de uma atitude liberal, típica e historicamente associada ao individualismo pragmático sempre pregado por seus filósofos utilitaristas, a Grã-Bretanha sempre privilegiou a subsidiariedade e a redução ao máximo possível dos mecanismos dirigistas voltados para a integração, contra as notórias tendências à burocratização e à regulação extremada, habituais nos  governos intervencionistas e distributivistas do continente.
Não seria estranho, assim, especular com a hipótese de que a Grã-Bretanha – e talvez algum outro membro comunitário de sua vertente setentrional – ficasse bem mais confortável em um esquema do tipo Nafta do que ela o é na UE atual, sobretudo em uma união que pretende não apenas reforçar a moeda única (a um custo talvez exagerado para o orçamento comunitário e, a fortiori, para os orçamentos nacionais de contribuição), como também avançar para mecanismos ainda mais sofisticados de harmonização fiscal, tributária e bancária, como aqueles que são discutidos atualmente no quadro da crise recessiva provocada pela explosão e ameaça de insolvência das dívidas soberanas de vários de seus membros (além daqueles que efetivamente já entraram em default, como a Grécia). Tampouco se deve estranhar o reforço recente dos movimentos que continuam a pregar a saída do Reino Unido do bloco comunitário, passando então a manter com a UE os mesmos vínculos de associação que são os dos membros remanescentes da Efta. Os motivos e argumentos dos grupos opositores são os mesmos, aliás, dos alegados pelos que pregam maior transparência e maior participação cidadã nos mecanismos comunitários: as lacunas democráticas, já percebidas, e o perigo, potencial, de uma burocratização ainda mais extensa do esquema comunitário, com o crescimento incontrolado da “catedral gótica”, que continua a ganhar novos “puxadinhos” institucionais – e até novos tratados de “aperfeiçoamento institucional” – além de novas competências e mandatos inéditos atribuídos aos “eurocratas” de Bruxelas, para regular os mais diferentes aspectos da atividade governamental e até civil, quando não privada, dos países membros.
Vê-se, por aí, quão complexo e difícil é o debate sobre a questão – real ou imaginária – do chamado “déficit democrático” nas instituições de integração. Se ele já é extremamente complicado num experimento de mais de seis décadas – desde seu pontapé original, na Ceca – e num continente caracterizado por graus razoáveis de estabilidade econômica e de normalidade política, tal como conhecido na Europa ocidental desde a retomada dos regimes democráticos no pós-Segunda Guerra, percebe-se o quanto ele pode ser ainda mais complicado e difícil numa região não especialmente estável, ou dotada de instituições democráticas sólidas e transparentes, como é a América Latina ou, no caso aqui examinado, no âmbito do Mercosul.
Não é desconhecido que o ponto de partida do Mercosul – ainda em sua fase bilateral, de um projeto de mercado comum entre o Brasil e a Argentina – foi o processo de redemocratização em ambos os países e o exemplo, naquela época, do “salto para a frente” que a então Comunidade Europeia empreendia, depois de sua fase de “euroesclerose”, por meio do Ato Único de 1986, de consolidação de um mercado comum verdadeiramente unificado e completo depois de 1992. Não apenas por desejo de emulação, mas também conscientes de que o sistema multilateral de comércio passaria doravante a conviver crescentemente com o minilateralismo dos esquemas preferenciais de comércio, Brasil e Argentina decidiram avançar em seu processo de integração, evoluindo, então, do esquema relativamente flexível, e gradual, dos protocolos setoriais – mas também marcados por grande dirigismo estatal – para a modalidade mais liberal, e automática, do estabelecimento calendarizado de um mercado comum bilateral. Isso foi feito pela Ata de Buenos Aires, de 1990, que é a base conceitual e “contratual” do Tratado de Assunção, firmado em março do ano seguinte.
Desde o início do processo, ainda em sua fase bilateral, os críticos acadêmicos, ou “sociais”, do esquema integracionista reclamaram de suas lacunas democráticas, insuficientemente compensadas pela existência de uma Comissão Parlamentar e de um órgão de “representação social”, ambos de funções eminentemente decorativas, já que completamente desprovidos de competências reais ou de qualquer capacidade de atuação ou de participação no processo decisório do Mercosul. Nas fases seguintes, durante as quais se procurou “dar mais ouvidos” a essas duas entidades, essas deficiências de participação cidadão ou o que passou a ser chamado de “déficit democrático”, no bloco, não foram sanados, e talvez se tenham até agravado, com a complexidade crescente do esquema integracionista, inclusive não necessariamente no sentido de seu avanço para etapas mais consolidadas do processo, mas justamente, em função das muitas inadimplências e descumprimentos nacionais em relação aos pressupostos institucionais e aos compromissos efetivos dos países membros em face dos requerimentos de liberalização e de coordenação de políticas. Não é segredo para ninguém que, desde a dupla crise brasileiro-argentina, entre 1999 e 2001, o Mercosul não mais avançou no terreno comercial ou na abertura econômica – ainda que os fluxos de comércio tenham acompanhado o ritmo normal da recuperação em ambos os países –, tendo, ao contrário, recuado relativa e absolutamente em termos de abertura recíproca e no respeito às regras mais elementares inscritas em seus instrumentos constitutivos.
O Mercosul atual, em todos os seus estados, é uma sombra do que ele foi nos primeiros quatro anos de “transição” e nos outros cinco anos de sua “implementação” enquanto união aduaneira imperfeita, não tanto pelo decréscimo relativo da importância dos intercâmbios entre os membros – embora o peso destes, para o Brasil, seja hoje nitidamente menor, proporcionalmente ao comércio total, do que ele tinha alcançado antes de 1999 –, mas pela nítida inflexão dos objetivos claramente comercialistas dos atos fundacionais em favor de uma clara inclinação para compromissos sociais e para finalidades bem mais políticas do que propriamente econômicas. Não haveria nenhum problema nessa “evolução” política – inclusive porque ela é própria dos processos mais elaborados, como pretende ser o Mercosul, que recusou o esquema mais simples do livre comércio – se não fosse a evidente “involução” institucional que o bloco passou a conhecer, a partir do desrespeito sistemático a seus fundamentos mais essenciais – ou seja o livre comércio – tal como começou a ser praticado por vários dos países membros – com destaque para a Argentina – a partir de então.
Na verdade, o desrespeito flagrante aos compromissos assumidos ao abrigo dos instrumentos fundamentais do processo de integração teve início ainda antes das crises cambiais de 1999-2001, mas ele era contornado por uma aparência de cobertura legal às restrições então impostas ao comércio intra e extra-Mercosul – como a adoção de decisões que “sancionavam” um aumento indireto de tarifas, pela via de “taxas de estatística”, por exemplo – ou então podia ser coibido pelo recurso aos mecanismos de solução de controvérsias próprias ao bloco ou, na falha destes, por um apelo às instâncias pertinentes do sistema multilateral de comércio. O Brasil, para referir-se a dois casos concretos, seguiu a Argentina no aumento temporário das tarifas, na segunda metade dos anos 1990, e não hesitou, na outra vertente, a recorrer ao sistema da OMC quando o país platino não implementou decisões que lhe foram desfavoráveis por laudos arbitrais do Mercosul ganhos pelo Brasil contra interrupções ilegais de certas  exportações para aquele mercado.
Ora, no período que se inaugura em 2003, não apenas o Brasil deixou de defender os interesses concretos de seus exportadores, confrontados a barreiras injustificadas, arbitrárias e ilegais – tanto do ponto de vista do Mercosul, quanto do protocolo de salvaguardas do sistema multilateral de comércio –, como ele também passou a seguir medidas claramente protecionistas adotadas pelo país vizinho, em desrespeito a compromissos e regras do sistema multilateral (e do próprio bloco), recuando a comportamentos pretéritos de política comercial que já eram julgados ultrapassados e esquecidos. Não houve um único caso de acionamento dos tribunais arbitrais do Mercosul ou da OMC em face dos muitos casos de barreiras ilegais, abusivas e discriminatórias impostas pela Argentina a diversas linhas de produtos brasileiros, num crescendo de obstáculos perfeitamente proporcional à passividade demonstrada pelo governo brasileiro a partir de 2003. Se ocorreram episódios (raros, restritos, quase simbólicos) de reação a esse levantamento de muralhas protecionistas, eles foram muito localizados, temporários e praticamente ineficazes, correspondendo ao que poderíamos chamar de demonstrações de “machismo comercial” – bem mais para efeitos internos do que propriamente para resolver a questão bilateralmente – do que a uma resposta juridicamente embasada aos reais problemas suscitados pela política comercial discriminatória, e anti-integracionista, praticada pela Argentina dos Kirchner (Nestor e Cristina).
Esses episódios também podem ser colocados na conta do “déficit democrático” do Mercosul, ou da ausência de transparência dos procedimentos internos adotados pelo Brasil e por outros países. Eles revelam desprezo pelo uso dos recursos legais em caso de inadimplência no cumprimento de deveres, além de total negligência em relação aos interesses dos empresários exportadores, que são mantidos à margem das tratativas políticas conduzidas bilateralmente pelos executivos, o que, por sua vez, alimenta o ambiente de incertezas quanto à realidade dos pressupostos do bloco, em especial o alegado livre comércio consagrado nos instrumentos constitutivos. Em todo caso, o comportamento observado no relacionamento intra-bloco pode ser também um reflexo da aparente negligência dos governo em relação à legalidade formal de procedimentos administrativos e legais, o que também já vinha se manifestando no âmbito interno dos países: tudo leva a crer que a maior fonte de descumprimentos ao arcabouço legal não se encontra tanto do lado dos agentes privados quanto vem representada pela própria administração pública, pelos mesmos agentes encarregados da integração.
A verdade é que, em praticamente todos os membros do Mercosul, a vontade dos executivos prevalece sobre a capacidade normativa dos legislativos, e o mesmo ocorre também na processualística dos atos internacionais. Não é de estranhar, assim, que isso também ocorra no âmbito do grupo, com dominância política quase absoluta dos executivos sobre todas as demais instâncias do bloco: a despeito da existência de órgãos de representação social ou cidadã, estes não possuem qualquer poder decisório ou capacidade de iniciativa sobre o arsenal normativo. Quando suas funções estão previstas, estas se colocam de forma acessória, como suporte ou apoio à ação dos executivos nacionais e na tramitação das decisões que estes adotam exclusivamente.
Estes aspectos estão bem descritos neste livro, que refaz todo o caminho teórico e empírico do debate sobre o conteúdo democrático dos processos de integração. Uma das virtudes desta obra é justamente é a de levantar o estado do debate em torno da questão, entre especialistas e mesmo alguns dos participantes do processo (entrevistados para o trabalho), o que permitiu à autora afastar explicações simplistas sobre o alegado “déficit democrático”, como a que pretende que essa deficiência seria devido ao caráter intergovernamental, e não supranacional, do Mercosul. Como examinado no caso do experimento europeu, não por isso as lacunas de transparência e de participação ampla dos cidadãos deixam de existir: a supranacionalidade não é garantia de democracia.
O mérito da autora está em ter dissecado, com seu bisturi analítico, os diversos “membros” do Mercosul, o que lhe foi facilitado por uma intensa e longa convivência com a literatura existente sobre a questão, fruto de seus estudos e participação em grupo de pesquisas acadêmicas sobre esse processo de integração, e o fato de ter trabalhado junto à representação brasileira em uma das entidades do bloco, seu Parlamento, com  sede em Montevidéu. Essa experiência prática habilitou-a a avaliar com maior realismo do que a normalmente encontrada em estudos tipicamente acadêmicos os diversos meandros da questão democrática no bloco, sem cair num julgamento a priori sobre o seu alegado “déficit democrático”.
Acredito que a obra será confirmada como referência obrigatória na literatura e no debate em torno dessa questão, passando doravante a integrar a bibliografia especializada a esse respeito. Sua lucidez transparece claramente em uma de suas mais importantes conclusões: “O que existe é uma crise de credibilidade que é confundida com déficit democrático.” A falta de credibilidade atual do Mercosul não se deve a deficiências institucionais próprias ao bloco, mas inteiramente ao comportamento de seus membros, talvez mais exatamente de seus dois mais importantes Estados-Parte.
Como no caso das grandes organizações multilaterais, não se deve atribuir ao Mercosul falhas que são exclusivamente devidas à inação ou à omissão de suas partes constitutivas. O Mercosul só pode ser aquilo que desejam, ou permitem que seja, seus membros mais relevantes. Burocracias muito poderosas conseguem, por vezes, se movimentar sem os anabolizantes orçamentários de seus integrantes; este não é certamente o caso do Mercosul. Cabe esperar, assim, que um dia, sem que o bloco necessite construir uma outra “catedral gótica” na pequena capital do cone sul, os países membros consintam em avançar no cumprimento do artigo inaugural de seu tratado constitutivo: fazer do Mercosul um espaço econômico verdadeiramente integrado, no florescimento pleno do projeto original: a construção de democracias de mercado, plenamente integradas à economia mundial e absolutamente respeitadoras dos valores democráticos e dos direitos humanos nesta vasta região.


Brasília, 16 de dezembro de 2012.

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