No ano passado fui solicitado a prefaciar dois livros sobre o Mercosul. Não é meu hábito fazer algo apenas pro-forma, ou seja, puramente encomiástico, elogiando autor ou colaboradores em quaisquer tipos de livros. Nunca fiz isso e acho que nunca farei. O que faço é ler o material e daí extrair reflexões sobre o que ele representa, em termos de estado da arte do conhecimento naquele terreno, e quais lições se deve tirar de todos os argumentos desenvolvidos no livro que tenho em mãos (frequentemente na tela).
Daí que nunca faço prefácios, e sim novos artigos, discutindo algum problema concreto, oferecendo minha visão da questão.
Não tenho culpa, longe disso, se o Mercosul só andou para trás na gestão amadora, e enviesada, dos companheiros.
Como um dos que assistiram ao nascimento do bloco, que escreveu e continua escrevendo muito a respeito, a despeito de não me ocupar profissionalmente do assunto há muito tempo, mas tendo formulado todas as expectativas mais otimistas sobre o processo, eu teria todo interesse em falar bem do Mercosul. Na verdade, o bloco, em si, seus instrumentos, suas ferramentas, não são culpados de nada. São os países que fizeram dele a porcaria que é hoje, algo não apenas irrelevante no plano mundial, mas prejudicial à própria inserção dos países membros na economia mundial. Os companheiros, e os protecionistas que ficam do outro lado do rio, simplesmente destruíram o Mercosul, e isso precisa ser dito. Não que eu o diga em livros publicados, mas posso dizer aqui, pois se trata de um espaço livre.
Aproveito para indicar aqui um outro artigo sobre o Mercosul aos 22 anos:
2473. “O Mercosul aos 22
anos: algo a comemorar?”, Hartford, 24 Março 2013, 4 p. Artigo feito com base
no trabalho 1564 (Brasília, 24 de março de 2006), para marcar a passagem de
mais um aniversário do bloco. Postado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2013/03/o-mercosul-aos-22-anos-algo-comemorar.html)
e linkado no post sobre o livro do Mercosul 21 anos (http://diplomatizzando.blogspot.com/2013/04/mercosul-21-anos-livro-prefacio-de.html).
Enfim, indico abaixo um links para um dos prefácios que preparei recentemente sobre o bloquinho, e transcrevo o segundo prefácio, que ainda não tinha sido postado...
Paulo Roberto de Almeida
1091. “Mercosul:
a visão dos primeiros vinte anos e as perspectivas futuras”, In: Erica Simone
Almeida Resende e Maria Izabel Mallman (orgs.). Mercosul: 21 anos: Maturidade ou Imaturidade?; (Curitiba: Editora
Appris, 2013, 369 p.; p. 5-12; ISBN: 978-85-8192-111-2;
link: http://www.editoraappris.com.br/produto/4033190/Mercosul---21-Anos-Maioridade-ou-Imaturidade); Blog Diplomatizzando
(link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2013/04/mercosul-21-anos-livro-prefacio-de.html). Relação de Originais n. 2420.
Transcrevo agora o segundo prefácio, mais político do que econômico:
1079. “O Mercosul, em todos os seus estados”,
In: Elisa Souza Ribeiro: Mercosul: Sobre
Democracia e Instituições (Curitiba: Editora CRV, 2012, p. 15-24; ISBN:
978-85-8042-596-3; link da Editora: http://www.editoracrv.com.br/?f=produto_detalhes&pid=3686).
Relação de Originais n. 2452.
O Mercosul, em todos os seus
estados
Paulo Roberto de Almeida
In: Elisa Souza Ribeiro: Mercosul: Sobre Democracia e Instituições
(Curitiba: Editora CRV, 2012, p. 15-24;
ISBN: 978-85-8042-596-3).
Os blocos comerciais, em
sua quase totalidade, já nascem com uma carência de legitimidade democrática.
Isso se dá logicamente porque as negociações que levam à assinatura do futuro acordo
de integração econômica costumam envolver, ab
initio, além de concessões mais corriqueiras e aceitas sem dificuldades –
geralmente tratando de produtos que são necessária e normalmente importados –,
outros aspectos, alguns deles sensíveis, da economia de cada um dos países
membros. Cabe também relembrar que elas são, de ordinário, conduzidas em um ambiente
fechado, com toda a falta de transparência de que são capazes tecnocratas que
prezam mais a confidencialidade de suas tratativas do que a prestação de contas
à sociedade ou aos parlamentos (que serão, depois, encarregados de aprovar o
acordo final). Daí resultam acusações, muito frequentemente feitas, de
“déficit” ou de “lacuna” democrática de que careceriam esses instrumentos de
liberalização comercial.
São raros os países – e
aqui se destacam, notadamente, os Estados Unidos – nos quais o parlamento dá
instruções precisas aos negociadores do executivo sobre que tipo de acordo se
pretende ter, e quais os limites das concessões, ou dos arranjos especiais, que
estes últimos estão autorizados a oferecer às demais partes. Um mandato assim
desenhado pode até atuar em detrimento da qualidade ou da coerência do acordo
em causa, pois parlamentos não são, exatamente, templos de coerência econômica
ou exemplos consagrados da racionalidade estrito senso. Seus componentes tendem
a obedecer às pressões de lobbies ou de seus constituintes, que geralmente não
querem muitas mudanças nos arranjos econômicos aos quais já estão acostumados,
e que buscam, justamente, proteger de qualquer liberalização mais ameaçadora da
segurança dos empregos e da renda baseados nas atividades tradicionais. Ou
seja, tampouco uma negociação amplamente supervisionada pelo corpo de
representantes da sociedade, que atuam como “cães de guarda” dos tecnocratas
governamentais, consegue escapar da acusação de “déficit democrático” em seu
produto final, se por acaso o acordo resultante defender mais interesses
corporativos, ou carteis regionais, do que o bem-estar da população como um
todo.
Existe, portanto, um
“pecado original” na relação entre a institucionalidade formal de um esquema de
integração econômica e o seu funcionamento efetivo, que muitos pretendem deva
ser o mais democrático possível, isto é, sujeito ao escrutínio dos
representantes do povo, operando sob o signo da transparência e da
responsabilização dos agentes encarregados de sua administração e abrindo-se ao
controle e, não raro, à participação dos cidadãos e das organizações sociais
representativas. Uma construção desse tipo pode representar o ideal do ponto de
vista dos teóricos da integração, mas raramente é encontrada na prática corrente
dos esquemas efetivamente existentes. A verdade é que todos os blocos – qualquer
que seja a interação que seus país fundadores e seus negociadores tenham tido
com os “representantes do povo”, antes ou depois de fechado o acordo – padecem
dessa “essência democrática” que eles seriam supostos encarnar em face de
cidadãos (ou de críticos acadêmicos) sempre sequiosos por maior participação e
demandando graus ainda maiores de
transparência nos processos internos a cada um deles. A institucionalidade
adotada nunca é julgada suficientemente democrática ou adequadamente transparente,
para receber a aprovação de todos os “fiscais” autodesignados da democracia a mais
perfeita possível no bloco em exame.
Tomemos, por exemplo, o
modelo aparentemente mais acabado, e avançado, de integração econômica, o
experimento europeu, que é suposto representar o nec plus ultra dos esquemas possíveis de diluição das soberanias
nacionais num esquema comunitário e, portanto, supranacional, de integração.
Ele evoluiu de um simples acordo setorial de organização de mercados – o da
Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, de 1951 – para um acordo completo de
mercado comum – pelos tratados de Roma, de 1957 – até chegar nas fases mais
avançadas de sua união econômica, notadamente simbolizada pela adoção de uma
moeda comum, como previsto no tratado de Maastricht (de 1991, mas complementado
por diversos outros instrumentos, inclusive uma espécie de “constituição” que
já nasceu emendada e remendada). O que é a União Europeia senão uma imensa
catedral gótica, dessas que demoraram décadas, senão séculos, para serem
construídas, desde a alta idade média, que demandaram enormes recursos até
serem completadas, e que continuam a sorver as finanças dos cidadãos
contribuintes na sua manutenção, conservação e ampliação?
A “catedral gótica” que
tem sede em Bruxelas – e ramificações um pouco em todas as partes desse
continente, que já foi bem mais “animado” pelo espírito guerreiro de seus
muitos povos, hoje aparentemente pacificados e unificados no mesmo culto
integracionista – é, reconhecidamente, um dos mais complexos edifícios já
construídos pelas mãos de simples mortais (no caso, auxiliados por grandes
estadistas). Depois de todos os experimentos absolutistas, e até ditatoriais,
conhecidos no continente europeu, esse mosaico de povos parece reconciliado definitivamente
com o padrão democrático, testado e confirmado pela primeira vez na ilha britânica,
nas primícias da era moderna, e gradualmente estendido ao resto do continente;
a exigência foi inclusive inscrita nos requisitos de acesso ao clube
comunitário, o que aliás atuou positivamente para a consolidação democrática de
vários candidatos periféricos ao maná proveniente dos seus membros mais
afluentes. Curioso que a cada estremecer da atividade econômica no continente –
e as turbulências foram muitas, especialmente na fase atual de inadimplência de
dívidas soberanas – os membros correm para a catedral gótica de Bruxelas e
proclamam que a solução para os seus muitos problemas é um pouco mais de
construção gótica, ou seja, uma outra nave na ala esquerda, uma cripta
monetária na ala direita, uma extensão social do espaço comum, para abrigar mais
e mais cidadãos, enfim, uma ampliação regular e constante do belo edifício que
demorou tanto tempo para ser construído e que continua a requerer tantos
recursos para ser mantido.
Tudo isso, obviamente, em
nome da democracia e da participação dos cidadãos no processo comunitário, já
que nenhuma instituição intergovernamental consegue mais legitimar qualquer empreendimento desse tipo
sem referir-se ao bem-estar daqueles que pagam os salários dos tecnocratas. Foi
justamente em função da avaliação de uma parte desses pagantes, quanto aos
custos reais e os benefícios reais e presumidos do processo de integração, que
a Grã-Bretanha sempre se caracterizou pela existência de um núcleo sólido de
opositores ao seu ingresso no esquema comunitário, ou de qualquer extensão
deste a esferas ainda mais complexas da atividade econômica dos países membros,
tendo ela, aliás, liderado, em 1960, o processo mais flexível de criação de um
bloco de livre comércio, na hoje diminuta Efta (com apenas quatro membros remanescentes),
além de ter sido uma constante contestadora dos exercícios de aprofundamento do
escopo comunitário. Não apenas em função de posturas doutrinais
consistentemente favoráveis a mercados concorrenciais e ao livre comércio – bem
mais enfáticas no período da primeira-ministra Margareth Thatcher –, mas também
em virtude de uma atitude liberal, típica e historicamente associada ao individualismo
pragmático sempre pregado por seus filósofos utilitaristas, a Grã-Bretanha
sempre privilegiou a subsidiariedade e a redução ao máximo possível dos
mecanismos dirigistas voltados para a integração, contra as notórias tendências
à burocratização e à regulação extremada, habituais nos governos intervencionistas e distributivistas
do continente.
Não seria estranho, assim,
especular com a hipótese de que a Grã-Bretanha – e talvez algum outro membro
comunitário de sua vertente setentrional – ficasse
bem mais confortável em um esquema do tipo Nafta do que ela o é na UE atual, sobretudo
em uma união que pretende não apenas reforçar a moeda única (a um custo talvez
exagerado para o orçamento comunitário e, a
fortiori, para os orçamentos nacionais de contribuição), como também
avançar para mecanismos ainda mais sofisticados de harmonização fiscal,
tributária e bancária, como aqueles que são discutidos atualmente no quadro da
crise recessiva provocada pela explosão e ameaça de insolvência das dívidas
soberanas de vários de seus membros (além daqueles que efetivamente já entraram
em default, como a Grécia). Tampouco se deve estranhar o reforço recente dos movimentos
que continuam a pregar a saída do Reino Unido do bloco comunitário, passando
então a manter com a UE os mesmos vínculos de associação que são os dos membros
remanescentes da Efta. Os motivos e argumentos dos grupos opositores são os
mesmos, aliás, dos alegados pelos que pregam maior transparência e maior
participação cidadã nos mecanismos comunitários: as lacunas democráticas, já
percebidas, e o perigo, potencial, de uma burocratização ainda mais extensa do
esquema comunitário, com o crescimento incontrolado da “catedral gótica”, que
continua a ganhar novos “puxadinhos” institucionais – e até novos tratados de
“aperfeiçoamento institucional” – além de novas competências e mandatos inéditos
atribuídos aos “eurocratas” de Bruxelas, para regular os mais diferentes
aspectos da atividade governamental e até civil, quando não privada, dos países
membros.
Vê-se, por aí, quão
complexo e difícil é o debate sobre a questão – real ou imaginária – do chamado
“déficit democrático” nas instituições de integração. Se ele já é extremamente complicado
num experimento de mais de seis décadas – desde seu pontapé original, na Ceca –
e num continente caracterizado por graus razoáveis de estabilidade econômica e
de normalidade política, tal como conhecido na Europa ocidental desde a
retomada dos regimes democráticos no pós-Segunda Guerra, percebe-se o quanto
ele pode ser ainda mais complicado e difícil numa região não especialmente
estável, ou dotada de instituições democráticas sólidas e transparentes, como é
a América Latina ou, no caso aqui examinado, no âmbito do Mercosul.
Não é desconhecido que o
ponto de partida do Mercosul – ainda em sua fase bilateral, de um projeto de
mercado comum entre o Brasil e a Argentina – foi o processo de redemocratização
em ambos os países e o exemplo, naquela época, do “salto para a frente” que a
então Comunidade Europeia empreendia, depois de sua fase de “euroesclerose”,
por meio do Ato Único de 1986, de consolidação de um mercado comum
verdadeiramente unificado e completo depois de 1992. Não apenas por desejo de
emulação, mas também conscientes de que o sistema multilateral de comércio
passaria doravante a conviver crescentemente com o minilateralismo dos esquemas
preferenciais de comércio, Brasil e Argentina decidiram avançar em seu processo
de integração, evoluindo, então, do esquema relativamente flexível, e gradual,
dos protocolos setoriais – mas também marcados por grande dirigismo estatal –
para a modalidade mais liberal, e automática, do estabelecimento calendarizado
de um mercado comum bilateral. Isso foi feito pela Ata de Buenos Aires, de
1990, que é a base conceitual e “contratual” do Tratado de Assunção, firmado em
março do ano seguinte.
Desde o início do processo,
ainda em sua fase bilateral, os críticos acadêmicos, ou “sociais”, do esquema
integracionista reclamaram de suas lacunas democráticas, insuficientemente
compensadas pela existência de uma Comissão Parlamentar e de um órgão de
“representação social”, ambos de funções eminentemente decorativas, já que completamente
desprovidos de competências reais ou de qualquer capacidade de atuação ou de participação
no processo decisório do Mercosul. Nas fases seguintes, durante as quais se
procurou “dar mais ouvidos” a essas duas entidades, essas deficiências de
participação cidadão ou o que passou a ser chamado de “déficit democrático”, no
bloco, não foram sanados, e talvez se tenham até agravado, com a complexidade
crescente do esquema integracionista, inclusive não necessariamente no sentido
de seu avanço para etapas mais consolidadas do processo, mas justamente, em
função das muitas inadimplências e descumprimentos nacionais em relação aos
pressupostos institucionais e aos compromissos efetivos dos países membros em
face dos requerimentos de liberalização e de coordenação de políticas. Não é
segredo para ninguém que, desde a dupla crise brasileiro-argentina, entre 1999
e 2001, o Mercosul não mais avançou no terreno comercial ou na abertura
econômica – ainda que os fluxos de comércio tenham acompanhado o ritmo normal
da recuperação em ambos os países –, tendo, ao contrário, recuado relativa e
absolutamente em termos de abertura recíproca e no respeito às regras mais
elementares inscritas em seus instrumentos constitutivos.
O Mercosul atual, em todos
os seus estados, é uma sombra do que ele foi nos primeiros quatro anos de
“transição” e nos outros cinco anos de sua “implementação” enquanto união
aduaneira imperfeita, não tanto pelo decréscimo relativo da importância dos
intercâmbios entre os membros – embora o peso destes, para o Brasil, seja hoje
nitidamente menor, proporcionalmente ao comércio total, do que ele tinha alcançado
antes de 1999 –, mas pela nítida inflexão dos objetivos claramente comercialistas
dos atos fundacionais em favor de uma clara inclinação para compromissos
sociais e para finalidades bem mais políticas do que propriamente econômicas. Não
haveria nenhum problema nessa “evolução” política – inclusive porque ela é própria
dos processos mais elaborados, como pretende ser o Mercosul, que recusou o
esquema mais simples do livre comércio – se não fosse a evidente “involução”
institucional que o bloco passou a conhecer, a partir do desrespeito
sistemático a seus fundamentos mais essenciais – ou seja o livre comércio – tal
como começou a ser praticado por vários dos países membros – com destaque para
a Argentina – a partir de então.
Na verdade, o desrespeito
flagrante aos compromissos assumidos ao abrigo dos instrumentos fundamentais do
processo de integração teve início ainda antes das crises cambiais de 1999-2001,
mas ele era contornado por uma aparência de cobertura legal às restrições então
impostas ao comércio intra e extra-Mercosul – como a adoção de decisões que
“sancionavam” um aumento indireto de tarifas, pela via de “taxas de estatística”,
por exemplo – ou então podia ser coibido pelo recurso aos mecanismos de solução
de controvérsias próprias ao bloco ou, na falha destes, por um apelo às
instâncias pertinentes do sistema multilateral de comércio. O Brasil, para
referir-se a dois casos concretos, seguiu a Argentina no aumento temporário das
tarifas, na segunda metade dos anos 1990, e não hesitou, na outra vertente, a
recorrer ao sistema da OMC quando o país platino não implementou decisões que
lhe foram desfavoráveis por laudos arbitrais do Mercosul ganhos pelo Brasil
contra interrupções ilegais de certas exportações
para aquele mercado.
Ora, no período que se
inaugura em 2003, não apenas o Brasil deixou de defender os interesses
concretos de seus exportadores, confrontados a barreiras injustificadas,
arbitrárias e ilegais – tanto do ponto de vista do Mercosul, quanto do
protocolo de salvaguardas do sistema multilateral de comércio –, como ele
também passou a seguir medidas claramente protecionistas adotadas pelo país
vizinho, em desrespeito a compromissos e regras do sistema multilateral (e do
próprio bloco), recuando a comportamentos pretéritos de política comercial que já
eram julgados ultrapassados e esquecidos. Não houve um único caso de
acionamento dos tribunais arbitrais do Mercosul ou da OMC em face dos muitos
casos de barreiras ilegais, abusivas e discriminatórias impostas pela Argentina
a diversas linhas de produtos brasileiros, num crescendo de obstáculos perfeitamente
proporcional à passividade demonstrada pelo governo brasileiro a partir de 2003.
Se ocorreram episódios (raros, restritos, quase simbólicos) de reação a esse
levantamento de muralhas protecionistas, eles foram muito localizados,
temporários e praticamente ineficazes, correspondendo ao que poderíamos chamar
de demonstrações de “machismo comercial” – bem mais para efeitos internos do
que propriamente para resolver a questão bilateralmente – do que a uma resposta
juridicamente embasada aos reais problemas suscitados pela política comercial
discriminatória, e anti-integracionista, praticada pela Argentina dos Kirchner
(Nestor e Cristina).
Esses episódios também
podem ser colocados na conta do “déficit democrático” do Mercosul, ou da
ausência de transparência dos procedimentos internos adotados pelo Brasil e por
outros países. Eles revelam desprezo pelo uso dos recursos legais em caso de
inadimplência no cumprimento de deveres, além de total negligência em relação
aos interesses dos empresários exportadores, que são mantidos à margem das
tratativas políticas conduzidas bilateralmente pelos executivos, o que, por sua
vez, alimenta o ambiente de incertezas quanto à realidade dos pressupostos do
bloco, em especial o alegado livre comércio consagrado nos instrumentos
constitutivos. Em todo caso, o comportamento observado no relacionamento
intra-bloco pode ser também um reflexo da aparente negligência dos governo em relação
à legalidade formal de procedimentos administrativos e legais, o que também já vinha
se manifestando no âmbito interno dos países: tudo leva a crer que a maior
fonte de descumprimentos ao arcabouço legal não se encontra tanto do lado dos
agentes privados quanto vem representada pela própria administração pública, pelos
mesmos agentes encarregados da integração.
A verdade é que, em
praticamente todos os membros do Mercosul, a vontade dos executivos prevalece
sobre a capacidade normativa dos legislativos, e o mesmo ocorre também na
processualística dos atos internacionais. Não é de estranhar, assim, que isso
também ocorra no âmbito do grupo, com dominância política quase absoluta dos
executivos sobre todas as demais instâncias do bloco: a despeito da existência
de órgãos de representação social ou cidadã, estes não possuem qualquer poder
decisório ou capacidade de iniciativa sobre o arsenal normativo. Quando suas
funções estão previstas, estas se colocam de forma acessória, como suporte ou
apoio à ação dos executivos nacionais e na tramitação das decisões que estes
adotam exclusivamente.
Estes aspectos estão bem
descritos neste livro, que refaz todo o caminho teórico e empírico do debate
sobre o conteúdo democrático dos processos de integração. Uma das virtudes desta
obra é justamente é a de levantar o estado do debate em torno da questão, entre
especialistas e mesmo alguns dos participantes do processo (entrevistados para
o trabalho), o que permitiu à autora afastar explicações simplistas sobre o
alegado “déficit democrático”, como a que pretende que essa deficiência seria
devido ao caráter intergovernamental, e não supranacional, do Mercosul. Como
examinado no caso do experimento europeu, não por isso as lacunas de
transparência e de participação ampla dos cidadãos deixam de existir: a
supranacionalidade não é garantia de democracia.
O mérito da autora está em
ter dissecado, com seu bisturi analítico, os diversos “membros” do Mercosul, o
que lhe foi facilitado por uma intensa e longa convivência com a literatura
existente sobre a questão, fruto de seus estudos e participação em grupo de
pesquisas acadêmicas sobre esse processo de integração, e o fato de ter trabalhado
junto à representação brasileira em uma das entidades do bloco, seu Parlamento,
com sede em Montevidéu. Essa experiência
prática habilitou-a a avaliar com maior realismo do que a normalmente
encontrada em estudos tipicamente acadêmicos os diversos meandros da questão
democrática no bloco, sem cair num julgamento a priori sobre o seu alegado “déficit democrático”.
Acredito que a obra será
confirmada como referência obrigatória na literatura e no debate em torno dessa
questão, passando doravante a integrar a bibliografia especializada a esse
respeito. Sua lucidez transparece claramente em uma de suas mais importantes
conclusões: “O que existe é uma crise de credibilidade que é confundida com
déficit democrático.” A falta de credibilidade atual do Mercosul não se deve a
deficiências institucionais próprias ao bloco, mas inteiramente ao
comportamento de seus membros, talvez mais exatamente de seus dois mais
importantes Estados-Parte.
Como no caso das grandes
organizações multilaterais, não se deve atribuir ao Mercosul falhas que são
exclusivamente devidas à inação ou à omissão de suas partes constitutivas. O Mercosul
só pode ser aquilo que desejam, ou permitem que seja, seus membros mais
relevantes. Burocracias muito poderosas conseguem, por vezes, se movimentar sem
os anabolizantes orçamentários de seus integrantes; este não é certamente o
caso do Mercosul. Cabe esperar, assim, que um dia, sem que o bloco necessite
construir uma outra “catedral gótica” na pequena capital do cone sul, os países
membros consintam em avançar no cumprimento do artigo inaugural de seu tratado
constitutivo: fazer do Mercosul um espaço econômico verdadeiramente integrado,
no florescimento pleno do projeto original: a construção de democracias de mercado,
plenamente integradas à economia mundial e absolutamente respeitadoras dos
valores democráticos e dos direitos humanos nesta vasta região.
Brasília, 16 de dezembro de 2012.