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sexta-feira, 1 de julho de 2022

A ampliação do Brics e o interesse nacional - Paulo Roberto de Almeida

 Meu artigo mais recente: 

Meu artigo mais recente: 1460. “A ampliação do Brics e o interesse nacional”, revista Crusoé (1/07/2022; link: https://crusoe.uol.com.br/secao/reportagem/a-ampliacao-do-brics-e-o-interesse-nacional/). Relação de Originais n. 4188.

A ampliação do Brics e o interesse nacional

Grupo de países foi dominado pela China e poderá incluir novos membros para se contrapor à hegemonia americana, arrastando com ele a diplomacia brasileira

Paulo Roberto de Almeida, Revista Crusoé, 1/07/2022

A 14ª Reunião de Cúpula dos Brics, organizada por Pequim, marcou uma mudança importante na natureza e no funcionamento desse grupo de países. Em sua declaração final, com a data de 23 de junho, seus membros afirmaram que apoiavam a discussão para o seu processo de expansão. O efeito foi rápido. Esta semana, Irã e Argentina apresentaram formalmente seus pedidos de ingresso. Senegal, Nigéria, Arábia Saudita, Cazaquistão, Egito, Emirados Árabes Unidos, Indonésia e Tailândia podem aderir mais adiante. À falta de um acrônimo que possa incluir tantos integrantes, uma hipótese é de que a instituição ganhe o nome de Brics+. Mas o problema não é só de ordem alfabética. A ampliação em curso serve principalmente aos interesses da China e da Rússia, que buscam uma plataforma para se contrapor ao mundo dominado pelos Estados Unidos. Trata-se de um perfil muito diferente daquele de quando o grupo foi criado, em 2009, o que obrigará a diplomacia brasileira a tomar decisões cada dia mais delicadas. 

O Brics expandido é mais um sintoma de uma mudança geopolítica ampla em todo o planeta, que está revertendo a ordem criada logo no início da Guerra Fria. Em 1947, o Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos tomou uma decisão, que guiou a conduta desse país nos assuntos internacionais pelo meio século seguinte, e provavelmente até a atualidade: manter uma inquestionável supremacia estratégica em termos militares e geopolíticos. Isso se deu não apenas no confronto com possíveis adversários (a União Soviética era o único, na ocasião), mas também em relação aos seus próprios aliados. A postura foi mantida sob todas as circunstâncias nas décadas seguintes, atravessando desde a fundação da Otan, em 1949, a adoção da doutrina da destruição mutuamente assegurada (MAD), nos anos 1950, a negociação de acordos de limitação de proliferação atômica, a partir de 1968, e até a implosão do antigo inimigo de 45 anos, a União Soviética. Nos anos 1990, os Estados Unidos se encontravam no ápice de seu momento unipolar. O Muro de Berlim caiu, a URSS se dissolveu em mais de uma dúzia de repúblicas independentes e os americanos deram uma extraordinária demonstração de força na primeira guerra do Golfo, em 1991, expulsando as tropas iraquianas de Saddam Hussein do Kuwait. 

De quebra, os americanos ainda tinham obtido um feito extraordinário: separar a China da União Soviética. A visita do presidente americano Richard Nixon ao chinês Mao Tsé-Tung e a subsequente ascensão da China comunista à cadeira da República da China no Conselho de Segurança da ONU, em 1971, consolidaram a ruptura entre os dois grandes inimigos do capitalismo e das democracias de mercado: a China se tornou uma aliada estratégica, ainda que disfarçada, dos Estados Unidos, contra a União Soviética, contra a qual ela tinha várias diferenças antigas e recentes nos milhares de quilômetros de fronteiras e de terras roubadas em séculos passados. 

Essa conquista extremamente significativa no quadro do seu planejamento geoestratégico foi completamente perdida no curso dos mesmos anos 1990, quando os Estados Unidos, depois de terem patrocinado a incorporação da China à economia global, passaram a tratá-la como adversária estratégica. Essa inversão de política motivou uma pequena revolução na política externa e na postura global da China, que passou a encarar os Estados Unidos, não como um aliado, num eventual confronto com a confusa Rússia desse período, mas como uma potência hegemônica. Os americanos passaram a ser vistos como um obstáculo à irresistível ascensão econômica e política da China, o grande Império do Meio, temporiamente diminuído e humilhado pelas grandes potências ocidentais e pelo Japão. 

A China incorporou o Brics neste contexto. De início, havia a iniciativa de Rússia e Brasil de transformar um exercício intelectual articulado em torno do acrônimo BRIC — Brasil, Rússia, Índia e China — criado por um economista Jim O’Neill do banco Goldman Sachs, em um grupo diplomático com uma “carteira de negócios”. Assim, provavelmente, o Brics deve ter sido o primeiro grupo de países que não nasceu em torno de um projeto deliberado e racionalmente articulado pela vontade de seus membros constitutivos – com vistas a objetivos comumente determinados, em função dos interesses nacionais de cada um deles –, mas que foi induzido externamente, com base unicamente em projeções de retornos ampliados a partir de quatro economias então relativamente dinâmicas (Rússia e Brasil degringolaram em seguida). 

Não demorou para que a pegada chinesa fosse sentida. Desde o início do grupo, a China já representava mais da metade do seu peso total, em termos de PIB, comércio, finanças, capacidade de investimento, infraestrutura e demais indicadores econômicos. De certo modo, Pequim já podia determinar para que direção caminharia o novo grupo, muito artificial sob todos os demais aspectos políticos, diplomáticos, culturais e, sobretudo, geopolíticos. A oportunidade não foi desperdiçada. Na primeira reunião de cúpula dos quatro dirigentes, em Ecaterimburgo, em 2009, a China buscou uma aproximação com países africanos, pois que tinha enormes projetos de investimentos no continente. Em 2011, por sua influência, a África do Sul foi admitida no bloco, que se converteu em Brics. O acrônimo foi preservado, mas já indicava um grupo que pouco tinha a ver com o espírito inicial do seu “projetista” de investimentos, Jim O’Neill. 

A criação do New Development Bank, o banco dos Brics, e do mecanismo de empréstimos contingentes, na cúpula de Fortaleza, em 2014, pareciam sinalizar uma maior adequação dos Brics aos seus objetivos originais. Falava-se em promoção do crescimento econômico, em promover intercâmbios comerciais e financeiros e em incorporar os cinco países de maneira mais ou menos coordenada aos grandes circuitos da economia mundial. 

Essa tendência positiva e pró-globalização sofre uma quebra em 2014, quando a Rússia de Vladimir Putin invade a Ucrânia oriental e anexa a península da Crimeia. A Rússia passou a sofrer sanções dos países ocidentais, mas os demais membros do grupo permaneceram estranhamente silenciosos em face dessa violação flagrante da Carta da ONU e do direito internacional. Além disso, a China, totalmente empenhada na realização da sua nova Rota da Seda, trilhando caminhos nas antigas satrapias da URSS, começou a reforçar sua cooperação com a Rússia. Ao mesmo tempo, os chineses passaram a desenvolver novos caminhos para superar os obstáculos colocados pelos americanos para conter o que eles consideram uma ascensão irresistível. 

A ampliação dos Brics é parte desse esforço. A China quer articular uma coalizão suficiente de países para se contrapor às manobras americanas. Esse é o ponto fulcral. Por acaso, essa expansão também contempla os interesses da Rússia, que precisa escapar do isolamento conduzido pelas principais potências ocidentais após a invasão da Ucrânia. O Brics, portanto, passou a ser usado para fins diversos daqueles concebidos inicialmente. 

Não se sabe ainda como a futura diplomacia brasileira – a atual já quase não conta mais – vai reagir ante à incorporação de novos membros ao Brics. Outro ponto a acompanhar será se nossos representantes continuarão demonstrando a mesma indiferença em relação a uma guerra cruel na Ucrânia, que claramente afronta todos os valores e princípios da política externa e diversas cláusulas constitucionais das relações internacionais.

Esse é o quadro que se apresenta ao Brasil. Durante o governo de Lula, quando o Itamaraty era chefiado por Celso Amorim, o país patrocinou, como um aprendiz de feiticeiro, uma aventura diplomática, ao lado da Rússia de Vladimir Putin e Sergei Lavrov. A ideia foi aceita quase que de imediato pela China e pela Índia, cada um deles de acordo com suas próprias razões. A África do Sul entrou de arrasto, para atender aos desejos chineses, e outros países estão batendo à porta.  

O que o Brasil pode pretender no Brics agora, quando o grupo está sendo claramente manipulado pela China e pela Rússia, em função de interesses exclusivamente nacionais, tanto no plano estratégico, quanto nos seus objetivos táticos? Essa é uma pergunta que não terá resposta imediata, nem pode ter, em virtude da conjuntura eleitoral brasileira, mas que permanece como uma das definições de grande diplomacia a serem equacionadas no futuro de médio prazo.

O fato é que o Brics se tornou um animal muito grande para ser encabrestado por um país de recursos limitados como o Brasil. Nosso país claramente não tem como controlar a direção desse grupo para satisfazer objetivos puramente nacionais de crescimento econômico e de desenvolvimento social, os quais deveriam ser as molas básicas da nossa política externa. A questão de quem manda no Brics está posta. O Brasil saberá responder?

 

Paulo Roberto de Almeida é diplomata e autor do livro A grande ilusão do Brics: e o universo paralelo da diplomacia brasileira

 

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