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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Meus livros podem ser vistos nas páginas da Amazon. Outras opiniões rápidas podem ser encontradas no Facebook ou no Threads. Grande parte de meus ensaios e artigos, inclusive livros inteiros, estão disponíveis em Academia.edu: https://unb.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida

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domingo, 23 de novembro de 2025

A nova política dos EUA para as Américas e o Brasil - Rubens Barbosa (Interesse Nacional)

A nova política dos EUA para as Américas e o Brasil


A doutrina Monroe está sendo atualizada para as realidades do século XXI e de acordo com as novas prioridades e interesses do governo norte-americano. Ainda está muito cedo para ver se essa nova política de Washington em relação às Américas vai se manter como um dos braços de atuação do Departamento de Estado.

Essa nova atitude de Washington para com as Américas cria grandes desafios para a política externa do PT, com tradicional política antiamericana. Até o final do governo Lula, por muitas vezes, poder-se-á identificar contradições entre a ideologia do PT e os interesses nacionais.

Por Rubens Barbosa, coordenador editorial do portal Interesse Nacional

Clique aqui para ler o editorial da semana

https://interessenacional.us17.list-manage.com/track/click?u=b838fc839fc674ae04ae9e142&id=13f1e98d27&e=42320605d3

A nova política dos EUA para as Américas e o Brasil

A doutrina Monroe está sendo atualizada para as realidades do século XXI e de acordo com as novas prioridades e interesses do governo norte-americano. Essa nova atitude de Washington para com as Américas cria grandes desafios para a política externa do PT, com tradicional política antiamericana.

Luiz Inácio Lula da Silva durante encontro com Donald Trump na ASEAN (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

O governo de Washington parece começar a focalizar mais de perto seus interesses no Hemisfério Ocidental do que em outras áreas do mundo. 

No início do ano, prometeu ocupar o Canal do Panamá, tornar o Canadá o 51º Estados dos EUA e alterou o nome do Golfo do México para Golfo da América. Durante o ano, muitas ações proativas na região. Na semana passada, três medidas e iniciativas foram nessa direção.

O anúncio de novas medidas tarifárias para reduzir os custos no mercado norte-americano de produtos agrícolas e pecuários, sem produção ou com pequena produção local, foram isentos das tarifas recíprocas (10%), mas continuaram a ser cobradas outras tarifas que incidem sobre esses produtos.

 Ao mesmo tempo, foi anunciada a conclusão de acordos comerciais com a Argentina, Equador, Guatemala e El Salvador. 

‘A redução de 10% beneficia alguns produtos brasileiros, mas é discriminatória contra o Brasil’

A redução de 10% beneficia alguns produtos brasileiros, mas é discriminatória contra o Brasil porque os acordos anunciados com os países latino-americanos deixam produtos que competem com os brasileiros com tarifa zero. 

No caso da Argentina, foi negociado um amplo acordo de comércio e investimentos, que, em uma primeira análise, não se choca com as regras do Mercosul.

Mauro Vieira foi recebido no Departamento de Estado por Marco Rubio. Na oportunidade, discutiram reservadamente temas de interesse dos dois países, e o ministro brasileiro entregou uma nova proposta para o começo das negociações comerciais. Segundo foi informado, esperava-se para o início da semana a marcação de data para o encontro técnico, o que não aconteceu até sexta-feira (21). 

‘A retirada dos 40% de tarifas para muitos produtos não teve nada que ver com as negociações bilaterais com o Brasil. Foram determinadas por direto interesse norte-americano’

As medidas anunciadas por Trump na semana passada e a retirada, na quinta (20), dos 40% para muitos produtos, não tiveram nada que ver com as negociações bilaterais com o Brasil. Foram determinadas por direto interesse norte-americano, apesar da ação política de Lula e de Mauro Vieira.

O governo norte-americano anunciou que, em breve, dará início a operação “Lança do Sul”, grande ação militar para combater o narcoterrorismo. 

Trump mencionou publicamente que já tinha tomado a decisão sobre o que fazer em relação à Venezuela. 

O governo norte-americano tem duas opções tendo em vista a grande mobilização naval e de soldados no Caribe: atacar com mísseis alguns alvos militares ou de narcotraficantes em território venezuelano ou executar uma operação de comando para derrubar e sequestrar o presidente Nicolás Maduro. 

Para isso, teriam de contar com a divisão das Forças Armadas venezuelanas e o apoio de parte delas para chegar a Maduro. Além disso, para combater os narcoterroristas, o presidente norte-americano não descarta atacar o México.

‘Parece evidente que houve uma mudança nas prioridades da política externa e de defesa dos EUA em relação a América Latina e Caribe, na busca de reafirmar a nova realidade geopolítica global’

Parece evidente que houve uma mudança nas prioridades da política externa e de defesa dos EUA em relação a América Latina e Caribe, na busca de reafirmar a nova realidade geopolítica global em que áreas de influência começam a ser estabelecidas. 

As três ações acima mencionadas indicam essa nova atitude de Washington e o poderio naval trazido para o Caribe é um recado para potências extrarregionais (China e Rússia) não interferirem no que vier a ser realizado na Venezuela.

É uma dramática mudança na política externa de Washington com as Américas se transformando no principal teatro de operações no exterior. 

Além das ameaças militares, Trump aplicou elevadas tarifas, duras sanções e pressões aos países da região, em clara afirmação de força como prova de sua área de influência e interesse em explorar ao máximo benefícios das reservas minerais e outras.

‘A doutrina Monroe está sendo atualizada para as realidades do século XXI’

A doutrina Monroe está sendo atualizada para as realidades do século XXI e de acordo com as novas prioridades e interesses do governo norte-americano. Ainda está muito cedo para ver se essa nova política de Washington em relação às Américas vai se manter como um dos braços de atuação do Departamento de Estado.

Essa nova atitude de Washington para com as Américas cria grandes desafios para a política externa do PT, com tradicional política antiamericana. Até o final do governo Lula, por muitas vezes, poder-se-á identificar contradições entre a ideologia do PT e os interesses nacionais.


Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.

sábado, 22 de novembro de 2025

Política Externa e Interesse Nacional: seminário organizado pelo embaixador Rubens Barbosa (IRICE)

Aos que não assistiram ao debate organizado pelo embaixador Rubens Barbosa (IRICE), nesta tarde de sexta-feira, 21/11/2025, 17hs, sobre Política Externa e Interesse Nacional, saibam que o vídeo gravado será postado em algum momento, no site do IRICE ou no da revista Interesse Nacional.
Como informei, preparei três curtos textos em torno do assunto, que acabei unificando num único paper, este aqui:

5122. “Política Externa e Interesse Nacional: uma visão crítica sobre as difíceis convergências no caso brasileiro”, Brasília, 20 novembro 2025, 13 p. Junção dos trabalhos 5105, 5119 e 5120, preparados tendo como foco o seminário do Irice, coordenado pelo embaixador Rubens Barbosa, no dia 21/11/2025, na companhia de Vitélio Brustolin e de Karina Stange Calandrin. Disponível na plataforma acadêmica Academia.edu (link: https://www.academia.edu/145065684/5122_Politica_Externa_e_Interesse_Nacional_uma_visao_critica_sobre_as_dificeis_convergencias_no_caso_brasileiro_2025_); divulgado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2025/11/politica-externa-e-interesse-nacional_17.html  

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Tarifa de 50% contra o Brasil. Risco e oportunidade - Sergio Florencio (interesse Nacional)

Artigo primoroso do amigo e colega diplomata Sergio Florencio, não apenas sobre a violência do tarifaço político do sociopata Trump, mas também sobre a burrice renitente do protecionismo brasileiro, que prejudica a própria economia e todo o povo. PRA


Tarifa de 50% contra o Brasil. Risco e oportunidade

Sergio Florencio

Portal Interesse Nacional, 15/07/2025

 

Os efeitos previsíveis da tarifa norte-americana de 50% sobre a importação de produtos brasileiros combinam risco econômico e oportunidade política.  O risco tende a ser forte contração de nossas exportações para um mercado que absorve cerca de 12% do total, com forte valor agregado. A oportunidade, para o atual governo, tende a ser o visível desgaste do bolsonarismo, resultante do vínculo entre a campanha destinada a obter apoio de Trump para a anistia do ex-presidente e a imposição da sobretaxa. Essa vantagem política foi magnificada por declarações de partidários do ex-presidente de apoio à decisão de Trump. A política externa passa agora a ditar uma agenda doméstica muito polarizada e já mobilizada pelo pleito de 2026, com um presidente em declínio de popularidade, mas beneficiado por inflexão a seu favor. Quais desdobramentos para o país poderá ter aquela combinação de risco e oportunidade?

Algumas considerações de ordem geral podem ajudar a esclarecer consequências específicas. A política tarifária de Trump tem três digitais – irracionalidade econômica, auto destrutividade geopolítica e imprevisibilidade. A economia é conhecida como a ciência da escassez. Mas hoje ocorre um fenômeno raro de abundância – a esmagadora maioria dos economistas, em diversos países e de diversas colorações, condenam ao fracasso a atual política de Trump. O principal argumento é o anacronismo de utilizar, no século XXI, o instrumento tarifário protecionista responsável pela recessão dos anos 1930.

A geopolítica de Trump consiste no afastamento deliberado de aliados tradicionais – Canadá, México, União Europeia - e aproximação com um dos principais adversários - a Rússia, aliada da China. A outra digital – imprevisibilidade - fica estampada na relação de Trump com Putin – há seis meses considerado um gênio e hoje, um imbecil.

Esse padrão errático se reflete em outras contundentes mudanças. A OTAN, criticada e marginalizada, há poucos dias se transformou em aliada; a abandonada Ucrânia, com o presidente ridicularizado por Trump, conta hoje com apoio político e recebe equipamentos de defesa antiaérea e inteligência de última geração. Essa frequente mudança de rumos teve uma exceção – a aliança incondicional com Israel e Netanyahu. De fato, as três guerras por ele criadas, para sua sobrevivência política – Hamas, Hezbollah e Irã –  contaram com o beneplácito e até coordenação de Trump. Esse, para evitar protagonismo ainda maior de Netanyahu, se antecipou e lançou inédito e poderoso ataque direto contra a instalação nuclear de Fordow.

O caráter imprevisível da tarifa de 50% para produtos brasileiros está ligado às sucessivas indefinições de Trump nessa área. Entretanto, algumas mudanças - mais previsíveis- poderão resultar das eleições, em 2026, de meio de mandato, para renovar um terço do Senado e a Câmara inteira. Outro fator de alteração poderá ter sua origem em decisões judiciais, oriundas da Corte Suprema, contrárias a medidas do Executivo.

​A tarifa de 50% contra o Brasil – caso mantida – deverá reprimir o mercado de maior valor agregado para nossas exportações – aço, aeronaves. As contrapropostas a serem apresentadas pelo Brasil para reduzir aquela tarifa deverão consistir em maior abertura de setores de nossa economia. Assim, o efeito negativo na balança comercial poderá ter contrapartida positiva, em termos de política econômica, ao promover alguma abertura -sem dúvida limitada -  para a 11a maior economia, mas também uma das mais fechadas do mundo. Isso é visível em nossa relação comércio exterior/PIB, em torno de 24%, equivalente à metade da vigente nos vizinhos, e inferior à maioria das economias emergentes. Num prematuro clima eleitoral, o governo certamente será refratário a qualquer abertura e buscará preservar a política de compadrio - benefícios aos setores econômicos privilegiados por proteção tarifária, subsídios e isenções fiscais. Nesse ambiente, reforma só poderá mesmo vir de fora. E virá, por imposição econômica externa, e não por opção política.

​A política econômica do segundo mandato de Trump poderá ter outra influência importante para a economia brasileira, ligada ao fluxo de investimento estrangeiro, à valorização do Real, à taxa de inflação e à taxa de juros.  Sua reeleição gerou expectativas de continuidade do excepcionalismo americano - desregulamentação, crescimento econômico, elevada atração de investimentos estrangeiros. Isso resultou em aumento de 20% nas Bolsas de Valores nos dois últimos anos, que atingiram o recorde de US$ 52 trilhões. Mas a política tarifária de Trump frustrou essas expectativas e os investimentos migraram para as economias emergentes, o que resultou em valorização das bolsas de valores em diversas partes do mundo, inclusive na América Latina – Chile, Colômbia, México e Brasil. A forte entrada de investimento estrangeiro em nosso país elevou a taxa de crescimento, valorizou o Real, e contribuiu para baixa inflação.

​Assim, os bons resultados da economia brasileira no último ano – 3,4% de crescimento, 5% de desemprego e inflação no teto da meta - foram muito mais obra da chamada rotação de carteira (mudança de destino de investimentos, derivada da obsessão tarifária de Trump), do que da política econômica brasileira. Mas esse fenômeno não é sustentável e o bônus terminará este ano, o que vai resultar em queda no investimento, com impacto negativo sobre os demais indicadores.

Para compensar esse ciclo descendente, o governo precisará fazer o que até agora se negou – controle do déficit público. Sem agenda fiscal de maior contenção de gastos, a relação dívida/PIB continuará a preocupante trajetória de acelerado crescimento, o que resultou na altíssima taxa de juros real de 10%. Vale lembrar que, de 1999 a 2003, o país produziu superavit primário anual de 3% a 4% do PIB, mas de 2013 a 2024, a relação dívida/PIB saltou de 50% para 82%. Esse cenário macroeconômico leva muitos analistas a estimar que a economia não aguenta mais dois anos de taxa de juros real situada entre 8% e 10%. Empresas de maior porte, com acesso ao mercado de capitais poderão sobreviver, mas muitas das médias e pequenas deverão desaparecer, e provocar forte crise econômica. Nesse sentido, o próximo governo eleito em 2026, independente da coloração política, será forçado a fazer o que até agora adiou - reforma fiscal com clara contenção de gastos.  

Em síntese, uma avaliação dos efeitos da irracionalidade econômica de Trump sobre o Brasil revela dois momentos bem distintos. Um primeiro, em que a frustração de expectativas nos EUA gerou migração de investimentos para as economias emergentes, o que produziu bons indicadores em 2025. Um segundo momento, em que a tarifa norte-americana de 50% sobre produtos brasileiros – caso mantida- deverá deprimir nossas exportações, com efeitos imediatos negativos. Entretanto, na negociação para reduzir a tarifa, o Brasil será forçado a efetuar alguma abertura de mercado, o que poderá trazer resultados positivos para uma das economias mais fechadas do mundo, com elevada proteção tarifária, não tarifária, subsídios e isenções fiscais.  No atual cenário eleitoral prematuro, é evidente que o governo não caminharia, por vontade própria, na direção de reduzir privilégios para setores econômicos. Mas deverá ser obrigado a fazê-lo no processo de negociação destinado a reduzir a absurda tarifa de 50% imposta pelo governo Trump. A absoluta irracionalidade lá poderá produzir alguma racionalidade cá.

Brasília, 15 de julho de 2025

Sergio Florencio

quarta-feira, 25 de junho de 2025

O esvaziamento do Itamaraty e o interesse nacional - Rubens Barbosa (revista Insight Inteligencia)

 O esvaziamento do Itamaraty e o interesse nacional

Rubens Barbosa
revista Insight Inteligencia, julho de 2025


A política externa, nos últimos 200 anos do Brasil independente, sempre teve um papel muito relevante na defesa do desenvolvimento econômico, dos interesses concretos do país e de sua projeção externa, até mesmo com uma atuação muitas vezes acima da capacidade de seu poder efetivo.

Alguns dos exemplos em que a diplomacia teve papel relevante na defesa do interesse nacional foram a manutenção da integridade territorial, depois de termos a Independência em 1822 ameaçada pela ação das Cortes de Lisboa; o equilíbrio geopolítico na Bacia do Prata nas primeiras décadas do século XIX até depois da Guerra do Paraguai nos anos 1860; e a definição pacífica, por meio de negociações, das fronteiras definitivas do país.

A projeção internacional do Brasil é, em grande parte, resultado da atuação diplomática, tanto bilateral como, sobretudo, multilateral. Em um mundo em grande e rápida transformação e com as polarizações internas, as prioridades definidas no início do governo atual são corretas e representam o que se espera de uma das dez maiores economias do mundo: ter voz no cenário internacional, influir nas discussões sobre meio ambiente e mudança de clima e manter uma política afirmativa na América do Sul. Essas são algumas das políticas que de fato interessam ao país.

Nos dias de hoje, visto do ângulo dos interesses permanentes do Brasil e não do governo de turno, o Brasil e o mundo mudaram com a nova economia (menos liberalismo e mais protecionismo) e a nova ordem internacional em constante mutação pelo impacto das políticas de Donald Trump, das guerras na Europa e no Oriente Médio, onde há uma ameaça de escalada se o Irã for atacado por Israel. A tensão crescente entre os Estados Unidos e a China pela hegemonia global no século XXI, agravada pelas medidas restritivas do governo Trump no comércio exterior e pela rápida evolução tecnológica, com reflexos na geopolítica, está forçando todos os países a se ajustarem às novas demandas e novas realidades. No tocante à América do Sul, que o secretário da Defesa norte-americano chamou de “quintal dos EUA”, as políticas e declarações públicas do presidente norte-americano no sentido de “não permitir a crescente presença da China na região e de que talvez os países latino-americanos tenham de optar entre os EUA e Beijing”, colocam novos e importantes desafios para o Brasil. O ressurgimento da Doutrina Monroe, enterrada pelo governo norte-americano em pronunciamento do secretário John Kerry em 2014, pode ser exemplificado pelas pretensões sobre o Canal do Panamá, pelas declarações em relação à Venezuela e pelas ameaças do Departamento de Estado com respeito às remessas de recursos financeiros por palestinos para o Irã a partir da tríplice fronteira entre o Brasil, Argentina e Paraguai.

O fator externo hoje não pode mais ser ignorado na definição da política econômica, financeira, de defesa e, para países como o Brasil, da política externa. Quatro milhões de brasileiros em todos os continentes esperam assistência não só para providências pessoais, mas sobretudo para apoio em momentos de crise nos países em que vivem. O cenário global, para países do porte do Brasil, apresenta novos e significativos desafios geopolíticos que, em muitos casos, parecem ser ignorados internamente como se o país fosse imune ao que acontece no exterior, seja nas áreas econômica, de defesa, saúde, inovação e tecnologia. A pandemia, as guerras na Ucrânia e em Gaza, a rápida mudança na ordem internacional com o isolacionismo norte-americano, a crescente tensão entre os Estados Unidos e a China, além do reaparecimento da Rússia, transformaram o cenário global, colocando os países, e o Brasil não é exceção, cada vez mais dependentes do exterior em muitas áreas, inclusive tecnológicas e industriais. O 5G e a Inteligência artificial, as restrições derivadas de preocupações protecionistas e ligadas ao meio ambiente e mudança climática, sem falar nas questões de segurança e de defesa, junto com negociações de novos acordos de livre comércio com a formação de blocos políticos e econômico-comerciais, são novos desafios e algumas das realidades que qualquer governo brasileiro terá de enfrentar nos dias de hoje e num futuro previsível.

Neste momento de polarização interna, deve ser lembrado, tanto aos governantes quanto aos diplomatas do Itamaraty, que a diplomacia, como carreira de Estado, tem um dever de lealdade ao governo legítimo em vigor ao implementar suas decisões, sem evidentemente ser partidária e muito menos militante do partido e do governo no poder. O embaixador, como representante do presidente da República, do governo e de seus ministros, é o responsável pela autoridade do Estado no país em que está acreditado, e uma relação de confiança deve existir como pressuposto de seu trabalho.

O Itamaraty é o principal assessor do presidente da República para a formulação e execução da política externa e sempre foi o órgão que coordena a participação do Brasil, seja no âmbito bilateral quanto nos organismos multilaterais. Com alternância de governos, é normal haver mudanças de ênfases e prioridades na política externa. O problema hoje é que, com as mudanças internas na política brasileira, o Itamaraty vem sofrendo um continuado processo de esvaziamento, sem deixar de executar um trabalho sério e competente.

Nos últimos 30 anos, o Itamaraty vem perdendo espaço no contexto dos sucessivos governos por razões de política interna e mudanças externas. Internamente, emergiu uma tecnocracia que passou a representar interesses setoriais no exterior, como a área econômica, o setor agrícola, o de defesa e o de polícia. Externamente, o mundo se transformou pela rapidez da informação e na facilidade dos contatos entre chefes de estado com conversas e encontros frequentes.

Mais recentemente, um novo elemento contribuiu para o esvaziamento do Itamaraty: a politização e a partidarização da política externa que a afastam dos interesses do Estado brasileiro, acompanhadas pela redução de recursos orçamentários. A atração de lealdades ao presidente, ao ministro e às ideias por eles defendidas, inclusive as relacionadas com a desigualdade e a promoção da diversidade, com ênfase em gênero e raça, e às crescentes dificuldades enfrentadas pelos diplomatas em termos de fluxo de carreira – que tornaram o seu trabalho mais difícil e suas funções diplomáticas mais burocráticas e menos estimulantes – não podem resultar em prejuízo para a instituição e deixar para um segundo plano as prioridades internas, relacionadas com os rumos da política externa e com a contribuição efetiva no desempenho de suas missões.

A formulação e a execução da política externa têm passado por um processo disfuncional em que os interesses nacionais são confundidos com interesses setoriais e políticos. Um recente ministro do exterior aceitou que o Brasil fosse considerado um pária internacional por defender posições políticas vigentes no governo.

Ao longo dos últimos anos, o Itamaraty perdeu espaço em temas como comércio exterior (mesmo no Mercosul), meio ambiente e mudança de clima, agenda de costumes, direitos humanos, entre outros. No governo atual, o Itamaraty começou perdendo a Apex e a Camex e enfrentou, com limitado sucesso, o desafio de tentar coordenar as ações externas das pastas de Meio Ambiente, Direitos Humanos, Mulheres, Igualdade Racial e Povos Indígenas. Além disso, quando ocorre uma duplicidade de influência na formulação e execução da política externa, o desempenho diplomático fica afetado, como ocorreu no governo Bolsonaro e está ocorrendo no atual governo. Isso se vê na dualidade de funções entre a assessoria presidencial e o ministro das Relações Exteriores, com a perda de espaço nas secretarias internacionais dos ministérios, na ação subnacional, na marginalização no exterior dos embaixadores nas reuniões no âmbito de chefe de Estado, na perda da coordenação das negociações internas nas áreas de comércio exterior, inclusive no tocante ao Mercosul, ao meio ambiente e às agendas multilaterais (direitos humanos, energia, costumes, gênero e outras). Em maio de 2025, um membro do Judiciário se dirigiu diretamente a um embaixador estrangeiro dando um prazo para resposta a um questionamento, ignorando o canal apropriado, o Itamaraty. A Casa Civil e o Ministério do Planejamento assumiram, em vários momentos, o papel de coordenadores em matérias de competência do Itamaraty (viagem presidencial à China em maio), COP 30 (logística), infraestrutura regional. O Congresso Nacional tentou no passado e poderá retomar a ideia de indicação de congressistas para chefiar missões diplomáticas no exterior sem a perda de mandato, o que esvaziaria ainda mais a Chancelaria.

A situação tem se agravado pelas ações e pronunciamentos improvisados dos presidentes, desde Bolsonaro a Lula, no tratamento de delicadas questões externas, com claros objetivos de política interna (convocação de embaixadores para ouvirem críticas às urnas eletrônicas e o tratamento de regimes autoritários na região, em especial a Venezuela). Sem preocupação com a repercussão internacional, as declarações mostram inconsistências da política externa, colocam em risco sua credibilidade e prejudicam a ação diplomática na defesa do interesse nacional.

A questão que se coloca é como ajustar o soft power brasileiro nas áreas em que se reconhece sua influência (meio ambiente, segurança alimentar, transição energética) e suas limitações pela ausência de excedente de poder (o Brasil não é uma potência militar). A ausência de resultados na pretensão de criar um grupo para acelerar a busca da paz na Guerra da Ucrânia, na proposta para o cessar-fogo em Gaza durante a presidência brasileira no Conselho de Segurança da ONU, em ser uma ponte entre os países desenvolvidos e o Sul Global ou influir na modificação da governança global (composição do Conselho de Segurança da ONU) mostram os limites da influência do Brasil no cenário internacional. A participação de Lula nas comemorações do Dia da Vitória em Moscou despertou reações negativas de alguns países bálticos, que não autorizaram o sobrevoo do avião precursor com a presença da mulher do presidente, em clara manifestação de contrariedade pela visita durante a Guerra da Ucrânia, graças à percepção equivocada de que a posição do Brasil é favorável a um dos lados. Em algumas dessas ações, a Chancelaria não foi ouvida, ou se foi, a instituição deve ter-se colocado contra, mas a decisão foi tomada sem o conselho do Itamaraty. Em mais um exemplo de esvaziamento do Itamaraty, depois de meses de tentativa frustrada de convencer Maduro a liberar cinco venezuelanos exilados na embaixada argentina sob a guarda brasileira, os Estados Unidos, em operação de resgate bem-sucedida retirou os venezuelanos e os transportou para território norte-americano, colocando a política externa brasileira em xeque e mostrando o isolamento do governo brasileiro na região.

Isso significa que estamos assistindo o fim da presença do Itamaraty e a perda de espaço das embaixadas no exterior? Fora dos quadros do Itamaraty há quase 20 anos, tenho um distanciamento que me coloca em posição de oferecer algumas considerações pessoais longe de interesses corporativos ou posições defensivas, mas apenas voltadas para o que me parece mais relevante ao país e para a Chancelaria.

A experiência do Itamaraty, reconhecida internacionalmente e agora percebida com baixa credibilidade por sua reduzida influência, não pode ser deixada de lado. Exemplos da atuação discreta e eficiente do Itamaraty em situações delicadas para o governo podem ser citadas, como a manutenção de canal aberto com todo o governo argentino, apesar de não haver qualquer contato entre os presidentes Lula e Milei. A eleição de Donald Trump e as posições públicas do presidente Lula contra o novo presidente tornaram difícil o estabelecimento de canais de comunicação de Brasília com a Casa Branca e entre o Itamaraty e o Departamento de Estado, que agora começa a ser desobstruído pelo trabalho discreto do Itamaraty. Não fosse a coordenação eficiente do Itamaraty, a reunião do G20 não teria alcançado o sucesso que obteve com o reconhecimento de todos. O mesmo vai acontecer com as reuniões do Brics e da COP 30, que, a exemplo do G20, serão coordenadas por altos funcionários do Itamaraty.

Como sempre fez no passado, o Itamaraty, com seu corpo de competentes funcionários, poderá, de maneira eficiente, ajudar a interpretar o momento de transição para um mundo pós-ocidental, como acentuado por Lula na reunião do G7 em 2024. Nesse contexto, em vez de esvaziar a instituição, os governos teriam de fortalecer a estrutura da Chancelaria, com reforço orçamentário e humano, para que possa atuar como uma antena de captação dessas mudanças e oportunidades, um instrumento de negociação em novas áreas (tecnologia e inovação), um braço (assistência técnica) para o exercício de soft power na América Latina e na África pelo fortalecimento da Associação Brasileira de Cooperação. O setor cultural, outra área em que o soft power brasileiro foi um fator importante no passado, deveria ser mais bem cuidado para evitar as dificuldades que acontecem hoje com a programação dos eventos na celebração do ano Brasil-França. Esqueceram de incluir a palavra cultural depois do termo “Instituto” e antes do nome de Guimarães Rosa, para tornar claro e conhecido o objetivo de trabalho do órgão no Brasil e no exterior. Um suporte eficiente para a ação de outros órgãos federais, estaduais e de apoio à comunidade brasileira no exterior e aos empresários são elementos adicionais da ação moderna do Itamaraty que não estão sendo plenamente atendidos. Em um mundo de incertezas, não mais se podem ignorar as atuais vulnerabilidades das Forças Armadas e a necessidade do fortalecimento da indústria nacional de defesa. Seguindo o exemplo do Barão do Rio Branco, quando chanceler, torna-se urgente incluir a defesa na discussão sobre o lugar do Brasil no mundo e sobre seus objetivos de médio e longo prazos, acima da divisão e da polarização interna. Nesse sentido, seria urgente retomar as reuniões regulares de coordenação entre o Itamaraty e o Ministério da Defesa, interrompidas nos últimos dois governos.

Ao contrário do que está acontecendo agora, o Itamaraty tem de ser revigorado e recuperar sua competência para a articulação e coordenação interna de todas as ações do governo no exterior e sua capacidade de interpretação do sentido das mudanças globais. Como instituição, deve fazer valer sua competência e espírito público para enfrentar esses desafios que impactam a projeção do Brasil no mundo. Os governos de turno não podem improvisar na política externa.

Para tanto, o Itamaraty tem de renovar seus métodos de trabalho, tornando-os mais modernos à luz dos novos eixos políticos e econômicos, bem como estimulando a especialização em áreas geográficas ou setores. A centralização das iniciativas e das decisões, que caracterizaram algumas das últimas gestões, não deveria ser repetida, e o processo de renovação deveria voltar a dar relevância ao trabalho das divisões, dos departamentos e das secretarias, com autonomia e liberdade, para fazer estudos e apresentar propostas inovadoras de políticas para a chefia da Casa. Nesse contexto, deveria ser estimulada uma aproximação maior da Funag com think tanks e instituições da sociedade civil para debater diferentes aspectos da política externa e, sobretudo, o lugar do Brasil no mundo neste momento de grandes transformações.

O Ministério das Relações Exteriores se ressente da falta de liderança proativa no governo e no próprio Itamaraty já há alguns anos, mas, sobretudo, da ausência de uma política externa com visão estratégica de médio e longo prazos sobre o lugar do Brasil no mundo para responder aos desafios da nova economia e da nova ordem global. Deveria estar no topo da agenda diplomática a integração regional com os países sul-americanos, com projetos de infraestrutura para a abertura de canais de transporte no Pacífico e com propostas de cooperação entre os setores privados para a formação de cadeias produtivas de valor regionais. No tocante à Ásia – o maior mercado regional, com 50% do total das exportações brasileiras –, não precisamos de discursos retóricos, e sim de acordos práticos. A política de terra arrasada dos EUA na África, com o fechamento de embaixadas e cortes em programas de ajuda, abre para o Brasil um espaço importante para a formulação e execução de uma política de cooperação técnica e de aproximação comercial com os países daquele continente.

Espera-se que o Itamaraty possa superar o risco que corre hoje de perder ainda mais espaço e de deixar de ser visto como um exemplo de excelência dentro do serviço público brasileiro. Como instituição de Estado, ele não pode se transformar em mais um exemplo de burocracia que apenas defende os interesses pessoais imediatos de seus membros, como em geral acontece nos três poderes da Administração Pública. Como instituição de Estado, o Ministério das Relações Exteriores deve ser preservado para a defesa do interesse nacional. A tradicional política definida pelo Itamaraty de equilíbrio e equidistância, sem tomar partido nas questões que dividem os países para a defesa do interesse brasileiro, deveria voltar a ser seguida e reforçada, acima de considerações ideológicas e partidárias.

Rubens Barbosa, ex-embaixador em Londres e em Washington

sexta-feira, 2 de maio de 2025

A comemoração pela vitória na Segunda Grande Guerra e o Brasil - Rubens Barbosa (Interesse Nacional)

 A comemoração pela vitória na Segunda Grande Guerra e o Brasil

Rubens Barbosa

Interesse Nacional, 2/04/2025

Apesar de sua contribuição na Segunda Guerra, o Brasil raramente é lembrado nas celebrações da vitória. Agora, 30 anos após sua última participação, Lula vai a Moscou para a cerimônia a convite de Putin — em meio a uma guerra e a uma possível reconfiguração das alianças globais que pode redefinir o papel geopolítico do país

Soldados da Força Expedicionária Brasileira na Itália durante a II Guerra Mundial (Foto: Arquivo Nacional)

O Brasil, depois de alguma hesitação na década de 1940, finalmente decidiu corretamente se colocar ao lado dos aliados e combater o nazismo e o fascismo na Segunda Grande Guerra.

A Força Expedicionária Brasileira combateu junto com o Exército norte-americano na Itália e teve participação na Batalha de Monte Cassino.

Mais de 1.000 soldados tombaram na luta contra o nazismo, e sua memória está preservada no cemitério de Pistoia, mas poucos se lembram disso.

‘As comemorações do Dia da Vitória ocorrem todos os anos, mas nunca o Brasil é convidado para delas participar’

As comemorações do Dia da Vitória ocorrem todos os anos, e manifestações públicas são realizadas em muitos países europeu, mas nunca o Brasil é convidado para delas participar.

Desde o fim da guerra, na celebração dos 50 anos da vitória, em maio de 1995, pela primeira vez, o Brasil foi convidado pelo governo britânico a participar em Londres dessas comemorações.

Como embaixador em Londres, pude acompanhar o presidente Fernando Henrique Cardoso, que esteve presente em todos os atos comemorativos. Foi um momento histórico em que foi lembrada e reconhecida a contribuição brasileira para a vitória aliada.

‘Trinta anos depois, o Brasil voltou a ser convidado a participar das comemorações da vitória’

Trinta anos depois, o Brasil voltou a ser convidado a participar das comemorações da vitória.

Desta vez, a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que, como FHC, vai representar o Brasil nas solenidades. Não vai ser em Londres, mas em Moscou.

Atendendo ao convite do presidente russo, Vladimir Putin, no meio de outra guerra envolvendo Moscou, desta vez na Ucrânia, Lula vai à Rússia no dia 9 para a celebração da vitória da União Soviética sobre a Alemanha nazista na Grande Guerra Patriótica, como a Segunda Grande Guerra é chamada na Rússia.

‘A visita ocorre em meio a grande transformação econômica e na ordem internacional e quando, a exemplo do que ocorreu no século 18, o mundo vê atônito uma reversão de alianças’ 

A visita ocorre em meio a grande transformação econômica e na ordem internacional e quando, a exemplo do que ocorreu no século 18, o mundo vê atônito uma reversão de alianças. 

Em 1756, as alianças de longa data na Europa entre a Guerra da Sucessão Austríaca e a Guerra dos Sete Anos foi revertida.  A Áustria passou de aliada da Grã-Bretanha a aliada da França; a República Holandesa, uma aliada britânica de longa data, tornou-se mais anti-britânica e assumiu uma posição neutra, enquanto a Prússia se tornou aliada da Grã-Bretanha. Algo tão revolucionário está acontecendo agora, quando a Rússia passa ser próxima dos EUA e a Europa pode deixar de ser aliada estratégica de Washington. 

‘A participação de Lula não é uma reversão de alianças, mas se coloca ao lado de um dos vencedores da guerra, uma das potências aliadas, que, nos últimos 80 anos, ficou do lado oposto do Ocidente’

A participação de Lula não é uma reversão de alianças, mas se coloca ao lado de um dos vencedores da guerra, uma das potências aliadas, que, nos últimos 80 anos, ficou do lado oposto do Ocidente. Segundo se noticiou, o embaixador da Ucrânia teria sugerido a ida de Lula a Kiev, antes da visita à Rússia. Lula teria tentado falar por telefone com Zelensky, mas o presidente da Ucrânia teria recusado o pedido de Lula de falar à distância e criticou a ida do presidente brasileiro à Rússia.

Nos próximos anos, a história pode se repetir com EUA, China e Rússia (no lugar da Europa) se entendendo de maneira geopolítica, e darem início a uma nova era nas relações internacionais, em que os três países decidirão o rumo da economia e da política global, passando a estabelecer “esferas de influência” globais. 

‘A presença de Lula em Moscou poderá ser vista como uma antecipação da posição de independência e de equidistância nas tensões políticas e econômicas globais. Ou como uma decisão precipitada’

A presença de Lula em Moscou poderá ser vista como uma antecipação da posição de independência e de equidistância nas tensões políticas e econômicas globais. Ou como uma decisão precipitada, se a Rússia não colocar um fim na guerra com a Ucrânia e os EUA se retirarem da tentativa de mediação

É de interesse do Brasil manter a tradicional postura na política externa de equidistância e independência de países ou grupo de países, sem alinhamentos automáticos, acima de ideologia ou partidarismo.

Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional



https://interessenacional.com.br/portal/a-comemoracao-pela-vitoria-na-segunda-grande-guerra-e-o-brasil/


sexta-feira, 18 de abril de 2025

Dia do Diplomata - Rubens Barbosa (Interesse Nacional) - Gustavo Buttes (presidente do Sindicato do Itamaraty)

Dia do diplomata

Rubens Barbosa *

Editorial da revista

Interesse Nacional, 18/04/2025


Comemoração ocorre em momento crítico para a diplomacia em diferentes partes do mundo, o que evidencia a confusão entre os interesses nacionais e os de grupos políticos que colocam a política externa sob pressão ideológica

No próximo dia 20, será celebrado o dia do diplomata. A comemoração ocorre em um momento difícil para a instituição, o que não é um problema isolado do Brasil, haja vista o que acontece, entre outros, no Departamento de Estado, nos EUA, e no Quai D’Orsay, na França.

Nos últimos 20 anos, a formulação e a execução da política externa têm passado por um processo disfuncional em que os interesses nacionais são confundidos com interesses setoriais e políticos. Gradualmente a política externa passou a sofrer interferências ideológicas e partidárias que a afastam dos interesses do Estado. Um recente ministro do exterior aceitou que o Brasil fosse considerado um pária internacional por defender posições políticas vigentes no governo.

O Itamaraty é o principal assessor do presidente da República para a formulação e execução da política externa e sempre foi o órgão que coordena a participação do Brasil no mundo, seja no âmbito bilateral, quanto nos organismos multilaterais. 

As mudanças internas na política brasileira, acarretaram um continuado processo de esvaziamento do Itamaraty. Ao longo dos últimos anos, o Itamaraty perdeu espaço em temas como comércio exterior (mesmo no Mercosul), meio ambiente e mudança de clima, agenda de costumes, direitos humanos, entre outros. 

‘O Itamaraty deve fazer valer sua competência e espírito público para enfrentar o desafio de recuperar o papel central de coordenação em temas que impactem a projeção do Brasil no mundo’

No governo atual, o Itamaraty começou perdendo a Apex e enfrentou, com limitado sucesso, o desafio de tentar coordenar as ações externas das pastas de Meio Ambiente, Direitos Humanos, Mulheres, Igualdade Racial e povos indígenas. O Itamaraty deve fazer valer sua competência e espírito público para enfrentar o desafio de recuperar o papel central de coordenação em temas que impactem a projeção do Brasil no mundo.

As questões relacionadas com o fluxo da carreira e com vencimentos naturalmente preocupam, sobretudo os que estão nas classes iniciais e intermediárias. “A reforma do Regime Jurídico do Serviço Exterior, em discussão desde 2024, é um passo crucial. A atual estrutura piramidal de carreiras, aliada a promoções lentas, quando não paralisadas, pautadas por mecanismos personalistas e pouco transparentes, precisa dar lugar a um modelo de carreira ágil, que valorize mérito, capacitação e experiências multidisciplinares e multiculturais. A proposta em negociação prevê carreiras mais fluidas, progressão justa e capacitação continuada”, como assinala o presidente do sindicato dos diplomatas. 

As reivindicações justas dos jovens para aperfeiçoar a carreira diplomática têm de ser compatibilizadas com as prioridades do Ministério da Gestão e Inovação, que coordena a reforma, e da direção da chancelaria.

O Sindicato dos diplomatas – o único existente entre as carreiras de Estado – considera que “o fortalecimento institucional do Itamaraty passa necessariamente pelo diálogo social e pela participação ativa de suas servidoras e seus servidores. A negociação sindical, longe de ser um obstáculo, é parte essencial do processo democrático de modernização”. As negociações sindicais – cujos objetivos, em diversos casos, podem não ser aceitas por muitos – não podem deixar para um distante segundo plano as prioridades internas sobre os rumos da política externa e para a contribuição substantiva do Itamaraty.

O Ministério das Relações Exteriores se ressente da falta de liderança interna proativa já há alguns anos e da ausência de uma política externa com visão estratégica de médio e longo prazo sobre o lugar do Brasil no mundo, para responder com um trabalho mais eficiente e de resultados. 

Ao celebrar o dia do diplomata, espera-se que a instituição possa superar o risco que corre hoje de perder ainda mais espaço e de deixar de ser vista como um exemplo de excelência dentro do serviço público brasileiro. 

O Itamaraty, como instituição de Estado, não pode se transformar em mais um exemplo de burocracia que apenas defende os interesses pessoais imediatos de seus membros, como acontece, em geral, nos três poderes da Administração Pública. A reforma em discussão não pode resultar em prejuízo para o funcionamento da instituição, que, em consequência, venha a afetar o processo de formulação e de execução da política externa. 

* Rubens Barbosa 

Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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Responde o presidente do Sindicato dos Diplomatas: 

Estimado Embaixador Rubens Barbosa,

Gostaria de parabenizá-lo pelo excelente artigo publicado no portal Interesse Nacional, especialmente pelos pontos que reforçam a necessidade de fortalecimento do Itamaraty. Concordo plenamente com sua premissa de que é imprescindível investir na valorização, na capacitação e na modernização da nossa diplomacia, para que o Brasil possa atuar de forma mais efetiva no cenário internacional. Sua análise aprofunda questões essenciais, como a importância de consolidar uma carreira diplomática robusta e preparada para os desafios contemporâneos.

As reflexões presentes em seu texto estão alinhadas à perspectiva de que o fortalecimento do Itamaraty é fundamental para reverter a tendência de perda de espaço do Ministério das Relações Exteriores na formulação e execução da política externa brasileira. É necessário criar condições para que o órgão recupere sua centralidade, por meio de uma modernização da estrutura, de uma atualização do regime jurídico e demais legislações que regem a carreira diplomática, e do investimento na formação e na valorização de nossos diplomatas.

Nesse sentido, destaco de seu texto dois outros aspectos complementares, mas não menos importantes, que merecem atenção: a formação de lideranças internas e o fortalecimento da atuação sindical. A capacitação contínua de quadros, com ênfase em habilidades técnicas e estratégicas, é crucial para garantir que o Itamaraty conte com profissionais aptos a enfrentar os complexos desafios da política internacional. Paralelamente, um sindicalismo propositivo e qualificado, como o que a ADB tem buscado construir, é peça-chave para defender os interesses da categoria e, ao mesmo tempo, contribuir para o aprimoramento institucional.

Concordo com o Sr. no sentido de que o Dia do Diplomata é uma efeméride mais que oportuna para trazer essa discussão à ribalta. Celebrar a data vai além do reconhecimento histórico; é uma chance de refletir sobre o futuro da carreira e as mudanças necessárias para que o Brasil tenha uma diplomacia à altura de suas ambições.

Nesse contexto, destaco uma iniciativa do nosso sindicato que busca contribuir para esse fortalecimento. A ADB Sindical iniciou a elaboração do livro “Competências Diplomáticas para o Brasil do Século XXI”. A obra tem o objetivo de criar um debate acadêmico consistente e formar massa crítica sobre os principais pilares da atuação brasileira no exterior. Acreditamos que esse esforço é fundamental para subsidiar as reformas necessárias e consolidar uma diplomacia mais alinhada às demandas do século XXI.

Ao agradecer mais uma vez pela sua valiosa contribuição a esse debate, coloco-me à disposição para colaborar na construção de uma política externa mais forte, moderna e autônoma.

Abraços cordiais, 

Gustavo Buttes


domingo, 18 de agosto de 2024

Fracasso de pressão por democracia pode abrir precedente para invasão da Venezuela? - Sean Burges (Interesse Nacional, Estadão)

 Opinião

Fracasso de pressão por democracia pode abrir precedente para invasão da Venezuela?

O regime de Maduro não vai deixar o poder, o que deixa Lula e seus contemporâneos nas Américas com uma pergunta terrível

Por Sean Burges

Interesse Nacional, Estadão, 17/08/2024

 

Para surpresa de ninguém, o autocrata-chefe venezuelano Nicolás Maduro manipulou a eleição presidencial de 28 de julho para permanecer no cargo. A condenação da maior parte do mundo foi igualmente previsível, mas também tocante em suas esperanças ingênuas de que a pressão internacional trará mudanças.

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O regime de Maduro não vai a lugar nenhum, o que deixa Lula e seus contemporâneos nas Américas com uma pergunta terrível: é mais eficaz simplesmente conter o Estado falido na Venezuela ou deve-se estabelecer um precedente com uma invasão pró-democracia no país?

Um retorno muito rápido à teoria nos ajuda a explicar por que o mundo está tão impotente para precipitar mudanças positivas na Venezuela.

América Latina da década de 1980 foi uma espécie de laboratório para investigar transições do autoritarismo para a democracia. Os estudiosos analisaram as diferentes transições extensivamente, resultando em inúmeros estudos que continuam a oferecer lições inestimáveis para os dias de hoje, mesmo que os formuladores de políticas pareçam relutantes em aventurar-se nas prateleiras empoeiradas da biblioteca para recuperá-los.

Talvez o livro mais perceptivo (e também curto) seja o volume quatro da série Transitions from Authoritarian Rule publicado em 1986. Popularmente conhecido como o Livro Verde pela cor da sua capa e subtitulado Tentative Conclusions About Uncertain Democracies, o argumento escrito por Guillermo O’Donnell e Philippe C. Schmitter baseou-se nos três outros volumes da coleção para explicar quais condições precisam estar presentes para que uma transição democrática comece e tenha sucesso.

Como explicam os autores, existem dois grupos principais em qualquer regime autoritário. Os “dictaduros”, ou linha-dura, estão profundamente comprometidos em manter o poder e resistirão a qualquer tentativa de removê-los do cargo.

Por outro lado, os “dictablandos”, ou moderados, acreditam que permanecer no cargo não é do interesse pessoal deles, nem do interesse militar/país, e, portanto, apoiam uma transição controlada para o governo democrático. O autoritarismo persiste quando os “dictaduros” mantêm a vantagem; a democratização ocorre quando os “dictablandos” estão em ascensão e conseguem convencer seus colegas a ceder o poder.

 

O trabalho de O’Donnell e Schmitter enfatiza dois problemas imediatos para aspirantes a democratas na Venezuela, bem como uma mudança estrutural crítica na economia venezuelana para outros países que defendem a abertura política lá.

Primeiro, quase não há mais “dictablandos” no regime venezuelano. Um quarto de século de governo chavista praticamente expurgou os liberais da administração bolivariana. Pior, aqueles democratas que restam nas instituições e na sociedade venezuelanas estão atualmente sendo capturados e encarcerados pelas tropas de choque de Maduro.

Em segundo lugar, supondo que um pequeno grupo de “dictablandos” tenha conseguido sobreviver dentro das Forças Armadas – e são as Forças Armadas que, em última análise, determinarão se o regime permanece ou cai – as circunstâncias atuais sugerem que eles não terão sucesso em convencer os “dictaduros” a suavizar sua posição. Afastar-se do poder traria, no mínimo, uma perda de privilégio e riqueza pessoal, o que, dado o estado atual da economia venezuelana, não é algo que a maioria dos atores racionais consideraria. Mais francamente, ceder o poder atualmente não tem nenhuma vantagem para Maduro e seus “dictaduros”.

A comunidade internacional conseguiu pressionar as ditaduras latino-americanas porque as elites econômicas domésticas que as sustentavam precisavam de acesso aos mercados regionais e globais. (...) Nada dessa lógica econômica se aplica à Venezuela hoje.

Como foi o caso nas décadas de 1970 e 1980, a comunidade internacional está ciente desse dilema. A pressão política externa foi um componente crítico para tirar do poder ditadores tão diversos quanto Pinochet no Chile e Stroessner no Paraguai. A pressão sobre os atores econômicos domésticos pela comunidade internacional traduziu-se em apelos locais das elites por mudança de regime em setores dependentes de vínculos externos.

O desafio hoje é que a alavancagem usada no século passado não está disponível na Venezuela de hoje.

A comunidade internacional conseguiu pressionar as ditaduras latino-americanas porque as elites econômicas domésticas que as sustentavam precisavam de acesso aos mercados regionais e globais. Mesmo no caso do regime criminoso de Stroessner no Paraguai, o acesso ao mercado brasileiro permaneceu crucial, permitindo que os oficiais em Brasília obrigassem a adoção de uma democracia formulaica em 1989 e um governo representativo mais substantivo ao longo da década de 1990. Nada dessa lógica econômica se aplica à Venezuela hoje.

A ditadura de Maduro é sustentada por uma teia complexa de atores militares, gangues criminosas e facções de grupos paramilitares estrangeiros, como ELN e Farc da Colômbia. São esses atores que controlam a produção e o tráfico de cocaína, a mineração e os últimos vestígios de uma indústria petrolífera em rápida desintegração, além de uma série de outras empresas criminosas domésticas.

A pressão econômica do tipo visto na década de 1980 simplesmente não se aplica a essas empreitadas criminosas, isolando os poderosos na Venezuela da condenação internacional e das sanções econômicas. Onde a pressão internacional poderia importar, como nas exportações de petróleo e ouro, existem muitas alternativas com agentes baseados em países como Rússia, Irã, Turquia e Emirados Árabes Unidos.

Isso deixa as vozes do hemisfério ocidental que clamam por democracia – sejam elas as vozes quietas nos bastidores da equipe de Lula ou o mais confrontador diretamente Boric no Chile – gritando ao vento.

 

Governos como o de Lula no Brasil, portanto, enfrentam uma decisão desconfortável: é mais barato conter a crise ou invadir? Pior, dada a criminalização maciça do Estado e da economia venezuelanos, a remoção de Maduro poderia empurrar o país para o abismo de um verdadeiro estado falido?

Para o futuro previsível, parece que levar a democratização à Venezuela exigirá uma intervenção direta e aberta de algum tipo. Não apenas essa abordagem é contrária à tradição histórica nas Américas, mas impor a democracia externamente também é um negócio caro, demorado e incerto. A questão então é se os custos da instabilidade política, outra fuga em massa, colapso econômico, criminalidade crescente e degradação ambiental acelerada na Venezuela subirão a ponto de a comunidade interamericana ser forçada a passar da retórica à ação concreta.

Por enquanto, uma invasão democratizante da Venezuela é uma opção que deve ser deixada na gaveta. Os esforços devem ser dedicados à criação de “dictablandos”, fornecendo garantias àqueles em posição de conduzir a mudança de regime interno de que sua riqueza e privilégio sobreviverão à democratização, mesmo que isso signifique viver seus dias em uma cobertura no Rio de Janeiro ou em um condomínio em Miami.

Esperamos que essas sejam as promessas que Celso Amorim está sussurrando aos seus colegas em Caracas. O que parece quase completamente certo é que a democracia permanece uma miragem distante para o povo da Venezuela.


Opinião por Sean Burges

Sean Burges é colunista da Interesse Nacional e professor de estudos globais e internacionais na Carleton University. É autor dos livros ‘Brazil in the World’ e ‘Brazilian Foreign Policy After the Cold War’. 

 

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Itamaraty sob pressão (e marginalizado) - Rubens Barbosa (Interesse Nacional) - Introdução: Paulo Roberto de Almeida,

O Itamaraty dominado pelos autoritários

  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Notas sobre a submissão do Itamaraty ao poder político, com base na minha própria experiência de exercício da liberdade de pensamento. Postado como introdução a artigo de Rubens Barbosa sobre “O Itamaraty sob pressão” (Interesse Nacional, 16/08/2024) 

 

O Itamaraty esteve sob pressão durante o regime militar, que tinham lá suas obsessões contra o comunismo s até contra simples contrarianistas, como eu (fui fichado, ainda como terceiro secretário no meu primeiro ano na carreira, como “diplomata subversivo”). Depois recuperamos a liberdade de expressão e de fazer certas coisas na agenda externa.

Depois vieram os companheiros e sua diplomacia partidária de amizade e de “relações carnais” com os castristas e mais algumas ditaduras execráveis: por causa disso, e da minha maneira de dizer o que penso, passei TREZE ANOS E MEIO, ou seja, todo o primeiro reinado companheiro nos governos petistas, SEM QUALQUER CARGO na Secretaria de Estado, ostracismo que me levou a escrever alguma livros sobre a diplomacia lulopetista.

Depois de um novo período de acalmia, quando fui chamado finalmente a exercer um cargo não executivo no Itamaraty, vieram os aloprados do bolsolavismo diplomático, que me afastaram do cargo e me deixara sob as ordens de um Conselheiro na Divisão do Arquivo. Escrevi cinco livros sobre o bolsonarismo diplomático.

Assim foi a minha experiência no Itamaraty…

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4717, 17 agosto 2024, 1 p.

 

 Itamaraty sob pressão

Rubens Barbosa

Portal Interesse Nacional, 16/08/2024

Nos últimos 30 anos, o Itamaraty vem perdendo espaço no contexto dos sucessivos governos por razões de política interna e mudanças externas

Diplomatas protestam em defesa da valorização dos funcionários do Serviço Exterior Brasileiro (Foto: ADB/Instagram)

Está muito difícil para o Ministério das Relações Exteriores desempenhar suas competências constitucionais de assessorar o presidente da República e de ser a voz do Brasil no cenário internacional.

Nos últimos 30 anos, o Itamaraty vem perdendo espaço no contexto dos sucessivos governos por razões de política interna e mudanças externas. Internamente, emergiu uma tecnocracia que passou a representar interesses setoriais no exterior, como a área econômica, o setor agrícola, o de defesa e o de polícia. Externamente, o mundo se transformou pela rapidez da informação, a facilidade dos contatos entre chefes de Estado com conversas e encontros frequentes. Nos últimos 15 anos, um novo elemento contribuiu para o esvaziamento do Itamaraty: a politização e a partidarização da política externa e a atração de lealdades ao presidente, ao ministro e às ideias por eles defendidas. Exemplos recentes desse esvaziamento político são a retirada da Camex, da Apex, a dualidade de funções entre a assessoria presidencial e o ministro do exterior. 

‘A credibilidade do Itamaraty e da solidez da política externa na defesa do interesse nacional ficaram afetadas por pronunciamentos presidenciais neste e no governo anterior’

A credibilidade do Itamaraty e da solidez da política externa na defesa do interesse nacional ficaram afetadas por pronunciamentos presidenciais neste e no governo anterior. No governo atual, as posições oficiais expressas pela chancelaria em relação à guerra na Ucrânia, a Gaza e sobre a eleição na Venezuela foram contraditadas por manifestações presidenciais.

A duplicidade de interlocutores com o presidente da República entre o Itamaraty e a assessoria internacional da presidência, estão criando dissonâncias sobre assuntos que colocam em questão o interesse nacional. O caso mais recente é a vocalização da posição oficial do governo brasileiro no tocante à Venezuela ou o silêncio quanto às violações da democracia e dos direitos humanos. O último exemplo, nesta semana, foi a opinião do assessor internacional da presidência sobre a realização de novas eleições na Venezuela, em vista da contestação dos resultados pela oposição, logo contraditada pelo Itamaraty ao divulgar que a posição do governo não havia mudado e que o Brasil continuava no aguardo da divulgação das atas. Sem mencionar a nota do PT aceitando o resultado das urnas e se congratulando com Maduro pela eleição.

‘As interferências de outros membros do governo nos assuntos de competência do MRE se multiplicam’

As interferências de outros membros do governo nos assuntos de competência do MRE se multiplicam. A disputa pela liderança da COP30 entre o Itamaraty, que normalmente deveria assumir esse papel, e o Ministério do Meio Ambiente e, nesta semana, o encontro entre o chefe da Casa Civil e o embaixador da China para discutir a vinda ao Brasil do presidente chines Xi Jinping são exemplos de fatos que contribuem para o esvaziamento da Chancelaria. A assessoria internacional do Planalto prevaleceu sobre o Itamaraty no tocante à ampliação do Brics e o Ministério do Planejamento discute e propõe políticas sobre a integração física regional. 

É evidente a perda de espaço do Itamaraty nas secretarias internacionais dos ministérios, a descoordenada ação subnacional, a marginalização dos embaixadores nas reuniões em nível de chefe de Estado, a perda da coordenação das negociações internas nas áreas de comércio exterior, inclusive no tocante ao Mercosul, ao meio ambiente e às agendas multilaterais (direitos humanos, energia, costumes, gênero e outras).

‘O esvaziamento do Itamaraty vem ao mesmo tempo em que aumenta a insatisfação dos diplomatas com os salários e com o fluxo das promoções’

O esvaziamento do Itamaraty vem ao mesmo tempo em que aumenta a insatisfação dos diplomatas com os salários e com o fluxo das promoções. A criação de um sindicato dos diplomatas, nos últimos anos, criou um fórum de coordenação para a defesa dos interesses burocráticos dos funcionários diplomáticos como nunca houve no passado. Em assembleia nesta semana, o sindicato votou a favor de indicativo de greve, com estado de mobilização permanente pela primeira vez na história do Palácio do Itamaraty. A principal motivação para o movimento foi uma contraproposta de reajuste salarial apresentada pelo Ministério da Gestão e Inovação (MGI), considerada insuficiente pelos diplomatas. A categoria considerou a oferta insuficiente para compensar as perdas inflacionárias, especialmente para diplomatas nas classes iniciais e intermediárias. 

Diferentemente de outras carreiras públicas, nas quais os servidores podem chegar ao topo em pouco mais de dez anos, diplomatas costumam levar até 30 anos para alcançar o nível máximo. Com o aumento da idade de aposentadoria para 75 anos e uma estrutura engessada, com vagas limitadas por classe, um número significativo de servidores fica estagnado nas classes iniciais ou intermediárias. A decisão pela greve reflete a frustração das gerações mais recentes do Itamaraty com a falta de perspectivas de desenvolvimento profissional, “de valorização e de reconhecimento da importância da carreira”, segundo a entidade, “em um momento que o Brasil retoma as ambições na política externa, sediando importantes eventos como as cúpulas do G20, do Brics e a COP30”. Canções de protesto e carros de som em frente ao Itamaraty colocam as reivindicações no mesmo nível das demais carreiras da burocracia na Esplanada dos Ministérios.

‘O Itamaraty tem de ser revigorado e deveria recuperar sua capacidade de interpretação do sentido das mudanças globais e de sua competência para articulação e coordenação interna de todas as ações do governo no exterior’

Ao contrário do que está acontecendo agora, o Itamaraty tem de ser revigorado – inclusive para melhor defender os interesses dos funcionários diplomáticos – e deveria recuperar sua capacidade de interpretação do sentido das mudanças globais e de sua competência para articulação e coordenação interna de todas as ações do governo no exterior.Como instituição de Estado, o Ministério das Relações Exteriores deve ser preservado para a defesa do interesse nacional acima de princípios ideológicos ou partidários. Os governos de turno não podem improvisar na política externa.

Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.