Artigo primoroso do amigo e colega diplomata Sergio Florencio, não apenas sobre a violência do tarifaço político do sociopata Trump, mas também sobre a burrice renitente do protecionismo brasileiro, que prejudica a própria economia e todo o povo. PRA
Tarifa de 50% contra o Brasil. Risco e oportunidade
Sergio Florencio
Portal Interesse Nacional, 15/07/2025
Os efeitos previsíveis da tarifa norte-americana de 50% sobre a importação de produtos brasileiros combinam risco econômico e oportunidade política. O risco tende a ser forte contração de nossas exportações para um mercado que absorve cerca de 12% do total, com forte valor agregado. A oportunidade, para o atual governo, tende a ser o visível desgaste do bolsonarismo, resultante do vínculo entre a campanha destinada a obter apoio de Trump para a anistia do ex-presidente e a imposição da sobretaxa. Essa vantagem política foi magnificada por declarações de partidários do ex-presidente de apoio à decisão de Trump. A política externa passa agora a ditar uma agenda doméstica muito polarizada e já mobilizada pelo pleito de 2026, com um presidente em declínio de popularidade, mas beneficiado por inflexão a seu favor. Quais desdobramentos para o país poderá ter aquela combinação de risco e oportunidade?
Algumas considerações de ordem geral podem ajudar a esclarecer consequências específicas. A política tarifária de Trump tem três digitais – irracionalidade econômica, auto destrutividade geopolítica e imprevisibilidade. A economia é conhecida como a ciência da escassez. Mas hoje ocorre um fenômeno raro de abundância – a esmagadora maioria dos economistas, em diversos países e de diversas colorações, condenam ao fracasso a atual política de Trump. O principal argumento é o anacronismo de utilizar, no século XXI, o instrumento tarifário protecionista responsável pela recessão dos anos 1930.
A geopolítica de Trump consiste no afastamento deliberado de aliados tradicionais – Canadá, México, União Europeia - e aproximação com um dos principais adversários - a Rússia, aliada da China. A outra digital – imprevisibilidade - fica estampada na relação de Trump com Putin – há seis meses considerado um gênio e hoje, um imbecil.
Esse padrão errático se reflete em outras contundentes mudanças. A OTAN, criticada e marginalizada, há poucos dias se transformou em aliada; a abandonada Ucrânia, com o presidente ridicularizado por Trump, conta hoje com apoio político e recebe equipamentos de defesa antiaérea e inteligência de última geração. Essa frequente mudança de rumos teve uma exceção – a aliança incondicional com Israel e Netanyahu. De fato, as três guerras por ele criadas, para sua sobrevivência política – Hamas, Hezbollah e Irã – contaram com o beneplácito e até coordenação de Trump. Esse, para evitar protagonismo ainda maior de Netanyahu, se antecipou e lançou inédito e poderoso ataque direto contra a instalação nuclear de Fordow.
O caráter imprevisível da tarifa de 50% para produtos brasileiros está ligado às sucessivas indefinições de Trump nessa área. Entretanto, algumas mudanças - mais previsíveis- poderão resultar das eleições, em 2026, de meio de mandato, para renovar um terço do Senado e a Câmara inteira. Outro fator de alteração poderá ter sua origem em decisões judiciais, oriundas da Corte Suprema, contrárias a medidas do Executivo.
A tarifa de 50% contra o Brasil – caso mantida – deverá reprimir o mercado de maior valor agregado para nossas exportações – aço, aeronaves. As contrapropostas a serem apresentadas pelo Brasil para reduzir aquela tarifa deverão consistir em maior abertura de setores de nossa economia. Assim, o efeito negativo na balança comercial poderá ter contrapartida positiva, em termos de política econômica, ao promover alguma abertura -sem dúvida limitada - para a 11a maior economia, mas também uma das mais fechadas do mundo. Isso é visível em nossa relação comércio exterior/PIB, em torno de 24%, equivalente à metade da vigente nos vizinhos, e inferior à maioria das economias emergentes. Num prematuro clima eleitoral, o governo certamente será refratário a qualquer abertura e buscará preservar a política de compadrio - benefícios aos setores econômicos privilegiados por proteção tarifária, subsídios e isenções fiscais. Nesse ambiente, reforma só poderá mesmo vir de fora. E virá, por imposição econômica externa, e não por opção política.
A política econômica do segundo mandato de Trump poderá ter outra influência importante para a economia brasileira, ligada ao fluxo de investimento estrangeiro, à valorização do Real, à taxa de inflação e à taxa de juros. Sua reeleição gerou expectativas de continuidade do excepcionalismo americano - desregulamentação, crescimento econômico, elevada atração de investimentos estrangeiros. Isso resultou em aumento de 20% nas Bolsas de Valores nos dois últimos anos, que atingiram o recorde de US$ 52 trilhões. Mas a política tarifária de Trump frustrou essas expectativas e os investimentos migraram para as economias emergentes, o que resultou em valorização das bolsas de valores em diversas partes do mundo, inclusive na América Latina – Chile, Colômbia, México e Brasil. A forte entrada de investimento estrangeiro em nosso país elevou a taxa de crescimento, valorizou o Real, e contribuiu para baixa inflação.
Assim, os bons resultados da economia brasileira no último ano – 3,4% de crescimento, 5% de desemprego e inflação no teto da meta - foram muito mais obra da chamada rotação de carteira (mudança de destino de investimentos, derivada da obsessão tarifária de Trump), do que da política econômica brasileira. Mas esse fenômeno não é sustentável e o bônus terminará este ano, o que vai resultar em queda no investimento, com impacto negativo sobre os demais indicadores.
Para compensar esse ciclo descendente, o governo precisará fazer o que até agora se negou – controle do déficit público. Sem agenda fiscal de maior contenção de gastos, a relação dívida/PIB continuará a preocupante trajetória de acelerado crescimento, o que resultou na altíssima taxa de juros real de 10%. Vale lembrar que, de 1999 a 2003, o país produziu superavit primário anual de 3% a 4% do PIB, mas de 2013 a 2024, a relação dívida/PIB saltou de 50% para 82%. Esse cenário macroeconômico leva muitos analistas a estimar que a economia não aguenta mais dois anos de taxa de juros real situada entre 8% e 10%. Empresas de maior porte, com acesso ao mercado de capitais poderão sobreviver, mas muitas das médias e pequenas deverão desaparecer, e provocar forte crise econômica. Nesse sentido, o próximo governo eleito em 2026, independente da coloração política, será forçado a fazer o que até agora adiou - reforma fiscal com clara contenção de gastos.
Em síntese, uma avaliação dos efeitos da irracionalidade econômica de Trump sobre o Brasil revela dois momentos bem distintos. Um primeiro, em que a frustração de expectativas nos EUA gerou migração de investimentos para as economias emergentes, o que produziu bons indicadores em 2025. Um segundo momento, em que a tarifa norte-americana de 50% sobre produtos brasileiros – caso mantida- deverá deprimir nossas exportações, com efeitos imediatos negativos. Entretanto, na negociação para reduzir a tarifa, o Brasil será forçado a efetuar alguma abertura de mercado, o que poderá trazer resultados positivos para uma das economias mais fechadas do mundo, com elevada proteção tarifária, não tarifária, subsídios e isenções fiscais. No atual cenário eleitoral prematuro, é evidente que o governo não caminharia, por vontade própria, na direção de reduzir privilégios para setores econômicos. Mas deverá ser obrigado a fazê-lo no processo de negociação destinado a reduzir a absurda tarifa de 50% imposta pelo governo Trump. A absoluta irracionalidade lá poderá produzir alguma racionalidade cá.
Brasília, 15 de julho de 2025
Sergio Florencio