Bolsonaro dá guinada em propostas para Itamaraty e abraça o "globalismo" no programa de governo
Bolsonaro caminha na direção contrária de política diplomática empenhada pelo órgão nos últimos quatro anos
O Globo
Por André Duchiade — Rio de Janeiro
22/08/2022
Em agosto de 2018, o então candidato Jair Bolsonaro prometeu que, se chegasse ao Planalto, o Brasil abandonaria as Nações Unidas.
— Se eu for presidente eu saio da ONU, não serve para nada esta instituição — afirmou. — É uma reunião de comunistas, de gente que não tem qualquer compromisso com a América do Sul.
Na campanha à reeleição, o discurso sobre política externa deu um giro de 180 graus. No capítulo dedicado ao tema do programa de Bolsonaro entregue ao TSE, está o contrário do que se lia há quatro anos, isto é, uma enfática defesa do sistema internacional multilateral. O Brasil agora “se destaca como defensor histórico de uma ordem global multipolar, alicerçada no direito internacional e centrada na Carta das Nações Unidas”.
O abraço ao chamado “globalismo” — termo empregado pela extrema-direita mundial para se referir ao multilateralismo — contrasta não só com a campanha de há quatro anos, mas também com a prática diplomática liderada pelo presidente em boa parte de seu mandato, sobretudo quando o ex-chanceler Ernesto Araújo chefiava o Itamaraty.
Os planos para política externa dos demais principais candidatos à Presidência não trazem surpresas. Lula (PT) promete o resgate com poucas atualizações da linha adotada em seus dois governos, enquanto Ciro Gomes (PDT), especialmente, e Simone Tebet (MDB) são mais sucintos ou genéricos, numa evidência, na avaliação de alguns analistas, de que o tema terá pouco peso na disputa eleitoral deste ano.
O governo Bolsonaro em imagens
Se não chegou a tentar tirar o país da ONU, o governo Bolsonaro ainda assim mudou o rumo histórico da política externa brasileira. O discurso encampado por Araújo e outros assessores presidenciais denunciava a existência de uma “ditadura climática” global e buscava aproximar o país, por exemplo, da Hungria e da Polônia, onde houve ascensão da nova direita, em detrimento de China, Alemanha e França.
Bolsonaro mudou, e agora reconhece a crise climática, mas o ex-chanceler ainda pensa o mesmo. Após deixar o Itamaraty, Araújo criou um canal no YouTube em que critica a gestão mais moderada das relações internacionais pedindo que o país adote “posições pró-Ocidente” em questões como o conflito na Ucrânia.
Em 2022, o programa de governo promete continuar “seguindo o conceito universalista de nossa política externa”.
— Bolsonaro fez muitas promessas. Prometeu uma revolução e uma refundação do Itamaraty. Isso, no entanto, é muito difícil de fazer — avalia Dawisson Belém Lopes, professor de Política Internacional na UFMG. — O novo programa é a comprovação de que, depois uma política externa revolucionária que fracassou, o Itamaraty volta ao curso normal.
Das 48 páginas do programa de Bolsonaro, o capítulo “Política externa e defesa nacional” ocupa três e meia. Além da diplomacia, as propostas abordam a indústria de defesa e parcerias comerciais. O documento também diz que o “Brasil constitui parte incontornável da solução dos principais desafios do planeta”.
Discurso e prática
A despeito do tom mais baixo, um eventual segundo governo do candidato do PL terá o desafio de amenizar certo isolamento do país nos últimos anos. O atual governo tem a imagem arranhada em temas centrais da política global, como política ambiental e climática, direitos humanos e respeito à democracia. Para Carlos Milani, professor de Relações Internacionais do Iesp-Uerj, a solução estará menos na diplomacia e mais na prática do futuro governo.
— Uma imagem não se projeta só com palavras, mas sim com ações concretas. Como o Brasil vai dizer que é uma solução para os problemas do planeta enquanto aumenta o desmatamento? — indaga.
No programa de Lula, a linguagem do programa remete à empregada pelo Itamaraty durante os seus dois governos, quando o ministério esteve sob o comando de Celso Amorim. “Defender nossa soberania exige recuperar a política externa ativa e altiva que nos alçou à condição de protagonista global”, diz o documento. A cooperação com países do Sul Global, sobretudo na América Latina e na África, tem destaque. O documento também se refere ao fortalecimento de Mercosul, Unasul, Celac e Brics.
Segundo Milani, as promessas carecem de detalhamento sobre como conduzir essa política em um contexto global diferente, de rivalidade entre grandes potências.
— Não fica muito claro como o novo governo conceberá um retorno à cooperação estratégica sem pensar que o mundo mudou. A China ascendeu desde então, e agora não há mais nenhuma decisão que o Brasil tome sem que intervenha a rivalidade entre EUA e China, e às vezes entre EUA e Rússia — avalia. — Não fica claro quais são as ferramentas que tornarão essa política externa “ativa e altiva” factível. Não que não seja, mas não há explicação.
Além dos quatro parágrafos dedicados explicitamente à política externa no documento de 21 páginas, há vários temas que exigem negociações internacionais e aparecem de forma transversal ao longo do programa petista, como sustentabilidade, enfrentamento das mudanças climáticas e transição energética.
Há ainda uma inovação: o realce oferecido ao atendimento consular aos brasileiros fora do país. “São milhões de pessoas que trabalham, estudam e vivem fora do país e contribuem para a economia e desenvolvimento do Brasil. Retomaremos as políticas públicas para a população brasileira no exterior a partir de acordos bilaterais”, diz o texto. De acordo com Belém Lopes, a atenção à diáspora exprime uma busca por esse eleitorado.
— Em outros países, como o Equador, com frequência os candidatos vão fazer campanha no exterior. No Brasil, nunca se tentou mirar no eleitor expatriado — disse Belém Lopes. — O Brasil virou um país de emigrantes, com mais de 4 milhões de cidadãos vivendo fora. Estamos falando de 2% da população brasileira, e o PT percebeu essa mudança.
Entre outros candidatos, o programa de Ciro Gomes se caracteriza por uma ausência de trechos que abordem diretamente a política externa, com duas menções à noção de soberania nas negociações entre países. Assuntos internacionais aparecem em outros itens, como quando o documento se refere ao meio ambiente, ao fortalecimento de complexos industriais nacionais, a uma política de incentivo à cultura nacional e à intenção de transformar o Brasil em uma potência educacional.
No plano de Tebet as propostas aparecem numa página no eixo “Governo parceiro da iniciativa privada”. Com ênfase no comércio internacional, ela propõe “implementar plano de redução gradual de tarifas aduaneiras”. O texto defende ainda “consolidar e aprofundar o Mercosul”.
A despeito dos programas, que se tornaram menores e mais vagos nos últimos ciclos eleitorais, é improvável que a política externa vá desempenhar papel crucial nestas eleições, ao contrário de há quatro anos, quando Bolsonaro foi a Taiwan, hostilizou a China e deixou claro que se aproximaria do então líder americano Donald Trump.
— O tema externo deve aparecer bem pouco nas campanhas. Talvez um pouco no contexto ambiental, mas, de resto, não antecipo uma discussão mais ampla sobre a temática — afirmou Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da FGV-SP. — Em 2018, havia a narrativa anti-China, a promessa de aproximação a Trump, e também uma discussão proeminente sobre a Venezuela. Dessa vez, o Brasil está mais focado em assuntos internos, em questões econômicas e nas guerras culturais.
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