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segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Bolsonaro dá guinada em propostas para Itamaraty e abraça o "globalismo" no programa de governo - André Duchiade (O Globo)

 Bolsonaro dá guinada em propostas para Itamaraty e abraça o "globalismo" no programa de governo

Bolsonaro caminha na direção contrária de política diplomática empenhada pelo órgão nos últimos quatro anos

O Globo
Por André Duchiade — Rio de Janeiro
22/08/2022

Em agosto de 2018, o então candidato Jair Bolsonaro prometeu que, se chegasse ao Planalto, o Brasil abandonaria as Nações Unidas.

— Se eu for presidente eu saio da ONU, não serve para nada esta instituição — afirmou. — É uma reunião de comunistas, de gente que não tem qualquer compromisso com a América do Sul.

Na campanha à reeleição, o discurso sobre política externa deu um giro de 180 graus. No capítulo dedicado ao tema do programa de Bolsonaro entregue ao TSE, está o contrário do que se lia há quatro anos, isto é, uma enfática defesa do sistema internacional multilateral. O Brasil agora “se destaca como defensor histórico de uma ordem global multipolar, alicerçada no direito internacional e centrada na Carta das Nações Unidas”.

O abraço ao chamado “globalismo” — termo empregado pela extrema-direita mundial para se referir ao multilateralismo — contrasta não só com a campanha de há quatro anos, mas também com a prática diplomática liderada pelo presidente em boa parte de seu mandato, sobretudo quando o ex-chanceler Ernesto Araújo chefiava o Itamaraty.

Os planos para política externa dos demais principais candidatos à Presidência não trazem surpresas. Lula (PT) promete o resgate com poucas atualizações da linha adotada em seus dois governos, enquanto Ciro Gomes (PDT), especialmente, e Simone Tebet (MDB) são mais sucintos ou genéricos, numa evidência, na avaliação de alguns analistas, de que o tema terá pouco peso na disputa eleitoral deste ano.

O governo Bolsonaro em imagens

Se não chegou a tentar tirar o país da ONU, o governo Bolsonaro ainda assim mudou o rumo histórico da política externa brasileira. O discurso encampado por Araújo e outros assessores presidenciais denunciava a existência de uma “ditadura climática” global e buscava aproximar o país, por exemplo, da Hungria e da Polônia, onde houve ascensão da nova direita, em detrimento de China, Alemanha e França.

Bolsonaro mudou, e agora reconhece a crise climática, mas o ex-chanceler ainda pensa o mesmo. Após deixar o Itamaraty, Araújo criou um canal no YouTube em que critica a gestão mais moderada das relações internacionais pedindo que o país adote “posições pró-Ocidente” em questões como o conflito na Ucrânia.

Em 2022, o programa de governo promete continuar “seguindo o conceito universalista de nossa política externa”.

— Bolsonaro fez muitas promessas. Prometeu uma revolução e uma refundação do Itamaraty. Isso, no entanto, é muito difícil de fazer — avalia Dawisson Belém Lopes, professor de Política Internacional na UFMG. — O novo programa é a comprovação de que, depois uma política externa revolucionária que fracassou, o Itamaraty volta ao curso normal.

Das 48 páginas do programa de Bolsonaro, o capítulo “Política externa e defesa nacional” ocupa três e meia. Além da diplomacia, as propostas abordam a indústria de defesa e parcerias comerciais. O documento também diz que o “Brasil constitui parte incontornável da solução dos principais desafios do planeta”.

Discurso e prática

A despeito do tom mais baixo, um eventual segundo governo do candidato do PL terá o desafio de amenizar certo isolamento do país nos últimos anos. O atual governo tem a imagem arranhada em temas centrais da política global, como política ambiental e climática, direitos humanos e respeito à democracia. Para Carlos Milani, professor de Relações Internacionais do Iesp-Uerj, a solução estará menos na diplomacia e mais na prática do futuro governo.

— Uma imagem não se projeta só com palavras, mas sim com ações concretas. Como o Brasil vai dizer que é uma solução para os problemas do planeta enquanto aumenta o desmatamento? — indaga.

No programa de Lula, a linguagem do programa remete à empregada pelo Itamaraty durante os seus dois governos, quando o ministério esteve sob o comando de Celso Amorim. “Defender nossa soberania exige recuperar a política externa ativa e altiva que nos alçou à condição de protagonista global”, diz o documento. A cooperação com países do Sul Global, sobretudo na América Latina e na África, tem destaque. O documento também se refere ao fortalecimento de Mercosul, Unasul, Celac e Brics.

Segundo Milani, as promessas carecem de detalhamento sobre como conduzir essa política em um contexto global diferente, de rivalidade entre grandes potências.

— Não fica muito claro como o novo governo conceberá um retorno à cooperação estratégica sem pensar que o mundo mudou. A China ascendeu desde então, e agora não há mais nenhuma decisão que o Brasil tome sem que intervenha a rivalidade entre EUA e China, e às vezes entre EUA e Rússia — avalia. — Não fica claro quais são as ferramentas que tornarão essa política externa “ativa e altiva” factível. Não que não seja, mas não há explicação.

Além dos quatro parágrafos dedicados explicitamente à política externa no documento de 21 páginas, há vários temas que exigem negociações internacionais e aparecem de forma transversal ao longo do programa petista, como sustentabilidade, enfrentamento das mudanças climáticas e transição energética.

Há ainda uma inovação: o realce oferecido ao atendimento consular aos brasileiros fora do país. “São milhões de pessoas que trabalham, estudam e vivem fora do país e contribuem para a economia e desenvolvimento do Brasil. Retomaremos as políticas públicas para a população brasileira no exterior a partir de acordos bilaterais”, diz o texto. De acordo com Belém Lopes, a atenção à diáspora exprime uma busca por esse eleitorado.

— Em outros países, como o Equador, com frequência os candidatos vão fazer campanha no exterior. No Brasil, nunca se tentou mirar no eleitor expatriado — disse Belém Lopes. — O Brasil virou um país de emigrantes, com mais de 4 milhões de cidadãos vivendo fora. Estamos falando de 2% da população brasileira, e o PT percebeu essa mudança.

Entre outros candidatos, o programa de Ciro Gomes se caracteriza por uma ausência de trechos que abordem diretamente a política externa, com duas menções à noção de soberania nas negociações entre países. Assuntos internacionais aparecem em outros itens, como quando o documento se refere ao meio ambiente, ao fortalecimento de complexos industriais nacionais, a uma política de incentivo à cultura nacional e à intenção de transformar o Brasil em uma potência educacional.

No plano de Tebet as propostas aparecem numa página no eixo “Governo parceiro da iniciativa privada”. Com ênfase no comércio internacional, ela propõe “implementar plano de redução gradual de tarifas aduaneiras”. O texto defende ainda “consolidar e aprofundar o Mercosul”.

A despeito dos programas, que se tornaram menores e mais vagos nos últimos ciclos eleitorais, é improvável que a política externa vá desempenhar papel crucial nestas eleições, ao contrário de há quatro anos, quando Bolsonaro foi a Taiwan, hostilizou a China e deixou claro que se aproximaria do então líder americano Donald Trump.

— O tema externo deve aparecer bem pouco nas campanhas. Talvez um pouco no contexto ambiental, mas, de resto, não antecipo uma discussão mais ampla sobre a temática — afirmou Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da FGV-SP. — Em 2018, havia a narrativa anti-China, a promessa de aproximação a Trump, e também uma discussão proeminente sobre a Venezuela. Dessa vez, o Brasil está mais focado em assuntos internos, em questões econômicas e nas guerras culturais.

https://oglobo.globo.com/politica/eleicoes-2022/noticia/2022/08/bolsonaro-da-guinada-em-propostas-para-itamaraty-e-abraca-o-globalismo-no-programa-de-governo.ghtml


quarta-feira, 25 de maio de 2022

‘ As áreas de influência não existem mais', diz embaixador da União Europeia no Brasil - André Duchiade (O Globo)

'As áreas de influência não existem mais', diz embaixador da União Europeia no Brasil

Em entrevista ao Globo, Ignacio Ybáñez reitera que desmatamento impede avanço de acordo comercial, pede para Brasil se somar às sanções e critica declarações de Lula

Por André Duchiade — Rio de Janeiro
O Globo, 25/05/2022 04h30  Atualizado há uma hora

Embaixador da União Europeia (UE) no Brasil, o espanhol Ignacio Ybáñez é um diplomata franco. Em entrevista ao GLOBO no Rio, onde esteve para um seminário na PUC-Rio na semana passada, ele reconhecer incongruências na política imigratória europeia e faz análises sobre a política externa russa com a experiência de quem foi embaixador em Moscou quando integrava o corpo diplomático da Espanha. Assim como o fez no começo da guerra, Ybáñez também pede para o Brasil se somar às sanções contra a Rússia — segundo ele, o caminho mais rápido para restabelecer a normalidade internacional. Também afirma que o desmatamento impede o avanço do Acordo Comercial entre Mercosul e UE, critica a recente declaração do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva equiparando os líderes de Rússia e Ucrânia e assegura a confiança europeia no sistema de votação eletrônica brasileiro.

A Comissão Europeia deu sinais de que a Ucrânia poderia ser aceita na União Europeia por meio de um processo de admissão rápido. No entanto, vários países, incluindo Alemanha e França, já deixaram claro que isso não irá acontecer. Por que a UE alimentou estas esperanças?
Para ser membro da UE é necessário cumprir requisitos bem importantes: ser europeu, mas também ser uma democracia onde o Estado de direito funcione, onde haja um sistema Judiciário que funcione perfeitamente, onde haja mecanismos para o controle da corrupção. O processo nunca é de um dia para outro, é realmente necessário cumprir uma longa série de avaliações e ajustar políticas. O processo é conduzido pela Comissão Europeia, mas os Estados-membros sempre têm a palavra. O importante é quando a UE reconhece um país como candidato, e isso é o que pode acontecer no caso da Ucrânia. Ninguém falou nunca que a adesão seria repentina.

E como a Comissão Europeia vê a admissão ucraniana?
O importante para nós é, em primeiro lugar, combater a ideia de que existem áreas de influência, e que portanto há limitações de quem quer que pode ser membro. Essas áreas de influência já não existem mais. Existia no tempo da União Soviética e dos Estados Unidos; nós, como europeus, não gostávamos dessa situação, e agora gostamos ainda menos. Os países têm a liberdade de escolher em qual grupo querem entrar e se associar. O fato de que a sociedade da Ucrânia demonstrar uma vontade determinada para aderir à UE é muito gratificante e positivo, por vir de um país que tinha um sistema bem diferente, tendo feito parte da União Soviética. É gratificante que queiram fazer uma transformação tão grande.

Como as declarações do ex-presidente Lula à revista Time equiparando Zelensky a Putin foram recebidas em Bruxelas e em outras capitais europeias?
Qualquer declaração que põe no mesmo patamar o país agressor e o país agredido não é aceitável para nós. No âmbito privado, quando há uma pessoa que agride outra, as condições entre elas são diferentes. No caso dos países acontece a mesma coisa. Nós não compreendemos, portanto. Podemos compreender que haja uma vontade, por países não europeus, de tentar encontrar soluções para uma crise que logicamente afeta o mundo inteiro. Essa vontade que o presidente Lula expressou de tentar encontrar uma solução é também a nossa. Mas é importante atribuir a responsabilidade correta a cada ator, e o país que precisa tomar uma ação para restituir a legalidade internacional é a Rússia. Se a Rússia mudar de comportamento e parar sua agressão, todos nós, europeus, e seguramente também o Brasil, estaremos preparados para nos sentar e discutir como responder às preocupações, inclusive algumas que podem ser legítimas, da Rússia.

Qual seria uma política brasileira, em termos concretos, que a União Europeia gostaria de ver em relação à Ucrânia?
Algumas delas o Brasil já faz. Para nós é muito importante manter a unidade da comunidade internacional na condenação à agressão da Rússia, e vimos isso nas vezes em que tivemos uma votação no Conselho de Segurança, com o Brasil votando nessa direção. Avaliamos muito positivamente o Brasil no Conselho de Segurança. Na Assembleia Geral, também os votos do Brasil foram positivos, foram sempre na mesma direção. Somente em alguns organismos não concordamos com a posição do Brasil, como o voto sobre a expulsão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos, no qual o Brasil se absteve.

E no âmbito das sanções?
O Brasil não acredita nas sanções, não somente nesta questão, mas em outras. Queremos convencê-lo de que as sanções são o caminho mais curto para chegar ao ponto aonde queremos chegar. Queremos restabelecer a legalidade internacional, e pensamos que, quanto maior a pressão sobre a Rússia agora, mais probabilidade temos de que o conflito seja curto. Ao contrário, se não exercemos a pressão, o conflito pode durar anos e o efeito sobre a Ucrânia vai ser devastador, e também sobre o conjunto da comunidade internacional, porque há muitíssimas coisas que precisam funcionar bem, como as Nações Unidas e o G20, que não vão poder cumprir a sua função.

A recepção na UE aos refugiados que saem da Ucrânia tem sido muito diferente do que vimos em outras crises, como por exemplo na crise síria em 2015. Essa diferença não prejudica a imagem europeia?
O tema dos refugiados e da migração é sempre muito delicado. É fácil fazer juízos de valor, mas difícil cumprir os valores que nos promovem. Há um fator de integração, que é importante, e também, eu diria, da percepção da opinião pública em cada um dos momentos. É normal haver uma maior compreensão de um conflito em um país vizinho do que de algo muito distante.A crise ucraniana é muito mais uma crise europeia do que a crise na Síria, por exemplo. Isso não é bom do ponto de vista moral, mas é compreensível do ponto de vista humano. Mas a solidariedade europeia à população da Síria foi importante, a UE continua a ser uma das regiões que recebeu o maior número de pessoas refugiadas de lá. Podemos fazer mais, é verdade, mas temos que ter ciência de que chegadas massivas de refugiados acarretam em problemas de integração E, logicamente, populações culturalmente mais próximas são mais fáceis de integrar. Por exemplo, no caso da Espanha, a migração que chega dos países da América Latina é muito mais facilmente integrável, porque falam o mesmo idioma e tem uma cultura muito mais próxima do que uma pessoa vinda de um país africano com outro idioma ou outros costumes.

Moscou se recusa a falar com Bruxelas, sempre preferindo conversar diretamente com os Estados-membros. Em fevereiro de 2021, o chanceler russo, Sergei Lavrov, desrepeitou Josep Borrell, o principal diplomata da UE, em uma visita à Rússia. Quais são os limites à atuação da UE nesta crise?
Fui embaixador da Espanha na Rússia, e conheço essas ações. Elas são usadas pelo ministro Lavrov com o objetivo de criar uma divisão dentro da União Europeia. Ao preferir falar com os Estados do que com a União, ele acredita que divide o grupo. No caso da guerra, a Rússia errou esse cálculo. Erraram quando estavam convencidos de que a ofensiva levaria dias ou no máximo semanas, e seriam recebidos como libertadores em Kiev. Mas também erraram quando estavam convencidos de que a UE ia se dividir, que cada um dos países atuaria por conta própria. A Rússia recebeu a melhor lição que um político pode receber, a de que as suas teorias não são reais. A UE demonstrou uma unidade enorme. Agora todos compreendem os desafios que muitos países já falavam antes. Em 2014, o Ministro das Relações Exteriores da Polônia falava de uma possível invasão a Kiev, e os outros ministros pensavam ser um exagero. A unidade que estamos demonstrando, entre UE, EUA, Canadá, Suíça, e também os países da América Latina condenando a agressão da Rússia é a melhor demonstração de que a multilateralidade também serve para defender valores.

Nas últimas semanas vimos uma mudança de objetivo estratégico de Washington. Agora há explicitamente a estratégia de enfraquecer a Rússia. A UE corrobora essa meta?
A UE tem a plena convicção de que é necessário que o custo desta agressão seja o mais alto possível, adotado o mais rapidamente possível. Estamos convencidos que se deixarmos a situação sem uma reação internacional, a Rússia vai continuar com essa política. Hoje pode anexar uma parte da Ucrânia, mas amanhã pode ir além. O que queremos é que nossas sanções mudem o comportamento da Rússia. São medidas que queremos que sejam focadas, para que não haja muito dano à população russa, e sim para a liderança. Estamos tentando focar em setores particulares, como a energia, ou então reduzir a capacidade da Rússia de financiar a guerra, e também limitar as operações dos seus bancos. Todas as questões que achamos que podem ser tomadas, e se for por um número maior de países, melhor.

Na semana passada, os EUA removeram algumas sanções relacionadas à Venezuela. Podemos esperar alguma aproximação da União Europeia?
Sempre mantivemos a convicção de que a solução para a situação da Venezuela só é possível a partir dos próprios venezuelanos, não chegando de fora. Ou seja, o regime e a oposição precisam negociar uma negociação e trabalhar juntos. Nenhuma solução sustentável vai chegar de fora. Essa era a intenção do Grupo de Contato Internacional no México, e o diálogo parou por conta do regime. Todos os passos para a redemocratização são bem vindos e estamos abertos para a discussão, mas ela precisa incluir a oposição. Ouvi falar muito sobre essas conversas entre o regime e os americanos. Quando pergunto aos americanos, respondem que o objetivo continua a ser o apoio ao restabelecimento da democracia e a volta do regime para a mesa de negociação. Então, se for isso, continuamos no mesmo caminho. Acreditamos que o Brasil tem um papel muito relevante a desempenhar nesse diálogo. É verdade que o governo Bolsonaro decidiu cortar vínculos e tirar a embaixada, mas avaliamos que o Brasil tem um papel a cumprir.

Como o senhor explica que o acordo entre União Europeia e Mercosul não tenha andado até agora?
O acordo é a nossa aposta para o futuro. Acreditamos 100% nele, tanto que não queremos mudar nenhuma vírgula, e não queremos reabrir as negociações. Mas é verdade que há uma percepção na Europa, no Parlamento Europeu e em muitos Estados-membros, de que é difícil finalizar e assinar um acordo se uma das partes começa a ir contra os princípios do acordo antes mesmo de sua entrada em vigor. Desse ponto de vista, é importante que o Brasil cumpra seu compromisso com o Acordo de Paris. Os números do desmatamento impedem o Brasil de cumpri-lo. Há uma demanda da opinião pública europeia, e também de vários governos, de que precisamos ter garantias maiores por parte do Brasil. A participação do Brasil na COP-26, com o compromisso de zerar o desmatamento ilegal até 2028, foi em uma boa direção. O que faltam são os resultados. É muito difícil dizer que o Brasil acredita no Acordo de Paris se todos os meses os números do desmatamento aumentarem. É verdade que a guerra torna ainda mais importante fechar acordos comercial, mas não os faremos em detrimento dos valores.

Recentemente, o TSE desistiu de convocar observadores eleitorais da UE para as eleições de outubro. Como a UE vê essa desistência?
É o Brasil que deve pedir os observadores. Nós estamos à espera. Tivemos primeiro uma petição do TSE, e demonstramos vontade de aceitar, mas em seguida o TSE, depois de conversas com o governo, decidiu retirá-la. A situação europeia é que já não existe um pedido brasileiro de observação. Nós não entramos no debate interno. Vamos acompanhar o processo eleitoral, sabemos que o Brasil é uma democracia que funciona bem, que tem um sistema de voto eletrônico que tem funcionado muito bem. Acreditamos nesse sistema. Desejamos que seja um processo aberto, transparente, no qual se respeitem os resultados.

https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2022/05/as-areas-de-influencia-nao-existem-mais-diz-embaixador-da-uniao-europeia-no-brasil.ghtml

domingo, 2 de maio de 2021

O Brasil e a frustrada invasão de Cuba em 1961 pelos exilados cubanos orquestrados pela CIA - André Duchiade, James Hershberg e Joseph Zelikow (National Security Archive)

Documentos indicam que João Goulart atuou como mediador secreto entre Kennedy e Fidel Castro

A pedido de Washington, governo brasileiro tomou medidas para evitar execuções de prisioneiros da fracassada invasão da Baía dos Porcos, revelam telegramas descobertos por historiador americano; independência da política externa da época qualificou o Brasil como intermediário

André Duchiade

O Globo, 29/04/2021 - 18:17 / Atualizado em 29/04/2021 - 22:16

https://oglobo.globo.com/mundo/documentos-indicam-que-joao-goulart-atuou-como-mediador-secreto-entre-kennedy-fidel-castro-1-24994882

Em abril de 1962, um ano depois da fracassada tentativa de invasão da Baía dos Porcos por exilados cubanos patrocinados pelos EUA, o então presidente brasileiro João Goulart atendeu a um pedido do seu homólogo americano John F. Kennedy e intercedeu junto ao líder cubano Fidel Castro para evitar as execuções dos 1.200 prisioneiros envolvidos na operação.

A descoberta foi revelada nesta quinta-feira pelo National Security Archive, instituição de pesquisa ligada à Universidade de George Washington, e tem como fontes documentos inéditos do Itamaraty, do Departamento de Estado americano e (minoritariamente) de Cuba. A pesquisa foi conduzida pelo historiador James Hershberg, da mesma universidade.

Os telegramas secretos, analisados em um artigo publicado no mês em que a tentativa de invasão completa 60 anos, permitem vislumbrar como o Brasil atuou sigilosamente como intermediário entre Washington e Havana em um momento de rompimento diplomático total entre as duas capitais. Também permitem entender como a posição de independência internacional do Brasil permitiu que o país exercesse influência frente aos dois governos, desempenhando importante papel para evitar um conflito.

O estudo se centra em um curto período, entre o final de março e o começo de abril de 1962, quando Havana se preparava para levar a um tribunal especial os 1.179 prisioneiros envolvidos na operação, que enfrentavam acusações de traição e poderiam ser condenados à morte. Kennedy, que herdara os planos da invasão de seu antecessor Dwight Eisenhower, tinha grande interesse na libertação dos detidos, e tentou interceder buscando canais com a então Tchecoslováquia, o Vaticano, o Chile e o México.

Segundo Hershberg, o “Brasil desempenhava um papel especial — não apenas por seu tamanho e importância na América do Sul, mas porque seu líder, o presidente João Goulart, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), de centro-esquerda, estava prestes a visitar os Estados Unidos para uma cúpula com presidente Kennedy no início de abril, e buscava obter ajuda econômica dos EUA — e, portanto, tinha um incentivo para fazer um favor a Washington”.

A pesquisa ressalta outro fator que punha o Brasil em posição privilegiada para mediar essa negociação: “Goulart e seu ministro das Relações Exteriores, San Tiago Dantas, tinham preservado laços amigáveis com Havana ao resistir fortemente à pressão dos EUA por severas sanções anti-Cuba”, sobretudo na conferência de chanceleres da OEA no Uruguai em janeiro daquele ano. Na conferência, Cuba foi suspensa da organização, e o Brasil se absteve na votação.

O contato inicial com o governo brasileiro foi feito a partir de Roberto Campos, então embaixador em Washington, que foi contatado, no dia 23 de março, por José Miró, ex-primeiro-ministro cubano, líder da oposição no exílio a Fidel e colaborador da CIA. Naquela mesma noite, o Itamaraty ordenou ao embaixador em Cuba, Luiz Bastian Pinto, que comunicasse imediatamente ao governo de Havana que Brasília desejava o adiamento do julgamento por 30 dias — prazo necessário para Goulart empreender a sua viagem a Washington.

No dia 27 de março, o chanceler cubano Raúl Roa respondeu ao enviado brasileiro que adiar o julgamento não era uma opção, pois anularia uma decisão governamental “de grande gravidade”. Roa incluiu no entanto uma ressalva: “Cuba responderia afirmativamente se Goulart fizesse um apelo público de clemência”, no qual se referisse explicitamente à "magnanimidade ou generosidade" dos "vencedores". Havana, acrescentou, "não responderia a nenhum tipo de apelo feito por qualquer chefe de Estado que não o presidente Goulart".

O julgamento, conduzido em uma fortaleza colonial do século XVIII, começou dois dias depois, uma quinta-feira. Na sexta, o encarregado de negócios americano no Brasil, Niles Bond, que atuava como embaixador em exercício, tomou conhecimento, por meio de informantes no Itamaraty, das exigências cubanas. Em um telegrama a Washington, ele disse que Havana via a iniciativa brasileira com “simpatia”, mas impusera “uma pura chantagem” como condição para ceder. A resposta cubana, disse Bond, fora recebida “com profunda irritação” pelo governo brasileiro, “incluindo o próprio presidente”.

O avanço do julgamento, no entanto, reforçou a preocupação americana, que intensificou os contatos com Campos em Washington. Um comunicado do conselheiro de Kennedy Richard Goodwin transmitido à embaixada brasileira afirmava que “além dos motivos humanitários para evitar a execução de prisioneiros, o presidente Kennedy se preocupa [com] o efeito exacerbante que a execução pode ter na opinião pública americana, [que vinha] ficando mais tranquila e menos emocional em relação a Cuba". A mensagem foi recebida pelo governo brasileiro como um recado direto de Kennedy.

Segundo o estudo do National Security Archive, “apesar de aparentemente se ressentir das condições cubanas anteriores, Goulart, prestes a visitar Washington, dificilmente podia resistir ao apelo interpresidencial direto de Kennedy, transmitido por seu associado íntimo, do topo dos EUA”. A embaixada respondeu que o chanceler San Tiago Dantas estava redigindo um texto a ser assinado por Goulart com um pedido público por clemência.

A carta de Jango, destinada ao presidente cubano Osvaldo Dorticós e ao então premier Fidel, foi enviada no dia 2 de abril, mesmo dia em que ele embarcou rumo a Washington, sendo distribuída também a jornais brasileiros. Sem que os EUA soubessem, a missiva fora cuidadosamente redigida para atender às condições impostas por Havana, incluindo referências à "magnanimidade" e à “vitória” cubana:

“Movido por sentimentos de solidariedade humana que unem todos os povos americanos, tomo a liberdade de dirigir a vossas excelências um apelo de todo o povo brasileiro para que a magnanimidade seja fator decisivo na condenação de pessoas presas na praia de Girón por ocasião de invasão a Cuba”, dizia o texto. “Estou certo de que vossas excelências cuidarão desse assunto conduzido com a clemência que sempre caracteriza a atitude do vencedor para com o irmão derrotado”.

A resposta pública de Havana veio dois dias depois. Dizia que o país esperara por uma indenização americana em função da invasão, que não viera. Acrescentava que, embora o processo fosse avançar, o “apelo à magnanimidade da Cuba revolucionária, em nome do povo brasileiro, e no momento em que se prepara a nação soberana de Cuba para julgar os fatos, pesará muito na mente do povo e do tribunal que tem a decisão em suas mãos”.

A sentença veio no domingo seguinte, 8 de abril, enquanto Goulart viajava pelos Estados Unidos após se encontrar com Kennedy. Os invasores foram considerados culpados, mas escaparam da pena de morte: a sentença era de 30 anos de prisão, ou uma indenização de US$ 62 milhões. A ditadura cubana evitara matar os prisioneiros, deixando uma porta aberta para obter recursos importantes ao novo regime, que de fato viriam mais tarde: em dezembro, os prisioneiros seriam libertados em troca de US$ 53 milhões em comida, remédios e outros itens humanitários.

O estudo cita ainda uma outra informação não confirmada: no dia 12 de abril, os colunistas de Washington Robert Allen e Paul Scott publicaram no Miami News que Goulart havia enviado uma mensagem secreta a Fidel Castro, na qual teria citado “um apelo de emergência de Washington”. O texto acrescentava que Goulart teria dito a Fidel que, se as vidas dos prisioneiros fossem poupadas, “Kennedy continuaria a seguir uma política de 'não intervenção' estrita nos assuntos internos de Cuba". A previsão se provou falsa; ainda em março, Kennedy aprovou a operação Mongoose, com o objetivo de derrubar o regime cubano.

No final do artigo, o historiador Hershberg afirma que o episódio “ofereceu ao governo Kennedy um lembrete oportuno da utilidade potencial da Embaixada do Brasil em Havana — ao contrário dos desejos de alguns funcionários linha-dura dos EUA, que preferiam que o Brasil simplesmente cortasse relações diplomáticas com Cuba”.

Em outubro de 1962, Kennedy ainda buscaria intermediação diplomática do Brasil durante a crise dos mísseis nucleares. As relações entre as partes se deterioriam com o tempo, e, em 1963, Kennedy consideraria apoiar um golpe contra Jango, para evitar "o surgimento de uma nova Cuba no hemisfério". A utilidade do Brasil para negociar com Havana chegaria ao fim com o golpe de 1964, apoiado por Washington.

Segundo Hershberg, antes disso, contudo, o Brasil “pode ter desempenhado um papel importante na limitação do confronto entre EUA e Cuba em um momento perigoso, influenciando Fidel a salvaguardar e, eventualmente, libertar os prisioneiros da Baía dos Porcos (...) evitando assim um ato que poderia muito bem ter desencadeado uma crise e potencialmente uma intervenção militar dos EUA 

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Zelikow response to National Security Archive: Saving the Bay of Pigs Prisoners: Did JFK Send a Secret Warning to Fidel Castro – through Brazil?

by Philip Zelikow
H-Diplo, May 1, 2021

Jim Hershberg's useful documentary compilation adds important context to a critical, yet largely overlooked, episode in President John F. Kennedy's thinking about Fidel Castro and Cuba in March-April 1962. At this time Kennedy made it clear to the leader of the Cuban exiles that the U.S. would not invade Cuba to help them overthrow Castro's government. This news deflated hopes among the exiles, causing considerable anger. Hershberg's work adds a vital clue about why Kennedy took this stance at that time.

In the National Security Archive's new briefing book (#758, 29 April 2021), Hershberg posts documents explaining that, in late March 1962, Kennedy and his key Latin American aide, Dick Goodwin, were very concerned that Castro's government was about to execute a group of Cuban rebels that had been captured in the failed CIA-sponsored invasion of Cuba at the Bay of Pigs in April 1961. These executions would inflame American opinion against Castro. 

On March 16, Kennedy reviewed the guidelines for the CIA program against Castro, Operation Mongoose, He allowed contingency plans to proceed but "expressed skepticism that in so far as can now be foreseen circumstances will arise that would justify and make desirable the use of American forces for overt military action." [Ed. note, "Guidelines for Operation Mongoose," _FRUS_ 1961-1963, vol. 10, doc. 314]. 

On March 28 or 29, the head of the Cuban exiles and their Cuban Revolutionary Council, Jose Miro Cardona, met at the White House with Kennedy's national security adviser, McGeorge Bundy. Hershberg notes this meeting and their discussion about Castro's possible execution of the captives. Cardona and his colleagues pleaded for enough help to invade Cuba and overthrow Castro. Bundy pushed back. He told them that any such action had to be decisive and complete. That meant open involvement of U.S. armed forces. "This," he said, "would mean open war against Cuba which in the U.S. judgment was not advisable in the present international situation." Cardona did not like this answer. He regarded Bundy's stance as "polite but cold." [Memcon, 29 March 1962, _FRUS_ 1961-1963, vol. 10, doc. 317 (drafted on March 13, according to the _FRUS_ editors, but this seems unlikely; Cardona, the next year, dated the meeting as occurring on March 28); Cardona resignation letter, 9 April 1963, Wilson Center Digital Archive]. 

On March 29, there was a meeting of the overseers of the CIA Mongoose program. This was a disagreeable meeting in which it was agreed that the U.S. might arrange some deal to get release of the Cuban captives, offering U.S. supplies of food. This decision overrode the objections of the CIA director, John McCone, and the CIA's Mongoose manager, William Harvey. McCone was frustrated at this time, pushing for American military intervention in Cuba. [Memo for the Record, _FRUS_, vol. 10, doc. 318, also doc 319].

Enter Hershberg's findings. Hershberg explains that Dick Goodwin (whom the Cuban exiles disliked) was managing the issue of how to save the captives. The same day, March 29, Bundy and Goodwin agreed that Goodwin would approach Brazil's leader, who was about to visit the White House, and seek his help. Goodwin worked this through the Brazilian ambassador on March 30. In that meeting, Goodwin explained how the executions of the captives would inflame American opinion at a time when Kennedy felt American opinion was "getting more tranquil and less emotional in relation to Cuba." [Hershberg text accompanying note 27, referring to doc. 9 in his EBB].

On April 2, Brazil's president, Joao Goulart, publicly appealed to Castro to spare the captives. Hershberg notes that a pair of journalists for the _Miami News_ later disclosed that this public appeal was accompanied by a secret message from Brazil to Cuba, coming out of the Goodwin channel. In this secret message, the Brazilians reportedly relayed Goodwin's message that execution might cause a harsh U.S. reaction, while clemency might tilt Kennedy against intervention. [Hershberg text accompanying notes 34-37].

On April 8, Cuba announced the sentence -- the captives would be spared. What later ensued was a set of negotiations involving the U.S. lawyer James Donovan, working with Goodwin, that did eventually produce a deal that exchanged American goods for the release of the Cuban captives.

Hershberg speculates about the significance of this secret U.S. offer relayed through Brazil. But he does not comment on the immediate sequel, which certainly adds credence to his speculation.

Two other journalists at the _Miami News_ had arranged for the frustrated head of the Cuban exiles, Cardona, to meet with Robert Kennedy. He promised help on the captives. He arranged for Cardona and his colleagues to meet directly with President Kennedy, on April 10.

On April 10, Cardona met with JFK for an hour. Robert Kennedy and Goodwin were there. A year later, Cardona claimed that JFK had urged the Cubans to keep training their forces, that "your destiny is to suffer" but "do not waver." [Cardona resignation letter, April 1963]. Goodwin's record at the time is different. At this meeting, Kennedy specifically rebuffed Cardona's plea that the U.S. commit itself to intervene in support of another rebel invasion. [Goodwin to JFK, 14 April 1962, and Passavoy to Record, "Topics Discussed during Meeting of Dr. Miro Cardona with the President," 25 April 1962, both in NSF, box 45, Cuba: Subjects, Miro Cardona, Material sent to Palm Beach, JFK Library]. The _FRUS_ editors unfortunately did not include these documents, which record the only meeting in 1962 between JFK and the leader of the Cuban exiles. I published this information in 1999 [_Essence of Decision_, Pearson, revised edition, with Graham Allison, 84 and 132, n. 26) and 2000 ("American Policy in Cuba, 1961-1963," _Diplomatic History_, 24:2, 321)].

There is no question that Kennedy's deflating message to Cardona reinforced what the State Department's Cuban desk officer called the "deep sense of frustration and impatience" in the Cuban exile community "over what it considers 'inactivity' regarding the overthrow of the Castro regime." Cardona came under internal attack because he had "failed to convince the United States to embark on a military operations program." Cardona considered resigning. [Hurwitch to Martin, 19 April 1962, _FRUS_, doc. 329].

In sum, if Hershberg's findings are added to the wider context -- Kennedy's March-April 1962 rejection of both Cuban exile and CIA pleas for a more aggressive U.S. policy against Castro -- his hypothesis seems right. Kennedy, through Goodwin and with the help of the Brazilians, does appear to have communicated, accurately, that Castro's decision on whether to spare the captives was coming at a pivotal moment in U.S. policy, and could reinforce a growing trend against direct U.S. intervention.

It is also important to notice that Castro's intelligence service had penetrated the Cuban exile community and therefore was presumably well aware of their unease and frustration about U.S. plans. According to senior former Cuban intelligence officials, at this time, in April-May 1962, Cuban intelligence concluded that it did not fear a U.S. invasion of Cuba. And the Soviet leadership had already approved, on April 12, a strong defensive arms package for Cuba, despite Castro's actions against the pro-Soviet leader of Cuba's Communist Party. 

Thus, when Khrushchev decided more than a month later, at the end of May, to deploy a force of ballistic missiles to Cuba, Castro assumed that the Soviet leader was doing this for other, global, reasons. I have argued elsewhere that these had much to do with the final phase of the Berlin crisis. This background helps explain why the KGB resident in Havana thought Castro would say no to the Soviet missile request. But, in fact, Castro was willing to take the missiles out of a sense of socialist solidarity. [On the Cuban intelligence views, see Domingo Amuchastegui, "Cuban Intelligence and the October Crisis," in James Blight and David Welch, eds., _Intelligence and the Cuban Missile Crisis_ (Routledge, 1988); see generally the revised _Essence of Decision_, 84-88, including the cited recollections of Fidel Castro himself and other Cuban leaders compiled between 1989 and 1992]. 

Hershberg's findings about the U.S.-Brazilian diplomacy and Castro's well-judged decision to spare the Bay of Pigs captives thus add an important new layer of understanding to this fascinating story.

Philip Zelikow
University of Virginia


segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Brasil utiliza há mais de 60 anos criptografia de empresa que era controlada pela CIA - André Duchiade (Globo)

 Brasil utiliza há mais de 60 anos criptografia de empresa que era controlada pela CIA, revelam documentos


Registros encontrados por pesquisadores em arquivos brasileiros e americanos mostram que vários órgãos do Estado adquiriram equipamentos da Crypto AG. A última compra conhecida foi para o programa de submarinos convencionais; Marinha afirma que nunca teve motivos para suspeitar da companhia

André Duchiade
O Globo, 22/11/2020

Durante mais de seis décadas, dos anos 1950 a 2018, a empresa de criptografia suíça Crypto AG forneceu a 120 países do mundo aparelhos de comunicação secreta, sem nunca revelar que tinha vínculos com a CIA. Enquanto chefes de Estado, líderes militares e diplomatas trocavam mensagens de alta importância estratégica acreditando estar em sigilo, na verdade eram espionados por agentes americanos e, na maior parte do tempo, por seus parceiros alemães.

A Marinha, o Exército e o Itamaraty estiveram entre os clientes da empresa, mostram documentos inéditos descobertos por pesquisadores brasileiros e repassados ao GLOBO. Começando na década de 1950 e indo pelo menos até dezembro de 2019 — um ano depois de a Crypto AG mudar de mãos — órgãos de Estado do Brasil pagaram por equipamentos e serviços de comunicação secreta de uma empresa que, durante décadas, era na realidade controlada por serviços de inteligência dos Estados Unidos.

Alguns dos produtos da empresa adquiridos pelo Brasil entre 2014 e 2019 têm como propósito equipar os submarinos brasileiros do programa Prosub, atualmente em desenvolvimento. Descrito pela Marinha como “um dos maiores contratos internacionais já feitos pelo Brasil e o maior programa de capacitação industrial e tecnológica na história da indústria da defesa brasileira”, os submarinos podem estar vulneráveis à interceptação americana devido a dispositivos de comunicação propositalmente corrompidos.

‘O golpe do século’
A maioria das denúncias contra a Crypto AG foi publicada em fevereiro deste ano no Washington Post por Greg Miller, correspondente de segurança nacional do jornal, em parceria com a TV alemã ZDF. No texto chamado “O golpe de inteligência do século: por décadas, a CIA leu as comunicações encriptadas de aliados e adversários”, Miller conta como a empresa suíça Crypto Aktiengesellschaft (Crypto AG), a princípio privada, passou para o controle da Agência Central de Inteligência (CIA) e de sua homóloga alemã, o Serviço Federal de Inteligência (BND) .

Baseando-se em um relatório interno da CIA, Miller relata como, começando nos anos 1950, mas sobretudo a partir da década de 1970, estas agências, em parceria com a também americana Agência de Segurança Nacional (NSA), inseriram falhas ocultas nos códigos dos dispositivos para conseguirem ler mensagens criptografadas, ao mesmo tempo em que vendiam os aparelhos mundo afora.

Além de lidas, as mensagens eram frequentemente encaminhadas aos aliados mais próximos dos dois países. “Governos estrangeiros pagavam um bom dinheiro aos EUA e [ao que era então] a Alemanha Ocidental pelo privilégio de ter suas comunicações mais secretas lidas por pelo menos dois (e possivelmente cinco ou seis) países estrangeiros”, diz o documento da CIA. A Alemanha manteve-se sócia da empresa até 1992, quando, com receio de ser descoberta, abandonou a parceria.

As denúncias do Post comprovaram antigas suspeitas contra a Crypto AG. Em 1982, durante a Guerra das Malvinas, a Argentina convenceu-se de que mensagens secretas suas haviam sido decifradas por forças britânicas. Após um executivo da empresa suíça viajar para Buenos Aires, acabou persuadindo os argentinos de que o problema estava em um único equipamento desatualizado — conseguindo esconder que, na verdade, as informações foram entregues a Londres pelo governo Reagan.

Já em 1992, o Irã tomou uma atitude contra a empresa. Após anos de suspeitas, deteve um vendedor da companhia durante 9 meses, até o pagamento de um resgate. O caso levou atenção midiática à Crypto AG, e várias reportagens nos anos seguintes investigaram o seu envolvimento com o governo americano. Uma dessas matérias foi feita em 1995 pelo Baltimore Sun, e expunha parte do envolvimento da Crypto AG com a NSA. Segundo o Washington Post, isso reduziu muito o número de países que faziam negócios com a empresa, que se tornou deficitária.

Esses antecedentes não foram suficiente para impedir o Estado brasileiro de contratar serviços da Crypto AG. Pelo contrário, a Marinha continuou a comprar produtos da empresa a até menos de um ano atrás. Procurada, a força afirmou por escrito anteontem que “a Marinha do Brasil (MB) desconhece, oficialmente, alegações de comprometimento da qualidade ou da segurança dos equipamentos” por ela adquiridos.

A ligação da Crypto AG com o Brasil começou a ser mapeada por Vitelio Brustolin, professor de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador de Harvard, que convidou para ajudá-lo os colegas Dennison de Oliveira, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), e Alcides Peron, da Universidade de São Paulo (USP). Ao vasculhar arquivos no Brasil e nos EUA, o trio encontrou várias situações em que órgãos brasileiros adquiriram equipamentos da Crypto AG, analisadas em um artigo científico publicado na última semana.

Compras recentes
Os dados mais recentes envolvem a Marinha. Documentos no Portal da Transparência da CGU listam 27 despesas, com valores que chegam a R$ 1.371.826, pagas à Crypto AG entre 2014 e 2019. Nem todos detalham a que se referem os pagamentos, mas alguns especificam terem sido para a compra do dispositivo de criptografia HC-2650, assim como para softwares para o mesmo. Na maior nota, de 2015, o Comando da Marinha adquiriu 10 unidades do aparelho, ao custo de R$ 137.182 cada.

Segundo um anúncio da Crypto AG, o HC-2650 é uma “plataforma de criptografia universal compatível com todas as faixas de frequência (HF, VHF, UHF, SatCom) (...) O flexível HC-2650 é adequado para conexão com todas as redes militares e para tornar todas as redes de rádio seguras (...) Unidades deste tipo continuarão a ser usadas em muitas redes no futuro, porque são criptograficamente, eletricamente e mecanicamente extremamente robustas e oferecem a maior confiabilidade”.

Não se sabe onde todos os aparelhos adquiridos pelo Brasil são empregados nem se outros órgãos de Defesa os utilizam. Sabe-se que um destino dos dispositivos são os submarinos de propulsão convencional em desenvolvimento, que aparecem nominalmente listados em várias notas, incluindo uma de 25 de novembro de 2019, no valor de R$ 113.415,82, para atualização do software que opera no sistema do dispositivo HC-2650.

O Brasil constrói quatro submarinos convencionais. O primeiro deles, o Riachuelo, está no mar desde 2018 e tem o fim dos testes no mar previsto para o mês que vem. O seu sistema de comunicação pode estar corrompido e vulnerável à interceptação estrangeira antes de que ele possa começar a cumprir seu propósito de, segundo a Marinha, “elevar substancialmente a capacidade de resposta eficiente do Poder Naval frente ao enorme desafio de controle e proteção da ‘Amazônia Azul’, que encerra grandes reservas naturais e representa um terço da extensa fronteira do país”.

— Um submarino é uma arma estratégica. Um só submarino oculto cria um perigo para um adversário. Em algum momento, ele precisa se comunicar com a terra, e justamente nessa hora pode ser descoberto— afirmou Brustolin. —Se a sua comunicação pode ser interceptada e decifrada, se saberá o que o submarino irá fazer. Isso compromete toda a funcionalidade estratégica do equipamento.

Operação Condor
Além das descobertas relativas à Marinha, os pesquisadores identificaram o uso pelo governo brasileiro de dispositivos da Crypto AG décadas atrás. Na ditadura militar, de acordo com documentos do arquivo da Agência de Segurança Nacional americana, a NSA, o Brasil chegou a fornecer equipamentos da Crypto AG aos outros países envolvidos na Operação Condor (Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai, com eventual participação de outros países).

“Todos os países pertencentes à organização Condor mantêm comunicações (...). O sistema de criptografia empregado pela Condor é um sistema de máquina manual de origem suíça entregue a todos os países da Condor pelos brasileiros e com a designação CX-52”, diz um documento. Como hoje se sabe que as máquinas sofreram interferência da NSA, os pesquisadores concluem que “isso prova que funcionários do governo americano estavam cientes dos sequestros, tortura e assassinatos realizados pelas ditaduras que participaram da Condor”.

No Arquivo Nacional, também foi descoberto um certificado de importação de 80 máquinas CX-52 e sete Hagelin B-621-b em 1971, adquiridas pelo Itamaraty diretamente da Embaixada da Suíça. Há ainda outros documentos do Itamaraty mencionando criptografia em 1965, 1960 e 1958.

A menção mais antiga foi encontrada no arquivo da NSA e data de 1955. Aponta que, naquele ano, o Exército brasileiro já era cliente da Crypto AG, e tinha interesse em comprar 500 máquinas criptográficas. A empresa não acreditava que uma encomenda tão grande pudesse ser atendida de uma vez. Àquela altura, a Marinha já dispunha de pelo menos 60 equipamentos. Segundo os pesquisadores, há fortes evidências de que a empresa suíça era então a única fornecedora de dispositivos de criptografia ao Brasil. O país planejou começar a importar equipamento americano, mas Washington barrou o plano.

No Arquivo Nacional, também foi descoberto um certificado de importação de 80 máquinas CX-52 e sete Hagelin B-621-b em 1971, adquiridas pelo Itamaraty diretamente da Embaixada da Suíça. Há ainda outros documentos do Itamaraty mencionando criptografia em 1965, 1960 e 1958.

A menção mais antiga foi encontrada no arquivo da NSA e data de 1955. Aponta que, naquele ano, o Exército brasileiro já era cliente da Crypto AG, e tinha interesse em comprar 500 máquinas criptográficas. A empresa não acreditava que uma encomenda tão grande pudesse ser atendida de uma vez. Àquela altura, a Marinha já dispunha de pelo menos 60 equipamentos. Segundo os pesquisadores, há fortes evidências de que a empresa suíça era então a única fornecedora de dispositivos de criptografia ao Brasil. O país planejou começar a importar equipamento americano, mas Washington barrou o plano.

Por fim, a Marinha disse que  “participa do desenvolvimento do RDS (Rádio Definido por Software) em conjunto com as demais Forças Armadas”, projeto que tem como objetivo o desenvolvimento de uma família de equipamentos de rádio. A Força acrescentou que “utiliza softwares e algoritmos próprios para a proteção de dados sigilosos”, sem especificar quais. O Ministério da Defesa não especificou se as outras Armas ainda são clientes da Crypto AG, mas disse que “as Forças Armadas zelam pela segurança das informações, tratando o assunto com todos os cuidados necessários”.

Em 2014, a Crypto AG “fortaleceu a sua presença na América Latina” com a abertura de um escritório na Barra da Tijuca, no Rio. Em 2015, ele era o único no Hemisfério Ocidental além de Zurique, e um dos únicos cinco do mundo. Não está claro até quando esta sede funcionou.

Em 2018, após ter sido deficitária por anos, a empresa foi desmembrada. As contas internacionais foram vendidas para Andrew Linde, um empresário sueco, que afirmou ao Washington Post que desconhecia os acionistas da Crypto AG — que nunca vieram a público — quando a adquiriu. O atual nome operacional da empresa é Crypto International AG, e é ela que oferece os produtos que eram do portfólio da Crypto AG.

No site da empresa, há uma advertência de que “a empresa foi fundada em 2018 e tem um proprietário diferente, uma administração diferente e uma abordagem diferente em comparação à Crypto AG (...) Nunca houve qualquer afirmação de que um equipamento vendido pela Crypto International AG foi manipulado”. Procurada pela reportagem, a empresa confirmou vender a plataforma HC-2650, adquirida pela Marinha, mas disse que não cita os seus clientes.

História e 5G
De acordo com os pesquisadores, as descobertas levantam questionamentos sobre episódios históricos e também sobre a segurança nacional no presente. Dennison de Oliveira se pergunta, por exemplo, se EUA e Alemanha espionavam a comunicação sigilosa brasileira em 1975, época do acordo nuclear com a Alemanha. O Brasil negociava com os dois países e, após enfrentar jogo duro americano, assinou um pacto com os alemães. Oliveira suspeita que “houve um conluio entre os dois países, a par de tudo o que acontecia do lado brasileiro, para empurrar um acordo péssimo”.

— Mas o programa nuclear é só um exemplo. A Operação Condor, comunicações relativas à Petrobras, à Embraer, ou a praticamente qualquer área da construção do Estado nacional, podem ter sido decisivamente impactadas pela espionagem eletrônica da Crypto.

Os pesquisadores se perguntam por que o Brasil foi um dos poucos países a continuar a comprar da companhia, após amplas denúncias públicas e ela ter sido deixada de lado por vários países. Brustolin afirma que a melhor alternativa do ponto de vista estratégico é uma tecnologia de criptografia produzida pelo Estado. Ele cita um centro de criptografia dentro da Abin, e diz que o seu desenvolvimento é viável.

O pesquisador aponta também uma consequência atual: os EUA pressionam o Brasil a não adotar a tecnologia 5G chinesa, acusando Pequim de adulterar os seus equipamentos para permitir espionagem. Brustolin se pergunta como essas acusações podem ser feitas por Washington, tendo em vista suas práticas de décadas.

— Quando veio ao Brasil, o conselheiro de Segurança Nacional dos EUA disse que a China adultera tecnologia para espionagem — afirmou. —Eu gostaria de saber se ele continuaria a dizer que a tecnologia de 5G americana é a mais segura. Denunciam muito a China, mas, até hoje, as únicas provas de equipamentos adulterados que temos são dos EUA. O governo brasileiro também precisa responder quais ações estão previstas no leilão para garantir que não haverá espionagem, qual solução oferecerá para esse problema. É importante termos consciência de que essa é uma discussão de soberania.

https://oglobo.globo.com/mundo/brasil-utiliza-ha-mais-de-60-anos-criptografia-de-empresa-que-era-controlada-pela-cia-revelam-documentos-24758960