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segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Nova visão da história econômica do Brasil de 1820 a 1980 - Edmar Bacha (O Globo)

 Nova visão da história econômica do Brasil de 1820 a 1980

Não procede a frase repetida segundo a qual, entre 1900 e 1980, o Brasil foi o país que mais cresceu no mundo depois do Japão
Edmar Bacha
O Globo, 06/10/2025

A história econômica brasileira precisa ser reescrita. Acaba de ser publicado no Journal of Iberian and Latin American Economic History artigo sobre o século XIX elaborado com Guilherme Tombolo e Flávio Versiani. Trata-se de estudo nosso que dá continuidade a outro sobre o período de 1900 a 1980, publicado na Revista Brasileira de Economia. Nosso objetivo é rever, com novas séries estatísticas e metodologias, a trajetória do crescimento brasileiro desde a Independência até 1980.

A narrativa consagrada pela historiografia era a seguinte: no século XIX, crescimento muito lento — com estagnação ou retrocesso até meados daquele século. No século XX, ao contrário, avanço extraordinário, culminando no “milagre econômico” dos anos 1960-70.

Nossas pesquisas apontam outro quadro. No século XIX, o Brasil cresceu em linha com a Europa Ocidental e outros países latino-americanos. No século XX, até 1980, o crescimento foi robusto, mas inferior ao que mostram as séries oficiais e longe de um desempenho “milagroso”.

Em “Formação econômica do Brasil”, Celso Furtado atribuiu papel quase exclusivo às exportações no crescimento. Angus Maddison e, mais recentemente, Marcelo Abreu, Luiz Correa do Lago e André Villela reforçaram a hipótese de estagnação até 1850.

Estudos recentes mudam essa visão. Christopher Absell e Antonio Tena-Junguito (2016) revisaram as exportações e mostraram que, entre 1821 e 1850, elas cresceram 3,5% ao ano — mais que o dobro da população. Longe de estagnação, houve aumento expressivo da renda per capita.

Além disso, o mercado interno cresceu de forma vigorosa. Minas Gerais importou mais escravizados que as províncias cafeeiras na primeira metade do século XIX, não para o café, mas para a produção de alimentos e gado.

Na segunda metade do século, somaram-se o avanço espetacular do café, a expansão ferroviária e a imigração europeia, que trouxe capital humano e impulsionou setores como o têxtil. Com metodologia revisada, nossas estimativas apontam crescimento per capita positivo de 0,9% ao ano em todo o século XIX.

Para o século XX, já havia disponíveis estatísticas mais amplas. Mas, em 1969, houve mudança metodológica decisiva nas contas nacionais: setores como governo, aluguéis e outros serviços foram excluídos do cálculo, inflando artificialmente os números do crescimento.

O IBGE, ao assumir as contas nacionais em 1986, aplicou o mesmo método retrospectivamente a 1947-1980. Recalculamos a série do PIB reincluindo esses setores de serviços. Resultado: crescimento do PIB per capita de 3,3% ao ano em 1947-1980, ante 4,2% na série oficial — uma diferença para menos de 30%. Para 1900-1947, a taxa cai de 2,4% para 2,0%.

Mesmo assim, o crescimento foi sólido, sustentado pela industrialização e pela migração rural-urbana, que deslocou mão de obra de baixa produtividade no campo para atividades urbanas mais produtivas.

A trajetória de 1820 a 1980 não foi a de um século XIX estagnado seguido de um século XX milagroso, como há tempos afirma a historiografia econômica. O Brasil do século XIX cresceu em ritmo comparável ao da Europa e de outros países latino-americanos. No século XX, até 1980, o crescimento foi robusto, mas longe de excepcional.

Não procede, portanto, a frase repetida segundo a qual, entre 1900 e 1980, o Brasil foi o país que mais cresceu no mundo depois do Japão. Crescemos mais que a média mundial, mas não lideramos o ranking. Essa correção histórica é fundamental para entendermos melhor as continuidades em nossa trajetória de crescimento e deixarmos de alimentar ilusões sobre milagres econômicos que nunca existiram.

https://oglobo.globo.com/google/amp/opiniao/artigos/coluna/2025/10/nova-visao-da-historia-economica-do-brasil-de-1820-a-1980.ghtml

domingo, 27 de julho de 2025

Entrevista Otaviano Canuto: Países não vão se dobrar, diz ex-vice do Banco Mundial sobre críticas dos EUA a sistemas públicos de pagamento - Carolina Nalin (O Globo)

 Entrevista Otaviano Canuto

Países não vão se dobrar, diz ex-vice do Banco Mundial sobre críticas dos EUA a sistemas públicos de pagamento
Otaviano Canuto, ex vice-presidente do Banco Mundial e do BID
Por Carolina Nalin — Rio de Janeiro
O Globo, 17 de julho de 2025

Países não vão se dobrar, diz ex-vice do Banco Mundial sobre críticas dos EUA a sistemas públicos de pagamento
Ataque ao Pix serve mais para marcar posição de Trump contra meios de pagamento geridos por governos, avalia Otaviano Canuto

A menção indireta ao Pix no relatório americano que embasa a abertura de uma investigação contra o Brasil por supostas práticas comerciais desleais, reflete uma posição mais ampla dos Estados Unidos contra plataformas públicas de pagamento digital. Essa é a avaliação do economista Otaviano Canuto, ex-vice-presidente do Banco Mundial e membro senior do Policy Center for the New South.
Para Canuto, a ofensiva americana mais parece um desejo de marcar posição contra modelos públicos de pagamento digital do que alguma ação efetiva. Sobretudo num momento em que o debate nos EUA caminha mais para a ampliação de criptoativos do que para a adoção de moedas digitais, como hoje discutem países como Brasil e União Europeia.
— Não me parece que há qualquer expectativa de que os países se dobrem a esse respeito — afirmou Canuto, em entrevista ao GLOBO.
O documento do Escritório do Representante de Comércio dos EUA (USTR), enviado na noite de terça-feira, argumenta que o Brasil estaria favorecendo sistemas de pagamento desenvolvidos pelo governo em detrimento de soluções de companhias americanas, como Google Pay e Apple Pay.
O governo americano já tinha feito críticas semelhantes ao QRIS, sistema de pagamento em tempo real do governo da Indonésia. A plataforma foi citada como barreira comercial em relatório que precedeu a aplicação de tarifa de 32% sobre as importações do país asiático, até a chegada do consenso bilateral de 19%.
Desde o acordo entre os dois países, porém, não foi revelado se o país indonésio fará mudanças no seu sistema de pagamento ou se as críticas americanas foram só elemento de pressão. A seguir, veja a íntegra da entrevista:
Como avalia o peso e a gravidade dessa nova investigação comercial dos EUA contra o Brasil?
Essa investigação é grave, entre outros motivos, porque claramente o caso brasileiro tem sido diferente dos demais em alguns aspectos.
A forma das tarifas recíprocas tinha tarifas para os diversos países refletindo o saldo comercial dos países com os EUA. Quem tinha déficit, era aplicado os 10%. E quem tinha superávit, com tarifas proporcionais ao percentual dos saldos comerciais. Além, claro, das tarifas setoriais e das coisas específicas com Canadá e México. Mas a carta recente enviada ao Brasil não encaixa nesse padrão. Temos déficit com eles.
O problema é essa especificidade no tato com o Brasil. Nos outros casos, onde há margem clara de negociação, entram questões econômicas, com um capítulo à parte para restrições em relação à China. Mas há um padrão comercial. No mínimo, há um indicativo do caminho perseguido pelo Trump, que é: mesmo quando tem negociação, reduz-se a carga. A agenda é principalmente no que diz respeito à comércio e compras.
Mas não é o caso do Brasil. E é evidente que o conteúdo da carta [enviada pelos EUA justificando o tarifaço de 50% "em parte devido aos ataques insidiosos do Brasil contra eleições livres", em referência ao julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro no STF] não teria concessão pelo governo brasileiro.
A novidade foi a abertura desse processo com base na seção 301 301 da lei de comércio de 1974 dos EUA, que dá margem e abre investigações num campo mais amplo.
E quais podem ser os desdobramentos práticos desse processo? Tarifas, cotas, sanções comerciais?
Eu não creio que venha a ser usado para tarifas adicionais, mas sim para tentar justificar os atuais 50%. É como se o caso do Brasil aqui fosse um teste que pode ser utilizado em outros países, em outros casos. (...) Há uma peculiaridade no tratamento do Brasil pelo Trump.
E Trump é imprevisível. Mesmo durante a campanha presidencial e no início do atual mandato, era claro que ele iria impor medidas ao Brasil. A própria tarifa recíproca anunciada em abril já indicava esse caminho. Mas essa carta e a abertura da investigação que reforça a carta é uma agenda própria peculiar.
E essa menção indireta ao Pix no documento faz algum sentido? Trump já tinha feito algo parecido com a Indonésia.
Ele incluiu o tema do comércio digital e dos serviços eletrônicos de pagamento, o que foi interpretado como uma crítica indireta ao Pix porque o sistema brasileiro reduz o espaço de atuação de plataformas de pagamento privadas.
A investigação foi construída com base em queixas de empresas americanas que operam transações digitais e se sentem ameaçadas pelo avanço do Pix. Mas o Brasil não está em negociação para eliminar o Pix. E a questão é mais ampla.
A União Europeia, por exemplo, é mais favorável à criação de redes de pagamento digitais com base em uma futura moeda digital emitida pelo Banco Central Europeu. Já nos Estados Unidos, não existe projeto para uma moeda digital oficial. Pelo contrário, o debate por lá gira mais em torno da ampliação dos ativos cripto.
Isso pode ter aparecido como desejo, refletindo essa posição mais geral dos EUA contra sistemas públicos de pagamento eletrônico, mas não há qualquer expectativa de que os países se dobrem. E se Trump tivesse obtido alguma vitória nesse sentido (como no acordo com a Indonésia, em que o QRIS também foi citado como barreira), isso teria vindo a público.
Além disso, o documento que iniciou a investigação menciona até a implementação de políticas anticorrupção como um dos pontos questionados. É um escopo muito amplo. (...) É como se o caso do Brasil fosse um teste que pode ser usado em outros países, em outros contextos. Mas há uma peculiaridade no tratamento dado ao Brasil pelo Trump.
Eles também mencionam propriedade intelectual...
O que eu duvido no estado das artes que possam encontrar justificativas a esse respeito - a não ser ameaça de mexer com essa proteção como parte de retaliação brasileira. Isso tem que ser mencionado.
E o que o Brasil pode fazer?
Temos alguns aspectos a considerar nas retaliações caso venham a ser anunciadas. Toda guerra comercial provoca danos tanto no país alvo quanto no país que inicia as tarifas.
Se os Estados Unidos impuserem restrições às exportações brasileiras, o Brasil pode reagir com medidas que afetem produtos americanos. Mas é preciso lembrar que boa parte do setor produtivo brasileiro depende de importações vindas dos EUA. Ou seja, tem o risco de "tiro no pé", e isso precisa ser considerado.
É um cenário diferente do que acontece entre EUA e China. O governo americano não levou em conta a forte dependência que tem, assim como o restante do mundo, de minerais críticos e terras raras. Essas matérias-primas estão até espalhadas globalmente, mas a China concentrou a capacidade de processamento. Hoje, responde por cerca de 80% a 90% do beneficiamento mundial dessas substâncias, essenciais para a produção de bens digitais.
Não por acaso, o primeiro instrumento da China foi restringir o acesso a esses materiais, o que gerou uma pressão doméstica junto a Trump por parte de quem produz bens digitais nos EUA porque esses materiais são essenciais.
Nós não temos isso. Nem processadores de nióbio nós somos. Tudo bem que a carne bovina exportada para os EUA é importante na produção de hambúrgueres… Mas assim como o abacate mexicano é um item importante da dieta familiar de boa parte dos EUA, isso não é à rigor comparável. Não temos muita margem.
Então a resposta do Brasil é limitada?
As referências feitas à atuação do Supremo Tribunal Federal ou a decisões relacionadas ao ex-presidente Jair Bolsonaro não são passíveis de negociação. O Brasil vai ter que mandar uma carta, vai ter que continuar dando uma resposta, pelo menos simbólica. Mas, ao mesmo tempo, o grau de centralidade na subjetividade do próprio Trump é claro. E as instâncias governamentais dos EUA vão esperar o que o presidente americano diz a respeito.
É provável que não sobre ao Brasil outra opção a não ser “ter que engolir”. A margem de resposta retaliatória é muito limitada.
É claro, o Brasil vai contestar (a investigação). Aí pode haver uma conversa sobre cada um dos pontos, mas isso não seria parte de um acordo no estilo como foi com Indonésia. Eu estou pessimista de que na última hora (Trump) vai recuar e adiar de novo (as tarifas).

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Está na hora de o Brasil sair do BRICS?; Is it time for Brazil to leave the BRICS? - Frlipe Krause

Is it time for Brazil to leave the BRICS?

Felipe Krause (Oxford University)

https://lnkd.in/enrBjK8G

That’s the question I explore in my op-ed published today in O Globo. While my answer is essentially yes — the costs of remaining in the bloc increasingly outweigh the benefits — I believe this is a debate worth having, and one that goes to the heart of Brazil’s foreign policy priorities today.

BRICS was once a symbol of a new multipolar world, but it has become an incoherent and increasingly dysfunctional group, dominated by China’s geopolitical agenda and exploited by Russia to project its narrative on Ukraine and escape isolation. Brazil, in turn, has little to show for its continued participation, other than diplomatic friction with key Western partners.

This is not about ideology, but about pragmatism. Brazil can sustain strong economic ties with China and constructive relations with the Global South without being tethered to a bloc that has lost strategic coherence and meaning.

I would be very interested to hear different perspectives on this topic. The article (in Portuguese) is available here:

https://lnkd.in/enrBjK8

Está na hora de o Brasil sair do BRICS?

Frlipe Krause, Oxford University

Essa é a pergunta que exploro em artigo publicado hoje n’O Globo. Embora minha resposta seja, em essência, afirmativa — os custos de permanecer no bloco passaram a superar os benefícios — acredito que esse é um debate necessário e que toca no centro das prioridades da política externa brasileira hoje.

O BRICS foi, no início, um símbolo de um mundo multipolar emergente, mas se tornou um grupo incoerente e cada vez mais disfuncional, dominado pela agenda geopolítica da China e instrumentalizado pela Rússia para projetar sua narrativa sobre a guerra na Ucrânia e escapar do isolamento. O Brasil, por sua vez, pouco tem a ganhar com essa participação, além de gerar atrito diplomático com parceiros ocidentais centrais.

Não se trata de ideologia, mas de pragmatismo. O Brasil pode manter laços econômicos sólidos com a China e um diálogo produtivo com o Sul Global sem estar vinculado a um bloco que perdeu coerência e sentido estratégico.

Gostaria muito de ouvir diferentes pontos de vista sobre esse tema. O artigo está disponível aqui:

https://lnkd.in/enrBjK8G  

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Comments:

This discussion is not only timely, but necessary. Brazilian society is, perhaps belatedly, being directly confronted with the costs of a choice - whether unfairly, or not. And regardless of how we evaluate the results of those decisions, it is crucial to discuss if the method in this decision-making is still adequate, having passed a quarter of this century. We do need this academic engagement for an increasingly more evidence-based agenda.

Congrats for the article!

Essa discussão não é só oportuna, como necessária. A sociedade brasileira está, talvez com certo atraso, sendo diretamente confrontada com os custos (injustos ou não) de uma escolha. E independente de nossas avaliações sobre os resultados dessas decisões, é crucial discutirmos se o método que utilizamos para tomar essas decisões ainda é adequado, já passado 1/4 desse século. Precisamos desse engajamento acadêmico para uma agenda cada vez mais baseada em evidências.

Parabéns pelo artigo! (Rafa Paulino)

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Ulf Thoene:

Many thanks for sharing, Felipe. Now, with a bit of distance from the Rio summit, a clearer picture is starting to emerge of where individual BRICS member states stand. The Brazilian perspective is relevant and insightful for other states in Latin America as well. I did a quick write-up on the most recent BRICS Summit in Rio for The Conversation en español, published on July 7th. 

https://theconversation.com/cumbre-2025-los-brics-abrazan-el-multilateralismo-y-piden-reformas-en-las-organizaciones-globales-260573

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Sergio Silva:

"Gostemos ou não, a diferença do Brasil para todos os demais países do Brics é que somos a única nação Brics sob a área de influência geopolítica direta dos Estados Unidos. No mesmo continente....

Leia mais no texto original: (https://www.poder360.com.br/opiniao/os-eua-sempre-se-meteram-no-brasil-e-o-crucial-nunca-foi-a-soberania/)

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Paulo R Almeida:

 O atual assessor internacional da PR, quando chanceler, nunca perdoou-me por ter colocado em dúvida a criação do então BRIC tão cedo quanto 2006, e sabotou consistentemente minha carreira diplomática durante todo o reinado lulopetista: não tive nenhum cargo na Secretaria de Estado entre 2003 e 2016, permanecendo a maior parte do tempo na Biblioteca do Itamaraty. Nunca me dobrei à fantasia do Bric-Brics, agora Brcs+, como provam meus artigos reunidos no livro “A Grande Ilusão do Brics e o Universo Paralelo da Diplomacia Brasileira” (2022). Paulo Roberto de Almeida, diplomata aposentado.

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quarta-feira, 14 de maio de 2025

Entrevista: ‘Alinhamento de Lula com Putin afeta nossa neutralidade’, afirma pesquisador Vitelio Brustolin

Entrevista: ‘Alinhamento de Lula com Putin afeta nossa neutralidade’, afirma pesquisador Vitelio Brustolin

(O Globo, 13/03/2025)

Mundo
'Lula apareceu ao lado não apenas de ditadores, mas também de criminosos de guerra', afirma pesquisador
Em entrevista ao GLOBO, Vitelio Brustolin, professor da UFF, considera um 'contrassenso' do presidente em adotar um discurso pró-democracia e se sentar ao lado de autocratas
Filipe Barini
O Globo, 13/05/2025
Vitelio Brustolin, professor de Relações Internacionais da UFF e pesquisador da Universidade Harvard

Na semana passada, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi um dos dezenas de chefes de Estado convidados pelo líder russo, Vladimir Putin, na parada militar que marcou os 80 anos da vitória sobre os nazistas na Segunda Guerra Mundial. A participação em uma celebração também vista como um ato de propaganda russa provocou críticas internas e externas: sem citar o Brasil, o presidente da Polônia, Donald Tusk, disse que todos que aplaudiram Putin "deveriam se envergonhar".
Em entrevista ao GLOBO, Vitelio Brustolin, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador da Universidade Harvard, considerou desnecessária a viagem de Lula a Moscou, e vê um contrassenso entre o discurso pró-democracia do Brasil e a decisão de se sentar ao lado de autocratas na Praça Vermelha, alguns há décadas no poder.
Por mais que a celebração na Praça Vermelha tivesse uma motivação histórica, a vitória sobre a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial, a parada militar se inseriu na estratégia de propaganda russa sobre a guerra na Ucrânia. Como o senhor avalia a decisão do presidente Lula de ir até Moscou?
Considero desnecessária. O Lula não precisava ter ido pessoalmente, outros líderes foram convidados e não quiseram ir. Narendra Modi, primeiro-ministro da Índia, mandou representantes. Não havia necessidade de Lula ir a Moscou. Mas já que ele foi, por que não aproveitou a viagem ao funeral do Papa Francisco, no dia 26 de abril, e não ficou mais dois dias na Itália para homenagear os 457 pracinhas brasileiros da FEB mortos na Segunda Guerra Mundial? Já que o presidente Lula foi a Moscou se apresentando como mediador, por que não aceitou o convite da Ucrânia para ir ao país? Como ele vai ser mediador em um conflito em que só vai visitar o agressor? A viagem não trouxe vantagens ao Brasil, pelo contrário: o avião presidencial recebeu uma recusa de sobrevoar países, Estônia, Letônia e Lituânia não abriram espaço aéreo porque ele estava indo para Moscou. O Brasil afirma que quer assinar um acordo estratégico com a Rússia, mas quais países já o fizeram? A Coreia do Norte, que enviou tropas para ajudar Putin na guerra, a Venezuela, com quem o presidente Lula não falava desde a fraude nas eleições no ano passado, com ameaças do Maduro ao Lula para não se meter com ao país, e o Irã, que está sob pressão por causa do seu programa nuclear.
Na Praça Vermelha estavam alguns conhecidos autocratas, como Alexander Lukashenko, líder da Bielorrússia, no poder desde 1994, e outros que chegaram ao poder através de golpes, como o presidente egípcio, Abdel Fattah al-Sisi. Até que ponto isso bate de frente com o discurso pró-democracia de Lula?
Existe um contrassenso. Lula se elegeu com um discurso de defesa da democracia, afirma ter combatido um golpe de Estado no dia 8 de janeiro, e Lula apareceu ao lado não apenas de ditadores, mas também de criminosos de guerra. Putin tem uma ordem de prisão do Tribunal Penal Internacional por sequestrar milhares de crianças da Ucrânia. E além de ser um contrassenso, os países europeus veem ações assim com maus olhos. Enquanto Lula estava na visita, outros líderes estavam tentando negociar um cessar-fogo entre Ucrânia e Rússia, mas Lula não conseguiu estender a pausa nos combates em um só dia.
É importante aqui fazer uma distinção: a diplomacia profissional do Brasil desde o início da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia tem feito condenações na ONU. Isso foi antes do governo Lula tomar posse, ainda durante o governo de Jair Bolsonaro, e ele também foi apertar a mão do Putin dias antes da invasão. Uma coisa é a diplomacia profissional do Itamaraty, respeitada no mundo inteiro. Outra coisa é a diplomacia personalista que o presidente faz com os seus assessores, especialmente Celso Amorim, uma diplomacia personalista que também é criticada dentro do Itamaraty.
Até que ponto podemos associar essa visita de Lula a Moscou ao fato do Brasil presidir o Brics em 2025? Até agora, por exemplo, não há confirmação se Putin virá ou não para a reunião de cúpula do grupo, em julho, no Rio de Janeiro…
Lula vem lamentando há algum tempo a ausência de Putin nas reuniões. Mas não é de hoje essa postura de tentar amenizar o que Putin vem fazendo. Antes de se eleger, Lula foi criticado por uma entrevista que deu à revista Time, e criticado pelo governo dos Estados Unidos na época e pela Europa, e chamado de “papagaio de propaganda russa”. [Volodymyr] Zelensky [presidente da Ucrânia], que pousou em Brasília para a posse de Javier Milei na Argentina, não foi recebido, ao contrário do que aconteceu em outros países. Há um alinhamento de Lula com Putin, e não podemos colocar isso na conta do Brics. Inclusive vários países do bloco não mandaram seus chefes de Estado para Moscou.
Lula disse que um dos objetivos da viagem foi ampliar as oportunidades de negócios com a Rússia, um país com o qual o Brasil tem um amplo déficit comercial...
Em 2023, o Brasil aumentou a importação de óleo diesel russo em 6.000%, comparado com 2022, no período anterior à guerra. E no ano passado aumentou em 9.000%. O Brasil é um dos financiadores da guerra de agressão de Putin. O Brasil votou na ONU contra a agressão e aumentou muito a importação de óleo diesel. O Brasil diz que a Ucrânia não deve receber armas, mas é a favor da soberania da Ucrânia. Então como é que a Ucrânia vai se defender? Então se o Brasil, um país que tem pouca projeção de poder, porque tem pouca força militar, fosse invadido hoje, ele não poderia ser protegido pela carta da ONU. O que a diplomacia personalista do presidente defende é que se alguém invadir a Amazônia, a temos que abrir mão em prol da paz. Todo mundo é a favor da paz, mas o problema é que a paz a qualquer preço, defendida pelo Lula, leva a outras guerras.
O senhor acredita que a decisão de Lula de ir à Rússia terá impactos a médio ou longo prazo no papel do Brasil no mundo?
A Rússia de Putin usou o evento de 9 de maio como um ato de propaganda, com soldados que estiveram na Ucrânia ou que irão para lá, com armas que provavelmente serão lançadas contra civis. Não ganhamos nada com isso, mas perdemos. Perdemos influência internacional, perdemos a neutralidade de nossa democracia, que é vista assim no mundo inteiro como neutra desde sua fundação.
A presença no desfile de 9 de Maio pode ser uma pá de cal nos planos do Brasil de eventualmente fazer parte do diálogo sobre o fim da guerra na Ucrânia?
Quem diz isso são os ucranianos. São eles que dizem que o Lula tem um lado. E isso independente da posição política, porque criticamos contra quando Bolsonaro foi apertar a mão do Putin. Isso não é uma questão de ideologia, não é uma questão de esquerda e direita. É uma questão de defesa dos princípios da Carta da ONU. Não consigo entender, por exemplo, por que o governo brasileiro é tão rápido para condenar Israel quando bombardeiam civis, quando [Benjamin] Netanyahu [premier de Israel] usa desproporcionalmente a força na Faixa de Gaza, mas quando Putin bombardeia áreas civis abertamente não há críticas. São dois pesos e duas medidas.
Todas as reações:
12

terça-feira, 13 de maio de 2025

Entrevista: ‘Alinhamento de Lula com Putin afeta nossa neutralidade’, afirma pesquisador Vitelio Brustolin (O Globo)

 Entrevista: ‘Alinhamento de Lula com Putin afeta nossa neutralidade’, afirma pesquisador

(O Globo, 13/03/2025)
https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2025/05/13/lula-apareceu-ao-lado-nao-apenas-de-ditadores-mas-tambem-de-criminosos-de-guerra-afirma-pesquisador.ghtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newsdiaria

Mundo
'Lula apareceu ao lado não apenas de ditadores, mas também de criminosos de guerra', afirma pesquisador
    Em entrevista ao GLOBO, Vitelio Brustolin, professor da UFF, considera um 'contrassenso' do presidente em adotar um discurso pró-democracia e se sentar ao lado de autocratas
Filipe Barini
O Globo, 13/05/2025
        Vitelio Brustolin, professor de Relações Internacionais da UFF e pesquisador da Universidade Harvard

            Na semana passada, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi um dos dezenas de chefes de Estado convidados pelo líder russo, Vladimir Putin, na parada militar que marcou os 80 anos da vitória sobre os nazistas na Segunda Guerra Mundial. A participação em uma celebração também vista como um ato de propaganda russa provocou críticas internas e externas: sem citar o Brasil, o presidente da Polônia, Donald Tusk, disse que todos que aplaudiram Putin "deveriam se envergonhar".

        Em entrevista ao GLOBO, Vitelio Brustolin, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador da Universidade Harvard, considerou desnecessária a viagem de Lula a Moscou, e vê um contrassenso entre o discurso pró-democracia do Brasil e a decisão de se sentar ao lado de autocratas na Praça Vermelha, alguns há décadas no poder.

        Por mais que a celebração na Praça Vermelha tivesse uma motivação histórica, a vitória sobre a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial, a parada militar se inseriu na estratégia de propaganda russa sobre a guerra na Ucrânia. Como o senhor avalia a decisão do presidente Lula de ir até Moscou?

            Considero desnecessária. O Lula não precisava ter ido pessoalmente, outros líderes foram convidados e não quiseram ir. Narendra Modi, primeiro-ministro da Índia, mandou representantes. Não havia necessidade de Lula ir a Moscou. Mas já que ele foi, por que não aproveitou a viagem ao funeral do Papa Francisco, no dia 26 de abril, e não ficou mais dois dias na Itália para homenagear os 457 pracinhas brasileiros da FEB mortos na Segunda Guerra Mundial? Já que o presidente Lula foi a Moscou se apresentando como mediador, por que não aceitou o convite da Ucrânia para ir ao país? Como ele vai ser mediador em um conflito em que só vai visitar o agressor? A viagem não trouxe vantagens ao Brasil, pelo contrário: o avião presidencial recebeu uma recusa de sobrevoar países, Estônia, Letônia e Lituânia não abriram espaço aéreo porque ele estava indo para Moscou. O Brasil afirma que quer assinar um acordo estratégico com a Rússia, mas quais países já o fizeram? A Coreia do Norte, que enviou tropas para ajudar Putin na guerra, a Venezuela, com quem o presidente Lula não falava desde a fraude nas eleições no ano passado, com ameaças do Maduro ao Lula para não se meter com ao país, e o Irã, que está sob pressão por causa do seu programa nuclear.

        Na Praça Vermelha estavam alguns conhecidos autocratas, como Alexander Lukashenko, líder da Bielorrússia, no poder desde 1994, e outros que chegaram ao poder através de golpes, como o presidente egípcio, Abdel Fattah al-Sisi. Até que ponto isso bate de frente com o discurso pró-democracia de Lula?
        Existe um contrassenso. Lula se elegeu com um discurso de defesa da democracia, afirma ter combatido um golpe de Estado no dia 8 de janeiro, e Lula apareceu ao lado não apenas de ditadores, mas também de criminosos de guerra. Putin tem uma ordem de prisão do Tribunal Penal Internacional por sequestrar milhares de crianças da Ucrânia. E além de ser um contrassenso, os países europeus veem ações assim com maus olhos. Enquanto Lula estava na visita, outros líderes estavam tentando negociar um cessar-fogo entre Ucrânia e Rússia, mas Lula não conseguiu estender a pausa nos combates em um só dia.
        É importante aqui fazer uma distinção: a diplomacia profissional do Brasil desde o início da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia tem feito condenações na ONU. Isso foi antes do governo Lula tomar posse, ainda durante o governo de Jair Bolsonaro, e ele também foi apertar a mão do Putin dias antes da invasão. Uma coisa é a diplomacia profissional do Itamaraty, respeitada no mundo inteiro. Outra coisa é a diplomacia personalista que o presidente faz com os seus assessores, especialmente Celso Amorim, uma diplomacia personalista que também é criticada dentro do Itamaraty.

        Até que ponto podemos associar essa visita de Lula a Moscou ao fato do Brasil presidir o Brics em 2025? Até agora, por exemplo, não há confirmação se Putin virá ou não para a reunião de cúpula do grupo, em julho, no Rio de Janeiro…

        Lula vem lamentando há algum tempo a ausência de Putin nas reuniões. Mas não é de hoje essa postura de tentar amenizar o que Putin vem fazendo. Antes de se eleger, Lula foi criticado por uma entrevista que deu à revista Time, e criticado pelo governo dos Estados Unidos na época e pela Europa, e chamado de “papagaio de propaganda russa”. [Volodymyr] Zelensky [presidente da Ucrânia], que pousou em Brasília para a posse de Javier Milei na Argentina, não foi recebido, ao contrário do que aconteceu em outros países. Há um alinhamento de Lula com Putin, e não podemos colocar isso na conta do Brics. Inclusive vários países do bloco não mandaram seus chefes de Estado para Moscou.

        Lula disse que um dos objetivos da viagem foi ampliar as oportunidades de negócios com a Rússia, um país com o qual o Brasil tem um amplo déficit comercial...
        Em 2023, o Brasil aumentou a importação de óleo diesel russo em 6.000%, comparado com 2022, no período anterior à guerra. E no ano passado aumentou em 9.000%. O Brasil é um dos financiadores da guerra de agressão de Putin. O Brasil votou na ONU contra a agressão e aumentou muito a importação de óleo diesel. O Brasil diz que a Ucrânia não deve receber armas, mas é a favor da soberania da Ucrânia. Então como é que a Ucrânia vai se defender? Então se o Brasil, um país que tem pouca projeção de poder, porque tem pouca força militar, fosse invadido hoje, ele não poderia ser protegido pela carta da ONU. O que a diplomacia personalista do presidente defende é que se alguém invadir a Amazônia, a temos que abrir mão em prol da paz. Todo mundo é a favor da paz, mas o problema é que a paz a qualquer preço, defendida pelo Lula, leva a outras guerras.

        O senhor acredita que a decisão de Lula de ir à Rússia terá impactos a médio ou longo prazo no papel do Brasil no mundo?

        A Rússia de Putin usou o evento de 9 de maio como um ato de propaganda, com soldados que estiveram na Ucrânia ou que irão para lá, com armas que provavelmente serão lançadas contra civis. Não ganhamos nada com isso, mas perdemos. Perdemos influência internacional, perdemos a neutralidade de nossa democracia, que é vista assim no mundo inteiro como neutra desde sua fundação.

        A presença no desfile de 9 de Maio pode ser uma pá de cal nos planos do Brasil de eventualmente fazer parte do diálogo sobre o fim da guerra na Ucrânia?
        Quem diz isso são os ucranianos. São eles que dizem que o Lula tem um lado. E isso independente da posição política, porque criticamos contra quando Bolsonaro foi apertar a mão do Putin. Isso não é uma questão de ideologia, não é uma questão de esquerda e direita. É uma questão de defesa dos princípios da Carta da ONU. Não consigo entender, por exemplo, por que o governo brasileiro é tão rápido para condenar Israel quando bombardeiam civis, quando [Benjamin] Netanyahu [premier de Israel] usa desproporcionalmente a força na Faixa de Gaza, mas quando Putin bombardeia áreas civis abertamente não há críticas. São dois pesos e duas medidas.


quinta-feira, 1 de maio de 2025

Atitude de Lula diante da Ucrânia traduz incoerência de sua diplomacia - Editorial O Globo

 O aliado sul-americano de Putin insiste em ir apertar a mão de um criminoso de guerra. A atitude NÃO é incoerente, é apenas ALINHADA a um Estado violador da Carta da ONU e das regras mais elementares do Direito Internacional, (PRA)


Atitude de Lula diante da Ucrânia traduz incoerência de sua diplomacia
Editorial O Globo, 1/05/2025
Ao se alinhar à Rússia, presidente rompe tradição de equilíbrio na política externa brasileira

A política externa brasileira já viveu melhores momentos. Tem ficado clara nos últimos tempos a inclinação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva por um dos lados de conflitos em que, por respeito à tradição diplomática e aos interesses nacionais, a posição do Brasil deveria ser, quando não neutra, ao menos mais equilibrada.
Em nenhum caso isso é tão evidente quanto na atitude de Lula diante da Ucrânia. Em Roma, depois do funeral do Papa Francisco, ao ser questionado sobre o encontro entre os presidentes americano, Donald Trump, e ucraniano, Volodymyr Zelensky, ele disse que o Brasil continua “teimando” para que Ucrânia e Rússia se sentem à mesa de negociações. Mas imediatamente mudou de assunto, afirmando desejar que o mesmo aconteça no caso da “violência que Israel comete na Faixa de Gaza”.
Ora, quando Lula tentou atuar como mediador entre Kiev e Moscou, sua inclinação evidente pela Rússia levou Zelensky a recusar a oferta. Não era coerente que um chefe de governo com aspirações a aproximar dois países sugerisse que um deles abrisse mão de territórios invadidos pelo outro, como fez Lula ao declarar que Kiev deveria ceder a Península da Crimeia à Rússia. Ainda que barganhas em torno de territórios ocupados venham a ser debatidas nas futuras negociações de paz, não cabe a uma terceira parte tratar do assunto. É sintomático, também, que Lula tenha rejeitado convite de Zelensky para visitar Kiev, mas se prepare agora para ir a Moscou participar, ao lado de Vladimir Putin, das comemorações dos 80 anos da vitória dos aliados na Segunda Guerra.
Lula não consegue admitir que a Rússia comete, de forma indiscutível, a mais grave agressão na Europa desde o fim daquela guerra. Em 2022, no governo Jair Bolsonaro, a diplomacia brasileira foi tíbia diante da invasão da Ucrânia. Lula assumiu tendo a oportunidade de marcar uma diferença positiva na política externa, mas até agora não conseguiu.
A incoerência da diplomacia brasileira não se restringe a suas declarações de improviso. O comunicado oficial do Itamaraty depois da reunião do Brics nesta semana faz menção apenas protocolar à guerra na Ucrânia, enquanto dedica cinco extensos itens ao conflito entre israelenses e palestinos. Ainda que a Rússia faça parte do Brics e decerto tenha influência nos debates, o Brasil não tem a menor necessidade de aliviar os termos de sua condenação à guerra para fazer agrados a Putin. O contraste das atitudes do Itamaraty diante de Gaza e da Ucrânia revela o grau de desconexão da diplomacia brasileira com os valores e interesses do país.
É lamentável, pois o Itamaraty sempre separou a ideologia do governo do interesse nacional. Até na ditadura militar, o presidente Ernesto Geisel, um general conservador, foi convencido de que o colonialismo português chegava ao fim na África e reconheceu o governo de esquerda de Angola, reforçado por tropas cubanas com apoio da União Soviética. Mas Lula infelizmente não consegue evitar que a ideologia interfira em sua política externa.

segunda-feira, 28 de abril de 2025

A República Federativa da Corrupção Sindical - Elio Gaspari (O Globo)

 Onde quer que se olhe, no Brasil, havendo uma graninha circulando, haverá um bando de sacripantas concebendo uma maneira de desviar o fluxo para seu proveito. No caso do INSS não era uma graninha, mas toda uma enorme bacia hidrográfica de dinheiro que se converteu num oceano de grana preta: é a República Sindical da Corrupção, acontecendo por acaso num governo dominado pelos companheiros sindicalizados. 

Se não fosse a Polícia Federal, o roubo organizado cobriria toda a nação. PRA

A roubalheira contra o andar de baixo

Elio GasparI

O Globo, domingo, 27 de abril de 2025

As últimas grandes roubalheiras nacionais, o “mensalão” e o “petrolão”, gravitavam em torno do dinheiro da Viúva e, de certa forma, ocorriam no andar de cima. Já a fraude da rede varejista Americanas poupava a Viúva, mas era coisa de maganos. Desta vez, graças à Controladoria-Geral da União e à Polícia Federal, descobriu-se que quadrilhas aninhadas em 11 entidades estavam roubando os aposentados do INSS.

Todo mês, tungavam coisa de 50 de milhões de aposentados, gente que recebe, na média, R$ 4 mil. As quadrilhas conseguiram do INSS os dados pessoais das vítimas e fraudaram autorizações para os descontos.

A roubalheira contra os aposentados do andar de baixo envolveu um ervanário que vai a R$ 6,3 bilhões, mas só o prosseguimento das investigações chegará ao montante exato da tunga. Uma auditoria feita pelo TCU nas contas de um só ano já estimou o desvio em R$ 1,55 bilhão.

Uma pesquisa feita pela CGU junto de 1.300 aposentados mostrou que 97% não haviam autorizado os descontos. Mais: 70% de 29 entidades investigadas haviam sido credenciadas pelo INSS sem apresentar a devida documentação.

Num primeiro lance, na quarta-feira, 700 policiais federais e 60 servidores do INSS cumpriram 211 mandados de busca e apreensão em 13 estados e Brasília, prenderam três pessoas e sequestraram mais de R$ 1 bilhão em bens e dinheiro, inclusive uma Ferrari e um Porsche. Fala-se até num Rolls Royce. Para felicidade geral, o diretor da PF, Andrei Passos Rodrigues, anunciou que a operação da semana passada é apenas “uma investigação que está no seu começo”.

A reação (tardia) do governo foi puramente marqueteira, arruinada pelo desassombro do ministro da Previdência, doutor Carlos Lupi. Naquela manhã, ele garantiu, durante uma entrevista coletiva: “A indicação do doutor Stefanutto é da minha inteira responsabilidade”. Alessandro Stefanutto, presidente do INSS, foi demitido horas depois.

Lula e Lupi são adultos e sabem o que estão fazendo. Há anos tratam do INSS com a opção preferencial pela empulhação. Lupi prometeu zerar a fila da Previdência até o final de 2023 e hoje ela já passou dos dois milhões de vítimas.

A coletiva dos ministros destinava-se a mostrar que haviam sido desbaratadas quadrilhas cevadas pelo governo anterior. Pelas cifras e pelas datas, a história parece ser outra.

Durante o governo de Jair Bolsonaro, a tunga passou de R$ 604 milhões para R$ 706,2 milhões. Com Lula 3.0 ela pulou de R$ 1,3 bilhão para R$ 2,6 bilhão. A repórter Maria Cristina Fernandes mostrou que em agosto de 2023 já haviam chegado à Câmara dos Deputados denúncias de descontos indevidos, e o deputado Gustinho Ribeiro (Republicanos-PB) alertou o Tribunal de Contas da União. Portanto, em agosto de 2023 o governo soube que os aposentados estavam sendo roubados.

Entre 2023 e abril de 2025, o INSS e o Ministério da Previdência fizeram coisa nenhuma. Suspenderam os repasses para logo depois retomá-los. A Dataprev recomendou que se usasse a biometria para registrar a autorização dos descontos. Não foi ouvida.


Dona Josefa e a Ambec

Entre a manhã e a tarde de quarta-feira, o governo simulou uma ação coordenada para proteger os aposentados que vinham sendo roubados. Mostrou alguma surpresa e informou que pretende ajudar no ressarcimento dos lesados. Fica combinado assim.

Em dezembro de 2023, o repórter Luiz Vassalo publicou o caso de Josefa Brito, de 74 anos, moradora no extremo Sul de São Paulo. Ela brigava na Justiça para receber de volta seu dinheiro, tungado pela Ambec.

Tomavam-lhe R$ 45 a cada mês.

Ela contou: “Eu procurei a Justiça porque eu fui ao INSS e me mostraram lá que a Ambec estava descontando. É pouco, mas me faz falta. E eu não autorizei desconto nenhum. Como que pode descontar na sua aposentadoria uma coisa que você não autoriza? O aposentado ganha pouco, não dá nem para comprar medicamento.”

Josefa estava num grupo de 600 pessoas que processava a Ambec. Àquela altura, corriam 2,3 mil ações contra a entidade.

A Ambec atende pelo bonito nome de Associação dos Aposentados Mutualistas para Benefícios Coletivos. Segundo o TCU, em dezembro de 2021 ela tinha três associados, um ano depois (governo Lula 3.0) eles eram 600 mil e sua arrecadação ficou em R$ 91 milhões.

A CGU listou o empresário Maurício Camisotti como “figura central” da Ambec. Só o prosseguimento da investigação poderá detalhar suas conexões com a rede de negócios da entidade. Por enquanto, sabe-se que seis parentes seus estavam na Ambec ou tinham tratos com ela. O juiz Massimo Palazzolo, da 4ª Vara Criminal Federal de São Paulo, viu “fundadas razões” para suspender suas operações com o INSS e bloquear até R$ 174 milhões da entidade e de outras quatro empresas que com ela operavam.


O irmão de Lula no Sindnapi

As quadrilhas que tungavam os aposentados tiveram a ajuda da inércia de um braço do governo e do acesso aos dados pessoais das vítimas. Horas depois da ruinosa fala do ministro Lupi, veio outra surpresa: José Ferreira da Silva, o Frei Chico, irmão mais velho de Lula, de 83 anos, é o vice-presidente do Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos do Brasil (Sindnapi), uma das entidades listadas na investigação.

Lula teve pelo menos 17 irmãos (sete do casamento de Lindu, sua mãe) e já completou dez anos como presidente do Brasil. Todos seus irmãos viveram ou vivem modestamente.

Foi Frei Chico quem o atraiu para a vida sindical, da qual catapultou-se para a política. Como vice-presidente do Sindnapi, acima dele só está Milton Baptista de Souza Filho, conhecido como Milton Cavalo, nomeado por Carlos Lupi há duas semanas para o Conselho Nacional da Previdência Social.

O comissariado de Lula 3.0 vive assombrado pela reforma trabalhista de Michel Temer feita em 2017. Ela desossou as finanças dos sindicatos ao extinguir o Imposto Sindical, pelo qual o trabalhador contribuía com um dia de salário a cada ano. Desde então, a máquina sindical busca arrecadar por meio do que chamam de “contribuição”. O Supremo Tribunal considerou constitucional o desconto desse mimo na folha de pagamento dos trabalhadores, sindicalizados ou não. Seria uma remuneração por serviços prestados pelos sindicatos. Como há sindicatos que não prestam serviço algum, legalizaram-se centenas de tungas coletivas.

No caso da roubalheira contra os aposentados, as quadrilhas foram direto ao crime, fraudando até mesmo as assinaturas das vítimas.


sexta-feira, 18 de abril de 2025

O bispo que contestava: dom Angélico Sândalo Bernardino - Bernardo Mello Franco (O Globo)

 Citação do dia : "Cristo foi considerado subversivo e por isso foi crucificado" - Bispo dom Angélico Sândalo Bernardino, que faleceu na terça-feira aos 92 anos

... Em 1976, ele foi vigiado num encontro católico em Barueri, onde acusou a repressão de usar “métodos bárbaros” para “arrancar confissões”. Destemido, repetiria a denúncia numa igreja lotada após o assassinato do operário Manoel Fiel Filho. “Quem não está vendo Deus a falar da morte triste do metalúrgico? Como tantos outros, ele foi torturado”, pregou, antes de se referir ao DOI-Codi como “casa de horrores”. (Maurício David)

 

 

O bispo que contestava

Bernardo Mello Franco 

O Globo, sexta-feira, 18 de abril de 2025


Bispo irritou militares ao denunciar a tortura e apoiar movimentos por creches e moradia

 

Em novembro de 1978, a ditadura resolveu investigar um gibi. A repressão queria saber quem financiava “As Aventuras de Zé Marmita”. Distribuída na periferia de São Paulo, a revistinha narrava a rotina nas fábricas e incentivava os trabalhadores a lutarem por melhores condições de vida. Só podia ser coisa de dom Angélico, bispo tachado de subversivo e adversário do regime.

Na juventude, Angélico Sândalo Bernardino não sabia se queria ser padre ou jornalista. Resolveu o dilema ao unir as duas vocações, ajudando a Igreja a se comunicar com os fiéis. Antes de ser ordenado, ele já escrevia no Diário de Notícias, da diocese de Ribeirão Preto. Mais tarde comandaria as “rádios-cornetas”, com alto-falantes pendurados nos postes de favelas e ocupações.

Em 1969, o religioso foi alvo da primeira perseguição. A polícia quis prendê-lo por suposta ligação com a luta armada. A Igreja saiu em defesa do padre, e a Justiça Militar arquivou o caso por falta de provas. Dois anos depois, dom Angélico foi fichado como “elemento reconhecidamente esquerdista”, envolvido em “atividades subversivas”. “O epigrafado vem transformando o Diário de Notícias num autêntico órgão de contestação revolucionária, semeando intrigas e mentiras contra as autoridades”, esbravejaram os arapongas.

Além de ler os artigos de jornal, os militares se infiltravam nas missas para ouvir os sermões. Em 1974, um informe do II Exército relatou que ele “fez severas críticas ao governo, a quem acusou de culpado pela falta de gêneros, pelo aumento do custo de vida e pelas longas filas do INPS”. “Cristo foi considerado subversivo e por isso foi crucificado”, acrescentou o religioso, para a ira dos espiões disfarçados entre os fiéis.

Em 1976, ele foi vigiado num encontro católico em Barueri, onde acusou a repressão de usar “métodos bárbaros” para “arrancar confissões”. Destemido, repetiria a denúncia numa igreja lotada após o assassinato do operário Manoel Fiel Filho. “Quem não está vendo Deus a falar da morte triste do metalúrgico? Como tantos outros, ele foi torturado”, pregou, antes de se referir ao DOI-Codi como “casa de horrores”.

Incansável na defesa dos direitos humanos, o cardeal Paulo Evaristo Arns escalou dom Angélico como bispo auxiliar na Zona Leste. Ele passou a conviver com os órfãos do milagre brasileiro, que batalhavam pela sobrevivência em ruas sem asfalto e saneamento básico. O religioso abriu a igreja para os pobres, incentivou movimentos por creches e por moradia, usou sua voz para pressionar os poderosos.

Em 1977, quando um trem se chocou com um ônibus e matou 22 pessoas, ele ameaçou suspender a missa de domingo e se sentar nos trilhos para exigir cancelas de segurança. A RFFSA, que fazia corpo mole, teve que correr para instalar as barreiras.

Ao apoiar as greves do ABC, o bispo ficou amigo de um sindicalista que, muito tempo depois, subiria a rampa do Planalto. Em 2022, ele me disse que não se importava com patrulhas ideológicas. “A Igreja nunca teve partido político. Nós saíamos com o povo reivindicando creche, escola e hospital. Essa era a nossa subversão”, ironizou. “Nos chamavam de comunistas, mas só estávamos ao lado dos trabalhadores.”

Após cinco meses de investigações, a ditadura arquivou o caso do Zé Marmita. A Polícia Federal concluiu que não havia financiadores ocultos. O gibi da pastoral de dom Angélico era rodado “mediante doações em papel, impressão a preços menores e desenhos feitos por estudantes”. O bispo morreu nesta terça, aos 92 anos.

 


O Brasil caminha para o precipício orçamentário - Carlos Alberto Sardenberg (O Globo)

 O ARCABOUÇO JÁ ERA

Carlos Alberto Sardenberg - O Globo, 18/04/25

Quando o governo Lula criou o arcabouço fiscal, muitos analistas e jornalistas, inclusive o autor desta coluna, sustentaram que a coisa toda só funcionaria com expressivos aumentos de receita. Como a carga tributária já era elevada, parecia uma tarefa impossível. Vá lá que se conseguisse algum ganho inicial, mas imaginar que se poderia tirar mais dinheiro do contribuinte por anos a fio era uma ilusão.

Do outro lado da conta, o arcabouço garantia o crescimento da despesa de 2,5% ao ano, acima da inflação. E esse era o verdadeiro objetivo do governo Lula: voltar à velha política petista do aumento permanente do gasto público. 

Como a dívida pública já estava em níveis muito elevados, foi preciso criar o tal arcabouço, apresentado como um sistema mais sofisticado que o teto de gastos. 

Havia aí um argumento: o teto de gastos havia sido furado no governo Bolsonaro. 

Mas o teto serviu muito bem durante o governo de Michel Temer, com Henrique Meirelles no Ministério da Fazenda. A regra, introduzida naquele mesmo governo, era de uma simplicidade brilhante, facilmente compreensível.

Dizia: o gasto do governo de um ano será igual ao do ano anterior, mais a inflação do período. Ou seja, não haveria aumento real da despesa.

Como a economia normalmente tem crescimento real, com o tempo a despesa diminuiria em proporção do PIB. Assim, não precisava de aumento da carga tributária. O ganho com impostos, resultante de uma maior produção econômica, formaria um superávit primário, com o qual se poderia abater a conta de juros e reduzir o endividamento do governo. Assim funcionou.

Aliás, incluídas as reformas – previdenciária (encaminhada), trabalhista, introdução das Parcerias Público Privadas e revisão a Taxa de Juros de Longo Prazo, eliminando subsídios nos financiamentos do BNDES – o governo Temer deixou uma herança extremamente positiva: um país preparado para crescer em regime de estabilidade fiscal.

O governo Bolsonaro conseguiu concluir a reforma da Previdência, mas foi só. Verdade que teve a pandemia, que exigiu gastos enormes para apoiar famílias e empresas, mas em cima disso o teto começou a ser furado com diversas exceções, as despesas feitas mas não contabilizadas.

No governo Lula, o ministro Fernando Haddad, decretou a morte do teto de gastos, e inventou o arcabouço fiscal, apresentado como uma grande sacada: permitiria o aumento de gastos com equilíbrio fiscal.

Curioso: o ministro dizia que o teto de gastos não tinha como funcionar, pois engessaria um governo que precisava gastar para atender os mais pobres. Mas, na prática, o que fez o ministro? Criou um teto mais alto: a despesa de um ano passou a ser igual à do ano anterior, mais a inflação e mais 2,5% reais. 

Não deu certo. O arcabouço nasceu torto porque o governo criou e/ou aumentou despesas que cresceram mais que 2,5% ao ano. São os gastos obrigatórios com Previdência, funcionalismo e programas sociais (Benefício de Prestação Continuada, abono e seguro-desemprego). 

Ora se a parte maior da despesa cresce mais que os 2,5% permitidos, os demais gastos terão que ser cortados. Como o governo não quer cortar, aumenta os impostos. Como mesmo o aumento de impostos é insuficiente, volta-se à prática de excluir despesas do teto. Não entram na contabilidade, de modo que a meta de equilíbrio está cumprida formalmente, mas a dívida pública aumenta – onde mora o problema maior.

Dá nisso: para equilibrar as contas deste ano, o governo precisa aumentar receitas. Para o ano que vem, conforme o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias, recém enviado ao Congresso, o governo vai precisar tirar mais R$ 118 bilhões dos contribuintes. Não há a menor indicação plausível de como isso será feito. Em 2027, segundo as previsões oficiais, o dinheiro acaba. Feitos os gastos obrigatórios, não sobra dinheiro nem para o cafezinho do pessoal. 

Ou seja, esqueçam isso de equilíbrio ou arcabouço fiscal. O governo vai aumentar o déficit e a dívida. Isso será igual a mais inflação, juros mais altos e menos crescimento.