“A diplomacia sem as armas é como a música sem os instrumentos”(Otto von Bismarck)
Mas, existem armas e armas. Há poder e poder.
“Soft power”. Foi o poder ao que aprendi a lançar mão ao longo de minha carreira como diplomata. Claro que houve situações em que a defesa dos interesses do Brasil e de cidadãos brasileiros me fizeram atuar no campo da “real politics", na diplomacia política ou consular. Não fiz mais que a minha obrigação de diplomata, nada que qualquer colega não teria feito. Essa é nossa missão.
Mas agindo assim, os diplomatas brasileiros recorrem ao nosso “soft power”, esse outro poder, essa idiossincrasia da nossa postura diplomática. Poder menos contundente na aparência, sem o “big stick” que - de resto - nunca brandimos. Mas, efetivo e eficiente na sua essência.
Não foi diferente comigo quando, sob instruções ou por índole ou afeição a esse jeito brasileiro de ser, vali-me dessa boa imagem de que goza o Brasil.
Acho que assim é que deve ser feito. Vale dizer, construir uma atmosfera de cordialidade e respeito em torno da diplomacia brasileira e de suas atitudes. Isso, é claro, emana da nossa escola e de nossa formação. Mas, sobretudo, do berço, desse berço esplêndido chamado Brasil.
“Soft power” e diplomacia cultural.
Lembro que cheguei a Belgrado com a bagagem carregada de quinquilharias alusivas ao Brasil, camisetas, flâmulas, bonés que eu comprei naquele espaço do Rio que chamam de Saara, antes da viagem, depois da sabatina no Senado em Brasília.
Foi assim que, poucas semanas antes da Copa do Mundo de 2006, a nossa Embaixada soube que a Prefeitura de Belgrado estava organizando uma mini-Copa do Mundo, com equipes de escolas primárias da cidade representado as 32 seleções da competição. Armaram um campinho de futsal com piso sintético na Trg República (Praça da República), no centro da cidade. Convoquei meus colaboradores e fomos pra lá conferir. Me apresentei ao Prefeito, e fiz distribuir regalos e mimos, inclusive a bola verde-amarela do jogo final: Brasil x Suécia. A Suécia foi a campeã. Mas os outros meninos também ganharam presentinhos.
Ao final das celebrações fui procurado por um grupo de pais dos alunos, que chamaram a atenção para o fato de que, dos 32 países da Copa, apenas o Embaixador do Brasil se fez presente, prestigiando a iniciativa.
A partir daí, e tão logo retornadas as aulas, recebi muitos convites de Diretores de escolas para apresentações sobre o Brasil. E foram muitas iniciativas da Embaixada, desde a participação em programas de rádio de fim de semana da BG-202, sobretudo o “Brazilska Corba” (literalmente, Sopa Brasileira) a exibição de filmes brasileiros na Cinemateca Iugoslava. Todo ano havia uma “Semana do Filme Brasileiro”.
Durante a Copa do Mundo de Futebol de 2006, a Embaixada fechou um espaçoso e popular “sports bar” em zona nobre de Belgrado. Farta distribuição de camisetas e adereços verde-amarelos. A fábrica de cerveja Jelen Pivo, na época pertencente à IMBEV, contribuiu para o patrocínio do evento.
Ademais, o Embaixador do Brasil passou a ser com frequência convidado para a entrega de medalhas em competições esportivas escolares. Não apenas na Capital, mas em cidades próximas.
Na área das chamadas “performing arts”, a Embaixada sempre patrocinou a participação do Brasil nos diferentes festivais de Belgrado, piano, violão, dança, jazz, etc.
Tudo isso não seria possível se o Brasil e os brasileiros não gozassem de uma ótima imagem e grande simpatia na alma e no coração dos sérvios, que nunca esqueceram o nosso apoio em momentos críticos da história recente da país, como a manutenção de nossa Embaixada aberta durante os bombardeios da OTAN em 1999 e no caso da secessão do Kossovo, província cuja independência unilateral o Brasil nunca reconheceu.
Dito isso, recordo ter recebido há dias uma mensagem de e-mail de um funcionário local da Embaixada em Abidjan, onde servi de 1983 a 1986. Sylla Mory Yaby;
“Je me rappelle très bien des nombreux matches ( jogos) de football organisés régulièrement, à votre initiative contre des équipes des villages environnant d'Abidjan. Je me souviens de votre l'initiative quand nous sommes allés jouer contre une équipe de villageois sur un terrain situé en pleine plantations de palmiers ( dênde ) dans la région de Bonoua, après la ville de Grand Bassam. C'était tellement vivant, cordial et amical avec tous ces villageois qui voyaient pour la première fois une équipe ( composés de brésiliens ) venir jouer contre eux. C'était une diplomatie de proximité que vous avez inventée.
Chef Dante, en plus de tout ce que je viens de relater, vous avez été pour moi quelqu'un de bien et un excellent Chef car, c'est vous qui m'avez tout faciliter en intégrant l'Ambassade, permis de me réaliser en créant aujourd'hui une famille heureuse. Merci pour cela. Qu'Allah vous bénisse et ainsi que tous les membres de votre Famille”.
Sylla faleceu logo depois.
Mas a memória do nosso soft power ficou por ali.
Ali e alhures onde pude exercê-lo com sentido de missão.
ZIRIGUIDUM IN SIGUIDUNUM
(ou o quase malogro de uma pretensa boa ideia)
Belgrado, Sérvia, Embaixada do Brasil. O povo sérvio gostava muito da cultura brasileira. Na Embaixada fazíamos muita coisa a baixo custo, como, por exemplo, os já populares “bate-papos com o Brasil” que a dedicada colega Rujiza criou e organizava. Aulas informais de língua e cultura brasileiras num bar da esquina, depois do expediente. Todo mundo gostava. Difusão cultural quase a custo zero.
A emissora local de rádio BG-202 criou um programa de uma hora aos sábados, dedicado à música e à cultura brasileira.
A Embaixada contribuía com uma módica subvenção e meu filho André fazia dupla com um jornalista sérvio na apresentação do programa. Eu cedia livros e discos que eram usados para transmissão e debates no programa. O programa de rádio levava para a emissão toda personalidade brasileira de passagem pelo país.
Eu até conhecia a expressão latina “Sutor, ne supra crepidam” (sapateiro, não vá além do sapato), mas não quis desperdiçar tamanho ambiente favorável e a avidez que eu via na sede de consumo cultural brasileira na Sérvia, e pretendi dar um passo mais largo que a própria perna. Menos mal que minha perna nunca foi assim muito longa…E fui além do sapato. . .
Uma vez sobrou uma graninha da dotação cultural da Embaixada. Pensei em levar adiante um projeto de difusão adicional da música brasileira no país.
Mas, afinal feitos os cálculos, faltaram uns caraminguás. Meti a mão na minha rasa algibeira e botei mais alguns cobres e produzimos uns CDs, com coletâneas de música brasileira. Impecavel seleção, modéstia à parte. Distribuição gratuita. Nada de venda, fui logo avisando.
Na hora de escolher o título do CD, deu-se um debate. E pretendi fazer-me de engraçado. Lembrei-me de uma instalação que a Prefeitura de Belgrado montara no alto da outrora fortaleza turca de Kalemegdan, que sobranceia o encontro das águas dos rios Danúbio e Sava. A pororoca balcânica. A tal instalação trazia a lista dos nomes que a capital tivera em diversas fases de sua longa história de país invadido e conquistado.
O primeiro nome de Belgrado fora SIGUIDUNUM, palavra de origem ceuta, remontando à época em que uma certa tribo ceuta colonizou a área no século III a.C., após a invasão gaulesa dos Bálcãs.
Perfeito. Estava criado o sonoro título do projeto: “Ziriguidum in Siguidunum”. Eu era mesmo um craque, pensei comigo, desses que gostam de brincar com as palavras. Que grande achado.
Mas, qual o que. Não vingou minha brilhante ideia. Ninguém, sérvio ou brasileiro, foi capaz de captar a mensagem do “amado Mestre”, como pretenderia o Rolando Lero, na Escolinha do Professor Raimundo.
Acabou sendo algo como o prosaico “o Brasil musical em Belgrado”.
Mas as músicas eram muito boas, tipo Tom e Vinícius, Chico, Caetano, Gil, Noel Rosa, Cartola e outros, escolhidos a dedo. E a coração.
Claro, o primeiro volume esgotou-se rapidamente. Meus amigos sérvios (mas não só) proprietários de barzinhos, pediram mais, tamanho o sucesso e a demanda. Não pude, contudo, deixar de estranhar. Fui lá conferir. E descobri que os caras estavam vendendo meus CDs. Quase chorei de raiva. Apesar da clara menção: “Slobodna distribucija, prodaja zabranjena” (Distribuição gratuita, venda proibida). E mandei produzir mais CDs.
Fazer o que?
“Soft power” é (mais ou menos) isso.
Dante Lima
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