Ideias preliminares sobre a Cátedra José Bonifácio -USP
2021-2022
Rubens Ricupero
O próximo período da Cátedra José Bonifácio coincide com o Bicentenário da Independência do Brasil. O patrono da cátedra foi a figura principal da independência, ao lado de Dom Pedro I. A dupla circunstância do aniversário nacional e do papel central nele desempenhado pelo Patrono da Independência quase que impõem de forma natural que a reflexão sobre o Bicentenário ocupe espaço central nos estudos e pesquisas da cadeira neste ano.
José Bonifácio se destaca como figura original, quase única, entre os fundadores de nações nas Américas durante a era da independência. Não foi chefe militar, nem era jurista primordialmente. Homem de ciência num país sem ciência, universitário em terra sem educação superior, educado nas melhores universidades e centros científicos europeus, aplicou seu espírito científico a imaginar o que poderia vir a ser a nação cuja existência apenas começava naquele momento. Propôs ideias para resolver praticamente todos os desafios principais do país: a escravidão, o tráfico de escravos, a situação dos indígenas, o acesso à terra, o crédito, o desenvolvimento das minas e da indústria, a educação, a imigração.
A mais importante biógrafa moderna do Patriarca, a Professora da USP, Míriam Dolhnikoff, elaborou um livro intitulado Projetos para o Brasil José Bonifácio de Andrada e Silva (São Paulo: Companhia das Letras, 1998), que reúne e organiza todos esses projetos para criar um país moderno e aberto ao futuro. Em fins de 1990, poucas semanas antes de sua morte, José Guilherme Merquior havia feito uma conferência em Paris sobre os grandes projetos históricos de Brasil-nação. O primeiro consistia no que chamava de “Projeto Andrada”, resumido em executivo forte, imigração para substituir a escravatura e crédito do Banco do Brasil para desenvolver o país.
Os projetos que o Patriarca sonhou para a nação poderiam servir-nos de inspiração na hora de planejar as atividades da Cátedra JB nos próximos meses. Não para levar avante um programa de estudos históricos sobre a Independência, o que já foi feito de forma magnífica e recente por pesquisadores da USP por meio, sobretudo, do projeto temático Brasil: Formação do Estado e da Nação. Sob coordenação e liderança do professor da USP, István Jancsó, falecido em 2010, o projeto reuniu 22 pesquisadores de dez universidades. Resultou na publicação da obra: István Jancsó (organizador), Brasil: Formação do Estado e da Nação. (São Paulo: Hucitec, Unijuí, FAPESP, 2003).
Levando em conta o estudo histórico já realizado, os projetos de Brasil-nação nos fornecem inspiração sobretudo porque, na maioria dos casos, se não na totalidade, os mesmos problemas ou suas sequelas continuam a interpelar os brasileiros na véspera do terceiro século da existência do país independente. Um centenário na vida da nação se presta sempre a duas perguntas inevitáveis: o que se fez? O que falta fazer? As grandes exposições universais do passado se compraziam em inventários exaustivos, balanços que mereceriam o nome de “museus de tudo”: as artes, as invenções, os produtos da indústria, da agricultura, das minas. Nosso propósito, mais realista, se concentraria em partir da situação atual em alguns setores-chaves, poucos e decisivos, como base para reflexão sobre o futuro.
De fato, o programa da Cátedra se voltaria resolutamente para a frente, para responder, acima de tudo, à questão relativa ao que faltou e falta fazer. A ênfase necessariamente recairá no Brasil, pois é do Bicentenário do país que vamos nos ocupar. Nossa Independência, longe de ter sido fenômeno isolado, constituiu o capítulo brasileiro de um processo global: o fim do Antigo Regime, as revoluções atlânticas, as guerras napoleônicas. Tais causas produziram consequências análogas do México à Argentina, englobando praticamente toda a Ibero-América. A dimensão comparativa com os demais países do nosso entorno geográfico e existencial não poderia, portanto, faltar no programa, o que o insere claramente na característica central da cadeira, o estudo da realidade ibero-americana.
Com diferença de poucos anos, os países latino-americanos comemoraram ou ainda devem comemorar seus bicentenários de independência. A Argentina, o mais próximo pela contiguidade e importância, ostenta até dois bicentenários, o da Revolução de 25 de maio de 1810 que derrubou o vice-rei espanhol e instituiu a primeira Junta de Governo e o de 9 de julho de 1816, quando o Congresso de Tucumán proclamou a independência das Províncias do Rio da Prata. Ao escrever sobre o Bicentenário de 2010, o historiador argentino Luís Alberto Romero procurou comparar esse segundo aniversário com o primeiro (1910), no artigo La Argentina en el espejo de los Centenarios, (Nuevo Mundo, Mundos Nuevos, 2010, publicado também em forma mais resumida e com alterações como El espejolejano del primer Centenario, Revista Ñ, Clarín, 26/5/2010).
Os dois escritos de Romero podem nos ajudar na necessária reflexão coletiva que deveremos fazer ao longo dos próximos meses sobre o nosso Bicentenário. Não tanto no conteúdo da análise e sim na metodologia, na forma de abordar a questão, tomando de empréstimo, entre outros aspectos, a comparação entre o primeiro e o segundo centenário, o panorama ao fim de cada um dos dois séculos de existência independente. Ele partiu das duas questões incontornáveis, que chama de uma pergunta e um desafio: o que fizemos? O que podemos fazer? Sua resposta é que se deve buscar um objetivo duplo: dar um balançono que se fez ou deixou de fazer e propor um programa para o futuro, para o que falta fazer ou corrigir.
Tendo de escolher entre um mundo de coisas realizadas em duzentos anos, Romero viu-se obrigado a deixar de lado elementos importantes como a economia e a sociedade. Preferiu concentrar a atenção em três questões: o Estado, a República e a Nação. Esclareço que não proponho reproduzir em relação ao Brasil no programa da cátedra o balanço e o programa que o intelectual portenho levou a efeito sobre a Argentina. Ele escreveu, com efeito, no momento em que se completava, em 25 de maio de 2010, um dos Bicentenários argentinos.
Em nosso caso, enfrentamos situação bastante diferente. Em primeiro lugar, na cronologia, já que o bicentenário brasileiro em tese se completa apenas em 7 de setembro de 2022, portanto além da data do encerramento do programa. Outra diferença reside na coincidência, no mesmo ano, entre o Bicentenário do Brasil e eleições que decidirão sobre o futuro de governo que representa uma “ruptura de civilização” no curso dos 200 anos da história do país independente. Não seria, assim, possível dispor de balanço definitivo desse período e muito menos de programa de futuro antes de saber o que nos reservam as eleições. Em termos de fato, se não de cronologia, o segundo século brasileiro só termina depois das eleições de 2/30 de outubro de 2022.
Por essas razões, proponho a esta altura somente um roteiro e um método para o exercício de reflexão que deveremos empreender como forma ideal de viver o Bicentenário. “Viver”, não “lembrar”, “recordar”, pois uma coisa é trazer à memória acontecimentos passados e acabados, a assinatura do Tratado de Petrópolis, a batalha do Riachuelo. Outra, bem diversa, é evocar um processo vivo em pleno andamento, inacabado, que necessita de nossa ação para que se tente imprimir-lhe sentido de criação do futuro.
Neste caso, temos de viver o processo de dentro, como operários de uma construção em curso. Quanto mais agora que teremos pela frente um bicentenário coincidente com campanha eleitoral decisiva. Dessa campanha deveria fazer parte a discussão de nosso passado e a proposta de razões para crer que o futuro será superior ao presente e melhor do que foi o passado. Longe da posição do analista de fora, somos autores, sujeitos de um processo que se confunde com nosso próprio destino.
É obrigação de cada um fazer com que a comemoração do Bicentenário supere em muito a do Centenário de 1922 em qualidade e, acima de tudo, em participação universal, sem exclusões, de todos os setores da população que nunca tiveram voz. Quem sabe assim o terceiro século do Brasil será capaz de resgatar a dívida deixada pelos dois primeiros: dar sentido ao mosaico formado pelos incontáveis fragmentos partidos da memória, permitir a cada participante do povo brasileiro uma vida de trabalho digno, igualdade e realização cultural.
Rubens Ricupero
São Paulo, 15 de novembro de 2021