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sábado, 9 de novembro de 2024

A diplomacia brasileira da Independência: primeiros obstáculos - Paulo Roberto de Almeida (Nuevo Mundo, Mundos Nuevos )

Mais recente trabalho publicado

1558. “Diplomacia brasileira da Independência: primeiros obstáculos”, revista Nuevo Mundo, Mundos Nuevos (Univ. Paris; número especial: O bicentenário da independência do Brasil. História e memória de uma nação no mundo global, coord.: Janina Onuki, Amancio de Oliveira et Daniel Rojas; Colloques 2024; ISSN électronique: 1626-0252; link do artigo: https://doi.org/10.4000/12hnw). Relação de Originais n. 4562.

Disponível Academia.edu (link: https://www.academia.edu/125412810/4562_Diplomacia_brasileira_da_Independ%C3%AAncia_primeiros_obst%C3%A1culos_2024_)


2024
O bicentenário da independência do Brasil. História e memória de uma nação no mundo global

A diplomacia brasileira da Independência: primeiros obstáculos

Brazilian diplomacy of Independence: first obstacles
Paulo Roberto de Almeida
Résumé | Index | Plan | Texte | Notes | Citation | Auteur

Résumés

O ensaio, de caráter histórico, trata das primeiras questões internacionais afetando o Brasil desde o início do XIX. Esses problemas foram: (a) o reconhecimento do novo Estado pelas potências da época; (b) a situação nas fronteiras do sul, guerrilha dos independentistas uruguaios e guerra contra Buenos Aires em torno do Uruguai; (c) a questão do tráfico e da escravidão, que se arrastava desde o Congresso de Viena em 1815 e que vai se prolongar por mais de três décadas, até 1850 e mais além. Se a primeira questão foi resolvida por meio de negociações diplomáticas, a segunda teve de passar pela mediação britânica para sua solução, ao passo que a terceira representou uma permanência estrutural negativa que projetou seus efeitos sobre a sociedade durante todo o século XIX.

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Texte intégral

O reconhecimento internacional da independência do Brasil

1A afirmação autônoma do Brasil no cenário internacional teve início ainda antes da independência, em agosto de 1822, quando o príncipe regente D. Pedro autoriza a divulgação de um manifesto às nações amigas, redigido pelo brasileiro José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), ocupando a pasta dos Negócios Estrangeiros. Por ele, D. Pedro as convida a continuar com o Reino do Brasil as mesmas relações de mútuo interesse e de amizade, que já mantinham com a Corte instalada no Rio de Janeiro desde 1808. El também aprova a ideia de José Bonifácio de enviar encarregados de negócios para Londres, assim como para outras capitais: Paris, Viena e Estados Alemães, ademais de Buenos Aires. Já tendo o governo português reconhecido, ainda em 1821, no Rio de Janeiro, a independência da Argentina e do Chile, Buenos Aires, no final de 1822, declara reconhecer o escudo de armas e a bandeira do Império brasileiro (não mais do que isso), mesmo se, em agosto do ano seguinte, o governo argentino convida o Império a desistir da posse da Província Cisplatina.

2Nesse manifesto, José Bonifácio deixou bastante claro sobre quais seriam as principais diretrizes que deveriam guiar a ação externa da quase nação independente. Os principais pontos do manifesto eram os seguintes: 1. manutenção das relações políticas e comerciais, sem dar prioridade a qualquer nação; 2. continuidade das relações estabelecidas desde 1808; 3. adoção plena do liberalismo comercial; 4. respeito mútuo ou reciprocidade no trato internacional; 5. abertura do país à imigração; 6. facilidade de entrada para a vinda de sábios, artistas e empresários; 7. abertura do país aos investimentos estrangeiros.

  • 1 Cf. João Alfredo dos Anjos, José Bonifácio, primeiro Chanceler do Brasil. Brasília: Funag, 2007, p (...)

3Ele também foi o primeiro chanceler brasileiro preocupado com a defesa da soberania e a implementação de uma diplomacia eficiente como o melhor instrumento para a política externa da nação emergente. Com Bonifácio, e a despeito do problema da Cisplatina, as prioridades brasileiras passam a ser a aproximação cooperativa com Buenos Aires, a preservação da autonomia decisória do Estado brasileiro em relação às potências hegemônicas, a estruturação de forças armadas eficientes na defesa da soberania, a proteção à indústria nacional. Uma vez obtida a independência, sua postura era a de que o reconhecimento do Império seria obtido mais cedo ou mais tarde, não cabendo ao Brasil fazer concessões às monarquias europeias.1

  • 2 Cf. J. Pandiá Calógeras, A Política Exterior do Império, vol. II: O Primeiro Reinado; edição fac-s (...)

4Tem início, logo após a promulgação da Constituição, outorgada pelo Imperador em março de 1824, o processo de obtenção do reconhecimento da independência, pelo envio de representantes aos principais países com os quais o Brasil português mantinha relações antes da separação. Esses países eram, pela ordem de importância econômica, comercial e política, os seguintes: Grã̃-Bretanha, França, a Santa Sé, Espanha, Áustria, estados da Alemanha, Estados Unidos, Argentina e, sobretudo, Portugal. Na verdade, os únicos reconhecimentos que interessavam ao Brasil, nessa fase, eram, segundo Calógeras, os seguintes: Portugal, pela legitimação do novo Estado e a cessação da situação de beligerância; Grã-Bretanha, pelo seu poderio naval, pela capacidade diplomática e como fonte dos financiamentos absolutamente necessários; Áustria e França, cuja política favorável às independências latino-americanas enfraqueciam os intentos agressivos da Rússia e da própria Espanha; Roma, pelas exigências da religião do Estado, reconhecida constitucionalmente; e as nações platinas, “pela contiguidade e pelas perturbações de ordem fronteiriça”.2

5A primeira missão foi feita em direção da Grã-Bretanha desde 1823. Ela prolongou-se no tempo, pois o governo inglês precisava explorar todos os aspectos da tripla relação com Portugal e o Reino Unido do Brasil: a extinção do tráfico negreiro, segundo compromissos de Portugal no Congresso de Viena, em 1815, e a continuidade dos tratados desiguais de 1810. Outra questão envolvia o interesse de Portugal em transferir para o Brasil a dívida financeira contraída junto aos banqueiros ingleses na fase dos reinos unidos, e pagamentos devidos a D. João VI por suas propriedades no Brasil. Tais assuntos se arrastaram nos dois anos seguintes, até que se logrou obter a assinatura do tratado de 1825 consagrando o reconhecimento formal, por Portugal, da independência do Brasil, assumindo este os ônus financeiros e diplomáticos tão criticados pela Assembleia Geral quando esta começou a funcionar.

6No intervalo, o Brasil obteve sucesso na missão de José Silvestre Rebelo em Washington, em 1824, na questão do reconhecimento formal da independência junto aos Estados Unidos, mas menos na intenção de José Bonifácio de se lograr um pacto defensivo entre os dois países contra tentativas de recolonização europeia das Américas, pela Santa Aliança. Tal medida foi feita pelo presidente Monroe, por meio de mensagem ao Congresso em 1823, pela qual a república americana declarava sua oposição a qualquer tentativa estrangeira de imissão nos assuntos hemisféricos.

7As relações com Buenos Aires tampouco foram isentas de atritos, a despeito do reconhecimento implícito da independência brasileira, mas não formalizada pelo envio de um plenipotenciário ao Rio de Janeiro, justamente em função das pendências sobre a Cisplatina, antes ocupada por tropas portuguesas e depois brasileiras, e anexada formalmente ao Brasil pela Constituição de 1824. Em 1825, Buenos Aires forneceu apoio à incursão do uruguaio Lavalleja contra as tropas brasileiras: a relação evoluiu para uma guerra aberta, que só seria resolvida por nova intermediação britânica, através do armistício de 1828, prevendo a independência do Uruguai. Mas se ele tinha a missão de ser “um algodão entre dois cristais”, esse amortecedor foi constantemente instável, dado o envolvimento dos dois grandes vizinhos nos assuntos internos do pequeno país, até a intromissão do paraguaio Solano Lopez, provocando a “maldita guerra” em função da qual se proclamou uma inédita “aliança tripartite” entre os três países na longa guerra travada contra o “Napoleão do Prata”.

8As relações com a Áustria não deveriam ser isentas de conflitos, dados os vínculos familiares estabelecidos entre os Habsburgos e os Braganças – formalizado no primeiro casamento de D. Pedro com Leopoldina –, mas o reconhecimento tardou, dada a complexidade dos interesses da Santa Aliança. O chanceler austríaco Metternich chegou a manter correspondência com D. Pedro I, e os dois travaram uma legítima “guerra diplomática”, que finalmente se dissolveu no reconhecimento quase geral das monarquias europeias ao Império sul-americano, depois do tratado entre Portugal e Brasil em 1825.

9Um reconhecimento que tardou em demasia foi o da Espanha, realizado apenas em 1834, depois da morte dos dois soberanos, Fernando VII da Espanha e D. Pedro de Portugal, depois do seu retorno ao país natal, em 1831, e de sua luta ganha contra o irmão para assegurar o trono português em favor de sua filha, D. Maria da Gloria. No caso do Brasil, o fator obstrutor da obtenção do reconhecimento pela Espanha foi a invasão portuguesa da Banda Oriental, posteriormente incorporada ao Império como “Província Cisplatina”. O fato de D. Pedro se alinhar aos liberais, e de poder ter sido eventual pretendente ao reino da Espanha, pode não ter sido indiferente ao longo processo de decisão adotado por ela.

10O estabelecimento de relações “normais” entre o novo Império do Brasil, herdeiro da casa dos Braganças, e os demais países, sobretudo as monarquias europeias, com as quais Portugal e Brasil tinham e mantiveram vínculos familiares e intensas trocas no início do século XIX, foram sendo normalizadas ao longo das Regências e, sobretudo, a partir do Segundo Império, mas sem mais tratados desiguais no plano comercial e sem as cláusulas iníquas impostas pela potência dominante da época.

A Bacia do Prata e a Cisplatina: a primeira guerra do Brasil

  • 3 Cf. Hélio Vianna, História do Brasil. 4ª ed.; São Paulo: Melhoramentos, 1966, 3 vols., II, p. 55.

11O Rio da Prata tinha sido devassado por navegadores portugueses desde 1513. Em 1680, depois de fundada Santa Maria de Buenos Aires em 1536, pelos espanhóis, na margem meridional, os portugueses fundar a Colônia do Sacramento no exato oposto setentrional, e também o fizeram em Montevidéu, em 1723. O Tratado de Utrecht de 1715 reconheceu os direitos portugueses sobre aquele posto, mas a luta entre portugueses e espanhóis pelo controle do estuário, e depois entre brasileiros e argentinos, durou um século e meio, até ser concluída em 1828.3 As iniciativas tomadas por José Bonifácio para criar uma possível aliança com os argentinos se chocavam com a ocupação da província oriental, primeiro por tropas portuguesas, depois brasileiras; as planícies uruguaias permaneciam agitadas pela guerrilha do líder independentista, José Gervasio Artigas.

  • 4 Cf. Rubens Ricupero, A diplomacia na construção do Brasil, 1750-2016. Rio de Janeiro: Versal, 2017 (...)

12Em 1825, Buenos Aires apoiou o desembarque de orientales que passam a lutar contra as forças do Imperador, sob o comando de Juan Antonio Lavalleja. “A guerra correu mal para o Império, cujas forças foram derrotadas na batalha de Passo do Rosário”.4 Depois de várias escaramuças terrestres e navais entre os dois vizinhos – inclusive com bloqueio de Buenos Aires pela Marinha imperial  –, decidiu-se, com a mediação inglesa, pela criação de um novo país independente, a República Oriental do Uruguai, em agosto de 1828, garantindo-se, a partir daí, a liberdade de navegação no Rio da Prata.

13A guerra da Cisplatina foi um erro, português, em seguida “brasileiro”, o que tisnou a imagem do novo Império do Brasil, uma designação que já denotava sombrias veleidades expansionistas, o que foi ainda aprofundado, anos depois, pelas contínuas intervenções nas constantes lutas entre blancos e colorados uruguaios, levando a um primeiro confronto com o ditador argentino Rosas, desembocando, mais adiante, na “maldita guerra” provocada pelo ditador paraguaio Solano Lopez contra um gigante pouco preparado para o conflito.

A lamentável diplomacia do tráfico escravo: defendendo o indefensável

14A questão do tráfico escravo ocupou as primeiras décadas de construção do instrumento diplomático brasileiro. O tráfico escravo mobilizava enormes capitais, conjugando os interesses de traficantes, em grande medida transportadores portugueses, e comerciantes e fazendeiros brasileiros. No plano interno, a prática da escravidão era uma instituição extremamente lucrativa, servindo-se dos poderes públicos, e mesmo de sua capacidade de projeção internacional, para promover ganhos privados.

  • 5 Ver Eduardo Silva, Dom Obá d’África, o príncipe do povo: vida, tempo e pensamento de um homem livr (...)

15A diplomacia brasileira foi mobilizada para o encargo pouco glorioso de conter o ímpeto dos ingleses, que pretendiam cortar o fornecimento de braços para a grande lavoura brasileira. O nefando comércio, assim como o próprio instituto da escravidão, sobreviveu durante tanto tempo porque logrou contar com o apoio das autoridades do país. De fato, a questão do tráfico negreiro configurou a mais perene e profunda tensão diplomática do Império, na medida em que condicionou as relações com a maior potência da época. Através de um percurso repleto de incidentes, o Estado imperial defendeu os interesses do conjunto do escravismo brasileiro, logrando manter o tráfico até meados do século.5

  • 6 Cf. Alberto da Costa e Silva, O Vício da África e outros vícios. Lisboa: Edições João Sá da Costa, (...)
  • 7 Cf. Alfredo Carlos Teixeira Leite, O Tráfico Negreiro e a Diplomacia Britânica. Caxias do Sul: Edu (...)

16A Inglaterra teve um papel decisivo nos contornos políticos e nas implicações econômicas do que se poderia chamar de “diplomacia do tráfico”. Esse papel não era evidente em princípios do século XIX, mas foi tornando-se mais e mais importante no período pós-napoleônico. “De grande mercadora de escravos, transformara-se em advogada ardorosa e militante da abolição do tráfico”.6 As colônias britânicas do Caribe também produziam açúcar: enquanto os produtores de açúcar no Brasil tinham garantida tal renovação, pelo tráfico negreiro, o mesmo não ocorria com os produtores das Antilhas, pois o governo britânico havia abolido a prática desde 1807. Portanto, para limitar ou afastar a concorrência brasileira, era preciso liquidar o tráfico para o Brasil, com vistas a criar condições de igualdade para a produção britânica no confronto com a brasileira.7

  • 8 Cf. Leslie Bethell, The abolition of the Brazilian slave trade: Britain, Brazil and the slave trad (...)

17Em 1826, o Brasil independente firmou um tratado com a Inglaterra pelo qual se comprometia a cessar o tráfico num prazo de três anos: efetivamente, lei de 1830 proibiu a introdução de escravos no Brasil, mas grandes quantidades de escravos continuaram a ser desembarcados ilegalmente nas costas do Brasil.8 O período posterior à independência, quando se tinha a perspectiva da supressão do tráfico em virtude dos tratados com a Inglaterra, e o anterior à sua abolição, quando tal evento se anunciava como fatalidade, conheceram aliás uma intensificação dos fluxos de navios.

18A primeira diplomacia brasileira teria na questão do tráfico um dos principais pontos de sua atuação negociadora externa, com repercussões diretas sobre princípios relevantes para a afirmação da nacionalidade, como os da soberania e intervenção externa em porções do território pátrio. A diplomacia britânica tentou condicionar o reconhecimento do Estado brasileiro à abolição do tráfico de escravos, o que foi obtido por tratado celebrado no Rio de Janeiro em 18 de outubro de 1825, que previa os mesmos instrumentos de controle já estabelecidos no acordo de 1817 e fixava a abolição num prazo de quatro anos. Esse ato, porém, da mesma forma que o tratado de amizade, navegação e comércio da mesma data, não foi ratificado por nenhuma das partes, o que ensejou o envio de nova missão inglesa.

19A convenção sobre o tráfico, assinada em 26 de novembro de 1826, considerava subsistentes e obrigatórios para o Brasil as convenções de 1815 e 1817; essa convenção estabelecia o prazo de três anos para a abolição do tráfico, a contar da sua ratificação, efetuada em março de 1827, ou seja, previa-se a extinção do comércio negreiro em março de 1830. O primeiro gabinete regencial chegou a promulgar uma lei, em novembro de 1831, declarando livres todos os escravos vindos de fora do Império e impondo penas aos importadores. Essa lei, porém, “feita para inglês ver”, permaneceu letra morta, à falta de meios efetivos para a sua implementação.

20Nos anos seguintes, a diplomacia brasileira passa a ocupar-se das “Comissões Mistas” criadas pela Convenção de 1826. Nessa época, a parte brasileira não deixa de apresentar suas reclamações contra a Inglaterra, ficando muitas delas sem resposta: as petições são apresentadas por terem sido apreendidos barcos sem provas de que faziam tráfico, por terem sido queimados alguns brigues encontrados com escravos a bordo ou ainda pelo fato de outros terem sido condenados por tribunais puramente ingleses.

21Como a maior parte do tráfico se fazia sob navios de bandeira portuguesa, a partir de 1838, os ingleses, unilateralmente, “passaram a tratar como piratas todos os barcos portugueses empenhados no comércio escravista”. A medida, tomada em reação à recusa de Portugal de estender o tratado bilateral de 1817, materializou-se em 1839 no Palmerston’s Act do Parlamento autorizando a marinha britânica a dar busca em qualquer navio português em alto mar. Em 1842, Portugal concordou em pôr fora da lei o tráfico de negros. No caso do Brasil, o processo de extinção do tráfico demoraria alguns anos mais, ocupando sua diplomacia no absorvente e irritante trato com os britânicos a propósito de navios apresados, da validade dos artigos adicionais aos tratados de abolição do tráfico, de cruzeiros feitos em águas territoriais ou até em portos brasileiros, de pedidos de indenização por perdas ou do funcionamento das comissões mistas no Rio de Janeiro e em Serra Leoa. A partir dos anos 1840, as intervenções em alto-mar se fizeram em ritmo crescente.

22O contencioso com a Grã-Bretanha não se resumia apenas ao lado diplomático. A resistência das elites e a relutância do Governo em fazer cessar o tráfico do lado brasileiro se devia, obviamente, à magnitude dos interesses econômicos em jogo, não apenas os da grande lavoura, mas igualmente os dos comerciantes engajados no intercâmbio legal e ilegal com as costas africanas. De fato, como subproduto do tráfico, um fluxo regular de produtos naturais e de artigos processados de ambos os continentes se tinha estabelecido, desde antes da independência, entre o Brasil e a África. Foi esse comércio direto, que escapava aos circuitos frequentados pelas casas comerciais europeias, que começou a ser colocado em risco, e de fato veio a ser extinto, pela ação dos navios britânicos engajados no combate ao tráfico.

  • 9 Cf. Alan K. Manchester, British Preëminence in Brazil, its Rise and Decline: a study in European e (...)

23Essa resistência se exerceu, sobretudo, por meio da força do direito, quando a Grã-Bretanha recorreu seguidamente ao direito da força. A maior parte das disposições do tratado anglo-brasileiro de 1826 era de duração indefinida, mas os artigos tratando das buscas recíprocas e das comissões mistas remetiam à convenção luso-britânica de 1817, que tinha um prazo de 28 anos. Em consequência, em 1844, ao mesmo tempo em que o Brasil – numa tomada de posição que tem muito a ver com as pressões na área do tráfico – conseguia libertar-se dos efeitos desfavoráveis do tratado de comércio, têm início as tratativas com o Ministro britânico no Rio de Janeiro em torno de um novo projeto de convenção contra o tráfico negreiro. A questão do tráfico interferiu de tal forma “nas relações entre os dois países entre 1827 e 1842 que ela frustrou todos os esforços da Inglaterra em renovar o tratado comercial que ela tinha negociado como preço pelo reconhecimento da independência brasileira”.9

24A Secretaria de Estado passou Nota à Legação britânica, em novembro de 1844, declarando abolido, junto com outras disposições do tratado de 1827, o cargo de juiz conservador, símbolo secular das relações privilegiadas que a Inglaterra mantinha com Portugal desde o reino de D. Afonso V, o Africano, no século XV. A Constituição do Império tinha abolido o foro privilegiado, mas o tratado anglo-brasileiro de 1827 declarou-o subsistente até que se encontrasse solução satisfatória. Em março e julho de 1845, o Governo imperial passa novas Notas à Legação da Grã-Bretanha com vistas à cessação das convenções sobre escravidão de 1817 e de 1826. As comissões mistas do Rio de Janeiro e da Serra Leoa deviam cessar suas funções em setembro de 1845. Para o Brasil, as forças navais inglesas não mais poderiam perseguir navios brasileiros e levá-los a julgamento. A Inglaterra, que tinha aceitado, embora com visível antipatia, a caducidade do acordo de comércio, considerava, contudo, que os arranjos relativos ao tráfico tinham caráter de perpetuidade.

25A relutância do Brasil em renovar as cláusulas do direito de busca e as que tratavam das evidências materiais indiretas de transporte de escravos induziu o Governo britânico a reforçar as medidas punitivas. O ministro do Exterior, Lord Aberdeen, fez o Parlamento aprovar, em agosto de 1845, uma réplica do Palmerston’s Act, apenas que desta vez dirigido contra os negreiros brasileiros, equiparando-os, portanto, a piratas. As embarcações empregadas no tráfico seriam passíveis de julgamento no Alto Tribunal do Almirantado ou em qualquer tribunal do Vice Almirantado dentro dos domínios de Sua Majestade Britânica.

  • 10 Cf. Brasil, Ministério dos Negócios Estrangeiros. Relatório de 1846. Rio de Janeiro: Typographia N (...)

26O Ministro dos Negócios Estrangeiros, Limpo de Abreu, passou Nota, em 22 de outubro, protestando contra o ato do Parlamento. A Nota representa uma aula de direito internacional, e nela também se procurava fazer uma distinção entre tráfico de escravos e pirataria: “O tráfico não ameaça o comércio marítimo de todos os povos como a pirataria”.10 O protesto foi entregue ao ministro inglês no Rio de Janeiro e chegou às mãos do governo britânico em dezembro de 1845; nunca teve resposta.

27Os protestos diplomáticos brasileiros a propósito dos arbítrios cometidos pela Royal Navy tornam-se uma constante nos relatórios de finais dos anos 1840, encontrando, porém, ouvidos moucos no Foreign Office. Em abril de 1850, Palmerston chegou mesmo a afirmar que o Aberdeen Act, permitindo a captura de navios brasileiros, não continha limites ou restrições à captura de navios traficantes. A resposta britânica, a partir de junho desse último ano, foi a intensificação da caça aos navios engajados direta e indiretamente no tráfico, com sua destruição ou aprisionamento inclusive em portos e rios brasileiros. Os custos financeiros, políticos e diplomáticos do tráfico estavam se tornando muito altos para o Brasil, mormente numa conjuntura de conflitos no Prata, em função dos quais o Governo imperial esperava obter suporte financeiro junto à praça londrina.

  • 11 Cf. Lydinéa Gasman, Documentos Históricos Brasileiros. Rio de Janeiro: Fename, 1976, p. 131-132.

28Em setembro de 1850, o Parlamento aprovou a lei Eusébio de Queiroz, proibindo o comércio de escravos e introduzindo ao mesmo tempo dispositivos eficazes para sua repressão. A lei 531, de 4 de setembro, estabelecia medidas para a repressão do tráfico de africanos, determinando a apreensão de embarcações, a imputação de crime, equivalente a pirataria, julgado pela Auditoria da Marinha em primeira instância e pelo Conselho de Estado em segunda, estipulando ainda a reexportação dos escravos para os portos de embarque; as medidas foram reguladas em decreto de 14/11/1850.11 A lei Aberdeen, contudo, foi revogada pelo Parlamento britânico apenas em 1869, numa conjuntura de conciliação de interesses entre os dois países, depois que a crise montante nas relações bilaterais, agravada pelo caráter arrogante do Ministro Christie, tinha conduzido, em princípios da década, à própria ruptura de relações diplomáticas.

Conclusão: a diplomacia brasileira na construção do Estado

29A despeito das frustrações e desacertos enfrentados nos dois grandes temas da primeira agenda externa do Brasil no momento da independência e nos anos seguintes – os conflitos com as Províncias Unidas na questão da Cisplatina e os com a Grã-Bretanha, na vergonhosa defesa do tráfico e da escravidão –, a diplomacia profissional brasileira representou, desde o período inicial da construção do Estado, um dos setores mais bem preparados e um dos mais eficientes e constantes na burocracia pública, cujos traços e características essenciais, nessa fase inicial do século XIX, eram, bem mais “patrimoniais” do que propriamente “racionais-legais”. Ao assegurar, nessa etapa formadora da nação, a representatividade internacional do Estado brasileiro, a classe diplomática brasileira contribuiu para a sua construção e fortalecimento. De fato, ao trabalhar, basicamente, no Estado, pelo Estado e para o Estado, ela ajudou a construir, com sua parcela de esforços, a própria identidade brasileira, embora bem mais voltada para a construção da Ordem política do que, propriamente, para a consolidação do progresso social. Mas, a diplomacia, em si, não poderia evitar os traços patrimonialistas e oligárquicos do novo Estado: ela também era uma de suas expressões mais acabadas, como eram, aliás, todas as demais diplomacias do mundo de Estados organizados então existentes.

30A despeito de não existir, formalmente, antes da conquista da autonomia nacional, ela começa a aprender de certa forma por osmose, uma vez que as relações internacionais do Brasil passaram a estar inseridas no quadro do primeiro grande arranjo “multilateral” do início do século XIX. No Congresso de Viena, em 1815, estiveram representadas apenas oito nações “cristãs”, o Brasil no contexto do “Reino Unido” ao de Portugal, em virtude da relação privilegiada da Coroa lusitana com a Grã-Bretanha e basicamente no contexto de seu envolvimento, embora involuntário, com o grande drama napoleônico que agitou a Europa na sequência da Revolução francesa. As relações de força e de poder desenhadas naquela primeira grande conferência diplomática da era contemporânea continuaram a dominar os desenvolvimentos diplomáticos (e militares) durante a maior parte do século XIX, tendo o Brasil se inserido desde o início no contexto regional, o que compreendeu igualmente a doutrina Monroe. Nessa primeira fase, caracterizada pelo realismo cru do início do século XIX, navios de guerra das nações “civilizadas” se achavam no direito de violar impunemente, em nome de um conceito peculiar de “justiça”, as águas territoriais de países periféricos e, como ocorreu em algumas ocasiões, até mesmo nos portos brasileiros.

31A diplomacia brasileira da independência pagou um alto preço na sua imagem externa em virtude das heranças recebidas do período português. A continuidade do tráfico e a da escravidão, no período brasileiro, a partir das Regências, não ajudou muito na construção de uma imagem melhor. Sua reconstrução viria aos poucos, de maneira muito lenta, talvez, para padrões civilizatórios mais aceitáveis no plano global.

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Notes

1 Cf. João Alfredo dos Anjos, José Bonifácio, primeiro Chanceler do Brasil. Brasília: Funag, 2007, p. 91.

2 Cf. J. Pandiá Calógeras, A Política Exterior do Império, vol. II: O Primeiro Reinado; edição fac-similar; Brasília: Câmara dos Deputados, 1989, p. 386.

3 Cf. Hélio Vianna, História do Brasil. 4ª ed.; São Paulo: Melhoramentos, 1966, 3 vols., II, p. 55.

4 Cf. Rubens Ricupero, A diplomacia na construção do Brasil, 1750-2016. Rio de Janeiro: Versal, 2017, p. 138.

5 Ver Eduardo Silva, Dom Obá d’África, o príncipe do povo: vida, tempo e pensamento de um homem livre de cor. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

6 Cf. Alberto da Costa e Silva, O Vício da África e outros vícios. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1989, p. 28.

7 Cf. Alfredo Carlos Teixeira Leite, O Tráfico Negreiro e a Diplomacia Britânica. Caxias do Sul: Educs, 1998, p. 9.

8 Cf. Leslie Bethell, The abolition of the Brazilian slave trade: Britain, Brazil and the slave trade question, 1807-1869. Cambridge: Cambridge University Press, 1970, p. 388.

9 Cf. Alan K. Manchester, British Preëminence in Brazil, its Rise and Decline: a study in European expansion. New York: Octagon Books, 1972, p. 159.

10 Cf. Brasil, Ministério dos Negócios Estrangeiros. Relatório de 1846. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1846, p. 12.

11 Cf. Lydinéa Gasman, Documentos Históricos Brasileiros. Rio de Janeiro: Fename, 1976, p. 131-132.

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Pour citer cet article

Référence électronique

Paulo Roberto de Almeida« A diplomacia brasileira da Independência: primeiros obstáculos »Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En ligne], Colloques, mis en ligne le 12 octobre 2024, consulté le 10 novembre 2024URL : http://journals.openedition.org/nuevomundo/96978 ; DOI : https://doi.org/10.4000/12hnw

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Auteur

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor, doutor em Ciências Sociais, Diretor de Relações Internacionais do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal

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