O plano de Putin para destronar o dólar
Presidente da Rússia espera que parceiros do Brics encampem sua estratégia para driblar sanções O presidente da Rússia, Vladimir Putin, estava animado na semana passada ao receber líderes mundiais, incluindo Narendra Modi e Xi Jinping, na cúpula do Brics em Kazan. No ano passado, quando o bloco se reuniu na África do Sul e se expandiu de cinco para dez membros, Putin teve de ficar em casa para evitar ser preso por um mandado emitido pelo Tribunal Penal Internacional. Desta vez, ele foi o anfitrião do clube em rápido crescimento que está desafiando a ordem liderada pelo Ocidente.
Em 15 anos, o Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) conquistou pouco. No entanto, Putin espera dar peso ao bloco, fazendo-o construir um novo sistema de pagamentos internacionais para atacar o domínio dos EUA nas finanças globais e proteger a Rússia e seus amigos das sanções.
Um sistema de pagamentos do Brics permitiria "operações econômicas sem depender daqueles que decidiram transformar dólar e euro em armas".
Esse sistema, que a Rússia chama de "Ponte do Brics",
deve ser construído dentro de um ano e permitiria que os países
fizessem liquidações transnacionais usando plataformas digitais
administradas por seus bancos centrais. Surpreendentemente, ele pode
tomar emprestado conceitos de um projeto diferente chamado mBridge,
parcialmente administrado por um bastião da ordem liderada pelo
Ocidente, o Banco de Compensações Internacionais (BIS), sediado na
Suíça.
As negociações elucidaram um pouco a corrida para refazer os circuitos financeiros do mundo. A China há muito aposta que a tecnologia de pagamentos - não uma rebelião de credores ou conflito armado - reduzirá o poder dos EUA.
O plano do Brics pode
tornar as transações mais baratas e rápidas. Esses benefícios podem ser
suficientes para atrair economias emergentes. Em um sinal de que o
esquema tem potencial genuíno, as autoridades ocidentais estão
cautelosas de que ele seja projetado para escapar de sanções.
Alguns estão frustrados com o papel não intencional do BIS, conhecido como o banco central dos bancos centrais.
O domínio americano do sistema financeiro global, centrado no dólar, tem sido um pilar da ordem do pós-guerra e colocou os bancos americanos no centro dos pagamentos internacionais. Enviar dinheiro ao redor do mundo é um pouco como pegar um voo de longa distância; se dois aeroportos não estiverem conectados, os passageiros precisam trocar de voo, de preferência em um hub movimentado. No mundo dos pagamentos internacionais, o maior hub são os EUA.
PODER. Como quase todos os bancos que fazem transações em dólares têm de fazê-lo por meio de um banco correspondente nos EUA, o país é capaz de monitorar os fluxos em busca de sinais de financiamento terrorista e evasão de sanções. Isso fornece aos americanos um enorme poder.
Após a invasão da Ucrânia
pela Rússia em 2022, o Ocidente congelou US$ 282 bilhões em ativos
russos mantidos no exterior e desconectou os bancos russos do Swift,
usado por cerca de 11 mil bancos para pagamentos internacionais.
Os EUA também ameaçaram "sanções secundárias" a bancos em outros países
que apoiem o esforço de guerra da Rússia. Esse tsunami levou os bancos
centrais a acumular ouro, e os adversários dos EUA a deixarem de usar o
dólar para pagamentos, o que a China vê como uma de suas maiores
vulnerabilidades.
Putin esperava capitalizar essa insatisfação em relação ao dólar na cúpula do Brics.
Para ele, criar um novo esquema é uma prioridade prática urgente, bem
como uma estratégia geopolítica. Os mercados de câmbio da Rússia agora
negociam quase exclusivamente em yuans, mas, como o país não consegue
obter o suficiente da moeda chinesa para pagar todas as suas
importações, a Rússia foi reduzida às trocas. Putin espera avançar seus
planos para o Brics Bridge,
um sistema de pagamentos que usaria dinheiro digital emitido por bancos
centrais e apoiado por moedas fiduciárias. Isso colocaria bancos
centrais no meio de transações transnacionais, e não bancos
correspondentes com acesso ao sistema de compensação de dólares nos EUA.
A maior vantagem para ele é que nenhum país poderia impor sanções a outro. A mídia estatal chinesa diz que o novo plano do Brics "provavelmente
se baseará nas lições aprendidas" com o mBridge, uma plataforma de
pagamentos experimental desenvolvida pelo BIS junto com os bancos
centrais da China, Hong Kong, Tailândia e Emirados Árabes.
O experimento do BIS foi inocente em seus objetivos e teve início em 2019, antes da invasão feita pela Rússia. Ele tem sido incrivelmente bem-sucedido. Poderia reduzir o tempo de transação de dias para segundos e os custos de transação para quase nada. Em junho, o BIS disse que o mBridge havia atingido o "estágio mínimo de produto viável" e o banco central da Arábia Saudita se juntou como um quinto parceiro no esquema. Ao criar um sistema que poderia ser mais eficiente do que o atual e enfraquecer o domínio do dólar, o BIS involuntariamente entrou em um campo minado geopolítico.
Os ganhos de eficiência de novos tipos
de dinheiro digital podem corroer o uso do dólar no comércio
internacional, de acordo com o Fed.
Reciprocamente, eles poderiam impulsionar a moeda da China.
A maioria dos pagamentos internacionais é em dólares e normalmente ocorre em uma cadeia de bancos intermediários. Em vez disso, o projeto mBridge depende de bancos centrais e lhes dá visibilidade e algum controle sobre os bancos nacionais e sobre o uso de suas moedas digitais por bancos estrangeiros.
Na etapa 1, um banco que envia um pagamento internacional trocaria a moeda normal (A$) por uma moeda digital (eA$) emitida diretamente pelo banco central. Na etapa 2, o banco a trocaria por uma moeda digital estrangeira (e-B$), que enviaria na etapa 3. O banco estrangeiro trocaria isso de volta para dinheiro normal na etapa 4.
É possível que os conceitos e o código do mBridge sejam replicados pelo Brics,
China ou Rússia? O BIS, sem dúvida, vê o mBridge como um projeto
conjunto e acredita que tem a palavra final a respeito de quem pode
participar.
No entanto, algumas autoridades ocidentais dizem que os participantes do
teste do mBridge podem ser capazes de repassar o capital intelectual
que ele envolve para outros, incluindo participantes do Brics Bridge.
De acordo com várias fontes, a China assumiu a liderança no software e código por trás do projeto mBridge. Talvez essa tecnologia e know-how pudessem ser usados para construir um sistema paralelo. O BIS não quis comentar semelhanças entre seu experimento e o plano de Putin, defendido por ele na cúpula de Kazan.
GEOPOLÍTICA.
Em a reunião do G-20, em 2020, o BIS recebeu a tarefa de melhorar o sistema existente e, a pedido da China, de experimentar moedas digitais. Como diferentes membros da organização têm objetivos concorrentes, manter-se acima da briga está ficando mais difícil.
Uma opção para os EUA e seus aliados é tentar dificultar novos sistemas de pagamento que competem com o dólar.
Autoridades ocidentais alertaram o BIS que o projeto poderia ser mal
utilizado por países com motivos malignos. O BIS desde então desacelerou
seu trabalho no mBridge.
Outra opção é melhorar o sistema baseado em dólar para que seja tão eficiente quanto os novos rivais. Em abril, o Fed de Nova York se juntou a seis outros bancos centrais em um projeto do BIS com o objetivo de tornar o sistema existente mais rápido e barato.
O Fed também pode vincular seu sistema doméstico de pagamentos instantâneos àqueles de outros países. Qualquer sistema de pagamento rival do Brics ainda enfrentará enormes desafios. Garantir liquidez será difícil ou exigirá grandes subsídios governamentais implícitos.
Se os fluxos subjacentes de capital e comércio entre dois países estiverem desequilibrados, o que geralmente acontece, eles terão de acumular ativos ou passivos nas moedas um do outro, o que pode ser desagradável.
Por tudo isso, o esquema do Brics pode ter força.
Há consenso de que os atuais pagamentos transnacionais são lentos e
caros. Embora os países ricos tendam a se concentrar em torná-los mais
rápidos, muitos outros querem derrubar o sistema atual completamente.
Pelo menos 134 bancos centrais estão experimentando dinheiro digital,
principalmente para fins domésticos, avalia o Atlantic Council, centro
de estudos em Washington.
A cúpula do Brics da semana passada não foi um Bretton Woods. Tudo o que a Rússia e seus amigos precisam fazer agora é mover um número relativamente pequeno de transações relacionadas a sanções para além do alcance dos EUA. Ainda assim, muitos estão mirando mais alto.
No ano que vem, a cúpula do Brics será no Brasil, recebida por seu presidente, Luiz Inácio Lula da Silva,
que se queixa do poder do dólar. "Toda noite eu me pergunto por que
todos os países têm de basear seu comércio no dólar", disse ele no ano
passado.
"Quem foi que decidiu isso?"
@ TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL © 2023 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM
ARTIGO O BIS, com sede na Suíça, involuntariamente entrou em um campo minado geopolítico