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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Lauro Escorel: um intelectual brasileiro - Revista Piauí, fevereiro 2025; Rogerio S. Farias, colaboração a livro de Paulo R Almeida (org.)

Matéria  sobre o diplomata intelectual Lauro Escorel, na revista Piauí, de fevereiro de 2025.

Rio, 1964, revista Piauí

Por quase 40 anos, o diplomata Lauro Escorel guardou as cartas que seu filho de 18 anos lhe enviou em 1964. O jovem contava de seus projetos e também dos eventos que se seguiram ao golpe militar. Na piauí, Eduardo Escorel faz uma seleta dessas cartas. Leia: https://piaui.co/4hsUW2A


Meu homônimo começou a escrever, em março de 1964, as cartas transcritas a seguir, a maioria à máquina. Adolescente de 18 anos na época, ele morava com o irmão na Rua Dona Mariana, em Botafogo, no Rio de Janeiro. O pai deles era ministro-­conselheiro da Embaixada do Brasil, em Roma, desde o final de 1963. Pouco depois, a mãe e as duas irmãs menores chegaram para morar no Monte Mario, bairro da capital italiana, em uma rua cujo nome ninguém da família reteve na memória. Já a irmã mais velha foi sozinha, de Paris, de trem, e chegou a Roma no dia 31 de março de 1964.

(...)


Lauro Escorel, foi um dos grandes intelectuais do Itamaraty. Rogerio Farias escreveu sobre ele num livro que orgsnizei: Intelectuais na Diplomacia Brasileira, de próxima publicação.

Paulo Roberto de Almeida

(organizador)

 

Intelectuais na diplomacia brasileira:

a cultura a serviço da nação


Índice

 

Prefácio                                                                                                                                

            Celso Lafer

 

Apresentação: intelectuais brasileiros a serviço da diplomacia                                     

            Paulo Roberto de Almeida

     Nas origens da feliz interação entre o Itamaraty e a cultura brasileira                            

     Por que uma nova iniciativa aliando diplomatas e cultura, muitos anos depois?            

     Um novo projeto cobrindo outros intelectuais associados à diplomacia brasileira         

 

Bertha Lutz: feminista, educadora, cientista                                                                   

            Sarah Venites

 

Afonso Arinos de Melo Franco e a política externa independente                                

            Paulo Roberto de Almeida

   

San Tiago Dantas e a oxigenação da política externa                                                      

            Marcílio Marques Moreira

    

Roberto Campos: um humanista da economia na diplomacia                                     

            Paulo Roberto de Almeida 

     

Meira Penna: um liberal crítico do Estado patrimonial brasileiro                             

            Ricardo Vélez-Rodrígues

 

Lauro Escorel: um crítico engajado                                                                                

            Rogério de Souza Farias

     Esperançosa inteligência 

     Retórica militante                                                                                                

     Escolástico inútil                                                                                                  

     Cultura da política                                                                                                


Sergio Corrêa da Costa: diplomata, historiador e ensaísta                                          

            Antonio de Moraes Mesplé

 

Wladimir Murtinho: Brasília e a diplomacia da cultura brasileira                            

            Rubens Ricupero

      

Vasco Mariz: meu tipo inesquecível                                                                                

            Mary Del Priore

       

José Guilherme Merquior, o diplomata e as relações internacionais                          

            Gelson Fonseca Jr. 

       

A coruja e o sambódromo: sobre o pensamento de Sergio Paulo Rouanet                 

            João Almino

      

Apêndices: 

1. O Itamaraty na cultura brasileira (2001), sumário da obra 

2. Introdução de Alberto da Costa e Silva à edição de 2001   

3. Alberto da Costa e Silva – 1931-2023, Celso Lafer    


Sobre os intelectuais na diplomacia

Sobre os autores                                                                                                                  








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sábado, 17 de agosto de 2024

S20: o G20 da Ciência: reunião tão confrontacionista quanto qualquer reunião política-diplomática - Camille Lichotti (Revista Piauí)

Anais da Diplomacia 

“Eu vou para o Céu!”

Os agitados bastidores do grupo que elaborou o relatório sobre ciência e tecnologia do próximo encontro do G20

Camille Lichotti, do Rio de Janeiro 
Revista Piauí, 15/08/2024

Na manhã daquela terça-feira, dia 2 de julho, a diretora da Academia Chinesa de Ciências, Dongyao Wang, fez um pedido que despertou controvérsias. Enquanto se pronunciava, a pesquisadora observava o relatório projetado no telão. O documento em inglês continha doze propostas para o planeta implementar “um processo de transição energética” que garanta a sobrevivência da humanidade. Sentados à mesa em formato de U, no Rio de Janeiro, quarenta representantes da elite científica mundial discutiam os termos do texto. Ora reivindicavam acréscimos minúsculos, ora sugeriam a reescrita de frases inteiras. O rigor se justificava: cada termo sob análise tinha o potencial de gerar crises diplomáticas ou abalar a economia de um país. 

 A chinesa pediu que o documento recomendasse “um futuro de baixo carbono” em vez de “um futuro totalmente descarbonizado”. Não se tratava de um detalhe irrelevante. A expressão “baixo carbono” abre margem para a produção de energia com algum nível de emissão de CO₂, o que é bem diferente de eliminá-lo por completo. Diante do telão, o engenheiro Alvaro Prata, diretor da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e responsável pela elaboração da frase em debate, interrompeu Wang e indagou: “Quando você fala em ‘baixo carbono’, a questão que levanto é: quão baixo?” Todos riram, inclusive a pesquisadora, mas ninguém se dispôs a responder.

A biomédica Helena Nader, presidente da ABC e da reunião, aproveitou a deixa para lembrar que os cientistas presentes deveriam jogar no mesmo time: “Pessoal, uma coisa são os governos. Outra somos nós… O que nós, como S20, queremos? O objetivo principal da comunidade científica é a descarbonização.” Sem causar alvoroço, Wang ignorou a colega e seguiu pedindo novas alterações. No fim das contas, o “futuro totalmente descarbonizado” acabou excluído do relatório, como ela queria. 

O S20 – abreviação de Science20 – se encontrava pelo segundo dia consecutivo. O grupo é um braço do G20, fórum que abarca as oito maiores economias do mundo (G8) e onze emergentes, além da União Europeia e da União Africana. Formado por integrantes das academias nacionais de ciências daqueles países, recebeu a tarefa de produzir um texto com recomendações para os líderes políticos do bloco, que se reunirão no Rio em novembro. 

Como o Brasil assumiu a presidência rotativa do G20 em dezembro do ano passado, coube à ABC escolher os cinco temas que o grupo de cientistas discutia num hotel da Barra da Tijuca, entre 1º e 2 de julho: inteligência artificial, bioeconomia, transição energética, justiça social e desafios de saúde. A instituição brasileira também se encarregou de redigir o documento definitivo do encontro, cujo rascunho exigiu meses de negociação. 

A prioridade de Nader era fazer com que os representantes de todas as academias assinassem o texto final – o que nem sempre acontece em conferências desse tipo. Na avaliação da ABC, se os cientistas demonstrassem estar em sintonia, poderiam convencer o G20 a acatar as sugestões apresentadas, já que o relatório do S20 não é impositivo. 

Atingir o consenso significava garantir que pesquisadores de nações tão díspares quanto a Coreia do Sul, a Austrália, o Japão e o México adotassem o mesmo posicionamento em assuntos espinhosos. Na teoria, as academias são independentes e, ao contrário dos diplomatas, não precisam representar os interesses de seus governos. Na prática, porém, quase sempre reverberam demandas políticas. Ciente disso, Nader procurou negociar certos pontos do relatório antes da reunião na Barra. Menções à igualdade de gênero, por exemplo, foram cortadas já no rascunho para garantir o apoio da Arábia Saudita. Também ficou decidido que o S20 abordaria o problema dos combustíveis fósseis de maneira sutil. 

A presidente da ABC sentiu na pele como cansa ser democrática. Apesar dos acordos prévios, choveram pedidos de ajustes quando o texto definitivo foi discutido na cúpula de julho. A Turquia solicitou uma definição mais precisa de justiça social. A França requisitou a inclusão da energia nuclear – um dos pilares da matriz energética do país – no rol das energias sustentáveis. A União Europeia reivindicou o acréscimo da energia geotérmica no mesmo rol. A Índia quis enfatizar que a transição energética não é acessível aos países pobres. Todas essas sugestões foram debatidas e aceitas. 

Representante da Arábia Saudita, o entomólogo Hassan Al Ayied agitava os braços para chamar a atenção de Helena Nader. Ele também pleiteava alterações no trecho sobre a transição energética, o assunto mais polêmico do documento. A primeira: trocar “energia renovável” por “energia limpa” (nas interpretações mais flexíveis, o petróleo, principal produto saudita de exportação, pode ser considerado uma fonte de energia limpa, desde que não polua o meio ambiente; jamais, no entanto, será considerado uma energia renovável). As outras eram: cortar a palavra “descarbonização” e substituir “baixo carbono” pelo termo “baixa emissão”. Novamente, o grupo acatou todas as demandas em nome do consenso. 

No segundo dia de conferência, representantes da Alemanha, do Canadá e da França se encontraram reservadamente com Alvaro Prata, o diretor da ABC. Eles o pressionaram para empregar expressões mais duras no relatório e inserir o banimento dos combustíveis fósseis entre as recomendações finais. “Vocês estão vendo que não vai dar, né?”, retrucou o engenheiro mecânico. Ex-secretário-executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia, Prata está acostumado a encarar negociações difíceis em fóruns internacionais. “Me parece natural que um documento elaborado por vários países fique menos incisivo que o rascunho. Melhor do que um comunicado forte e preciso, é um comunicado que tenha a concordância de todos”, disse à piauí.

Após três horas de reunião, inúmeros pesquisadores ainda se mostravam insatisfeitos com o relatório. Uns desejavam que as recomendações da cúpula aparecessem em tópicos, de maneira bem destacada e didática. Outros reclamavam das construções frasais pouco propositivas, pediam uma introdução mais concisa e criticavam até a qualidade do inglês usado no texto. 

Diferentemente de seus pares, que deixaram o salão do hotel para aproveitar o bufê, Nader informou que reescreveria partes do documento no horário de almoço. O relatório definitivo precisava estar pronto até o início da noite. Antes de se sentar à frente do notebook no canto do salão, a biomédica de 76 anos chegou perto da comitiva brasileira, levantou os braços e exclamou: “Eu vou para o Céu!” 

Ela passou os dois dias de reunião completamente agitada. Resolvia problemas da impressora, tomava notas, buscava xícaras de café, coordenava a equipe técnica da ABC e mediava conflitos. Para pedir silêncio, batia repetidamente com uma colher num copo d’água. Quando o caos se instalava de vez, a pesquisadora revirava os olhos, franzia o cenho, levava as mãos à testa e balançava a cabeça. Nos momentos de silêncio tenso, fazia piadas e ria de si própria. “Não sei me comportar formalmente por muito tempo”, confessou, rindo, ao microfone. 

O carisma e a espontaneidade de Nader contrastavam com o restante da mesa diretora do S20. À direita da biomédica estava o indiano Shekhar C. Mande, que presidiu a cúpula científica de 2023. Carrancudo, falava pouco e sempre baixo. À esquerda da pesquisadora, a sul-africana Stephanie Burton – uma figura sisuda e metódica, que comandará o encontro de 2025 – interrompia os debates com o intuito de corrigir vírgulas erradas e apontar outros deslizes gramaticais. Raramente sorria. 

A busca pelo consenso absoluto havia se tornado uma obsessão para a brasileira. A cada mudança de palavra no documento, Nader perguntava se alguém tinha objeções. Às vezes, as ressalvas apareciam, o que abria margem para discussões sobre o emprego de um verbo ou levava tudo de volta à estaca zero. 

 

Depois do almoço, o climatologista alemão Gerald Haug propôs tirar a palavra “evento” da frase que abordava os eventos climáticos extremos. Apresentando-se como “o cara do clima”, ele explicou que o termo restringia a questão a intempéries passageiras e não a desastres prolongados. O meteorologista Daniel Murdiyarso, representante da Indonésia, discordou. Argumentou que “evento” é um vocábulo suficientemente compreensível. Seguiram-se alguns minutos de debate sobre a palavra. 

“Você chama de evento uma inundação de quatro semanas?”, desafiou o alemão, presidente da academia mais antiga do S20, fundada no século XVII. “Sim”, respondeu laconicamente o indonésio, membro de uma das academias mais jovens, constituída apenas na década de 1990. Os dois cientistas se entreolharam em silêncio. “Tirar ou não tirar o evento, eis a questão”, brincou Helena Nader. 

Alguns colegas até arriscaram um ou outro comentário, mas o assunto só encerrou quando o alemão ergueu ambas as mãos, num gesto de rendição. “Tanto faz…”, disse, recostando-se na cadeira reclinável. O “evento climático” permaneceu, para satisfação do meteorologista indonésio.

Houve embates ainda mais prosaicos. A certa altura, a engenheira biomédica Alison Noble, representante do Reino Unido, ponderou que a menção à “saúde dos humanos e animais” no trecho sobre bioeconomia estava errada, pois os humanos também são animais. “Só não sei como reescrever isso porque não é a minha área”, desculpou-se. Vários pesquisadores olharam para os lados, à procura de um especialista em biologia ou algo do gênero. A primatologista Karen Strier, dos Estados Unidos, solucionou o impasse ao sugerir o uso de “humanos e animais não humanos”. 

A ideia de projetar o relatório no telão foi adotada para ressaltar que o texto definitivo seria fruto de um processo coletivo e transparente. Pretendia-se evitar, assim, o vexame do encontro que o S20 promoveu na Índia, em 2023. Para surpresa dos participantes, depois de longos debates, a academia indiana apresentou um documento final diferente do aprovado em grupo, com alterações de última hora exigidas pelo governo ultranacionalista do primeiro-ministro Narendra Modi. Indignados, representantes de alguns países ameaçaram se retirar do salão, e a reunião virou um bate-boca. No fim, a maioria dos pesquisadores decidiu assinar o relatório daquele jeito mesmo, para não escalar a crise. Apenas Itália e França não o fizeram.



Na segunda-feira em que a cúpula do Rio começou, o primeiro cientista a se pronunciar foi o presidente da academia argentina, o geólogo Victor Ramos. Ele deixou bem claro que o encontro não se pautaria somente por questões técnicas: a política estaria sempre à espreita. Numa atitude ousada, Ramos afirmou que concordava integralmente com o rascunho preparado pelo Brasil, mas que seu país não seguiria nenhuma daquelas orientações. “O atual governo argentino nega as mudanças climáticas, não estimula a ciência nem a educação e despreza os mais pobres”, lastimou, sem citar o presidente da República, Javier Milei. 

Em entrevista à piauí, o geólogo de 79 anos disse que decidiu trazer o assunto à tona para denunciar internacionalmente o desmonte em curso na Argentina. Desde que tomou posse, há oito meses, Milei rebaixou o antigo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação ao status de secretaria, fez cortes que atravancam a produção científica nacional e alardeou que os cientistas argentinos – ganhadores de três prêmios Nobel – não produzem nada. “Perto de Milei, [Jair] Bolsonaro é um bebê”, comparou Ramos.

Impactado pelo enfático pronunciamento, o presidente da academia francesa, Alain Fischer, sugeriu que o S20 divulgasse uma declaração de solidariedade aos pesquisadores da Argentina “neste momento difícil”. Os aplausos que eclodiram foram interrompidos por John Boright, representante dos Estados Unidos. Ele jogou um balde de água fria nos colegas e avisou que a National Academy of Sciences não poderia subscrever uma investida tão direta contra um governo. “Nossa Academia não comenta cada coisa ruim que acontece no mundo”, gaguejou. “Tivemos cortes em muitos lugares, todos são lamentáveis, mas… Quero dizer, eu… Não é fácil para nós aprovar um comunicado desses.”

Helena Nader assumiu a palavra e reforçou que não se tratava de uma declaração governamental, mas de um anúncio de cientistas para cientistas. Boright contrapôs dizendo que, nesse caso, teriam de denunciar também a situação complicada da Nicarágua – país da América Central que amarga uma ditadura de esquerda, mas não faz parte do G20. A moção de apoio aos argentinos acabou não se concretizando.

Ramos passou o resto da reunião calado, sem pedir nenhuma alteração no relatório. À piauí, reiterou que estava satisfeito com o trabalho dos colegas. “O documento elaborado pelo Brasil é ótimo. Ou melhor: para os países normais, é ótimo…”

 

No segundo e último dia do encontro, os chineses protagonizaram o momento mais tenso das discussões. Quando se referia às inteligências artificiais, o rascunho elencava uma série de estratégias intergovernamentais para neutralizar tecnologias utilizadas com “propósitos destrutivos”. Os cientistas da China sugeriram remover a expressão. Alguns países advogaram pela manutenção do trecho, e o professor Youdan Xiao subiu o tom: “Na minha opinião, nós não precisamos falar em ‘propósitos destrutivos’. Eu não sei por que adicionar essas palavras. A inteligência artificial pode ter dois lados. Uma faca, a meu ver, serve para [cortar] frango, não para matar pessoas…”

Eram cinco e meia da tarde. A reunião deveria terminar em menos de uma hora. Helena Nader levou uma das mãos à cabeça, fechou e abriu os olhos, respirou fundo e disse: “Eu não gostaria que um país deixasse de aprovar o relatório por causa de uma frase. Como vamos resolver essa situação?” Diante do silêncio geral, ela mesma propôs desatar o nó com uma votação. Todos optaram por conservar a expressão, exceto a China, que não aceitou o resultado do pleito. 

A biomédica sugeriu, então, três redações para o trecho polêmico. Nenhum dos presentes as validou. “China, preciso da sua ajuda”, suplicou Nader. Os chineses, no entanto, continuaram irredutíveis. Passaram-se quarenta minutos até que os debatedores toparam recuar e dar à China um gostinho de vitória. “Essa conversa é meio sem sentido”, desabafou o alemão Gerald Haug. “Exércitos do mundo inteiro recorrem às IAs e fazem delas o que bem entendem. Por isso, me soa um tanto ingênuo e inútil ficar discutindo os termos da frase.” 

Quando a reunião acabou, Nader puxou uma salva de palmas. Em poucas horas, a pesquisadora iria ciceronear o jantar de encerramento do S20. O restaurante Ocyá, num recanto bucólico próximo à Ilha da Gigoia, na Barra da Tijuca, recebeu o grupo. A casa costuma adotar o método ikejime de abate de peixes, que minimiza o sofrimento dos animais e otimiza a qualidade da carne. 

O relatório final só não resultou 100% consensual porque a Arábia Saudita se recusou a avalizá-lo, apesar das modificações que solicitou. A Academia de Ciências da Rússia não compareceu às reuniões e tampouco esclareceu o motivo das ausências, mas recebeu as atas dos debates via e-mail e assinou o texto definitivo. 

Trata-se de um documento breve (cinco páginas) e ameno. Os cientistas recomendam a criação de políticas de inteligência artificial fundamentadas em princípios éticos compartilhados pelos países, além do monitoramento de tecnologias que possam escapar ao controle humano. Orientam também que a transição energética se baseie no “aumento do uso de fontes de energia com baixas emissões”, incluindo a energia nuclear e as renováveis, numa combinação que pode variar de um país para outro, mas sempre com o intuito de eliminar o uso do carvão. Em outra seara, o texto sugere que recursos destinados a reduzir o impacto das mudanças climáticas e ambientais na saúde priorizem grupos vulneráveis.

A presidente da ABC acredita que o relatório terá boa receptividade no G20 por ser uma peça escrita a quarenta mãos: “Não creio que todas as páginas do nosso comunicado entrarão no documento final da cúpula de novembro, mas espero que os líderes políticos absorvam a essência delas.” Nader pretende, agora, entregar o texto para todas as sociedades científicas do Brasil e apresentá-lo em diversas escolas. “Galinha que não cacareja não avisa que botou ovo”, sentencia, sacudindo as páginas do relatório. “Então, vou tratar de cacarejar.”


sexta-feira, 12 de agosto de 2022

O desafio democrático - Sergio Fausto (revista Piauí)

Para salvar o Brasil, não bastará derrotar Bolsonaro nas urnas

Sergio Fausto 

domingo, 30 de janeiro de 2022

Multas e brigas na herança de Olavo - João Batista Jr. (revista Piauí)

 Multas e brigas na herança de Olavo

João Batista Jr. 

Revista Piauí, 29 janeiro 2022

https://piaui.co/34i0o7H&hl=pt-BR&gl=br&strip=1&vwsrc=0

 

Rompida com o pai e os irmãos, filha mais velha do guru bolsonarista quer revelar o faturamento e os financiadores da máquina olavista

 

Heloísa de Carvalho, de 52 anos, estava em sua casa em Atibaia (SP) na madrugada de terça-feira (25) quando acordou com o ronco de sua cachorra, Nina, uma mestiça de pastor branco com vira-lata. Carvalho havia se deitado depois de assistir à novela das nove da TV Globo, Um Lugar ao Sol. Em recuperação por ter realizado recentemente uma cirurgia na perna, ela vem passando mais tempo do que gostaria na cama. Tendo despertado, pegou o celular para zapear as redes sociais e se deparou com vários de seus seguidores perguntando se procedia o rumor de que Olavo de Carvalho havia morrido. Eram quase duas horas da manhã.

Heloísa, que não sabia de nada, foi atrás de perfis de seguidores próximos de seu pai e viu que alguns deles lamentavam a morte do escritor e ex-astrólogo. Uma nota oficial publicada no perfil de Olavo dissipou qualquer dúvida.

Confirmada a notícia da morte, Heloísa não ficou triste nem feliz. Em sua conta no Twitter, onde soma 35,6 mil seguidores, foi sucinta: 

“No dia que o Olavo postou que não tinha 1 morte por covid, perdi uma querida amiga, que era viva e deixou 3 crianças com menos de 10 anos órfãs, Olavo morreu de covid, não tem como eu sentir grande tristeza pela morte dele, mas também não estou feliz. Sendo sincera comigo e meus sentimentos.” 

Em hipótese alguma Heloísa, a mais velha de oito irmãos, usa o termo “pai” para se referir ao guru bolsonarista.

Ela e Olavo estavam rompidos desde que a extrema direita se fortaleceu no Brasil e as FakeNews se tornaram uma estratégia organizada de massacre de reputações. Nos últimos anos, a relação entre pai e filha foi marcada por ataques mútuos nas redes sociais e na esfera jurídica. Heloísa conta que, em 2017, Olavo prestou uma queixa-crime no Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), em São Paulo. Ele relatou aos policiais que a filha era chefe de uma organização criminosa apoiada por partidos de esquerda cujo objetivo era minar a reputação dele no Facebook e no Twitter. Heloísa chegou a prestar depoimento em delegacia, mas o caso foi arquivado por falta de provas.

No mesmo ano, o guru bolsonarista processou Heloísa por calúnia e difamação depois que ela escreveu uma carta aberta contando, entre outras coisas, que seu pai certa vez ameaçou os filhos com uma arma e culpou uma de suas filhas, ainda criança, por ter sido violentada por um parente próximo. A filha, no caso, era a própria Heloísa. Sem ter provas a apresentar, mas afirmando que tudo de fato aconteceu, ela sabia dos riscos que correria se o processo fosse adiante. Pai e filha, então, assinaram um acordo judicial: ela deletou seu perfil no Facebook, ele encerrou o litígio. “Tanto a queixa-crime quanto a ação por calúnia tinham um único objetivo: tornar a mim, a filha de esquerda, indigna de seu pai – e com isso me afastar de uma eventual partilha de bens”, disse Heloísa em entrevista a Piauí por video-chamada. Isso, porém, não aconteceu. Heloísa faz parte do espólio de Olavo.

E agora vai começar outra batalha.

Olavo de Carvalho teve oito filhos: Heloísa, Luiz, Tales e Davi, do casamento com Eugênia Maria de Carvalho; Maria Inês e Percival, do relacionamento com Silvana de Barros Panzoldo; e Leilah e Pedro, frutos da união com Roxane Andrade de Souza Carvalho. Olavo e Roxane se casaram em 2005, e desde então viviam juntos nos Estados Unidos.

Caso Olavo e Roxane tenham firmado um regime de comunhão parcial de bens, a viúva se tornar meeira do patrimônio – ou seja, 50% de todos os bens amealhados durante a relação pertencerão a ela. Metade da parte de Olavo automaticamente será distribuída entre todos os seus filhos – isto é, 25% do total de bens. Já a outra metade pertencente a Olavo (os 25% restantes) pode ter sido designada para quem ele bem entendesse. Essa divisão só será confirmada quando o inventário for aberto. O que se sabe é que Olavo deixou um testamento pronto (anos atrás ele registrou esse fato no Facebook).

A abertura do processo de inventário, em geral feita até trinta dias após a morte, tudo o que Heloísa de Carvalho almejava. Não pelo dinheiro, mas pelo acesso a informações. “O Olavo passou a vida se fazendo de pobre coitado, sem ser transparente sobre suas fontes de renda. Agora, como sou parte do espólio, terei acesso aos dados das contas bancárias, os honorários com as vendas de livros e, quem sabe, poderei descobrir se empresários financiavam a máquina de ódio e Fakenews do guru bolsonarista”, afirma a primogênita. Caso não conste nada em nome do pai, Heloísa deve pedir a quebra de sigilo bancário de Roxane e da irmã Leilah.

“Já tenho falado com três advogados para ficar bem instruída.”

Se há muitas dúvidas sobre o real patrimônio de Olavo de Carvalho, há algumas certezas sobre os passivos jurídicos. Em outubro de 2021, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reconheceu a necessidade de retomada da penhora de bens que estava suspensa em virtude de dois recursos apresentados pela defesa de Olavo. Não cabe novo recurso. Os advogados de Caetano Veloso, que processou o escritor em 2017, já deram entrada com o pedido de execução da dívida de 2,9 milhões de reais. Esse valor vultoso é fruto de uma multa que Olavo recebeu por não ter acatado a decisão judicial de deletar postagens em que acusava Veloso de pedofilia. A acusação, publicada nas redes sociais naquele ano, se refere ao fato de que o cantor começou um relacionamento com Paula Lavigne quando ela era menor de idade. O casal está junto há mais de três décadas e tem dois filhos.

Olavo manteve no ar as publicações ofensivas e caluniosas durante 281 dias. Daí o valor alto da multa. “Em um momento inicial, Olavo não foi orientado a apagar as postagens. Depois ele deletou algumas, mas outras permaneceram. Se tivesse removido tudo, não haveria multa. Era uma questão que poderia ter sido evitada”, explica Fernando Malheiros Filho, advogado criminalista de Porto Alegre que assumiu a defesa de Olavo em 2019. Malheiros Filho entrou para o caso a convite dos amigos e advogados Daniel Saldanha e Rodrigo do Canto. Tanto Saldanha quanto Canto foram alunos do guru bolsonarista. Malheiros Filho não foi aluno, mas comunga de muitos pensamentos de Olavo: escolheu não se vacinar contra o coronavírus e promete votar em Bolsonaro nas eleições deste ano.

Com a morte de Olavo, a multa milionária decorrente do processo de Caetano Veloso ficará sob responsabilidade do espólio. Se as dívidas forem maiores do que a própria herança, os herdeiros não terão direito a um tostão – tudo será utilizado para liquidar as pendências. De todo modo, caso o escritor não tenha deixado bens suficientes para arcar com 100% do passivo judicial, o que sobrar da dívida não será transferido aos filhos – será extinto.

Fora a multa de Caetano Veloso, a família de Olavo poderá herdar outros processos com valores menores. Jean Wyllys, por exemplo, conseguiu uma indenização por danos morais de 25 mil reais numa decisão de primeira instância. Isso porque Olavo, sem qualquer prova, associou o ex-deputado federal ao atentado realizado por Adélio Bispo contra o então candidato Jair Bolsonaro, em 2018. O ex-astrólogo recorreu.

“Agora essa apelação aguarda julgamento”, diz o advogado João Tancredo, que representa Willys.

Toda a briga e troca de farpas nas trincheiras virtuais deram visibilidade nacional para Heloísa de Carvalho.

Ela se filiou ao PT no ano passado, mas não sabe se irá se candidatar a algum cargo nas eleições de outubro.

 

João Batista Jr.