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sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

O mundo em três tempos: 1925, 1945, 2025 - Paulo Roberto de Almeida (Revista Será?)

O mundo em três tempos: 1925, 1945, 2025

Brasília, 5128: 2 dezembro 2025, 4 p.

Considerações sobre os grandes desafios do último século, desde o programa supremacista hitlerista de transformação da ordem mundial, até as propostas de mudanças na ordem global contemporânea, por parte de autoritários em competição aberta.

Publicado na revista Será? ano xiv, n. 686, Recife, 5 de novembro de 2025; link: https://revistasera.us2.list-manage.com/track/click?u=411db2b245b4b4625516c92f4&id=c311615905&e=1647837395


O mundo em três tempos: 1925, 1945 e 2025

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
Considerações sobre os grandes desafios do último século, desde o programa supremacista hitlerista de transformação da ordem mundial, até as propostas de mudanças na ordem global contemporânea, por parte de autoritários em competição aberta.

        Ao aproximarmo-nos de 31 de dezembro, seria possível fazer um balanço que leve em conta tudo o que ocorreu de bizarro neste ano de muito pouca graça de 2025? Afinal de contas, a comunidade internacional deveria estar “comemorando” os 80 anos da construção da ordem mundial criada majoritariamente pelos Estados Unidos em 1945. Tudo leva a crer que o atual incumbente da presidência do país, que deu continuidade a um projeto voluntário e deliberado, iniciado em 2017, de desmantelamento dessa ordem, representa o exato oposto de Franklin Roosevelt, o dirigente que começou sua carreira presidencial nos anos 1930 pela Good Neighbour Policy (dirigida aos países da América Latina, interrompendo, por alguns anos, as intervenções no Caribe e América Central).
        Roosevelt inaugurou, poucos anos depois, um novo estilo de governança mundial ao subscrever, em agosto de 1941, a Carta do Atlântico, assentando com Churchill as bases conceituais da futura ordem global multilateral das Nações Unidas. Essa proclamação bilateral, mas universal em suas pretensões, foi o passo imprescindível na reafirmação da possibilidade de uma ordem liberal e democrática, no exato momento em que o mundo mergulhava na fase mais tenebrosa do conflito europeu iniciado em 1939. A guerra entre as potências fascistas expansionistas e as democracias ocidentais passou então a englobar mais da metade do mundo, contando inclusive com a adesão do Brasil. O maior país sul-americano foi, primeiro, um aliado, depois decidiu integrar-se ao esforço de guerra, convertendo-se, finalmente – mesmo dominado pela ditadura do Estado Novo –, em um fiel aderente à (hoje menos defendida) “ordem global ocidental”, plenamente coincidente com as bases doutrinais da diplomacia brasileira, cujos alicerces fundamentais vinham sendo desenhados desde o início do século por estadistas como o Barão do Rio Branco e Rui Barbosa, este o defensor do princípio da igualdade soberana das nações, que viria a representar, com a Carta da ONU, de junho de 1945, o eixo central do multilateralismo contemporâneo.
        Oswaldo Aranha, o outro grande entusiasta e promotor da arquitetura construída em São Francisco, não chegou a 1945, por despeito mesquinho do ditador Getúlio Vargas, mas seu nome voltou a ser associado à consolidação da ordem democrática multilateral do pós-guerra, ao ter comandado, como chefe da delegação brasileira em Nova York e presidente da Assembleia Geral da ONU em 1947, a adoção da resolução que procurou trazer uma resposta aos crimes cometidos pelo horrendo regime nazifascista contra o povo judeu, nos doze anos durante os quais transformou a República de Weimar num Império que estava supostamente destinado a durar mil anos.
        Para saber como o Holocausto foi possível é preciso voltar cem anos atrás, para 1925, quando um aderente demencial do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (criado em 1919), foi preso pela sua tentativa de tomada do poder na República de Weimar (o “golpe da cervejaria de Munique”), passando então a escrever, durante o breve tempo em que esteve encarcerado, o programa que adotaria ao chegar ao poder: o desmantelamento da ordem criada pela Liga das Nações, a supremacia e o expansionismo da Grande Alemanha, a promessa de destruição da ameaça bolchevique e uma “solução definitiva” (desenhada desde os tempos wagnerianos) ao “problema judeu”, que ele considerava como responsável pelas “desgraças” do povo alemão. Esse programa, publicado sob o título de Mein Kampf, seria aplicado metodicamente a partir de 1933, quando Hitler finalmente chega ao poder por vias eleitorais “legais” (mas pela violência e pela intimidação também).
        O resultado dessa ascensão foi a destruição da ordem “liberal” anterior, mas também a de metade da Europa e da própria Grande Alemanha, quando, depois de dominar, pela via da blitzkrieg, praticamente toda a Europa ocidental, o fanático ditador resolveu “esquecer” o pacto de não agressão concluído em 1939 com um ditador totalitário quase simétrico e passar a cumprir a parte do programa de 1925 que se referia à destruição da existência de um poder judaico-bolchevique na Europa central e oriental. Os quatro anos de guerra de extermínio que se seguiram foram os mais mortíferos conhecidos em toda a história da Humanidade, quando se contam, também, os episódios levados a cabo, desde 1937, pelo militarismo japonês em todo o teatro da Ásia Pacífico, contra a China e as colônias ocidentais da Indochina. Em meados de 1945, finalmente, com a divisão do mundo concertada em fevereiro, em Yalta, formalmente acordada em junho em São Francisco, novamente discutida em Potsdam entre as superpotências vencedoras, mas na prática só terminada, de fato, em Hiroshima e Nagasaki, com a explosão de dois artefatos nucleares, tem início a “ordem mundial” quase global que visava obstar o início de uma nova catástrofe das mesmas proporções como em 1939-1945.
        Voltando a 2025, nos deparamos com um outro dirigente demencial, armado de um programa tosco, pretendendo conter um suposto adversário, a China, mas que é bem menos eloquente contra o agressor real, e primeiro desmantelador, da atual ordem internacional, a Rússia de Putin. Ele também conduz uma outra guerra de agressão, por enquanto tarifária, contra seus próprios aliados e todos os demais países do mundo, ademais de pretender conter e eliminar o que considera como uma ameaça à “grandeza” americana, que são simples emigrantes ilegais, na maior parte trabalhadores honestos querendo construir uma nova vida para suas famílias. Ele parece pretender obter uma foto tão famosa quanto a de Yalta, na qual os três mais poderosos senhores da guerra, Roosevelt, Churchill e Stalin, reuniram-se para selar o destino de milhões de pessoas em diferentes partes do mundo. Trump já deu sinais de que apreciaria sentar-se com Putin e Xi Jinping para estabelecer, mais de quinhentos anos depois de Tordesilhas, uma nova divisão do mundo, desta vez tripartite, na qual ele colocaria seu tacão no hemisfério americano, o neoczar decidiria os destinos da Europa e o líder chinês se ocuparia da Ásia Pacífico. Pelo menos em 2025, isso não foi ainda possível, mas o bizarro personagem talvez se esforce para realizar o seu intento no ano em que a primeira república democrática do mundo contemporâneo estaria completando 250 anos de existência contínua, sob a mesma carta constitucional desenhada pelos “pais fundadores”, no mesmo ano, aliás, em que o escocês Adam Smith publicava seu “tratado de economia política”, recomendando que o Reino Unido libertasse a sua colônia norte-americana e passasse a fazer, apenas e tão somente, negócios com os emigrantes da Nova Inglaterra.
        1925, 1945 e 2025 representam etapas momentosas na trajetória incerta do sistema internacional, projetos de alteração e de mudanças tentativas das desordens existentes ou criadas na ordem em vigor em cada um daqueles momentos. Hitler, Roosevelt, Churchill, Stalin, Putin, Trump e Xi Jinping representam personagens-chaves na conformação, benfazeja ou maléfica, do cenário mundial em cada uma dessas ocasiões. O Brasil é mais um espectador passivo do que um protagonista ativo nessas transações e transições, mas a sua diplomacia profissional – apoiada nos fundamentos doutrinais construídos por estadistas como Paranhos Júnior, Rui Barbosa, Oswaldo Aranha, San Tiago Dantas e Afonso Arinos de Melo Franco, entre outros – talvez pudesse oferecer alguma contribuição positiva para os processos de mudança a cada uma dessas etapas, não fossem alguns imponderáveis em ação nessas respectivas datas.
        Em 1925, um presidente intempestivo, Artur Bernardes, ordenava a retirada do Brasil da Liga das Nações, contra os argumentos do seu representante em Genebra, Afrânio de Melo Franco, pai de Afonso Arinos. Em 1945, o ditador do Estado Novo, depois de ter impedido, em 1944, o chanceler Oswaldo Aranha de discutir com Roosevelt a participação do Brasil no desenho da futura ordem mundial que estava sendo discutida em Dumbarton Oaks, autorizou a adesão do Brasil à Carta de San Francisco, mesmo quando a delegação do Brasil estivesse apresentando certeiras críticas à arquitetura diplomática exigida pelos “mais iguais” da nova ordem, e que foram declarados vencedores no maior conflito global da História, antes mesmo da conclusão definitiva da guerra, e antes que qualquer um deles detivesse o monopólio da arma nuclear (mas que impediu, talvez mais do que a própria ONU, a eclosão, até aqui, de um novo conflito global).
        Em 2025 (na verdade desde dois anos antes), o atual presidente brasileiro declara seu apoio à proposta de implementação de uma mal definida “nova ordem global multipolar”, várias vezes referida pelo principal violador da Carta da ONU, mas que se apresenta como de nítida orientação antiocidental e, portanto, antiliberal e antidemocrática. O mundo realmente não parece pacífico em 2025, como não o foi em 1925, e como ainda não o era no primeiro semestre de 1945. Os prognósticos continuam incertos ao final deste ano, quando pelo menos dois mandatários autoritários pretendem impor uma nova marca unilateral e supremacista de imposição de uma ordem regressiva ao resto do mundo. Não obstante, mesmo a despeito de nuvens sombrias em diversas partes do mundo – certamente no Oriente Médio, desde várias décadas, na Europa oriental, em meio à maior guerra de agressão desde 1945, na própria América do Sul –, 2025 ainda não representou um prenúncio similar aos vinte anos prévios que levaram o mundo às destruições registradas até 1945.
        Que 2025 não se conclua com alguma antecipação eventual de um cenário tão desafiador quanto foram os terríveis anos 1925-1945. Obviamente, qualquer prefiguração das semanas e meses à nossa frente, não depende de algum ativismo da diplomacia profissional brasileira, embora ela sempre demonstrou discernimento suficiente para colaborar na busca de soluções adequadas aos desafios de momentos incertos, a despeito de certas políticas externas ditadas por dirigentes nem sempre bem-preparados para cuidar dos interesses nacionais em acordo com propósitos afins aos valores e princípios da nação brasileira.
        Em todo caso, meus melhores votos para que 2026 (e mais além) represente o início de um novo período de distensão no ambiente multilateral e de cenários mais amenos nos diversos conflitos regionais ainda em curso no presente momento. Gostaria que se fizesse novamente efetivo o diagnóstico proclamado por Raymond Aron, em 1948, ao início da primeira guerra fria: “paz improvável, guerra impossível”.         Não é o ideal, mas já é muito, neste início de uma segunda guerra fria.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5128, 2 dezembro 2025, 4 p.
Publicado na revista Será? ano xiv, n. 686, Recife, 5 de novembro de 2025; link: https://revistasera.us2.list-manage.com/track/click?u=411db2b245b4b4625516c92f4&id=c311615905&e=1647837395); divulgado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2025/12/o-mundo-em-tres-tempos-1925-1945-2025.html
Relação de Publicados n. 1607.

Revista Será?, o melhor semanário da imprensa inovadora no Brasil: toda semana a inteligência ao alcance de todos

ANO XIV Nº686 - A SEMANA NA REVISTA SERÁ?

Revista Será?
Desde 2012 acompanhando o fluxo da história.
ANO XIV Nº686

Recife, 05 de dezembro de 2025.

Caro leitor,

Há semanas em que uma revista se contenta em registrar o mundo; há outras em que ela o captura em pleno movimento — e esta é uma dessas semanas raras. Nas páginas que seguem, a Revista Será? oferece uma edição que respira o espírito do tempo: tenso, imprevisível, mas, acima de tudo, revelador. São textos que não observam à distância — eles entram no centro do conflito, iluminam suas contradições e nos instigam a pensar o país e o mundo com a urgência que o momento exige.

Abrimos com “Perigoso Conflito Institucional”, nosso editorial, que descortina a escalada de tensões entre os Poderes da República e alerta para os riscos que ameaçam o frágil equilíbrio democrático do Brasil. Em seguida, Paulo Roberto de Almeida, em “O mundo em três tempos: 1925, 1945 e 2025”, costura história e geopolítica para explicar como o passado insiste em assombrar o presente.

A urgente inquietação latino-americana aparece em “Venezuela: o que pode acontecer?”, onde Helga Hoffmann examina movimentos militares, ambições políticas e a fragilidade regional diante de interesses globais. Na mesma chave crítica, Abraham B. Sicsú, em “Poderes se digladiam”, expõe a contradição de um país que progride na economia enquanto retrocede na convivência entre instituições.

Mas nem só de conflitos vive esta edição. José Paulo Cavalcanti Filho, com a crônica “Conversas de ½ Minuto (48) – Charlas Portuguesas (Final)”, encerra sua série com humor, afetos e o charme inconfundível da cultura lusa. E, para os amantes da literatura, Paulo Gustavo nos brinda com “Sem Tambor nem Trombeta: Apreciando Títulos”, um ensaio delicioso sobre o poder dos nomes que precedem os grandes livros.

Como sempre, o riso afiado e a provocação visual de Elson nos aguardam na Última Página, lembrando que uma charge, às vezes, diz mais do que discursos inteiros.

Boa leitura.
Os Editores 

Índice

  1. Perigoso Conflito Institucional - Editorial
  2. O mundo em três tempos: 1925, 1945 e 2025 - Paulo Roberto de Almeida
  3. Venezuela: o que pode acontecer? - Helga Hoffmann
  4. Poderes se digladiam - Abraham B Sicsú
  5. Conversas de ½ Minuto (48) ‒ Charlas Portuguesas (Final) - José Paulo Cavalcanti Filho
  6. Sem Tambor nem Trombeta: Apreciando Títulos - Paulo Gustavo
  7. Última Página, a charge de Elson.

 

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sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Política externa e diplomacia do Brasil: como são, como podem ser, 2 - Paulo Roberto de Almeida (revista Será?)

Política externa e diplomacia do Brasil: como são, como podem ser, 2

Por  | nov 28, 2025 |  |  |     

Conjunto das Nações

Conjunto das Nações

Quais são, para fins de um exercício exploratório obviamente parcial e incompleto, setores e temas que aparecem como prioritários num processo de formulação de diretrizes para uma política externa consensual do ponto de vista do interesse nacional, cujas orientações básicas podem ser integradas à agenda da diplomacia brasileira? As seguintes áreas aparecem como relevantes na interface externa do Brasil que poderia ser priorizada nos anos à frente: maior e mais ativa integração à economia mundial; adaptação e modernização das estruturas e mecanismos domésticos para acelerar e tornar mais flexível esse processo de inserção na economia internacional; revisão dos atuais esquemas de integração regional (Mercosul, acordos da Aladi, preferências tarifárias com determinados parceiros) num sentido de maior abertura econômica e liberalização comercial; avaliação das parcerias estratégicas definidas nos últimos anos, de maneira a considerar, antes, os objetivos nacionais estrito senso, do que preferências ideológicas ou partidárias, de escassa ou nenhuma relevância para a política externa; modernização do funcionamento do instrumento diplomático, ou seja, reforço da organização e métodos do Itamaraty, de maneira a aparelhá-lo para responder aos novos desafios aqui enfocados.

Abertura comercial global, concomitante à reforma tributária em curso

Não parece existir espaço, no horizonte previsível, para grandes negociações no plano multilateral, sugerindo-se possíveis acordos bilaterais ou inter-regionais, que requerem um novo perfil da política comercial do Brasil, eventualmente com revisão da TEC do Mercosul. A exposição do setor produtivo à concorrência internacional – benéfica em si, para os próprios produtores e consumidores – requer a redução da carga tributária no plano interno, e uma reforma não pode ser feita sem a outra, sob risco de desmantelar ainda mais as empresas do setor manufatureiro.

Aspecto importante da conjuntura recente do Brasil é o seu projeto de aproximação à Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), emoldurada pela demanda de adesão, feita em junho de 2017, confirmada no governo subsequente, assim como pela própria organização, ao acolher esse pedido e começar a examinar tal processo desde 2022, processo que deveria ser concomitante ao da modernização institucional e operacional das principais políticas públicas no país, justamente no sentido da interdependência e de sua maior integração ao mundo. Esse processo – que compreende igualmente uma revisão e uma cuidadosa atualização dos principais compromissos externos do Brasil, nos planos regional (em política e em economia, com destaque para os esquemas de integração econômica), multilateral (organismos internacionais) e plurilateral (blocos ou grupos de países, bem como os grandes parceiros nas relações bilaterais prioritárias) – passou por diferentes fases, entre avanços e recuos, o que pode ser interessante revisar.

A aproximação do Brasil à OCDE tinha sido iniciada no agora distante governo Collor, foi em seguida perseguido sem qualquer estratégia definida nos mandatos de FHC, entre 1995 e 2002, mas foi completamente descurado nos mandatos lulopetistas de 2003 a 2015. Não obstante uma oposição ideológica do partido, ele foi retomado timidamente em 2015, por iniciativa de um ministro (“neoliberal) da Fazenda, em 2015, mediante novo exercício de aproximação, retificado e encaminhado oficialmente nos dois anos e meio do governo Michel Temer, cujo ministro da Fazendo encaminhou carta solicitando formalmente a adesão do Brasil. Tanto o Itamaraty, quanto outros órgãos interessados na adesão, trataram o dossiê durante o governo Bolsonaro, com progressos substantivos realizados no período. O novo governo petista, sob Lula 3, encapsulou novamente o projeto, por razões obscuras, não explicitadas oficialmente.

Revisão do processo de integração visando à inserção econômica externa

O Mercosul não é o culpado pelo fechamento comercial do Brasil, ou pelas disfunções acumuladas ao longo dos anos, essencialmente em função de distorções criadas por descumprimentos de suas obrigações institucionais por parte de seus dois maiores países membros. Se e quando os países membros resolverem cumprir os requerimentos estabelecidos no tratado original, ademais de eventuais arranjos que possam ser feitos em paralelo a um processo de revisão, ele voltará a ser uma base para a integração mundial das economias dos países membros. Caberia, portanto, efetuar um exame profundo das opções estratégicas do Brasil em matéria de política comercial, para decidir, a partir daí se cabe reformar o Mercosul, ou caminhar no sentido de uma independência nesse terreno. Uma agenda aberta, portanto, mas que ainda não recebeu a atenção devida, dada a descoordenação ainda existente entre os diversos ministérios envolvidos nessa frente, assim como em função de uma completa falta de diálogo entre as administrações respectivas dos dois maiores países membros, Brasil e Argentina, precisamente.

Análise das “alianças estratégicas” num sentido puramente pragmático

As políticas externas ainda que diversas, tanto do bolsonarismo quanto a atual, a do lulopetismo, conduziram o Brasil a uma série de coalizões político-diplomáticas definidas a partir de uma visão ideológica deformada das relações internacionais do país, uma vez que baseadas, a primeira, numa aliança subordinada à principal potência ocidental (em verdade a seu líder, identificado às correntes conservadoras da política mundial, a segunda na miopia de um mirífico “Sul Global” – que não existe na prática, a não ser nas concepções ideológicas de seus promotores – e de um mal definido projeto de “nova ordem global multipolar”, que é apenas um slogan para a conformação de um bloco antiocidental. O governo anterior tinha desmantelado, parcial ou totalmente, os esquemas existentes de consulta e coordenação em escala regional criados nos mandatos anteriores dos governos lulopetista, sem colocar absolutamente nada em seu lugar, a não ser uma política de adesão ao governo americano anterior (o de Donald Trump 1, 2017-2020) e com regimes similares ou de orientação iliberal e direitista. O atual governo de Lula 3, confirmou sua preferência por uma aliança estreita com as duas grandes potências contestadoras da atual “ordem ocidental”, proclamando sua adesão de princípio a uma indefinida “ordem global multipolar”, mas as tomadas de posição foram feitas no contexto de uma diplomacia presidencial personalista, não exatamente em nome da diplomacia profissional brasileira (que, diga-se de passagem, não é responsável por certas escolhas feitas primordialmente no Palácio do Planalto, e não no Itamaraty).

O tema também implica uma revisão profunda das grandes escolhas estratégicas do Brasil na arena mundial, e requer uma exposição específica que não cabe nos limites deste trabalho. Cabe, no entanto, relembrar que, ao longo de várias décadas, a política externa do Brasil logrou manter-se imune aos embates, diretos ou indiretos, entre as grandes potências, postura que atualmente parece ter sido esquecida em favor de uma aproximação irrefletida ao campo da contestação da ordem global atual, considerada pelos decisores correntes da política externa como pouco adequada aos interesses nacionais brasileiros. Não existe, contudo, nenhuma exposição clara e explícita sobre como, e por quais razões, a tal “ordem global” alternativa seria mais compatível com os interesses nacionais de longo prazo do Brasil, assim como com suas características de sociedade democrática e inserida plenamente numa economia de livres mercados.

Atuação do Itamaraty: fortalecimento institucional, preparação adequada

O corpo diplomático profissional, mais até do que ocasionais diplomacias presidenciais mais ou menos efetivas, foi uma componente essencial da formulação e da execução das principais diretrizes em matéria de política externa e da sua execução prática. Diplomacias presidenciais ativas podem representar um aporte adicional aos esforços da burocracia oficial, mas, se exercidas numa vertente excessivamente personalista, elas podem guardar a marca de improvisos irrefletidos, desprovidos do requerido embasamento técnico preliminar, com implementação deficiente das escolhas feitas segundo instintos momentâneos, mais até do que apoiados em uma preparação adequada. Certos dossiês, nos últimos governos, foram objeto de tratamento quase amadorístico, pois que conduzidos sob processos decisórios divididos entre o ambiente burocrático da diplomacia profissional e os interesses momentâneos dos círculos do poder político.

Tais problemas podem ser enfrentados mediante estreita coordenação entre a área técnica que formata cada um dos dossiês de política externa e a instância política decisória que decide sobre a implementação de uma determinada postura ou iniciativa diplomática. Essa coordenação exclui, em grande medida, a diplomacia personalista, poucas vezes apoiada num conhecimento rigoroso dos antecedentes e do contexto relacional de cada uma das questões tratadas em nome do Estado. Um excesso de autoconfiança pode não apenas criar novos problemas, como agravar os existentes, o que repercute negativamente na implementação da ação diplomática institucional.

O que pode ser feito?

Argumentos detalhados, relativos às diferentes vertentes da política externa – nos domínios bilateral, regional, multilateral, nas áreas econômica, de segurança e de plena inserção nos grandes temas da agenda global –, podem ser objeto de novas considerações, mais abrangentes, com abordagens macro e setoriais em cada um dos itens da agenda externa, num documento de planejamento político – ou seja, contendo objetivos estratégicos e prioridades táticas para a política externa do Brasil – de caráter mais amplamente propositivo do que a exposição sintética aqui oferecida.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 5110, 8 novembro 2025, 4 p. 

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O primeiro artigo, desta série de 2, pode ser consultado nestes links:
1602. “Política externa e diplomacia do Brasil: como são, como podem ser, 1/2”, revista digital Será? (ano xiv, n. 684, Recife, 21 de novembro de 2025; link: https://bit.ly/4o6CUpD ou https://revistasera.us2.list-manage.com/track/click?u=411db2b245b4b4625516c92f4&id=5960193be7&e=b9cc4cc5fd); divulgado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2025/11/politica-externa-e-diplomacia-do-brasil.html). Relação de Originais n. 5109


Revista Será? - Artigo de PRA sobre a política externa e a diplomacia do Brasil

Revista Será?
Desde 2012 acompanhando o fluxo da história.
ANO XIV Nº685

Recife, 28 de novembro de 2025.

Caro leitor,

Há semanas em que a história parece respirar ofegante; noutras, ela sussurra verdades que teimam em ser ignoradas. A edição desta semana da Revista Será? pertence à primeira categoria: um conjunto de textos que desafiam certezas, iluminam contradições e provocam inquietações necessárias. Ao folhear estes artigos, o leitor encontra um país que oscila entre o esgotamento das velhas polarizações, a redefinição das relações entre civis e militares, a reconfiguração do mapa político, o avanço do crime organizado como força econômica, a perplexidade diante do colapso ambiental, e a persistente busca por sentido — seja na vida que se prolonga ou na dor que a interrompe.

No editorial “Anticlímax e despolarização”, somos convocados a refletir sobre o esvaziamento emocional da política brasileira e seus riscos para a democracia. Em seguida, Tibério Canuto, em “A farda submetida ao Poder Civil”, registra um momento histórico: o Estado Democrático, enfim, dobrando a espinha militar que durante 135 anos interferiu no poder civil. Já Rui Martins, em “Jair já foi ou já era”, observa o lento colapso de uma figura que, de mito, tornou-se ruína simbólica.

Se a política se mostra instável, a violência urbana revela-se estrutural: em “Violência e crime organizado: uma análise econômica”Jorge Jatobá expõe a espiral criminosa que corrosivamente se infiltra na economia formal. E, no campo ambiental, Elimar Pinheiro do Nascimento, em “A COP 30 findou? Últimas impressões”, denuncia o abismo entre a retórica dos líderes e a emergência climática que não admite adiamentos.

Na arena diplomática, Paulo Roberto de Almeida, com “Política externa e diplomacia do Brasil: como são, como podem ser, 2”, redesenha um Itamaraty que precisa escolher entre nostalgia ideológica e inserção estratégica no século XXI. Em registro mais íntimo, Paulo Gustavo, no ensaio “A Brevidade da Vida”, questiona o que fazemos com os anos extras que conquistamos. E José Paulo Cavalcanti Filho, em “A Dor do Suicídio (Final)”, confronta o limite da existência com elegância literária e uma honestidade devastadora.

Fechando a edição, Elson devolve ao leitor, em sua charge, o golpe certeiro do humor crítico — esse instante em que o riso nos revela verdades que preferíamos não encarar.

Esta edição não oferece descanso. Ela oferece perguntas. E, talvez, seja exatamente disso que o Brasil mais precisa: não de certezas confortáveis, mas de pensamento vivo.

Boa leitura.
Os Editores

Índice

  1. Anticlímax e despolarização – Editorial
  2. A farda submetida ao Poder Civil – Tibério Canuto
  3. Jair já foi ou já era – Rui Martins
  4. Violência e crime organizado: uma análise econômica – Jorge Jatobá
  5. A COP 30 findou? Últimas impressões – Elimar Pinheiro do Nascimento
  6. Política externa e diplomacia do Brasil: como são, como podem ser, 2 – Paulo Roberto de Almeida
  7. A Brevidade da Vida – Paulo Gustavo
  8. A Dor do Suicídio (Final) – José Paulo Cavalcanti Filho
  9. Última Página, a charge de Elson

 

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terça-feira, 25 de novembro de 2025

Política externa e diplomacia do Brasil: como são, como podem ser (1/2) - Paulo Roberto de Almeida (revista Será?)

Política externa e diplomacia do Brasil: como são, como podem ser (1/2)
Paulo Roberto de Almeida
Revista Será? (ano xiv, n. 684, Recife, 21 de novembro de 2025)

O artigo “Política externa e diplomacia do Brasil: como são, como podem ser”, de Paulo Roberto de Almeida, oferece uma análise rigorosa sobre a perda de consenso histórico que sustentou a diplomacia brasileira.
O autor alerta para desvios ideológicos recentes, riscos à credibilidade internacional e a necessidade urgente de uma política externa pragmática, aberta ao comércio, integrada ao mundo e ancorada no interesse nacional. Um chamado decisivo para recolocar o Brasil no eixo da autonomia, profissionalismo e inserção global qualificada.
#PoliticaExterna

Seque o link para o artigo.
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sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Política externa e diplomacia do Brasil: como são, como podem ser, 1 - Paulo Roberto de Almeida (Revista Será?)

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1602. “Política externa e diplomacia do Brasil: como são, como podem ser, 1/2”, revista digital Será? (ano xiv, n. 684, Recife, 21 de novembro de 2025; link: https://revistasera.us2.list-manage.com/track/click?u=411db2b245b4b4625516c92f4&id=5960193be7&e=b9cc4cc5fd . Relação de Originais n. 5109.

Política externa e diplomacia do Brasil: como são, como podem ser, 1

Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor (diplomatizzando.blogspot.com)

Algumas premissas conceituais
        O estabelecimento de uma política externa e a sua materialização diplomática para um determinado país costumam ser expressões setoriais da sua política nacional, tanto no plano das principais definições conceituais, quanto no terreno da ação prática. Elas representam a vertente exterior das grandes escolhas que a sociedade estabelece, preferencialmente de maneira consensual, para o atingimento dos grandes objetivos estratégicos que o país e sua sociedade pretendem concretizar. Estes grandes objetivos estão balizados primeiramente no texto constitucional, e costumam refletir as aspirações nacionais em termos de desenvolvimento, de prosperidade e bem-estar, de consolidação institucional de um sistema político democrático e de defesa de valores e princípios que fazem parte do patrimônio cultural e espiritual da nação, assim como, obviamente, de resguardo da soberania nacional e da defesa do território e dos patrimônios nacionais.
        O Brasil pretende ser uma sociedade democrática, baseada num regime de livre iniciativa, fortemente integrada à economia mundial, desejosa de participar plenamente da sociedade internacional, com apoio principalmente no direito internacional, sem descurar os necessários cuidados com sua defesa e capacidade de garantir o atingimento dos interesses nacionais em total autonomia decisória. Com base nesses pressupostos, os governos formulam definições básicas no tocante à política externa que precisam ser executadas de acordo a diretrizes emanadas do poder executivo, usando para tal tarefa da principal instituição a ela devotada, o Ministério das Relações Exteriores.
        Historicamente, a diplomacia profissional brasileira, atuando em consonância com as grandes opções de política nacional definidas recorrentemente por meio de eleições livres e transparentes, tem sabido interpretar os anseios da sociedade brasileira por meio de um diversificado leque de ações nos planos multilateral, regional e bilaterais, em resposta a desafios externos ou por meio de iniciativas que sempre gozaram de amplo consenso na opinião pública e nos meios especializados. Ao longo das décadas que se estendem desde a República de 1946, até a atual fase de consolidação democrática, cobrindo inclusive, embora parcialmente, o período militar, governos sucessivos e o corpo diplomático profissional lograram construir um formato de política externa baseado na autonomia e na independência de suas principais diretrizes, focadas essencialmente no desenvolvimento econômico e social da nação, com a neutralidade desejável em face de conflitos entre as grandes potências, sobretudo na fase clássica da Guerra Fria e na evolução posterior do sistema internacional. Havia um claro consenso de que a política externa deveria permanecer à margem das disputas políticas internas, como já havia declarado o patrono da diplomacia nacional, o Barão do Rio Branco, fixando-se num conjunto de objetivos prioritários vinculados aos interesses nacionais, isto é, os do desenvolvimento autônomo da nação brasileira.

Esgotamento do consenso básico?
        Não obstante, em certos períodos – identificados aos governos lulopetistas de 2003 a 2016, depois sob o pequeno terremoto bolsonarista (2019-2022), e de novo na fase atual, no terceiro mandato de Lula, a partir de 2023 –, o consenso descrito acima parece ter deixado de existir, uma vez que a política externa demonstrou linhas ideológicas de atuação e opções setoriais que colocaram a diplomacia profissional a serviço de teses e objetivos em ruptura com os eixos tradicionais de ação pelos quais se guiavam o Itamaraty e a sociedade brasileira ao longo de décadas, senão secularmente.
        Os promotores desses vieses diplomáticos não esconderam sua preferência por temas e prioridades bem mais alinhadas com teses e posturas alinhadas às orientações ideológicas de suas respectivas correntes políticas, do que com os padrões exibidos pela política externa brasileira de forma consensual ao longo de décadas.             Esse “desvio” continua na atualidade, até se acentuou, e pode ser decorrente, como no governo imediatamente anterior, da ausência de um programa definido de políticas gerais ou setoriais em direção a metas ou objetivos claramente explicitados no plano externo, expostos e discutidos com a sociedade brasileira, podendo gerar o consenso anterior. Em resumo, registra-se a inexistência de uma declaração de política externa que expresse nitidamente o que o Brasil pretende ser, e quais interesses pensa defender, numa conjuntura que já foi identificada como sendo a de uma Segunda Guerra Fria.
        O que se vê atualmente, no campo da política externa, é mais propriamente um processo de ruptura com padrões tradicionais no establishment diplomático brasileiro, indicando um reforço de tendências partidárias não convergentes com o relacionamento equilibrado que o Brasil sempre manteve no tocante às grandes potências e seus enfrentamentos eventuais. Ainda que defendendo causas amplamente consensuais em áreas setoriais, como meio ambiente, direitos humanos, cultura, educação, tratamento de minorias – áreas que tinham sido praticamente abandonadas no governo anterior – a insistência do governo atual em posicionar-se numa das vertentes dessa divisão artificialmente criada entre uma ordem essencialmente “ocidental” (da democracia, dos direitos humanos, da liberdade de imprensa) e uma “nova ordem global”, alternativa (supostamente “multipolar”), tem revelado uma nítida inclinação por esta última. Tal tomada de posição, bastante nítida na conformação de um bloco, o Brics+, identificado a uma alternativa, senão oposição, ao G7, tem contribuído para alimentar dúvidas a respeito da continuidade das grandes linhas da diplomacia brasileira, assim como pode redundar em certa deterioração da reconhecida credibilidade diplomática brasileira no plano mundial, em especial junto aos tradicionais parceiros do “mundo ocidental”.

Vale rever premissas e orientações setoriais?
        Caberia, nessas condições, não exatamente retornar a padrões e posturas anteriores de diplomacia e de política externa do Brasil, mas ousar inovar em diversos terrenos e modalidades de ação, de maneira a facilitar e até estimular uma maior integração do Brasil ao mundo, uma vez que o país exibe notoriamente baixos coeficientes de abertura econômica externa e vem perdendo competitividade nos mercados internacionais nos últimos anos, em função da baixa produtividade geral da economia e da escassa atratividade externa pelos nossos produtos manufaturados.
        Os argumentos alinhados esquematicamente na sequência deste trabalho, pretendem oferecer subsídios à definição das principais linhas de atuação externa do Brasil, segundo as grandes áreas de atividade de sua diplomacia, geograficamente, politicamente ou economicamente, e até no terreno da segurança internacional. Eles partem do pressuposto que os principais desafios a uma maior integração do Brasil ao mundo dependem quase que inteiramente, senão totalmente, do próprio Brasil, uma vez que os processos de globalização e de regionalização observados em diversos cenários geopolíticos e geoeconômicos têm oferecido, a despeito das turbulências atuais, boas oportunidades para que países emergentes como o Brasil possam prosperar e avançar em seu processo de desenvolvimento econômico e social num ambiente internacional marcado pela grande interdependência econômica e crescente cooperação científica e tecnológica entre nações abertas a essas características do atual sistema internacional.
        O presente texto não pretende fazer um diagnóstico dos problemas acumulados na área da política externa e da diplomacia. O que se pretende, sinteticamente, seria oferecer um conjunto de propostas centradas numa política externa visando a plena inserção do país na economia global, por meio da integração regional e da abertura econômica geral. A condição para o estabelecimento de uma nova política externa parte de uma revisão dos conceitos básicos da política externa, no sentido da abertura econômica e da liberalização comercial, tendo em vista os seguintes objetivos básicos: (a) abertura comercial global, concomitante à reforma tributária; ((b) revisão do processo de integração com a perspectiva de inserção externa; (c) análise das “alianças estratégicas” num sentido puramente pragmático; (d) atuação do Itamaraty.
        Consoante a nova visão de plena inserção do Brasil na globalização, cabe empreender uma revisão dos conceitos básicos da política externa, no sentido da abertura econômica e da interdependência global. A soberania sequer necessita ser objeto de retórica, pois ela se exerce, simplesmente. A diplomacia do Brasil sempre foi universalista, focada no interesse nacional e no direito internacional. O multilateralismo é uma de suas bases inquestionáveis, assim como a ausência de quaisquer limitações de ordem ideológica ou partidária na definição dos grandes objetivos na frente externa. Sem aprofundar grandes definições conceituais em torno da agenda internacional do Brasil, caberia inseri-la num processo de reformas econômicas e política, nas frentes delimitadas acima.
(segue...)

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5109, 8 novembro 2025, 4 p.

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

A evolução do conhecimento como uma fase distinta da evolução das espécies e da história da Terra - Rodolfo Hoffmann (Revista Será?)

A evolução do conhecimento como uma fase distinta da evolução das https://bit.ly/47jjqZH espécies e da história da Terra

evolução

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Rodolfo Hoffmann, outubro de 2025

 O Homo sapiens é um animal que promoveu um acúmulo de conhecimento que é um fenômeno novo na evolução das espécies. 

Questiona-se se o conhecimento é criado ou descoberto. Trata-se, essencialmente, de criação de conceitos, mas é errado contrapor a criação à descoberta, pois os conceitos são criados com inspiração na realidade observada e cabe reconhecer que também ocorre a descoberta de novos fatos ou de relações.

O conceito de “dois” (2) é uma criação do cérebro humano. O que vemos são duas árvores, duas pedras, dois cavalos etc. “Dois” é a propriedade comum a todos os conjuntos que podem ser colocados em correspondência biunívoca com o conjunto {A, B}. Usando o conceito de “dois”, falamos de “dois cavalos” ou “duas árvores”. É óbvio que a expansão do conhecimento humano teria sido dificultada se fosse necessário ter palavras específicas para “dois cavalos”, “duas árvores” etc. Criar o conceito de “dois” ´foi um dos milhões de passos do processo acumulativo de formação do conhecimento humano. É claro que as considerações feitas sobre o “dois” valem para qualquer número. 

Como outro exemplo, considerem-se os conceitos de ponto, reta e plano da geometria; são inspirados na realidade que vemos, mas obviamente não têm existência real; são conceitos criados pelo cérebro humano. Basta lembrar que a reta da geometria não tem largura nem espessura e que o ponto não tem nenhuma das três dimensões. Particularmente, aprecio certas “aventuras” da abstração matemática, como a possibilidade de definir claramente um espaço vetorial de sete dimensões e ver que isso facilita a compreensão de problemas.

Usei conceitos da matemática, que são bem definidos, mas considerações semelhantes valem para uma palavra como “pedra”. Claro que as pedras são objetos reais, mas é um ser humano que decide se a palavra “pedra” se aplica ou não a um objeto qualquer. Note-se que o conceito de “pedra” é um pouco vago. Às vezes, na ciência, criam-se palavras para evitar a vagueza de palavras leigas. Os biólogos usam uma língua morta para criar nomes para as espécies de plantas e animais que querem distinguir.

O Homo sapiens existe há 200.000 anos. É um período minúsculo para evolução das espécies, considerando que a vida surgiu há mais de 3,5 bilhões de anos. Nesses 200 mil anos a espécie acumulou conhecimento que permite viagens à lua, uso de energia atômica, engenharia genética, transplantes do coração, construir sistemas eletrônicos com inteligência artificial etc. Nenhum ser humano pode, isoladamente, abarcar todo esse conhecimento. Esse processo de acúmulo de conhecimento é algo totalmente novo na história do globo terrestre e que não tem sido devidamente destacado.

Considerando o que sabemos da evolução do universo, houve uma fase inicial onde nem “química” havia; uma fase de pura física: energia e átomos. Numa segunda fase os átomos puderam se agregar em moléculas:  fase da química. A terceira fase surge com os seres vivos, nos quais as transformações químicas são determinadas pelo código genético. Note-se que cada fase depende da pré-existência da anterior: não há química sem átomos e não há vida sem química. Isso vale para a quarta fase, de acumulação do conhecimento. Essa acumulação de conhecimento só pode ocorrer em um ser vivo com características especiais, com destaque para seu cérebro.

Depois que Darwin mostrou que o Homo sapiens era um produto da evolução por seleção natural, como qualquer outro animal, os Darwinistas estiveram ocupados em desmentir o criacionismo e combater a ideia de que o Homo sapiens representasse o ápice da evolução ou que fosse em algum sentido “superior” a outras espécies. Stephen Jay Gould argumenta exaustivamente que, biologicamente, não há nenhuma razão para considerar o Homo sapiens como uma espécie “superior”. Isso certamente contribuiu para que esses Darwinistas não assinalassem o acúmulo de conhecimento como um processo novo que deveria ser destacado. 

O livro “A evolução é um fato”, publicado pela Academia Brasileira de Ciências em 2024 e disponível na internet, é uma fonte riquíssima de dados sobre a história do nosso planeta e a evolução da vida. Na p. 631 destacam-se seis megatrajetórias na história da Terra: I – Protovida; II – Procariotos; III – Eucariotos unicelulares; IV – Eucariotos pluricelulares; V – Terrestrialização da biosfera e VI – Inteligência humana, que teve início há 6 milhões de anos com o surgimento dos hominídeos. É importante notar que as cinco primeiras megatrajetórias são diferenciadas com base em mudanças biológicas, mas a sexta megatrajetória se distingue por um fenômeno novo: o acúmulo de conhecimento. Esse acúmulo de conhecimento dependeu do desenvolvimento da linguagem e certamente será bastante arbitrário estabelecer quando ele se tornou expressivo e relevante: já com os primeiros hominídeos, há 6 milhões de anos, ou apenas com o Homo sapiens, há 200 mil anos?  No texto do livro assinala-se “… o aparecimento da inteligência humana, há poucos milhões de anos. Agora, nossa espécie não só entende o funcionamento e a história da natureza, mas transmite este conhecimento de geração em geração, controla fenômenos naturais e interfere nos rumos da evolução e na saúde da biosfera.” É importante não confundir a existência de características biológicas necessárias ao processo com o próprio processo de acumulação do conhecimento. As características biológicas (morfológicas e fisiológicas) do Homo sapiens já estão estabelecidas há 200 mil anos, mas é apenas nos últimos milênios que sua interferência na biosfera se tornou mais relevante. O acúmulo de conhecimento só pode ocorrer graças ao surgimento de uma espécie com certas características especiais, mas ele é um fenômeno essencialmente novo. E certamente o cérebro não é a única característica biológica relevante ou essencial, cabendo lembrar o papel do bipedalismo e posição ereta, deixando as mãos livres para usar instrumentos e as cordas vocais que possibilitaram o desenvolvimento da linguagem oral.

Continuando o texto citado, há menção a outro problema: “Ainda falta ao homem igualar sua sabedoria ao nível do seu conhecimento para manter o equilíbrio da biosfera dentro do sistema Terra e assegurar sua própria sobrevivência como espécie.” Esta é uma maneira muito leve e benevolente de colocar o problema. Realmente, com esse espetacular e maravilhoso conhecimento acumulado, seria de se esperar um comportamento muito mais racional. Acontece que as sociedades humanas acumularam conhecimento, mas ele está muito mal distribuído. Muitas vezes o conhecimento verdadeiro está até disponível, mas há motivos psicológicos e políticos que levam a maior parte da população a seguir mitos e líderes “carismáticos”.  As ciências sociais não permitem prever o que a humanidade vai fazer. Infelizmente, não há garantia, hoje, de que a humanidade não venha a seguir caminhos que levem à sua própria extinção.

O que procurei ressaltar nestas notas é que, associado à existência do Homo sapiens, ocorreu um processo de acumulação de conhecimento que é um fenômeno novo que não deve ser confundido com a (ou reduzido à) existência de uma espécie com características necessárias ao desenvolvimento daquele processo. 

Essa ideia não deve ser confundida com a proposta de existência do Antropoceno, uma era geológica na qual se torna relevante a interferência da atividade humana na biosfera. É certo que foi aquele extraordinário conhecimento acumulado que deu ao Homo sapiens o poder de interferir tanto no meio ambiente. Nesse sentido, o antropoceno seria uma consequência do processo de acumulação do conhecimento.

Essa visão da história da Terra é materialista no sentido de que tudo ocorre com matéria formada por átomos. Mas há transformações e fenômenos novos, um sendo a vida. Os seres vivos surgem e existem por meio de processos químicos, mas devemos reconhecer a extraordinária novidade no fenômeno e que ele não se reduz à química. Há certa arbitrariedade na possibilidade de destacar diferentes fases na evolução da vida. Podemos destacar o surgimento dos eucariotos, o surgimento dos vertebrados ou a extinção dos dinossauros. Consideramos fundamental destacar, como fenômeno novo, não redutível à biologia, o processo de acumulação do conhecimento que ocorreu com o Homo sapiens. É um processo que começou lentamente e foi se acelerando. A criação da escrita e, mais recentemente, o computador e a informática tiveram grande impacto no processo. E é notório que esse processo sempre misturou conhecimento válido ou verdadeiro com mitos, superstições, crendices, informações falsas, preconceitos etc. 

1  Figura 4 do capítulo intitulado “A biosfera e o planeta terra: 4 bilhões de anos de interações”, de autoria de T. R. Fairchild, M. Babinski e U. G. Cordani.