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domingo, 23 de fevereiro de 2025

Como volta de Trump pode levar a democracia dos EUA ao colapso - Steven Levitsky (FSP)

Como volta de Trump pode levar a democracia dos EUA ao colapso

Steven Levitsky

Professor de ciência política da Universidade Harvard. Autor, entre outros livros, de "Como as Democracias Morrem" e "Como Salvar a Democracia", escritos com Daniel Ziblatt

Lucan A. Way Professor de democracia no departamento de Ciência Política da Universidade de Toronto (Canadá)

Folha de S. Paulo, 23/02/2025

[RESUMO] Cientistas políticos americanos argumentam que a democracia nos EUA está à beira da ruína em seus principais pilares neste segundo mandato de Donald Trump. A isso se seguirá, dizem, não uma ditadura clássica, mas um modelo de autoritarismo competitivo. Embora nesses casos a ordem liberal pareça preservada, autocratas no poder usam sistematicamente a máquina do Estado para reprimir a oposição, usar brechas da lei a seu favor e fortalecer seu poder.

A primeira eleição de Donald Trump à Presidência em 2016 desencadeou uma defesa enérgica da democracia por parte do establishment americano, mas seu retorno ao cargo foi recebido com uma indiferença marcante.

Muitos políticos, comentaristas, figuras da mídia e líderes empresariais que viam Trump como uma ameaça agora tratam essas preocupações como exageradas —afinal, a democracia sobreviveu ao seu primeiro mandato. Em 2025, preocupar-se com o destino da democracia americana tornou-se quase banal.

O momento dessa mudança de humor não poderia ser pior, pois a democracia está em maior perigo hoje do que em qualquer outro momento da história moderna dos EUA. A América tem regredido por uma década: entre 2014 e 2021, o índice anual de liberdade global da Freedom House, que avalia todos os países em uma escala de 0 a 100, rebaixou os Estados Unidos de 92 (empatado com a França) para 83 (abaixo da Argentina e empatado com o Panamá e a Romênia), onde permanece.

Os aclamados controles constitucionais do país estão falhando. Trump violou a regra cardinal da democracia quando tentou reverter os resultados de uma eleição e bloquear uma transferência pacífica de poder.

No entanto, nem o Congresso nem o Judiciário o responsabilizaram, e o Partido Republicano, tentativa de golpe à parte, escolheu-o novamente para disputar a eleição.

Trump conduziu uma campanha abertamente autoritária em 2024, prometendo processar seus rivais, punir a mídia crítica e mobilizar o Exército para reprimir protestos. Ele venceu, e graças a uma decisão extraordinária da Suprema Corte, desfrutará de ampla imunidade presidencial em seu segundo mandato.

A democracia sobreviveu ao primeiro mandato de Trump porque ele não tinha experiência, plano ou equipe. Ele não controlava o Partido Republicano quando assumiu o cargo em 2017, e a maioria dos líderes partidários ainda estava comprometida com as regras democráticas do jogo.

Trump governou com republicanos do establishment e tecnocratas, e eles em grande parte o contiveram. Nada disso é mais verdade. Desta vez, Trump deixou claro que pretende governar com "pessoas leais". Ele agora domina o Partido Republicano, que, purgado de suas forças anti-Trump, consente com seu comportamento autoritário.

A democracia dos EUA provavelmente entrará em colapso durante o segundo governo Trump, no sentido de que deixará de atender aos critérios padrões para uma democracia liberal: sufrágio adulto pleno, eleições livres e justas e ampla proteção das liberdades civis.

O colapso da democracia nos Estados Unidos não dará origem a uma ditadura clássica em que as eleições são uma farsa e a oposição é presa, exilada ou morta. Mesmo no pior cenário, Trump não será capaz de reescrever a Constituição ou derrubar a ordem constitucional.

Ele será contido por juízes independentes, pelo federalismo, pelas Forças Armadas e por altas barreiras à reforma constitucional. Haverá eleições em 2028, e os republicanos poderão perdê-las.

O autoritarismo não requer a destruição da ordem constitucional. O que está por vir não é fascismo ou ditadura de partido único, mas autoritarismo competitivo —um sistema em que os partidos competem nas eleições, mas o abuso de poder do incumbente inclina o campo de jogo contra a oposição.

A maioria das autocracias que surgiram desde o fim da Guerra Fria se enquadra nessa categoria, incluindo o Peru de Alberto Fujimori, a Venezuela de Hugo Chávez e os contemporâneos El Salvador, Hungria, Índia, Tunísia e Turquia. Sob o autoritarismo competitivo, a arquitetura formal da democracia, incluindo eleições multipartidárias, permanece intacta.

As forças de oposição são legais e atuam abertamente, disputam seriamente o poder. As eleições são muitas vezes batalhas ferozmente. E, de vez em quando, os incumbentes perdem, como aconteceu na Malásia em 2018 e na Polônia em 2023.

No entanto, o sistema não é democrático, porque os governantes manipulam o jogo ao usar a máquina do Estado para atacar os oponentes e cooptar críticos. A competição é real, mas injusta.

O autoritarismo competitivo transformará a vida política nos Estados Unidos. Como a enxurrada inicial de ordens executivas de constitucionalidade duvidosa de Trump deixou claro, o custo da oposição pública aumentará consideravelmente: doadores do Partido Democrata podem ser alvos do IRS (Receita Federal dos Estados Unidos), empresas que financiam grupos de direitos civis podem sofrer maior escrutínio fiscal e legal ou ver seus empreendimentos impedidos por reguladores. Veículos de mídia crítica provavelmente enfrentarão processos por difamação ou outras ações legais, bem como políticas retaliatórias contra suas empresas-mãe.

Os americanos ainda poderão se opor ao governo, mas a oposição será mais difícil e arriscada, levando muitos cidadãos a decidirem que a luta não vale a pena. Abandonar a resistência, no entanto, poderia abrir caminho para o enraizamento autoritário, com graves e duradouras consequências para a democracia global.

O ESTADO COMO ARMA

O segundo governo Trump pode violar liberdades civis básicas de maneiras que subvertam inequivocamente a democracia. O presidente, por exemplo, poderia ordenar que o Exército atirasse em manifestantes, como ele supostamente quis fazer durante seu primeiro mandato.

Ele também poderia cumprir sua promessa de campanha de lançar a "maior operação de deportação da história americana", lançando milhões de pessoas em um processo repleto de abusos que inevitavelmente levaria à detenção equivocada de cidadãos americanos.

Todavia, grande parte do autoritarismo que está por vir assumirá uma forma menos visível: a politização e a instrumentalização da burocracia governamental. Estados modernos são entidades poderosas. O governo federal dos EUA emprega mais de 2 milhões de pessoas e tem um orçamento anual de quase US$ 7 trilhões.

Funcionários do governo servem como árbitros importantes da vida política, econômica e social. Eles ajudam a determinar quem é processado por crimes, quando e como regras e regulamentos são aplicados, quais organizações recebem status de isenção fiscal, quais agências privadas obtêm contratos para credenciar universidades e quais empresas obtêm concessões, contratos, subsídios, isenções tarifárias e resgates.

Mesmo em países como os Estados Unidos, com governos relativamente pequenos e livre mercado, essa autoridade cria incontáveis oportunidades para líderes recompensarem aliados e punirem oponentes.

Nenhuma democracia está totalmente livre de tal politização. Todavia, quando os governos transformam o Estado em arma contra seus adversários, usando seu poder para sistematicamente enfraquecer a oposição, eles minam a ordem liberal. A política torna-se uma partida de futebol em que os árbitros e os zeladores do campo trabalham para um time para sabotar seu rival.

É por isso que todas as democracias estabelecidas têm conjuntos elaborados de leis, regras e normas para prevenir a instrumentalização do Estado. Isso inclui judiciários independentes, bancos centrais e autoridades eleitorais e serviços públicos com proteções de emprego. Nos Estados Unidos, o Ato Pendleton de 1883 criou um serviço público profissionalizado em que a contratação é baseada no mérito.

Funcionários federais são proibidos de participar de campanhas eleitorais e não podem ser demitidos ou rebaixados por razões políticas. A grande maioria dos mais de 2 milhões de funcionários federais há muito tempo desfruta de proteção do serviço público. No início do segundo mandato de Trump, apenas cerca de 4.000 deles eram nomeados políticos.

Os Estados Unidos também desenvolveram um extenso conjunto de regras e normas para prevenir a politização de instituições estatais. Isso inclui a confirmação pelo Senado de nomeados presidenciais, mandato vitalício para juízes da Suprema Corte, segurança de mandato para o presidente do Federal Reserve (o Banco Central do país), mandatos de dez anos para diretores do FBI e de cinco anos para diretores do IRS.

As Forças Armadas são protegidas da politização por aquilo que o estudioso jurídico Zachary Price descreve como "uma sobreposição incomumente espessa de estatutos" que governam a nomeação, promoção e remoção de oficiais militares. Embora o Departamento de Justiça, o FBI e o IRS tenham permanecido um tanto politizados até a década de 1970, uma série de reformas pós-Watergate efetivamente encerrou a instrumentalização partidária dessas instituições.

Servidores públicos profissionais muitas vezes desempenham um papel crítico em resistir aos esforços do governo para instrumentalizar agências estatais. Eles têm servido como a linha de frente de defesa da democracia nos últimos anos em países como Brasil, Índia, Israel, México e Polônia, bem como nos Estados Unidos durante o primeiro governo Trump.

Por essa razão, um dos primeiros movimentos realizados por autocratas eleitos —como Nayib Bukele em El Salvador, Chávez na Venezuela, Viktor Orbán na Hungria, Narendra Modi na Índia e Recep Tayyip Erdogan na Turquia— tem sido purgar servidores de agências públicas responsáveis por coisas como investigar e processar irregularidades, regular a mídia e a economia e supervisionar eleições. Eles são substituídos por parceiros leais ao mandatário.

Depois que Orbán se tornou primeiro-ministro em 2010, seu governo retirou dos funcionários públicos proteções essenciais, demitiu milhares e os substituiu por membros leais do partido governante Fidesz. Da mesma forma, o partido Lei e Justiça da Polônia enfraqueceu as leis ao eliminar o processo de contratação competitiva e preencher a burocracia, o Judiciário e as Forças Armadas com aliados partidários.

Trump e seus aliados têm planos semelhantes. Por exemplo, americano reviveu seu esforço do primeiro mandato para enfraquecer o serviço público ao reinstaurar o Schedule F, uma ordem executiva que permite ao presidente retirar de dezenas de milhares de funcionários do governo proteções legais em cargos considerados "de caráter confidencial, determinante de políticas, formulador de políticas ou defensor de políticas."

Caso implementado, o decreto possibilitará que esses servidores públicos sejam facilmente trocados por nomes políticos. O número de nomeações partidárias, já mais alto no governo dos EUA do que na maioria das democracias estabelecidas, poderia aumentar mais de dez vezes.

A Heritage Foundation e outros grupos de direita gastaram milhões de dólares recrutando e avaliando um exército de até 54 mil pessoas leais a Trump para ocupar cargos no governo. Essas mudanças poderiam ter um efeito mais amplo de intimidação, desencorajando críticas ao presidente.

Finalmente, a declaração de Trump de que demitiria o diretor do FBI, Christopher Wray, e o diretor do IRS, Danny Werfel, antes do fim de seus mandatos levou ambos a renunciar, abrindo caminho para trumpistas com pouca experiência assumirem o comando.

Trocas assim no Departamento de Justiça, no FBI e no IRS podem levar o governo a usar essas agências para três fins antidemocráticos: investigar e processar rivais, cooptar a sociedade civil e livrar aliados de processos.

CHOQUE E LEI

O meio mais visível de transformar o Estado em arma é através de processos direcionados. Praticamente todos os governos autocráticos eleitos utilizam ministérios da Justiça, escritórios de promotores públicos e agências fiscais e de inteligência para investigar e processar políticos rivais, empresas de mídia, editores, jornalistas, líderes empresariais, universidades e outros críticos.

Em ditaduras tradicionais, críticos são frequentemente acusados de crimes como sedição, traição ou conspiração para insurreição, mas autocratas contemporâneos tendem a processá-los por ofensas mais mundanas, como corrupção, evasão fiscal, difamação e até mesmo violações menores de regras obscuras.

Se os investigadores procurarem o suficiente, geralmente podem encontrar infrações pequenas, como renda não declarada ou descumprimento de regulamentos raramente aplicados.

Trump declarou repetidamente sua intenção de processar seus rivais, incluindo a ex-representante republicana Liz Cheney e outros legisladores que serviram no comitê da Câmara que investigou o ataque de 6 de janeiro de 2021 ao Capitólio dos EUA. Em dezembro de 2024, republicanos da Câmara pediram uma investigação do FBI sobre Cheney.

Os esforços da primeira administração Trump para usar o Departamento de Justiça como arma foram em grande parte frustrados internamente, então desta vez ele buscou nomear pessoas que compartilhassem seu objetivo de perseguir adversários.

Sua indicada para procuradora-geral, Pam Bondi, declarou que os promotores que investigaram Trump serão processados, e sua escolha para diretor do FBI, Kash Patel, repetidamente pediu que rivais fossem investigados. Em 2023, Patel até publicou um livro com uma lista de funcionários públicos "inimigos" a serem alvos.

Como a administração Trump não controlará os tribunais, a maioria dos alvos de processos seletivos não acabará na prisão, mas o governo não precisa prender seus críticos para causar danos a eles.

Pessoas investigadas serão forçadas a dedicar tempo, energia e recursos consideráveis para se defender; gastarão suas economias com advogados; terão suas carreiras e reputações maculadas. No mínimo, sofrerão meses ou anos de ansiedade e noites sem dormir com suas famílias.

Os esforços para assediar adversários não se limitarão ao Departamento de Justiça e ao FBI. Uma variedade de agências e órgãos pode servir ao mesmo objetivo. Governos autocráticos, por exemplo, rotineiramente usam autoridades fiscais para mirar opositores em investigações politicamente motivadas.

Na Turquia, o governo Erdogan destruiu o grupo de mídia Dogan Yayin, cujos jornais e redes de TV estavam relatando corrupção governamental, acusando-o de evasão fiscal e impondo uma multa esmagadora de US$ 2,5 bilhões, o que forçou a família Dogan a vender seu império a aliados do governo. Erdogan também usou auditorias fiscais para pressionar o Grupo Koc, o maior conglomerado industrial do país, a abandonar seu apoio a partidos de oposição.

Trump poderia agir de forma semelhante. Um influxo de nomeações políticas potencialmente deixaria doadores democratas na mira. Como todas as doações de campanha individuais são divulgadas publicamente, seria fácil identificar essas pessoas; de fato, o medo de tal direcionamento poderia dissuadir indivíduos de contribuir para políticos de oposição em primeiro lugar.

O status de isenção fiscal também pode ser politizado. Em seu governo, Richard Nixon trabalhou para negar ou atrasar essa classificação para organizações e think tanks consideradas politicamente hostis.

Sob Trump, tais esforços seriam facilitados por uma legislação antiterrorismo aprovada em novembro de 2024 pela Câmara dos Representantes, o que autoriza o Departamento do Tesouro a retirar o status de isenção fiscal de qualquer organização suspeita de apoiar o terrorismo, sem a necessidade de divulgar evidências para justificar tal ato.

Como "apoio ao terrorismo" pode ser definido de forma muito ampla, Trump poderia, nas palavras do representante democrata Lloyd Doggett, "usá-lo como uma espada contra aqueles que vê como seus inimigos políticos."

Da mesma maneira, quase certamente o Departamento de Educação servirá de munição contra universidades, que, por serem centros de ativismo de oposição, despertam a ira de governos autoritários competitivos.

O Departamento de Educação distribui bilhões de dólares em financiamento federal para universidades, supervisiona as agências responsáveis pela avaliação de faculdades e aplica o cumprimento dos Títulos 6º e 9º, leis que proíbem instituições educacionais de discriminar com base em raça, cor, origem nacional ou sexo. Essas capacidades raramente foram politizadas no passado, mas líderes republicanos pediram seu uso contra escolas de elite.

Autocratas eleitos também rotineiramente usam processos por difamação e outras formas de ação legal para silenciar seus críticos na mídia. No Equador, em 2011, o então presidente Rafael Correa ganhou um processo de US$ 40 milhões contra um colunista e três executivos de um jornal que publicou um editorial chamando-o de "ditador."

Embora figuras públicas raramente ganhem tais processos nos Estados Unidos, Trump fez amplo uso de uma variedade de ações legais para desgastar meios de comunicação, mirando ABC News, CBS News, The Des Moines Register e Simon & Schuster. A estratégia já deu frutos.

Em dezembro de 2024, a ABC tomou a chocante decisão de chegar a um acordo em um processo por difamação movido por Trump, pagando-lhe US$ 15 milhões para evitar um julgamento que provavelmente teria vencido. Os proprietários da CBS também estão supostamente considerando fazer o mesmo, exemplo de como ações legais espúrias podem se mostrar politicamente eficazes.

A administração não precisa atacar diretamente todos os seus críticos para silenciar a maioria das dissidências. Lançar alguns ataques de alto perfil pode servir como um dissuasor eficaz. Uma ação legal contra Cheney seria observada de perto por outros políticos; um processo contra o New York Times ou Harvard teria um efeito intimidante em dezenas de outros meios de comunicação ou universidades.

ARMADILHA DO MEL

Um Estado transformado em arma não é apenas uma ferramenta para punir oponentes. Também pode servir para construir apoio. Governos em regimes autoritários competitivos rotineiramente se valem de políticas econômicas e decisões regulatórias para recompensar indivíduos, empresas e organizações politicamente amigáveis.

Líderes empresariais, empresas de mídia, universidades e outras organizações têm tanto a ganhar quanto a perder com decisões antitruste do governo, a emissão de licenças e permissões, a concessão de contratos governamentais, a dispensa de regulamentos ou tarifas e a isenção fiscal. Se acreditarem que essas decisões são tomadas com base política em vez de técnica, têm um forte incentivo para se alinhar com os incumbentes.

O potencial de cooptação é mais claro no setor empresarial. Em 2023, o governo americano gastou mais de US$ 750 bilhões, ou quase 3% do PIB, na concessão de contratos.

Para autocratas aspirantes, decisões políticas e regulatórias são poderosas cenouras e bastões para atrair apoio empresarial. Esse tipo de lógica patrimonial ajudou autocratas na Hungria, Rússia e Turquia a garantir a cooperação do setor privado.

Se Trump enviar sinais de que se comportará de maneira semelhante, as consequências políticas serão de longo alcance. Se líderes empresariais se convencerem de que é mais lucrativo evitar financiar candidatos de oposição ou investir em mídia independente, eles mudarão seu comportamento.

De fato, o comportamento deles já começou a mudar. No que a colunista do New York Times Michelle Goldberg chamou de "a Grande Capitulação", poderosos CEOs que antes criticavam o comportamento autoritário de Trump agora estão correndo para se encontrar com ele, elogiá-lo e dar-lhe dinheiro. Amazon, Google, Meta, Microsoft e Toyota doaram cada uma US$ 1 milhão para financiar a posse presidencial, mais do que o dobro de suas doações inaugurais anteriores.

No início de janeiro, a Meta, dona do Facebook, Instagram e WhatsApp, anunciou que estava abandonando suas operações de checagem de fatos —uma medida que Trump se gabou de "provavelmente" ter resultado de suas ameaças de tomar medidas legais contra o CEO da empresa, Mark Zuckerberg. O próprio Trump reconheceu que em seu primeiro mandato "todos estavam lutando contra mim", mas agora "todos querem ser meus amigos".

Um padrão semelhante está surgindo no setor de mídia. Quase todos os principais veículos dos EUA —ABC, CBS, CNN, NBC, The Washington Post— são de propriedade e operados por grandes corporações.

Embora Trump não possa cumprir sua ameaça de reter licenças de redes de televisão nacionais, pode pressionar seus proprietários corporativos.

O Washington Post, por exemplo, é controlado por Jeff Bezos, cuja maior empresa, a Amazon, compete por grandes contratos federais. Da mesma forma, o dono do Los Angeles Times, Patrick Soon-Shiong, vende produtos médicos sujeitos à revisão pela Administração de Alimentos e Medicamentos. Antes das eleições presidenciais de 2024, os dois anularam os endossos planejados de seus jornais à democrata Kamala Harris.

ESCUDO AUTORITÁRIO

Finalmente, um Estado transformado em arma pode servir como um escudo legal para proteger funcionários do governo ou aliados que tiveram comportamentos antidemocráticos.

Um Departamento de Justiça leal, por exemplo, poderia fechar os olhos para atos de violência política pró-Trump, como ataques ou ameaças contra jornalistas, funcionários eleitorais, manifestantes ou políticos e ativistas da oposição. Também poderia se recusar a investigar casos de intimidação de eleitores ou até mesmo manipular os resultados das eleições.

Isso já aconteceu nos Estados Unidos. Durante e após a Reconstrução, a Ku Klux Klan e outros grupos armados de supremacia branca, com laços com o Partido Democrata, realizaram campanhas de terror violentas em todo o Sul, assassinando políticos negros e republicanos, incendiando casas, empresas e igrejas negras, cometendo fraudes eleitorais e ameaçando, espancando e matando cidadãos negros que tentavam votar.

Essa onda de terror, que ajudou a estabelecer quase um século de governo de partido único em todo o Sul, foi possibilitada pela conivência das autoridades de aplicação de leis estaduais e locais, que rotineiramente fechavam os olhos para a violência e sistematicamente não responsabilizavam seus perpetradores.

Os Estados Unidos experimentaram um aumento acentuado na violência de extrema direita durante o primeiro governo Trump. As ameaças contra membros do Congresso cresceram mais de dez vezes. Uma das consequências: segundo o senador republicano Mitt Romney, o medo da violência dos apoiadores de Trump dissuadiu alguns senadores republicanos de votar pelo seu impeachment após o ataque de 6 de janeiro de 2021.

Por quase todas as medidas, a violência política diminuiu após a invasão ao Capitólio, em parte porque centenas de participantes do ato foram condenados e presos. Mas agora o perdão de Trump a quase todos os insurrecionistas enviou uma mensagem de que atores violentos ou antidemocráticos serão protegidos.

Tais sinais encorajam o extremismo violento. Neste segundo mandato de Trump, críticos do governo e jornalistas independentes quase certamente enfrentarão ameaças mais frequentes e até mesmo ataques diretos.

Nada disso seria inteiramente novo para os Estados Unidos. J. Edgar Hoover, diretor do FBI, usou a agência como arma política para os seis presidentes. A administração Nixon utilizou o Departamento de Justiça e outras agências contra seus inimigos. O período atual, contudo, difere em aspectos importantes.

Os padrões democráticos globais aumentaram consideravelmente. Por qualquer medida contemporânea, os Estados Unidos eram consideravelmente menos democráticos na década de 1950 do que são hoje. Um retorno às práticas de meados do século 20 constituiria, por si só, retrocesso democrático significativo.

Mais importante, o próximo uso do governo como arma provavelmente irá muito além das práticas de meados do século 20. Há 50 anos, ambos os principais partidos dos EUA eram internamente heterogêneos, relativamente moderados e amplamente comprometidos com as regras democráticas do jogo.

Hoje, esses partidos estão muito mais polarizados. O Republicano radicalizado abandonou seu compromisso de longa data com as regras democráticas básicas, incluindo aceitar a derrota eleitoral e rejeitar inequivocamente a violência.

Além disso, grande parte do partido Republicano agora abraça a ideia de que as instituições da América —desde a burocracia federal e escolas públicas até a mídia e universidades privadas— foram corrompidas por ideologias de esquerda.

Pelo mundo, movimentos autoritários também acusam inimigos de subverter as instituições de seu países; líderes autocráticos, incluindo Erdogan, Orbán e Nicolás Maduro, da Venezuela, com frequência promovem tais alegações.

Essa visão de mundo tende a justificar, e até motivar, o tipo de expurgo e loteamento de cargos que Trump promete. Enquanto Nixon trabalhou secretamente para fazer do Estado uma arma e enfrentou oposição republicana quando esse comportamento veio à tona, o Partido Republicano de hoje encoraja abertamente tais abusos.

A transformação do Estado em arma tornou-se estratégia republicana. O partido que uma vez abraçou o ditado de campanha do presidente Ronald Reagan, segundo o qual o governo era a fonte dos problema, agora abraça entusiasticamente o governo como forma de munição política.

Usar o Poder Executivo dessa maneira é o que os republicanos aprenderam com Orbán. O autocrata húngaro ensinou uma geração de conservadores que o Estado não deve ser desmantelado, mas sim usado em busca de causas de direita e contra oponentes.

É por isso que a pequena Hungria se tornou um modelo para tantos apoiadores de Trump. Instrumentalizar o Estado não é uma nova característica da filosofia conservadora —é uma característica antiga do autoritarismo.

IMUNIDADE NATURAL?

A administração Trump pode descarrilar a democracia, mas é improvável que consolide o governo autoritário. Os Estados Unidos possuem várias fontes potenciais de resiliência. As instituições americanas são mais fortes do que as da Hungria, Turquia e de outros países com regimes autoritários competitivos.

O Judiciário independente, o federalismo, o bicameralismo e as eleições de meio de mandato —fatores ausentes na Hungria, por exemplo— provavelmente limitarão o alcance do autoritarismo de Trump.

Trump também é politicamente mais fraco do que muitos autocratas eleitos bem-sucedidos. Líderes autoritários causam mais danos quando desfrutam de amplo apoio público: Bukele, Chávez, Fujimori e Vladimir Putin ostentavam índices de aprovação acima de 80% quando lançaram golpes de poder autoritários.

Tal apoio público esmagador ajuda os líderes a garantir as supermaiorias legislativas ou vitórias plebiscitárias esmagadoras necessárias para impor reformas que consolidam o governo autocrático. Também ajuda a dissuadir rivais intrapartidários, juízes e até mesmo grande parte da oposição.

Líderes menos populares, por outro lado, enfrentam maior resistência de legislaturas, tribunais, sociedade civil e até mesmo de seus próprios aliados. Seus golpes de poder são, portanto, mais propensos a falhar. O peruano Pedro Castillo e o sul-coreano Yoon Suk-yeol tinham índices de aprovação abaixo de 30% quando tentaram tomar o poder de forma extraconstitucional, e ambos falharam.

O índice de aprovação de Jair Bolsonaro estava bem abaixo de 50% quando tentou orquestrar um golpe para reverter a eleição presidencial de 2022. Ele também foi derrotado nas urnas e declarado inelegível por 8 anos.

O índice de aprovação de Trump nunca ultrapassou 50% durante seu primeiro mandato, e uma combinação de incompetência, políticas impopulares e polarização partidária provavelmente limitará seu apoio durante este novo mandato. Um autocrata eleito com índice de aprovação de 45% é perigoso, mas menos do que um com 80% de apoio.

A sociedade civil é outra fonte potencial de resiliência democrática. Uma razão importante pela qual as democracias ricas são mais estáveis é que o desenvolvimento capitalista dispersa recursos humanos, financeiros e organizacionais para longe do Estado, gerando poder de contraposição na sociedade.

A riqueza não liberta completamente o setor privado das pressões impostas por um Estado transformado em arma. No entanto, quanto maior e mais rico for um setor privado, mais difícil será capturá-lo totalmente ou intimidá-lo à submissão.

Além disso, cidadãos mais ricos possuem mais tempo, habilidades e recursos para se juntar ou criar organizações cívicas ou de oposição —e como dependem menos do Estado para seu sustento do que cidadãos pobres, estão em melhor posição para protestar ou votar contra o governo.

Comparadas às de outros regimes autoritários competitivos, as forças de oposição nos Estados Unidos são bem organizadas, bem financiadas e eleitoralmente viáveis, o que as torna mais difíceis de cooptar, reprimir e derrotar nas urnas.

FALHAS NA ARMADURA

Ainda assim, mesmo uma inclinação modesta do campo de jogo poderia prejudicar a democracia americana. As democracias exigem uma oposição robusta, e oposições robustas devem ser capazes de contar com um grande e renovável pool de políticos, ativistas, advogados, especialistas, doadores e jornalistas.

Um Estado transformado em arma põe em perigo tal oposição. Embora os críticos de Trump não sejam presos, exilados ou banidos da política, o custo elevado da oposição pública levará muitos deles a se retirarem para as margens políticas.

Diante de investigações do FBI, de auditorias fiscais, audiências no Congresso, processos judiciais, assédio online ou a perspectiva de perder oportunidades de negócios, muitas pessoas que normalmente se oporiam ao governo podem concluir que simplesmente não vale o risco ou o esforço. Esse processo de autoexclusão talvez não atraia muita atenção pública, mas teria graves consequências.

Diante de investigações iminentes, políticos promissores, tanto republicanos quanto democratas, deixam a vida pública. CEOs em busca de contratos governamentais, isenções tarifárias ou decisões antitruste favoráveis param de contribuir com candidatos democratas, de financiar iniciativas de direitos civis ou democracia, e de investir em mídia independente.

Veículos de notícias cujos proprietários se preocupam com processos judiciais ou assédio governamental restringem suas equipes investigativas e seus repórteres mais agressivos. Editores praticam autocensura, suavizando manchetes e optando por não publicar matérias críticas ao governo.

E líderes universitários, temendo investigações governamentais, cortes de financiamento ou impostos punitivos sobre doações, reprimem protestos no campus, removem ou rebaixam professores mais combativos e permanecem em silêncio diante do crescente autoritarismo.

Estados usados como arma criam um problema difícil de ação coletiva para as elites do establishment que, em teoria, prefeririam a democracia ao autoritarismo competitivo.

Os políticos, CEOs, proprietários de mídia e reitores de universidades que modificam seu comportamento diante de ameaças autoritárias estão agindo racionalmente, fazendo o que consideram melhor para suas organizações. Tais atos de autopreservação, contudo, têm um custo coletivo.

À medida que atores individuais se retiram para as margens ou se autocensuram, a oposição social enfraquece. O ambiente midiático torna-se menos crítico. E a pressão sobre o governo autoritário diminui.

A retração da oposição social pode ser pior do que parece. Observamos isso quando atores relevantes se autoexcluem, quando políticos se aposentam, reitores de universidades renunciam ou veículos de mídia mudam sua programação e pessoal.

Mais difícil é ter a percepção de uma oposição que poderia ter se materializado em um ambiente menos ameaçador —os jovens advogados que decidem não se candidatar a cargos públicos; os jovens escritores aspirantes que decidem não se tornar jornalistas; os potenciais denunciantes que decidem não se manifestar; os inúmeros cidadãos que decidem não participar de um protesto ou se voluntariar para uma campanha.

MANTENHA A LINHA

A América está à beira do autoritarismo competitivo. A administração Trump já começou a cooptar instituições estatais e a usá-las contra os oponentes. A Constituição sozinha não pode salvar a democracia dos EUA. Mesmo as constituições mais bem elaboradas têm ambiguidades e lacunas que podem ser exploradas para fins antidemocráticos.

Afinal, a mesma ordem constitucional que sustenta a democracia liberal contemporânea dos Estados Unidos permitiu quase um século de autoritarismo e segregação racial no sul do país, a "internação" em massa de nipo-americanos durante a Segunda Guerra e o macarthismo nos anos 1950.

Em 2025, os Estados Unidos são governados nacionalmente por um partido com maior vontade e poder de explorar ambiguidades constitucionais e legais para fins autoritários do que em qualquer outro momento nos últimos dois séculos.

Trump será vulnerável. O apoio público limitado da administração e os erros inevitáveis criarão oportunidades para forças democráticas —no Congresso, nos tribunais e nas urnas.

A oposição, contudo, só pode vencer se permanecer no jogo. Sob autoritarismo competitivo, ela se torna extenuante. Desgastados por assédio e ameaças, muitos críticos de Trump serão tentados a se retirar para as margens.

Tal retirada seria perigosa. Quando o medo, o cansaço ou a resignação suprimem o compromisso dos cidadãos com a democracia, o autoritarismo emergente começa a criar raízes.

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2025/02/como-volta-de-trump-pode-levar-democracia-dos-eua-ao-colapso.shtml 


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

O Caminho para o Autoritarismo Americano - Steven Levitsky e Lucan A. Way (Foreign Affairs)

O Caminho para o Autoritarismo Americano

Steven Levitsky e Lucan A. Way

Foreign Affairs

11 de fevereiro de 2025

Ilustração de Emmanuel Polanco

Traduzido por IA Deepseek e ChatGPT


A primeira eleição de Donald Trump para a presidência em 2016 desencadeou uma defesa vigorosa da democracia por parte do establishment americano. Mas seu retorno ao cargo foi recebido com uma indiferença impressionante. Muitos dos políticos, comentaristas, figuras da mídia e líderes empresariais que viam Trump como uma ameaça à democracia oito anos atrás agora tratam essas preocupações como exageradas — afinal, a democracia sobreviveu ao seu primeiro mandato. Em 2025, preocupar-se com o destino da democracia americana tornou-se quase ultrapassado.

O momento dessa mudança de humor não poderia ser pior, pois a democracia está em maior perigo hoje do que em qualquer outro momento da história moderna dos EUA. Os Estados Unidos vêm regredindo há uma década: entre 2014 e 2021, o índice global de liberdade da Freedom House, que classifica todos os países em uma escala de zero a 100, rebaixou os EUA de 92 (empatados com a França) para 83 (abaixo da Argentina e empatados com Panamá e Romênia), onde permanecem.

Os famosos freios e contrapesos constitucionais do país estão falhando. Trump violou a regra cardinal da democracia ao tentar anular os resultados de uma eleição e bloquear a transferência pacífica de poder. No entanto, nem o Congresso nem o Judiciário o responsabilizaram, e o Partido Republicano — apesar da tentativa de golpe — o renomeou para presidente. Trump conduziu uma campanha abertamente autoritária em 2024, prometendo processar seus rivais, punir a mídia crítica e implantar o exército para reprimir protestos. Ele venceu e, graças a uma decisão extraordinária da Suprema Corte, desfrutará de ampla imunidade presidencial durante seu segundo mandato.

A democracia sobreviveu ao primeiro mandato de Trump porque ele não tinha experiência, plano ou equipe. Ele não controlava o Partido Republicano quando assumiu o cargo em 2017, e a maioria dos líderes republicanos ainda estava comprometida com as regras democráticas do jogo. Trump governou com republicanos do establishment e tecnocratas, e eles em grande parte o contiveram. Nada disso é verdade agora. Desta vez, Trump deixou claro que pretende governar com leais. Ele agora domina o Partido Republicano, que, purgado de suas forças anti-Trump, aquiesce a seu comportamento autoritário.

A democracia americana provavelmente entrará em colapso durante o segundo mandato de Trump, no sentido de que deixará de atender aos critérios padrão de uma democracia liberal: sufrágio universal adulto, eleições livres e justas e ampla proteção das liberdades civis.

O colapso da democracia nos Estados Unidos não dará origem a uma ditadura clássica, em que as eleições são uma farsa e a oposição é presa, exilada ou morta. Mesmo em um cenário de pior caso, Trump não será capaz de reescrever a Constituição ou derrubar a ordem constitucional. Ele será limitado por juízes independentes, federalismo, as forças armadas profissionalizadas do país e as altas barreiras para reformas constitucionais. Haverá eleições em 2028, e os republicanos poderão perdê-las.

Mas o autoritarismo não requer a destruição da ordem constitucional. O que está por vir não é uma ditadura fascista ou de partido único, mas um autoritarismo competitivo — um sistema em que os partidos competem em eleições, mas o abuso de poder pelo titular inclina o campo de jogo contra a oposição. A maioria das autocracias que surgiram desde o fim da Guerra Fria se enquadram nessa categoria, incluindo o Peru de Alberto Fujimori, a Venezuela de Hugo Chávez e a atual El Salvador, Hungria, Índia, Tunísia e Turquia. Sob o autoritarismo competitivo, a arquitetura formal da democracia, incluindo eleições multipartidárias, permanece intacta. As forças de oposição são legais e atuam abertamente, competindo seriamente pelo poder. As eleições são frequentemente batalhas acirradas em que os titulares têm que suar para vencer. E, de vez em quando, os titulares perdem, como aconteceu na Malásia em 2018 e na Polônia em 2023. Mas o sistema não é democrático, porque os titulares manipulam o jogo, usando a máquina do governo para atacar oponentes e cooptar críticos. A competição é real, mas injusta.

O autoritarismo competitivo transformará a vida política nos Estados Unidos. Como a enxurrada inicial de ordens executivas de Trump, de constitucionalidade duvidosa, deixou claro, o custo da oposição pública aumentará consideravelmente: doadores do Partido Democrata podem ser alvos da Receita Federal; empresas que financiam grupos de direitos civis podem enfrentar maior escrutínio fiscal e legal ou ver seus empreendimentos obstruídos por reguladores. Meios de comunicação críticos provavelmente enfrentarão ações judiciais por difamação ou outras ações legais, bem como políticas retaliatórias contra suas empresas-mãe. Os americanos ainda poderão se opor ao governo, mas a oposição será mais difícil e arriscada, levando muitas elites e cidadãos a decidir que a luta não vale a pena. A falha em resistir, no entanto, pode abrir caminho para o entrincheiramento autoritário — com consequências graves e duradouras para a democracia global.

O ESTADO ARMADO

O segundo governo Trump pode violar liberdades civis básicas de maneiras que subvertem claramente a democracia. O presidente, por exemplo, poderia ordenar que o exército atirasse em manifestantes, como ele supostamente quis fazer durante seu primeiro mandato. Ele também poderia cumprir sua promessa de campanha de lançar a "maior operação de deportação da história americana", visando milhões de pessoas em um processo repleto de abusos que inevitavelmente levaria à detenção equivocada de milhares de cidadãos americanos.

Mas grande parte do autoritarismo que está por vir assumirá uma forma menos visível: a politização e o armamento da burocracia governamental. Os estados modernos são entidades poderosas. O governo federal dos EUA emprega mais de dois milhões de pessoas e tem um orçamento anual de quase US$ 7 trilhões. Funcionários do governo servem como árbitros importantes da vida política, econômica e social. Eles ajudam a determinar quem é processado por crimes, cujos impostos são auditados, quando e como regras e regulamentos são aplicados, quais organizações recebem status de isenção fiscal, quais agências privadas obtêm contratos para credenciar universidades e quais empresas obtêm licenças críticas, concessões, contratos, subsídios, isenções tarifárias e resgates. Mesmo em países como os Estados Unidos, que têm governos relativamente pequenos e laissez-faire, essa autoridade cria uma infinidade de oportunidades para os líderes recompensarem aliados e punirem oponentes. Nenhuma democracia está totalmente livre de tal politização. Mas quando os governos armam o estado, usando seu poder para sistematicamente desfavorecer e enfraquecer a oposição, eles minam a democracia liberal. A política se torna como uma partida de futebol em que os árbitros, os jardineiros e os marcadores trabalham para uma equipe sabotar seu rival.

É por isso que todas as democracias estabelecidas têm conjuntos elaborados de leis, regras e normas para evitar o armamento do estado. Isso inclui judiciários independentes, bancos centrais, autoridades eleitorais e serviços civis com proteções de emprego. Nos Estados Unidos, a Lei Pendleton de 1883 criou um serviço civil profissionalizado em que a contratação é baseada no mérito. Funcionários federais são proibidos de participar de campanhas políticas e não podem ser demitidos ou rebaixados por motivos políticos. A grande maioria dos mais de dois milhões de funcionários federais há muito desfruta de proteção do serviço civil. No início do segundo mandato de Trump, apenas cerca de 4.000 desses funcionários eram nomeados políticos.

Os Estados Unidos também desenvolveram um conjunto extenso de regras e normas para evitar a politização de instituições estatais-chave. Isso inclui a confirmação pelo Senado de nomeados presidenciais, mandatos vitalícios para juízes da Suprema Corte, segurança de mandato para o presidente do Federal Reserve, mandatos de dez anos para diretores do FBI e mandatos de cinco anos para diretores da Receita Federal. As forças armadas são protegidas da politização pelo que o estudioso de direito Zachary Price descreve como "uma camada incomumente espessa de estatutos" que regem a nomeação, promoção e remoção de oficiais militares. Embora o Departamento de Justiça, o FBI e a Receita Federal tenham permanecido um tanto politizados até a década de 1970, uma série de reformas pós-Watergate efetivamente acabou com o armamento partidário dessas instituições.

Funcionários públicos profissionais frequentemente desempenham um papel crítico na resistência aos esforços do governo para armar agências estatais. Eles têm servido como a linha de frente da defesa da democracia nos últimos anos no Brasil, Índia, Israel, México e Polônia, bem como nos Estados Unidos durante o primeiro governo Trump. Por esse motivo, uma das primeiras medidas tomadas por autocratas eleitos como Nayib Bukele em El Salvador, Chávez na Venezuela, Viktor Orbán na Hungria, Narendra Modi na Índia e Recep Tayyip Erdogan na Turquia foi purgar funcionários públicos profissionais de agências públicas responsáveis por investigar e processar irregularidades, regular a mídia e a economia e supervisionar eleições — e substituí-los por leais. Depois que Orbán se tornou primeiro-ministro em 2010, seu governo retirou proteções-chave do serviço civil dos funcionários públicos, demitiu milhares e os substituiu por membros leais do partido governista Fidesz. Da mesma forma, o partido Lei e Justiça da Polônia enfraqueceu as leis do serviço civil, eliminando o processo de contratação competitivo e preenchendo a burocracia, o judiciário e as forças armadas com aliados partidários.

Trump e seus aliados têm planos semelhantes. Por um lado, Trump reviveu seu esforço do primeiro mandato para enfraquecer o serviço civil, reinstaurando o Anexo F, uma ordem executiva que permite ao presidente isentar dezenas de milhares de funcionários públicos das proteções do serviço civil em empregos considerados "de caráter confidencial, de determinação de políticas, de formulação de políticas ou de defesa de políticas". Se implementado, o decreto transformará dezenas de milhares de funcionários públicos em empregados "a vontade", que podem ser facilmente substituídos por aliados políticos. O número de nomeados partidários, já maior no governo dos EUA do que na maioria das democracias estabelecidas, pode aumentar mais de dez vezes. A Heritage Foundation e outros grupos de direita gastaram milhões de dólares recrutando e avaliando um exército de até 54.000 leais para preencher cargos no governo. Essas mudanças podem ter um efeito mais amplo de intimidação em todo o governo, desencorajando funcionários públicos de questionar o presidente. Finalmente, a declaração de Trump de que demitiria o diretor do FBI, Christopher Wray, e o diretor da Receita Federal, Danny Werfel, antes do fim de seus mandatos levou ambos a renunciar, abrindo caminho para sua substituição por leais com pouca experiência em suas respectivas agências.

Uma vez que agências-chave como o Departamento de Justiça, o FBI e a Receita Federal estejam repletas de leais, os governos podem usá-las para três fins antidemocráticos: investigar e processar rivais, cooptar a sociedade civil e proteger aliados de processos.

CHOQUE E LEI

O meio mais visível de armar o estado é por meio de processos seletivos. Praticamente todos os governos autocráticos eleitos implantam ministérios da justiça, promotorias públicas e agências fiscais e de inteligência para investigar e processar políticos rivais, empresas de mídia, editores, jornalistas, líderes empresariais, universidades e outros críticos. Em ditaduras tradicionais, os críticos são frequentemente acusados de crimes como sedição, traição ou conspiração para insurreição, mas os autocratas contemporâneos tendem a processar críticos por infrações mais mundanas, como corrupção, evasão fiscal, difamação e até violações menores de regras obscuras. Se os investigadores procurarem o suficiente, geralmente podem encontrar pequenas infrações, como renda não declarada em declarações de imposto de renda ou não conformidade com regulamentos raramente aplicados.

Trump declarou repetidamente sua intenção de processar seus rivais, incluindo a ex-deputada republicana Liz Cheney e outros legisladores que integraram o comitê da Câmara que investigou o ataque de 6 de janeiro de 2021 ao Capitólio dos EUA. Em dezembro de 2024, republicanos da Câmara pediram uma investigação do FBI sobre Cheney. Os esforços do primeiro governo Trump para armar o Departamento de Justiça foram em grande parte frustrados internamente, então desta vez, Trump buscou nomeados que compartilhavam seu objetivo de perseguir inimigos percebidos. Sua indicada para procuradora-geral, Pam Bondi, declarou que os "procuradores de Trump serão processados", e sua escolha para diretor do FBI, Kash Patel, repetidamente pediu o processamento dos rivais de Trump. Em 2023, Patel até publicou um livro com uma "lista de inimigos" de funcionários públicos a serem visados.

Como o governo Trump não controlará os tribunais, a maioria dos alvos de processos seletivos não acabará na prisão. Mas o governo não precisa prender seus críticos para causar danos a eles. Alvos de investigação serão forçados a dedicar tempo, energia e recursos consideráveis para se defender; eles gastarão suas economias com advogados, suas vidas serão perturbadas, suas carreiras profissionais serão desviadas e suas reputações serão prejudicadas. No mínimo, eles e suas famílias sofrerão meses ou anos de ansiedade e noites sem dormir.

Os esforços de Trump para usar agências governamentais para assediar seus adversários percebidos não se limitarão ao Departamento de Justiça e ao FBI. Uma variedade de outros departamentos e agências pode ser implantada contra críticos. Governos autocráticos, por exemplo, rotineiramente usam autoridades fiscais para visar oponentes em investigações politicamente motivadas. Na Turquia, o governo Erdogan destruiu o grupo de mídia Dogan Yayin, cujos jornais e redes de TV estavam relatando corrupção no governo, acusando-o de evasão fiscal e impondo uma multa devastadora de US$ 2,5 bilhões que forçou a família Dogan a vender seu império de mídia para aliados do governo. Erdogan também usou auditorias fiscais para pressionar o Grupo Koc, o maior conglomerado industrial da Turquia, a abandonar seu apoio a partidos de oposição.

O governo Trump poderia implantar as autoridades fiscais contra críticos de maneira semelhante. Os governos Kennedy, Johnson e Nixon politizaram a Receita Federal antes que o escândalo de Watergate da década de 1970 levasse a reformas. Um influxo de nomeados políticos enfraqueceria essas salvaguardas, potencialmente deixando doadores democratas na mira. Como todas as doações individuais de campanha são divulgadas publicamente, seria fácil para o governo Trump identificar e visar esses doadores; de fato, o medo de tal visaria poderia desencorajar indivíduos de contribuir para políticos da oposição em primeiro lugar.

O status de isenção fiscal também pode ser politizado. Como presidente, Richard Nixon trabalhou para negar ou atrasar o status de isenção fiscal para organizações e think tanks que ele considerava politicamente hostis. Sob Trump, tais esforços poderiam ser facilitados pela legislação antiterrorismo aprovada em novembro de 2024 pela Câmara dos Representantes, que concede ao Departamento do Tesouro o poder de retirar o status de isenção fiscal de qualquer organização que suspeite estar apoiando o terrorismo, sem a necessidade de divulgar provas para justificar tal ato. Como o “apoio ao terrorismo” pode ser definido de forma muito ampla, Trump poderia, nas palavras do deputado democrata Lloyd Doggett, “usá-lo como uma espada contra aqueles que ele considera seus inimigos políticos”.

A administração Trump quase certamente usará o Departamento de Educação contra universidades, que, como centros de ativismo oposicionista, são alvos frequentes da ira de governos autoritários competitivos. O Departamento de Educação distribui bilhões de dólares em financiamento federal para universidades, supervisiona as agências responsáveis pela acreditação de faculdades e fiscaliza o cumprimento dos títulos VI e IX, leis que proíbem instituições educacionais de discriminar com base em raça, cor, origem nacional ou sexo. Essas capacidades raramente foram politizadas no passado, mas líderes republicanos pediram sua aplicação contra escolas de elite.

Autocratas eleitos também costumam usar processos por difamação e outras ações legais para silenciar críticos na mídia. No Equador, em 2011, por exemplo, o presidente Rafael Correa ganhou um processo de US$ 40 milhões contra um colunista e três executivos de um dos principais jornais do país por publicarem um editorial chamando-o de “ditador”. Embora figuras públicas raramente ganhem tais processos nos Estados Unidos, Trump tem feito amplo uso de diversas ações legais para desgastar veículos de mídia, tendo como alvos ABC News, CBS News, The Des Moines Register e Simon & Schuster. Sua estratégia já começou a dar frutos. Em dezembro de 2024, a ABC tomou a chocante decisão de resolver um processo por difamação movido por Trump, pagando-lhe US$ 15 milhões para evitar um julgamento no qual provavelmente teria vencido. Os proprietários da CBS também estariam considerando um acordo em um processo movido por Trump, demonstrando como ações judiciais infundadas podem ser eficazes politicamente.

A administração não precisa atacar diretamente todos os seus críticos para silenciar a maior parte da dissidência. Lançar alguns ataques de grande visibilidade pode servir como um poderoso efeito dissuasório. Uma ação legal contra Liz Cheney seria acompanhada de perto por outros políticos; um processo contra The New York Times ou Harvard teria um efeito inibidor em dezenas de outras mídias e universidades.

ARMADILHA DO MEL

Um estado instrumentalizado não é apenas uma ferramenta para punir opositores. Ele também pode ser usado para angariar apoio. Governos em regimes autoritários competitivos usam rotineiramente a política econômica e decisões regulatórias para recompensar indivíduos, empresas e organizações politicamente alinhadas. Líderes empresariais, empresas de mídia, universidades e outras instituições têm tanto a ganhar quanto a perder com decisões do governo sobre antitruste, concessão de licenças, contratos governamentais, isenções regulatórias e status de isenção fiscal. Se acreditarem que essas decisões são tomadas com base em critérios políticos e não técnicos, terão um forte incentivo para se alinharem aos governantes.

O setor empresarial é o exemplo mais claro desse potencial de cooptação. Grandes empresas americanas têm muito em jogo em relação às decisões antitruste, tarifárias e regulatórias do governo dos EUA, além da concessão de contratos governamentais. (Em 2023, o governo federal gastou mais de US$ 750 bilhões, quase 3% do PIB dos EUA, em contratos.) Para autocratas em ascensão, decisões políticas e regulatórias podem servir como incentivos e ameaças para atrair apoio empresarial. Essa lógica patrimonialista ajudou autocratas na Hungria, Rússia e Turquia a garantir a cooperação do setor privado. Se Trump enviar sinais claros de que agirá da mesma forma, as consequências políticas serão amplas. Se líderes empresariais perceberem que é mais lucrativo evitar financiar candidatos de oposição ou investir em mídia independente, mudarão seu comportamento.

De fato, essa mudança já começou. Em um fenômeno que a colunista do New York Times Michelle Goldberg chamou de “a Grande Capitulação”, poderosos CEOs que antes criticavam o comportamento autoritário de Trump agora correm para encontrá-lo, elogiá-lo e financiá-lo. Amazon, Google, Meta, Microsoft e Toyota doaram cada uma US$ 1 milhão para financiar a posse de Trump, mais que o dobro de suas doações inaugurais anteriores. No início de janeiro, a Meta anunciou que estava encerrando suas operações de checagem de fatos—uma decisão que Trump se gabou de ter sido influenciada por suas ameaças de ação legal contra o proprietário da empresa, Mark Zuckerberg. O próprio Trump reconheceu que em seu primeiro mandato “todos estavam lutando contra mim”, mas agora “todos querem ser meus amigos”.

ESQUEMA DE PROTEÇÃO

Por fim, um estado instrumentalizado pode servir como um escudo legal para proteger funcionários do governo ou aliados que adotem comportamentos antidemocráticos. Um Departamento de Justiça leal a Trump, por exemplo, poderia ignorar ataques ou ameaças contra jornalistas, autoridades eleitorais, manifestantes e políticos oposicionistas.

Isso já aconteceu antes nos Estados Unidos. Durante e após a Reconstrução, o Ku Klux Klan e outros grupos supremacistas brancos ligados ao Partido Democrata travaram campanhas de terror no Sul, assassinando políticos negros e republicanos, queimando igrejas e intimidando eleitores negros. Esse terror, que ajudou a estabelecer quase um século de governo de partido único no Sul, foi possível devido à conivência das autoridades locais.

A primeira administração Trump viu um aumento na violência da extrema direita. As ameaças contra congressistas aumentaram mais de dez vezes. Essas ameaças tiveram impacto: segundo o senador republicano Mitt Romney, o medo da violência dos apoiadores de Trump dissuadiu alguns senadores republicanos de votar pelo impeachment após o ataque de 6 de janeiro de 2021.

A violência política diminuiu após janeiro de 2021, em parte porque centenas de participantes do ataque foram condenados e presos. Mas a promessa de Trump de perdoar quase todos os envolvidos no 6 de janeiro ao reassumir o cargo enviou a mensagem de que atores violentos ou antidemocráticos serão protegidos.

MANTER A LINHA

Os Estados Unidos estão à beira do autoritarismo competitivo. A administração Trump já começou a instrumentalizar instituições estatais contra opositores. A Constituição, sozinha, não pode salvar a democracia americana. Mesmo as constituições mais bem elaboradas contêm ambiguidades e lacunas que podem ser exploradas para fins antidemocráticos.

Trump será vulnerável. Seu apoio público limitado e seus inevitáveis erros criarão oportunidades para as forças democráticas—no Congresso, nos tribunais e nas eleições.

Mas a oposição só vencerá se permanecer no jogo. Enfrentar um regime autoritário competitivo pode ser exaustivo. Assediados e ameaçados, muitos críticos de Trump podem ser tentados a se retirar. Tal retirada seria perigosa. Quando o medo e a exaustão substituem o compromisso dos cidadãos com a democracia, o autoritarismo começa a se enraizar.

Autores:

Steven Levitsky é professor de Estudos Latino-Americanos e de Governo em Harvard e pesquisador sênior do Conselho de Relações Exteriores.

Lucan A. Way é professor de Democracia na Universidade de Toronto e membro da Royal Society do Canadá.

Eles são autores de Competitive Authoritarianism: Hybrid Regimes After the Cold War.

https://www.foreignaffairs.com/united-states/path-american-authoritarianism-trump

https://www.foreignaffairs.com/united-states/path-american-authoritarianism-trump 


terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

O fim de uma era, e o início das Trevas: autoritarismo competitivo, o governo de Trump, segundo Steven Levitsky

 Acadêmicos respondem a uma realidade com conceitos: 

Rather than fascism or single-party dictatorship, the United States is sliding toward a more 21st-century model of autocracy: competitive authoritarianism.” 

Steven Levitsky

Na verdade, o nome exato importa muito pouco. O fato é que Trump está destruindo os fundamentos da democracia americana, ou da própria República, e arrastando para o abismo as bases institucionais do multilateralismo contemporâneo, lançando o mundo numa turbulência jamais vista desde os anos 1930 ou da Guerra de Trinta Anos. 

O que resultará de seus ataques e ameaças a aliados e parceiros? Como responderão os seus inimigos?

Dificil dizer, quando se trata de uma mente insana e de um demente perigoso.

Congressistas experientes apenas assistem inertes a um espetáculo inédito nos anais da política americana e das relações internacionais.

Quo Vadis America?!?!

Paulo Roberto de Almeida 

domingo, 22 de setembro de 2024

O futuro incerto da democracia americana em face da evolução racial do país- Steven Levitsky (FSP) ; Nota preliminar, PRA

Uma observação preliminar, PRA

Um importantíssimo arrigo de um dos autores deComo as Democracias Morrem” sobre a extrema dificuldade em democratizar a democracia nos EUA, deformada eleitoralmente pela minoria republicana que se radicalizou em face da perda de sua importância política num pais agora poderosamente influenciado por imigrantes não dotados, ainda, de influência cultural decisiva.

Eu não concordaria em chamar a sociedade americana de “multirracial” como faz Levitsky; os EUA são uma sociedade MULTINACIONAL, isto é, com variados e crescentes aportes estrangeiros, mas rles ainda não são uma sociedade MULTRRACIAL (o que é, exclusivamente, o caso do Brasil), pois sua maioria branca não se dispõe ainda a se misturar com  negos, latinos e asiáticos (indianos e levantinos), por enquanto. O “racismo estrutural” dos brancos impede uma evolução politica que INDEPENDE da vontade racional de legisladores, eventualmente motivados em corrigir os mecanismos criados pelos Founding Fathers para evitar a tirania das maiorias. O obstáculo é psicológico e motivacional, assim como cultural: os brancos do interior NÃO QUEREM se misturar com negros, latinos e asiáticos. O impasse vai continuar até que os “estranfeiros” se misturem entre si e adquiram poder político suficiente para mudar as instituições e o modo de votação.

Paulo Roberto de Almeida  (22/09/2024)


Sem reforma, minoria branca e cristã governará os EUA

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2024/09/sem-reformas-minoria-branca-e-crista-governara-os-eua.shtml

Steven Levitsky

Professor de ciência política da Universidade Harvard. Autor, entre outros livros, de "Como as Democracias Morrem" e "Como Salvar a Democracia", escritos com Daniel Ziblatt

A transição dos Estados Unidos em direção a uma democracia multirracial, marcada pela universalização de direitos individuais básicos, está ameaçada pela radicalização do Partido Republicano, que abandonou o compromisso com as regras do jogo. Autor sustenta que o ressentimento de eleitores brancos conservadores, que veem a perda do seu status dominante como risco existencial, e instituições contramajoritárias enviesadas a estados menos populosos e com poder excessivo explicam por que a democracia do país chegou ao ponto de ruptura.

A democracia dos Estados Unidos enfrenta hoje uma ameaça ainda maior que quando escrevemos "Como as Democracias Morrem", há seis anos. Em 2020, Donald Trump se tornou o primeiro presidente da história dos EUA a tentar roubar uma eleição e impedir a transferência pacífica de poder. Porém, ao contrário do que aconteceu no Brasil, as instituições americanas não conseguiram responsabilizar Trump. Por isso, ele está concorrendo à Presidência mais uma vez e tem boas chances de vencer.

Trump tem sido transparente sobre o que tentará fazer se voltar ao poder. Ele nos diz que usará o Departamento de Justiça para investigar e processar seus rivais, perseguirá a imprensa independente, usará o Exército para reprimir protestos e ordenará a deportação de 15 a 20 milhões de pessoas.

Nosso novo livro tenta entender por que a democracia americana chegou ao ponto de ruptura. Argumentamos que os EUA estão passando por uma transição inédita —uma transição para uma democracia verdadeiramente multirracial na qual uma maioria branca cristã, anteriormente dominante, está perdendo seu status dominante. Isso desencadeou uma reação autoritária entre uma minoria de americanos.

Isso, no entanto, não é tudo: a Constituição exacerbou o problema ao dar poder a essa minoria autoritária. Vejamos cada um desses problemas.

A democracia americana está em crise porque um dos seus dois principais partidos não está mais comprometido com as regras do jogo democrático. Os partidos que estão comprometidos com a democracia devem fazer três coisas. Em primeiro lugar, devem aceitar os resultados das eleições, ganhando ou perdendo. Em segundo lugar, devem rejeitar inequivocamente o uso da violência. Em terceiro lugar, devem romper com os extremistas antidemocráticos. O Partido Republicano violou todos esses três princípios desde 2020.

Donald Trump foi o primeiro presidente da história dos EUA a tentar anular uma eleição, e a maior parte do Partido Republicano o apoiou.

Os políticos republicanos também começaram a flertar com a violência. Trump e seus aliados abraçaram a insurreição de 6 de janeiro como heróis. Em 2022, o jornal The New York Times encontrou mais de cem anúncios republicanos em que os candidatos ostentavam ou disparavam armas. Não me lembro de nenhum outro grande partido em qualquer democracia estabelecida em que os candidatos abraçam a violência tão abertamente.

Por fim, os republicanos se recusam a romper com as forças antidemocráticas. Líderes não conseguem matar uma democracia sozinhos —eles precisam de cúmplices entre os políticos mainstream. Esses são o que o cientista político Juan Linz chamou de democratas semileais. Eles se parecem com os políticos comuns, mas diferem na forma como respondem às ameaças autoritárias em seu próprio campo político.

Quando extremistas antidemocráticos surgem em seu próprio campo, os democratas leais fazem três coisas: primeiro, condenam publicamente o comportamento antidemocrático; segundo, expulsam os extremistas antidemocráticos de suas fileiras, se recusando a indicá-los ou a apoiar suas candidaturas; terceiro, unem forças com rivais pró-democracia de todo o espectro político para isolar e derrotar os extremistas antidemocráticos.

Os democratas semileais não fazem nada disso. Em vez de repudiar publicamente o comportamento antidemocrático em seu próprio campo, eles minimizam ou justificam esse comportamento —ou simplesmente permanecem em silêncio. Em vez de expulsar os extremistas antidemocráticos, os toleram ou os acomodam. O que é crucial, os semileais se recusam a trabalhar com rivais ideológicos para derrotar os extremistas antidemocráticos, mesmo quando a democracia está em jogo.

Uma lição evidente dos colapsos democráticos na Europa nos anos 1930 e na América do Sul nas décadas de 1960 e 1970 é que, quando os principais políticos de centro-esquerda ou centro-direita flertam ou cooperam com extremistas antidemocráticos, as democracias têm problemas.

A semilealdade está agora disseminada no Partido Republicano.

Os líderes republicanos sabiam que Trump havia perdido a eleição de 2020 e muitos deles estavam preocupados com seu comportamento antidemocrático às vésperas do 6 de Janeiro, mas eles viabilizaram a invasão do Capitólio mesmo assim. Eles o protegeram ao recusar o impeachment e a condenação de Trump, bloquearam a criação de uma comissão independente para investigar a insurreição de 6 de janeiro e são quase unânimes em apoiar sua candidatura presidencial neste ano.

Por que isso está acontecendo? Por que um partido dominante como o Republicano poderia se afastar da democracia? Argumentamos que se trata de uma reação à democracia multirracial.

Para a democracia funcionar, os partidos políticos precisam ser capazes de tolerar a derrota. Isso geralmente acontece quando acreditam que têm chance de ganhar no futuro e que a derrota não trará consequências desastrosas. Contudo, quando os partidos ou seus apoiadores percebem que a derrota representa uma ameaça existencial, eles se radicalizam e, muitas vezes, se voltam contra a democracia.

No capítulo 3 do nosso livro, mostramos como isso aconteceu com a virada autoritária dos democratas sulistas durante a reconstrução pós-Guerra Civil, o primeiro experimento dos EUA com a democracia multirracial que trouxe uma ampla emancipação dos negros.

Os afro-americanos eram maioria ou quase maioria na maior parte dos estados do Sul. A emancipação deles, portanto, aterrorizou os democratas e seus apoiadores. O sufrágio dos negros não só ameaçava o domínio eleitoral dos democratas do Sul como também ameaçava toda a ordem racial.

Para muitos sulistas brancos, isso parecia uma ameaça existencial: eles se lançaram à violência e ao autoritarismo. Como declarou um democrata da Carolina do Norte: "Não podemos superar os negros numericamente. Então, temos que superá-los trapaceando, somando mais votos ou atirando neles". Foi isso o que fizeram.

Os democratas usaram o terror da violência e a fraude eleitoral para tomar o poder em todo o Sul. Em seguida, se entrincheiraram no poder por meio do registro de eleitores condicionado ao pagamento de impostos, de testes de alfabetização e de outras medidas para acabar com o direito de voto dos afro-americanos. Sem aceitar a derrota, os democratas eliminaram o direito ao voto de quase metade da população, dando início a quase um século de governo autoritário no Sul.

Tememos que algo semelhante esteja acontecendo com o Partido Republicano hoje.

As raízes desse fenômeno estão nas reformas por direitos civis da década de 1960, a segunda experiência dos EUA com a democracia multirracial. A revolução dos direitos civis gerou uma boa dose de ressentimento entre os eleitores brancos, principalmente no Sul, onde eram majoritariamente democratas. O Partido Republicano era minoritário na década de 1960, mas o ressentimento branco a respeito dos direitos civis criou uma oportunidade de expansão da sua base.

Os políticos republicanos calcularam que, se conseguissem conquistar os eleitores brancos revoltados, poderiam se tornar o partido majoritário e, durante uma geração, apelaram para o ressentimento branco.

Começando com Goldwater na década de 1960 e continuando com Nixon e Reagan, os republicanos miraram em eleitores brancos cristãos conservadores. Funcionou. Os sulistas brancos deixaram de ser majoritariamente democratas e passaram a ser majoritariamente republicanos.

O Partido Republicano virou o partido dos cristãos brancos. Como o país ainda era predominantemente branco e cristão nas décadas de 1970 e 1980, se tornar o partido dos eleitores brancos e cristãos ajudou a fazer do Partido Republicano majoritário. Os republicanos venceram todas as eleições presidenciais entre 1968 e 1988, com exceção da eleição do Watergate, em 1976.

A estratégia, no entanto, acabou enfrentando problemas, porque, enquanto os republicanos se tornavam o partido dos cristãos brancos, o país se tornava menos branco e menos cristão. A porcentagem de americanos que se identificavam como brancos e cristãos caiu de 80% em 1976 para 43% em 2016.

Isso representou uma grave ameaça eleitoral para os republicanos. Ficou cada vez mais difícil para um partido esmagadoramente branco e cristão conquistar maiorias nacionais no século 21. Os republicanos não vencem no voto popular para presidente desde 2004. Em 1980, Ronald Reagan recebeu 55% dos votos dos brancos e transformou isso em uma vitória avassaladora. Em 2012, Mitt Romney obteve 59% dos votos dos brancos, mas mesmo assim perdeu a eleição. Quando os republicanos perceberam que estavam vencendo entre os brancos mas perdendo no voto popular, começaram a entrar em pânico.

O problema, porém, ia além de perder eleições. Para grande parte da base republicana, a transição dos EUA para a democracia multirracial parecia uma ameaça existencial. Os cristãos brancos não eram um grupo qualquer. Durante dois séculos, eles ocuparam o primeiro escalão das hierarquias sociais, econômicas, políticas e culturais: eram os políticos, os juízes, os CEOs, os reitores das universidades, os editores de jornais e as celebridades da TV.

Até meados da década de 1980, todos os presidentes e vice-presidentes, todos os presidentes da Câmara, líderes da maioria no Senado, presidentes da Suprema Corte, governadores, CEOs da Fortune 500 e todas as Miss América eram brancos.

Tudo isso está acabando rapidamente agora, bem diante de nossos olhos. O número de políticos negros e latinos do Congresso mais que quadruplicou: de 28 em 1980 para 114 hoje. Pela primeira vez na história, a porcentagem de afro-americanos no Congresso agora é igual à porcentagem de afro-americanos na população em geral. Em 1965, todos os nove ministros da Suprema Corte eram homens brancos. Hoje, apenas quatro dos nove são homens brancos, e só seis dos nove são brancos.

A mudança vai além da política. Vemos isso na presença cada vez maior de famílias não brancas e multirraciais em anúncios, na televisão e nos filmes. Vemos isso na crescente rejeição social a atos racistas (pense nos protestos do Black Lives Matter) e nas contestações cada vez maiores (em Redações e salas de aula) a narrativas históricas que minimizam ou ignoram o passado racista dos EUA.

Esses passos em direção à democracia multirracial são essencialmente liberais: eles universalizam os direitos individuais básicos. A ideia de que indivíduos de todas as raças devem ter acesso igual ao Estado, ser igualmente protegidos pelo Estado e não ser desproporcionalmente perseguidos, encarcerados ou mortos pelo Estado não poderia ser mais liberal. Desprezar as demandas por direitos iguais como "identitarismo" é, além de enganoso, vergonhoso.

Estamos testemunhando um golpe sem precedentes nas hierarquias raciais dos EUA, mas, quando seu grupo está no topo de uma hierarquia social há 250 anos, contestações a essa hierarquia podem parecer uma ameaça. Perder o status social dominante é um acontecimento importante e pode gerar uma sensação de risco existencial. Muitos eleitores de Trump sentem que estão perdendo seu país: eles sentem que o país em que cresceram está sendo tomado deles.

Essa sensação de perda tem impulsionado muitos republicanos comuns em direção ao extremismo. Em uma pesquisa realizada em 2021, 56% dos republicanos concordaram com a afirmação de que "o modo de vida tradicional americano está desaparecendo tão rapidamente que talvez seja preciso usar a força para salvá-lo".

O SEGUNDO OBSTÁCULO: INSTITUIÇÕES CONTRAMAJORITÁRIAS

A radicalização dos republicanos representaria uma ameaça menor se os EUA fossem como outras democracias, em que as maiorias eleitorais governam. O trumpismo nunca representou a maioria dos americanos.

De fato, pela primeira vez na história, a maioria dos americanos abraça os princípios básicos da democracia multirracial no século 21. A maioria apoiou os protestos do Black Lives Matter em 2020. Mais de 60% dos americanos concordam com a afirmação de que a crescente diversidade social torna os EUA um lugar melhor para se viver. Uma pesquisa recente revelou que mais de 60% acha que escolas devem ensinar às crianças a história do racismo nos EUA, mesmo que isso as deixe desconfortáveis.

Isso é muito importante: pela primeira vez, no século 21, os EUA têm uma maioria democrática multirracial. Essa maioria democrática multirracial, contudo, se lançou contra algumas das instituições contramajoritárias mais poderosas do mundo.

É importante dizer que algumas instituições contramajoritárias são essenciais para a democracia. A democracia moderna exige a proteção dos direitos das minorias. Como disse o ex-ministro da Suprema Corte Robert Jackson, alguns domínios devem estar "fora do alcance das maiorias".

Dois domínios em particular devem permanecer fora do alcance das maiorias. O primeiro são os direitos civis: o direito ao voto, a liberdade de expressão e a liberdade de associação devem ser protegidos dos impulsos da maioria.

Um segundo domínio que deve estar fora do alcance das maiorias é o próprio processo democrático. Os governos eleitos não podem usar as maiorias populares ou parlamentares para se entrincheirar no poder, aprovando leis que enfraqueçam os oponentes ou prejudiquem a competição justa, por exemplo.

Esse é o tipo de tirania da maioria que vimos na Venezuela e na Hungria. Precisamos de mecanismos para proteger o sistema democrático de maiorias que o subverteriam.

Os direitos civis e o direito à competição justa são direitos essenciais das minorias. É por isso que precisamos da Declaração de Direitos dos EUA, do Judiciário independente e de barreiras relativamente altas para reformas constitucionais.

Muitas instituições contramajoritárias, porém, não são essenciais para a democracia. Lembre-se: as democracias devem dar poder às maiorias. Portanto, assim como alguns domínios devem ser colocados fora do alcance das maiorias, outros devem permanecer ao seu alcance.

As eleições são um deles. Aqueles com mais votos devem prevalecer sobre aqueles com menos votos no processo que determina os ocupantes de cargos políticos —nenhuma teoria de democracia liberal justifica qualquer outro resultado.

Outro domínio que deve permanecer ao alcance das maiorias é a legislação: as maiorias eleitorais devem ser capazes de governar. Uma minoria legislativa não deve poder vetar leis apoiadas pela maioria. As instituições que impedem que as maiorias eleitorais ganhem ou governem não são essenciais. Na verdade, são antitéticas à democracia.

Acontece que os EUA têm um número incomum de instituições contramajoritárias antidemocráticas: o Colégio Eleitoral, um Senado com representação extremamente desproporcional, a obstrução ("filibuster") no Senado e uma Suprema Corte com grandes poderes e composta de ministros com mandato vitalício.

Essas instituições começaram a subverter a democracia dos EUA. As concessões outorgadas a estados escravocratas e pequenos na Convenção Constitucional de 1787 criaram um viés no nosso sistema político —territórios poucos populosos têm representação excessiva. O Colégio Eleitoral os favorece, o Senado os favorece fortemente e, como o Senado aprova os indicados para a Suprema Corte, a Suprema Corte também é enviesada na direção dos estados pouco populosos.

Esse viés rural sempre existiu, mas nunca favoreceu seriamente um partido porque, durante a maior parte da nossa história, os dois principais partidos tinham ramificações urbanas e rurais. Hoje, porém, os partidos estão divididos entre áreas urbanas e rurais, com os democratas estabelecidos em centros metropolitanos e os republicanos em cidades pequenas e na zona rural. Isso dá aos republicanos uma vantagem no Colégio Eleitoral, no Senado e na Suprema Corte.

Os republicanos ganharam no voto popular para presidente apenas uma vez desde 1988 e, no entanto, ocuparam a Presidência durante a maior parte do século 21. A maioria popular não foi suficiente para Joe Biden vencer em 2020. O presidente teve de ganhar no voto popular por pelo menos quatro pontos percentuais —se tivesse ganhado por dois pontos, como Lula, Trump teria sido reeleito (Kamala Harris enfrenta o mesmo problema neste ano).

O Senado tem uma distorção semelhante. Mesmo que os democratas alcancem 51% ou 52% do voto popular, os republicanos controlarão o Senado. Os democratas venceram a votação popular em todos os ciclos de seis anos desde 2000, mas os republicanos controlaram o Senado por quase metade desse período.

Em 2016, os democratas ganharam no voto popular para a Presidência e o Senado e, mesmo assim, os republicanos ocuparam a Presidência e controlaram o Senado.

O governo da minoria é um problema exclusivamente americano. Em nenhuma outra democracia estabelecida as minorias partidárias podem impedir as maiorias eleitorais tão consistentemente quanto nos EUA. Por que isso acontece?

O excesso de contramajoritarismo era muito comum. A Europa tinha muitas instituições antidemocráticas no século 19 —monarquias, eleições indiretas e órgãos legislativos não eleitos ou com representação desproporcional. Com o passar do tempo, no entanto, outras democracias se desfizeram gradualmente de suas instituições pré-democráticas.

A Grã-Bretanha enfraqueceu a Câmara dos Lordes, retirando-lhe o poder de veto. Dinamarca, Suécia, Nova Zelândia e Portugal eliminaram suas câmaras altas não democráticas. Alemanha, Áustria e Bélgica democratizaram seus Senados, os tornando mais proporcionais à população. A Grã-Bretanha, o Canadá, a Austrália, a França e outras democracias estabeleceram regras que permitem que maiorias simples encerrem o debate parlamentar (portanto, não há obstrução por parte da minoria). Todas as democracias europeias e latino-americanas estabeleceram limites de mandato ou idade de aposentadoria para ministros das Cortes Supremas.

Todas as demais democracias presidencialistas do mundo se livraram de seus colégios eleitorais. A Argentina foi a última, em 1994.

Portanto, outras democracias se tornaram mais democráticas nos últimos cem anos, eliminando instituições dos séculos 18 e 19 que permitiam que as minorias impedissem sistematicamente a ação das maiorias. Somente os EUA mantiveram a maioria de suas instituições pré-democráticas.

DEMOCRATIZAR A DEMOCRACIA DOS EUA

Os EUA são a única democracia presidencial do mundo com um colégio eleitoral. Temos o Senado com representação mais desproporcional do mundo, com exceção da Argentina e do Brasil.

Nenhuma outra democracia permite que uma minoria do Congresso vete rotineiramente uma legislação regular apoiada pela maioria, e os EUA são a única democracia estabelecida em que ministros da Suprema Corte têm mandatos realmente vitalícios —todas as demais têm limites de mandato ou idade de aposentadoria obrigatória.

Precisamos democratizar a democracia americana.

No livro, propomos 15 reformas que dariam poder às maiorias e contribuiriam para deter o governo das minorias, incluindo o registro automático de eleitores, a abolição do Colégio Eleitoral, o fim do "filibuster", um Senado mais proporcional e limites de mandato para os ministros da Suprema Corte.

Essas não são reformas radicais —simplesmente colocariam os EUA em linha com outras democracias—, mas são importantes porque, se não tomarmos medidas para fortalecer a maioria democrática multirracial do país, seremos governados por uma minoria autoritária.

Os EUA estão em uma encruzilhada. Ou seremos uma democracia multirracial no século 21 ou não seremos uma democracia. Ambos os caminhos estão diante de nós e não há como voltar atrás.