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domingo, 16 de maio de 2021

Uma vida através dos livros: 1949 - Paulo Roberto de Almeida

Uma vida através dos livros

Paulo Roberto de Almeida

1949

Nasci na quase exata metade do século XX, no final de 1949, que corresponde, no teatro geopolítico do mundo, ao segundo ou terceiro ano da Guerra Fria, um período na história das relações internacionais que marcaria o primeiro meio século de minha vida, e que, de certa forma, determinaria o que eu seria na fase madura, o que eu escolheria como  ocupação, o que eu teria no centro de minhas reflexões e escritos durante boa parte de minhas atividades profissionais, na diplomacia, e intelectuais, nas diversas academias a que fui ligado. Digo que determinaria parte de minha vida, não que eu tenha tido qualquer coisa a ver com a Guerra Fria – ou sequer tivesse consciência de sua existência, nos meus primeiros anos –, mas é que minha atenção foi chamada para essa grande divisão do mundo já na primeira adolescência, entre 12 e 13 anos, e isso ficou marcado em minha mente, como relatarei mais adiante, na altura do início dos anos 1960: a possibilidade de um conflito nuclear, com aquela imagem de uma nuvem em formato de champignon, era por demais impactante para quem se tornou curioso acerca das coisas do mundo, ainda que isso estivesse muito distante, do Brasil e da vida de uma família de classe média baixa num país recém saído de sua condição de economia essencialmente agrícola. 

Não que eu soubesse, ou adivinhasse tudo isso, obviamente, naquele momento inaugural de minha vida. Todo o meu relato é retrospectivo e introspectivo: ele visa capturar cada ano de minha trajetória pessoal profissional e intelectual, introduzindo, no decorrer de cada um dos anos desse itinerário, os livros, a produção intelectual, os grandes fatos do Brasil e do mundo, paralelamente a uma breve descrição do que acontecia comigo, com minha família, no meio social no qual nos inseríamos e nos desenvolvíamos. 

(2020)

Que livros eu reteria desse ano de 1949, que não foi exatamente um ano completo, pois me “pertenceu” apenas pelas suas seis semanas finais?

Sem consultar a “bibliografia”, ou a relação das obras produzidas nesse ano, apenas dois me veem à cabeça, numa lembrança talvez cronologicamente incorreta: a obra de sociologia política de Vitor Nunes da Silva Leal, Coronelismo, enxada e voto, que se tornou clássico sobre os estudos de estrutura política e eleitoral do Brasil — tendo seu autor sido alçado à condição de ministro do STF, apenas para ser cassado pela ditadura militar —, e o texto, praticamente um panfleto, de Albert Einstein sobre o socialismo, no qual o grande físico nobelizado 30 anos antes expressava sua admiração e simpatia por esse modo de organização politica, econômica e social, revelando tanto empatia pelo regime que havia derrotado o nazifascismo (que havia eliminado brutalmente seis milhões de judeus como ele), quanto ingenuidade a respeito dessa forma moderna de escravidão, um sistema brutal de “exploração do homem pelo homem”, sem qualquer resquício de espírito democrático. Einstein não teve oportunidade de se manifestar sobre o relatório de Krushev sobre os crimes de Stalin, pois que morreu em abril de 1955, e o relatório só foi revelado pelo New York Times em meados do ano seguinte.

Falarei sobre outros livros do ano de meu nascimento no momento oportuno, mas cabe registrar que nesse ano de 1949 a Guerra Fria já estava bem “instalada”: a União Soviética conseguiu, graças aos esforços do seu antigo chefe da NKVD, Beria (ele seria assassinado depois por Krushev), explodir o seu primeiro artefato nuclear, rompendo o monopólio americano nessa área, que durava desde 1945, quando duas bombas atômicas foram explodidas em Hiroshima e Nagasaki. No mesmo ano, uma corte americana condenou à morte Julius e Ethel Rosemberg, por espionagem atômica em favor da URSS, deslanchando, junto com a vitória de Mao Tsetung na guerra civil chinesa, em outubro, o macartismo nos EUA.

De certa forma, sou um “filho” da Guerra Fria, pois que minhas primeiras leituras políticas, anos mais tarde, seriam os exemplares fartamente distribuidos pelo governo americano (traduzidos para o Português graças aos cuidados “editoriais” da CIA) da revista Seleções da Reader’s Digest, o periódico simbolo desses anos de emergência do conflito bipolar. Minha educação política se deu nesse contexto, mas a Revolução cubana e o golpe militar de 1964 me levaram rapidamente para o lado exatamente oposto. Mas essa é uma história que eu contarei no ano apropriado...

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 15/05/2021


Livros publicados no ano de 1949: 

George Orwell: 1984 (Nineteen Eighty-Four)

C. W. Ceram: Deuses, túmulos e sábios: a história da arqueologia

Victor Nunes Leal: Coronelismo, Enxada e Voto

Fernand Braudel: La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II

Ludwig von Mises: Human Action: A Treatise on Economics

José Honório Rodrigues: Teoria da História do Brasil

 

Uma vida através dos livros, 1: Introdução - Paulo Roberto de Almeida

 Projeto de livro: Paulo Roberto de Almeida

De um século a outro: dos livros para o mundo (uma trajetória intelectual)

Prefácio

Trata-se de um olhar retrospectivo sobre uma trajetória de vida, valendo-se da produção intelectual presente e divulgada a cada um dos anos sucessivamente desde meu nascimento, paralelamente a um esforço de reflexão sobre os grandes eventos e processos históricos daquele ano, no Brasil e no mundo. Sendo retrospectivo, esse olhar pode beneficiar-se do chamado hindsight, ou seja, a perfeita consciência do que veio depois, para iluminar, com dotes de aparente racionalidade e quase perfeita seleção dos fatos, um relato que deveria ser bem mais caótico e incerto, como se apresenta, na verdade e realmente, cada um dos nossos “encontros” com o mundo, a maior parte deles envolta em brumas e incertezas sobre o que poderia sobrevir na sequência e sobre quais seriam nossas ações em face dessas dúvidas e angústias. 

Não existe, nesse tipo de literatura memorialística, nenhuma receita para evitar o conhecimento a posteriori e a organização com aparência de “limpa” e bem apresentada que daí decorre no relato, o que não é o caso de diários transcritos fielmente segundo o registro sincrônico dos eventos e processos. Não é contudo o meu caso: nunca mantive “diários”, no sentido estrito do termo, ou seja, anotações regulares e datadas, respeitando a simultaneidade dos fatos e seguindo a flecha do tempo. Nunca tive disposição para isso, inclusive porque nunca me julguei ator ou protagonista de quaisquer eventos que ocuparam uma vida relativamente, ou intensamente, introspectiva, dedicada, na maior parte do tempo, à leitura (de tudo o que se apresentasse), à observação atenta da vida circundante e daquela trazida pelos meios de comunicação, seguida por uma reflexão sobre alguns desses fatos ou leituras, para eventualmente se concluir por algum texto escrito em qualquer suporte que estivesse à mão: folhas esparsas, cadernos e cadernetas de notas, agendas anuais e, chegado o momento, máquina de escrever e, finalmente, o computador pessoal (desktop ou laptop, tablet, celular, o que estivesse à mão), com seus inevitáveis prolongamentos nos sites pessoais, nos blogs e demais ferramentas de comunicação social.

Digo que nunca mantive diários, no sentido do relato cronológico memorialístico individual, mas nunca deixei de anotar minhas leituras e observações sobre as coisas dignas de registro, mas que tanto poderiam pertencer à “história imediata”, quanto ao universo do passado mais remoto, sem qualquer conexão com minha própria travessia no túnel do tempo. A partir de um certo momento, sempre carreguei comigo uma caneta e uma pequena agenda ou caderneta de notas — do tipo Moleskine, por vezes mais de uma, a média no bolso do paletó ou na pasta de trabalho, uma pequena no bolso da camisa —, sendo que no período propriamente universitário eu mantinha cadernos pautados para anotações em bibliotecas, em salas de aulas ou palestras. As anotações eram geralmente datadas, mas nada tinham a ver com o conceito de diário, pois podia tratar-se de uma simples resenha de livro, da transcrição de trechos de leituras diversas ou das palavras de alguém, sobre assuntos os mais diversos, da mais remota antiguidade ao futuro previsível ou sugerido. 

Este é, precisamente, o sentido e o estilo que vou adotar aqui, um relato livre, com retorno ordenado ao passado, desde o ano de meu nascimento, entremeado de digressões para a frente e para trás, para melhor encadear e contextualizar os fatos, eventos e processo sobre os quais discorrerei ao longo das últimas décadas. Ao empreender a tarefa, prometo ser tão fiel quanto possível aos fatos, na visão rankeana não de todo superada na historiografia consagrada — wie es Eigentlich gewesen —, o que também deve me manter afastado de qualquer tentação de organizar o passado segundo a perspectiva do presente. 

Sempre tive certo fascínio por máquinas do tempo e outras aventuras do gênero e lembro-me, por exemplo, do prazer com que devorei alguns romances do gênero, inclusive os que vão nas duas direções da flecha do tempo. Cheguei a escrever alguns trabalhos com o título “de volta para o futuro” — quando da implosão e queda final do socialismo real, mais ou menos coincidente com a trilogia filmográfica de Bob Zemeckis — e não resisti à curiosidade de ler o romance distópico de Edward Bellamy — que retirei da Library of Congress, minha sempre sonhada residência virtual —, Looking Backward, 2000-1887

Este livro é uma espécie de máquina do tempo, mas tão metódica e sistemática quanto possível, marcando cada uma das etapas de minha vida com registros de livros memoráveis publicados a cada ano — vários dos quais só vim a conhecer ex-post, et pour cause — e registrando os grandes eventos que preencheram cada ano calendário.

Como escrevi, nunca me julguei suficientemente importante para manter um diário: nascido numa família muito modesta, para não dizer pobre, e de pais dotados de primário incompleto, só vim a ter contato direto e pessoal com os livros, de forma interativa, na tardia idade de sete anos, que foi quando aprendi a ler no primeiro ano da escola primária, mas desde então nunca parei de devorar livros, de todos os tipos. Tampouco posso dizer que eu fui um “espectador engajado” — à la manière de Raymond Aron —, pois minha participação em alguns dos eventos aqui relatados foi propriamente marginal, senão inexistente de todo. Mas fui um atento observador, do que e do que não vi, do que recolhi como relatos, nos livros, na mídia, nas palestras de atores ou historiadores. 

Posso dizer que fui um privilegiado: vindo de um lar quase totalmente desprovido de material de leitura, mergulhei a fundo no papel impresso e nas informações audiovisuais assim que foi possível — e isso demorou, pois além de um precário rádio, nunca conheci televisão ou telefone próprios até bem entrada a adolescência; antes disso eram desenhos na televisão do vizinho — e converti esse hábito, numa verdadeira mania, praticamente uma obsessão irremediável. Não posso dizer que eu esteja lendo o tempo todo — pois sempre tem o momento do banho diário e as poucas horas de sono —, mas a informação e a reflexão estão sendo praticadas em tempo integral, precedendo a escrita, também sempre constante: nulla dies sine linea

À parte ser um privilegiado neste pouco secreto hábito da leitura e da escrita, o que a minha vida tem de extraordinário, que merece ser registrada numa nova obra, em acréscimo às duas dúzias de livros que produzi desde os anos 1990? Nada, absolutamente nada, ou quase nada, a não ser ter sido um diplomata médio, cumpridor razoável de meus deveres — um pouco rebelde, eu sei, nunca respeitador dos sacrossantos princípios da hierarquia e da disciplina — e um professor também médio, com alguma produtividade talvez acima da média.

A razão que me impeliu a oferecer este testemunho aos mais jovens foi justamente a oportunidade que tive na vida de ter sido um precoce mochileiro nas estradas da vida, de ter podido viver em muitos países diferentes uns dos outros — do subdesenvolvimento ao bem-estar, do socialismo surreal ao capitalismo ideal, num extremo a outro do planeta —, de ter tido a sorte e o imenso prazer de encontrar uma querida alma gêmea, minha doce (por vezes brava) Carmen Lícia, ainda mais leitora e muito mais nômade do que eu e, finalmente, de ter tido a possibilidade de transmitir aos mais jovens essas múltiplas experiências, nos escritos, nas aulas, nas palestras, nas conversas.

Eis justamente o sentido deste livro: ele oferece um testemunho, sobre sete décadas de vida agitada neste nosso planetinha redondo, e sobre alguns ensinamentos que é possível retirar dessa vida pacata, voltada para os livros, mas com alguns episódios relevantes, e que podem servir como matéria de reflexão, em segunda mão, aos jovens que comigo partilham do privilégio de servir ao país no serviço diplomático, a outros jovens que se iniciam numa carreira acadêmica, e a todos aqueles que amam livros e que adoram viajar pelo mundo, para aprender coisas novas, algumas boas, outras nem tanto, mas que todas elas compõem uma vida venturosa, aventureira, com muitas surpresas e descobertas ao longo desta trajetória intelectual e prática. 

Eu não teria chegado tão longe, e nunca teria feito tudo o que fiz, se não fosse por Carmen Lícia e seus dotes de grande leitora, infatigável viajante, mãe exemplar, companheira de todas as horas, intelectual muito mais organizada do que eu sou, muito mais inteligente e sensata, carinhosa e tolerante com meus mergulhos nas leituras e escritos. A ela, assim como a nossos dois filhos, Pedro Paulo e Maira, e nossos netos — Gabriel, Rafael e Yasmin — é dedicado este livro, que também lhe pertence, a partir do início de minha vida profissional.

(2020)