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sábado, 2 de abril de 2011

Minitratado dos desencontros - Paulo Roberto de Almeida

Minitratado dos desencontros
Paulo Roberto de Almeida

O que é um desencontro? Dito simplesmente, é uma defasagem, no tempo ou no espaço, entre dois corpos, cada um seguindo vias próprias e diferenciadas, sem qualquer possibilidade de cruzamento. Para fins deste minitratado, no entanto, o desencontro é um descompasso entre dois sentimentos, um pretendendo resposta e reação, o outro permanecendo desatento ou distraído, o que pressupõe alguma instância de reciprocidade ou linha de cruzamento, mesmo virtual.
Na melhor das hipóteses, o desencontro é passageiro, e a correspondência esperada se faz em algum momento, em algum lugar. Na pior, as expectativas de uma parte não logram sensibilizar ou dobrar a vontade da outra parte, e o desencontro se converte em motivo de sofrimento. Todo desencontro, ou toda indiferença é um sofrimento, pelo menos para uma das partes. Todos nós sabemos disso.
Por que existem desencontros? Eu poderia ser economicista e dizer que a reta (sempre crescente) da procura não encontra a “sua” curva da oferta, o que pode ocorrer em face de qualquer falha de mercado ou externalidade negativa. Sendo menos sarcástico, e mecanicista, pode-se dizer que, no terreno dos sentimentos humanos, não existe qualquer equivalência mecânica, como aquela identificada com a “lei de Say”, que pretende que a oferta cria sua própria demanda.
Mas tampouco funciona neste caso a chamada “inversão keynesiana”, que espera que a demanda artificialmente criada pelo poder de emissão de alguma autoridade desperte os “espíritos animais” dos agentes de mercado, que decidem, a partir daí, manter a oferta agregada. Os economistas, assim como os contabilistas, não gostam de desencontros: eles sempre pretendem fechar a equação de equilíbrio, buscando a resposta para déficits ou superávits mesmo por meios artificiais.
No caso das amizades ainda se pode esperar alguma reciprocidade, ou seja, um equilíbrio e correspondência de vontades e prestações mútuas; nas amizades existe, sobretudo, confiança entre as partes. Tudo isso é muito difícil de ser estabelecido no caso de paixões mais “incisivas”, como o amor, que não exige retorno direto; ele pode ser unilateral, unidirecional, não correspondido e assimétrico, como nas relações de dependência ou de assistência entre países avançados e economias miseráveis, que vivem da cooperação ao desenvolvimento (outro nome para a assistência pública).
Como nas relações econômicas, porém, o desencontro é uma expectativa não realizada, por insuficiência de fatores ou de insumos, que atendam aos requisitos dos “consumidores”. Não se trata apenas de uma assimetria de informação, mas de um desequilíbrio sistêmico, que impregna toda a equação de mercado, afetando aquela transação que se esperava realizar. O desencontro, portanto, está muito longe daquela situação que os economistas chamariam de “ótimo paretiano”. Numa figuração de química doméstica, ele seria como a superposição entre a água e o azeite.
Nem todas as culturas, porém, cultivam essa oposição de sentimentos, o confronto de posições, essas cenas dramáticas, típicas de novelas mexicanas. Na tradição oriental, a aparente oposição do yin e do yang acaba conhecendo alguma síntese reconciliadora, assim como na sua gastronomia encontramos o agridoce, que nos enche de prazer, mesmo momentâneo. Mas o desencontro constitui justamente o retorno do azedo sobre o sentimento temporário de doçura e de conforto espiritual.
Existem soluções para os desencontros? Talvez, mas certamente não “a” solução, a fórmula mágica que permitiria eliminar toda frustração e todo sentimento de impotência em face da indiferença alheia. Algumas situações podem ser apenas contornadas, pelo uso dos “estímulos corretos”, geralmente de natureza material. Muitos “compram” o amor, é verdade, ou atuam para criar uma relação de dependência, o que teoricamente pode fazer com que retas paralelas se encontrem em algum ponto do espaço. Mas esse tipo de “equilíbrio” é muito frágil, já que espíritos independentes não suportam a subordinação de sua vontade, justamente.
Qual seria, então, um possível remédio a um desencontro específico? Sem nenhuma garantia de sucesso, como em qualquer empreendimento humano, fazer-se admirar, provocar o reconhecimento da outra parte pelas ações beneméritas, generosas e “desprendidas” que se decide oferecer unilateralmente. Em uma palavra: ser bom, o que implica ser atencioso, prestativo, sempre pronto a confortar a outra parte, aquela com a qual se busca o encontro, justamente. Sinceridade é fundamental, mas confessar a ação calculada poderia parecer oportunismo, interesse egoísta, até maquiavelismo, no sentido vulgar deste conceito.
Sempre se espera que o desencontro seja passageiro, mas o descompasso pode, na verdade, durar anos, ou décadas. Paciência e constância nos sentimentos constituem, neste caso, duas virtudes fundamentais. Feliz final do seu desencontro...

Curitiba-Brasília, 2 de abril de 2011

sexta-feira, 18 de março de 2011

Minitratado das Improbabilidades: administrando o impossível

Minitratado das Improbabilidades
Paulo Roberto de Almeida

Uma improbabilidade é algo que, como o conceito indica, não corre nenhum risco de acontecer; constitui, assim, um não-evento, uma impossibilidade prática. Poucas pessoas, salvo as muito sonhadoras, ficam atrás, ou se colocam em busca, de coisas impossíveis, ou seja, de improbabilidades. Aqueles que o fazem, de verdade, ou sinceramente, costumam ser chamados de utopistas, ou talvez até, dependendo da natureza de seus sonhos, de românticos incuráveis.
Não creio pertencer a uma ou outra dessas categorias tribais, embora, por vezes, eu mesmo também me surpreenda inventando coisas impossíveis de se materializarem neste nosso mundinho ordinário. Fingindo ser realista – o que só sou 50% do tempo, assumindo no que restar dele uma infinidade de outras posturas, aliás até acima do limite teórico de 100% – não vou tratar aqui das coisas impossíveis ou totalmente improváveis, a despeito de ter enquadrado este minitratado no bloco das improbabilidades.
Pretendo, antes, tratar das “improbabilidades prováveis”, ou pelo menos daquelas plausíveis, ou seja, daquelas que mesmo sendo aparentemente impossíveis de acontecer, por vezes aparecem no nosso caminho e tropeçamos com elas, geralmente de modo inesperado. Assim, a despeito da aparente contradição, creio enquadrar-me perfeitamente no “caos normal” do mundo em que vivemos, feito de necessidades, de um lado, e de acasos, do outro.
Adotando esse tipo de abordagem num minitratado aparentemente sério – mas esta série apresenta também algumas surpresas – tenho consciência de que já estou adentrando, de fato, no campo das probabilidades, uma área coberta por refinadas teorias matemáticas e por especulações probabilísticas das mais sérias, justamente. Não pretendo, porém, abordar essas improbabilidades prováveis pelo lado da ciência, da razão; esta será uma abordagem puramente impressionista, como costumam ser vários dos meus minitratados (e eu já fiz mais de três, como sabem os meus poucos leitores).
Não vou, portanto, oferecer cálculos pascalianos, ou equações à maneira de Laplace, sobre as “minhas” (im)probabilidades, mas simplesmente inscrever-me, temporariamente, numa daquelas duas tribos antes desdenhadas. Não que eu seja um utopista, adepto de soluções utópicas para os problemas sociais ou individuais, e que daí me tenha convertido num romântico incurável. Consideremos este minitratado como uma espécie de licença poética, por assim dizer.
Quais seriam, então, as improbabilidades prováveis ou plausíveis, suscetíveis de serem enquadradas nos cânones pouco rígidos destes meus minitratados? Elas são, justamente, aquelas “coisas” que, por mais impossíveis que apareçam, nos esforçamos por atingir ou realizar; são aquelas que merecem todo o nosso empenho, recolhem todo o engenho e arte de nossas humildes capacidades humanas; são também aquelas que respondem a um ideal mais elevado da vida, que contemplam, justamente, todo esse oceano de improbabilidades com pelo menos um ou duas gotículas de probabilidades desejáveis. Nesse caso, minha “teoria” das improbabilidades prováveis jamais trabalha com a teoria dos grandes números; apenas com os pequenos números das escolhas pessoais e dos sonhos individuais.
Todos aqueles que, como eu, pautam sua postura frente ao mundo pelas leis da razão, todos os que somos agnósticos, céticos, ou simplesmente materialistas – o que absolutamente implica ser fatalista ou determinista – aceitamos o princípio irrecorrível da flecha do tempo, nos conformamos ao caráter “irrepetível” da história. Mesmo quando se costuma retomar a famosa frase sobre a “repetência” da História – geralmente com H maiúsculo, e acompanhada daquele lugar comum muito abusado sobre a tragédia e a farsa – pode-se afirmar, com certeza, que as águas de um rio não voltam jamais a passar pelo mesmo lugar.
Todos temos consciência de que nunca conseguiremos reproduzir fielmente, como da primeira vez, aquele estado de felicidade quase absoluta que decorreu da descoberta do primeiro amor, aquela certeza de amar e ser amado, um êxtase derivado do sentimento puro da reciprocidade no afeto, mas que depois foi vencido pelas trapaças da sorte e se perdeu nas brumas do tempo para nunca mais voltar. Acreditar que o nirvana possa voltar, sabemos, é uma das situações mais improváveis que podem ocorrer.
E, no entanto, queremos acreditar que o retorno dessa condição é algo totalmente plausível, quase provável, que se pretende certo e verdadeiro como uma rocha. O que custa acreditar nesse tipo de sonho induzido, mesmo correndo o risco de ser enquadrado na profissão pouco respeitada de utopista profissional ou de cair naquele estado catatônico dos românticos incuráveis? O que fazer quando até os materialistas de carteirinha proclamam que “sonhar é preciso”? O que estamos fazendo, justamente, é tentar tornar certas improbabilidades prováveis.
Isso é próprio da espécie humana, cheia de inventores malucos, de poetas sonhadores, de cientistas devotados às causas mais bizarras da humanidade, de literatos geniais produzindo obras primas ab initio, e até simples escrevinhadores, como um que conheço, que perdem o seu tempo e o dos leitores sujando papel com coisas improváveis e sonhos impossíveis. Somos incuráveis, de fato, nessa busca contínua da felicidade perfeita, do amor insuperável (e eterno), da realização plena de nossas possibilidades e até de nossos desejos.
Com todo respeito pela perfeição matemática dos cálculos probabilísticos, sempre devemos introduzir um pouco de teoria quântica naquelas coisas que costumam ser consideradas improváveis ou impossíveis. Assim, portanto, como explica a teoria dos quanta, uma coisa pode estar em dois lugares diferentes ao mesmo tempo, ou então se trata daquela coisa de se ter dois corpos ocupando o mesmo lugar no espaço (vocês procurem na Wikipédia). Da mesma forma, sem ser quântico, eu também acho que as improbabilidades, por mais “duras” que possam ser, podem se tornar prováveis, ou possíveis, num passe de mágica (sobretudo a partir de um teclado próximo...).
Não me perguntem como, sob quais condições ou a propósito do quê, exatamente. Cada um escreva no seu caderninho de deveres e desejos as suas preferências, pagando, se desejar, algum copyright para esta minha teoria das “improbabilidades prováveis”. Na verdade, não vou patenteá-la, sequer registrar copyright; vai ficar como “trade secret”, como no caso da Coca-Cola (embora com um pouco menos de sucesso, até aqui). O que eu sei é que já tenho meu caderninho de desejos (este no qual redigi estas notas numa viagem aérea) e nele vou registrando minhas improbabilidades prováveis, esperando que algum dia, como na conhecida canção, all my dreams come true...
Será provável, pelo menos possível? Não tenho certeza, nem condições de defender a hipótese, mas vou, desde já, formular duas possibilidades retiradas de um caderno virtual e que há muito aguardam o devido registro formal: pretendo – isso antes de reencarnar como diretor da Library of Congress – terminar de ler todos os livros de minhas duas bibliotecas, o que é teoricamente improvável, mas não impossível; pretendo também – mas este desejo já não é tão improvável quanto o anterior – continuar escrevendo minitratados sobre perfeitas inutilidades históricas e sociais. Não tem importância: sempre perdemos tempo na vida com alguma coisa...
Fiquem, pois, com esta inutilidade, e esperem pela próxima...

Em vôo, São Paulo-Chicago, 16-17/03/2011.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Minitratados sobre as grandes questoes da humanidade: apenas deixando de ser serio, por uma vez

Recebo, de vez em quando, algum comentário sobre meus posts menos sérios, digamos assim.
Por posts menos sérios eu quero indicar aqueles que não têm nenhum outro objetivo senão o de me distrair um pouco, saindo daqueles textos prolixos -- e por vezes chatos -- que costumo escrever, para adentrar no terreno do "divertissement".
Isso acontece quando deparo com alguma palavra, ou situação -- pode ser um simples ponto de exclamação, bem ou mal colocado (não importa agora) -- que me faz refletir sobre os imponderáveis da existência humana e sobre os mais graves problemas que assolam a humanidade.
Enfim, coisas como os desencontros, os subterfúgios, as "dérobades" -- preciso encontrar o equivalente exato, em Português, dessa palavra francesa; alguém me ajude, por favor -- mas também podem ser simples regras ou normas gramaticais, como as reticências e as entrelinhas.
A vida já é bastante complicada como ela é: os meus minitratados têm, precisamente, a intenção de fazê-la ainda mais complicada, ao discorrer de maneira pedante sobre problemas simples.
Mas, pelo menos, eu me divirto assim...
Abaixo, uma relação dos minitratados produzidos até agora, sem transcrição completa, mas com os links para sua leitura integral.
Ainda tenho outros no pipeline, mas aceito sugestões para novos minitratados.
Só uma condição: eles não podem ser sobre nenhum problema realmente importante para a humanidade.
Para isso já temos revistas, jornais e livros em número suficiente.
Apenas divertissement, lembrem-se...
Paulo Roberto de Almeida

Série dos minitratados (so far...)

1) Minitratado das reticências:
Pouca gente dotada de uma certa familiaridade com a palavra escrita consegue atribuir real importância às reticências, inclusive este cidadão que aqui escreve. Quero falar das reticências stricto sensu, isto é, os famosos três pontinhos ao final de alguma frase ou expressão...
Ler a suite deste minitratado neste link.

2) Minitratado das interrogações:
Interrogantes são inerentes à espécie humana, e talvez mesmo a certos primatas. Determinadas escolhas, ou caminhos, nos levam a uma situação de melhor conforto material ou de maior segurança pessoal, sem que, no entanto, saibamos, ou tenhamos certeza, ao início, que aquela opção selecionada é, de fato, a de melhor retorno ou benefício possível. Dúvidas, questionamentos, angústias, em face das possibilidades abertas em nossa existência, são inevitáveis em todas as etapas e circunstâncias da vida. Daí a interrogação, normalmente simbolizada pelo sinal sinuoso que colocamos ao final de certas frases: ?
Ler a suite deste minitratado neste link.

3) Minitratado das entrelinhas:
Tratados, em geral, costumam ser solenes, como convém aos grandes textos declaratórios, escritos em tom impessoal e devendo refletir alguma realidade objetiva, uma relação entre Estados...
Minitratados, por suposição, deveriam ser versões reduzidas de seus irmãos maiores...
Ler a suite deste minitratado neste link.

4) Minitratado da imaginação:
A imaginação não é um simples sentido natural, e sim um ato da vontade, embora não possamos impedir nossa própria consciência de imaginar “coisas”. Mas essas coisas imaginadas são instruídas, orientadas, criadas e administradas por nós, como se fossemos um diretor de cinema ou de teatro, quando eles dizem aos atores como o script deve ser realmente lido e interpretado.
Ler a suite deste minitratado neste link.

5) Minitratado da reencarnação:
Não, não quero falar da reencarnação "real", aquela na qual acreditam piamente hindus e tibetanos, pelo menos os religiosos, nisso seguindo, ao que parece, os antigos egípcios, que já não estão mais entre nós para contar como a sua, supostamente rica, experiência nessa matéria. Os primeiros são radicais, capazes até de interromper a construção de um templo por uma minhoca que apareceu no canteiro de obras; afinal, nunca se sabe: pode ser a mãe de alguém. Enfim, se os egípcios ainda nos assustam com múmias de Hollywood, os outros nunca provaram o que afirmam.
Ler a suite deste minitratado neste link.


OK, OK, já tem vários na fila, cada um mais desimportante que o outro; os mais estranhos passam na frente...
Paulo Roberto de Almeida

sexta-feira, 12 de março de 2010

1781) Brevissimo tratado da subserviencia - Paulo Roberto de Almeida


Brevíssimo Tratado da Subserviência

Paulo Roberto de Almeida
(um raro escrito dedicado a terceiros)

O subserviente é aquele que se dobra às conveniências de uma autoridade superior, mesmo quando essa autoridade atua manifestamente em detrimento de seus próprios interesses pessoais; o subserviente prefere submeter-se às inconveniências cometidas por aquela autoridade, e o faz de livre e espontânea vontade, ainda que de modo vergonhoso, a ter de corrigir, mesmo gentilmente, essa mesma autoridade. O subserviente, que também pode ser considerado um sabujo, no sentido estrito, não hesita em desmentir-se, a posteriori, negar declarações suas, previamente tornadas públicas, ou em afastar-se de posições anteriormente assumidas, ou defendidas historicamente, apenas para se conformar à vontade, muitas vezes irracional e inexplicável, dessa mesma autoridade superior. Obviamente, ele não seria subserviente sem essa degradação moral.
O subserviente profissional considera que sua própria sorte, sua sobrevivência funcional, assim como seu futuro destino estão indissoluvelmente ligados ao grau de subserviência máximo que ele conseguir expressar em favor de sua autoridade oficial. Ele pertence, de corpo e alma, quando não de coração e mente, a essa autoridade, à qual ele devota fidelidade canina e pela qual ele está disposto a sacrificar seu conforto pessoal, sua coerência moral (se é que dispõe de alguma) e até sua ética profissional, quando não sua consciência mais íntima (se existir, claro) em favor do bem estar de sua autoridade, tudo isso por escolha própria, não por imposição daquela autoridade. Sua sabujice dedicada é, assim, introjetada, a ponto que ele não mais distingue entre o que humanamente aceitável, e socialmente respeitável, e o que é subserviência pura, sem qualquer hesitação ou exame de consciência. Ele não seria um subserviente perfeito sem essa diminuição intelectual (se o termo se aplica).
O subserviente completo se antecipa, de certa forma, aos problemas que poderiam advir de alguma frase mal posta de sua autoridade. Em consequência de uma circunstância do gênero, ele constrói toda uma teoria justificadora das bobagens superiores com base numa suposta má compreensão por parte dos ouvintes ou interlocutores, imputando aos demais as legítimas dúvidas que estes possam ter em relação às inconveniências do chefe, o que o faz atribuir os equívocos de entendimento aos próprios questionadores. Um subserviente assim tão bem construído é algo raro, mas especialmente valorizado nas situações em que é preciso conter a autoridade numa gaiola de ferro, compatível com a dimensão das bobagens produzidas.
Não é fácil encontrar um subserviente perfeito. Existem muitos, claro, por propensão inata de caráter, mas nem sempre eles são selecionados para servir diretamente uma autoridade, embora alguns se esforcem bastante para conseguir uma tal distinção (se o termo se aplica). Geralmente, um subserviente é construído aos poucos, com a degradação gradual de caráter acompanhando os progressos da carreira, até o ponto em que a subserviência se converte em segunda natureza, algo assim indistinguível das características originais, ou construídas, do personagem em questão. Essa promiscuidade entre o Dr. Jeckyll e Mister Hyde passa então a não mais ser considerada uma alternância de personalidades, mas constitui-se em algo sólido, um bloco unificado que acompanha o novo personagem em toda e qualquer situação de subserviência prática (e as oportunidades são muitas, posto que o subserviente existe sempre em função de uma autoridade medíocre, cuja quantidade, infelizmente, parece se multiplicar ao ritmo da erosão de qualidade das autoridades públicas).
Talvez exista algum manual da subserviência, assim como existem muitos “Idiot’s Guide” para qualquer coisa humanamente concebível, mas não foi possível encontrar algum disponível no mercado, com essa abrangência teórica e essas pretensões práticas. Talvez algum subserviente despertado de sua letargia intelectual possa vir a conceber algum, o que seria útil para todo e qualquer candidato à carreira de sabujo profissional. Não se espera que ele o subscreva em seu próprio nome, a menos que suas deficiências morais e sua total falta de caráter o autorizem a continuar a defender as bobagens de “sua” autoridade, mesmo quando esta deixou de representar poder e prepotência. Afinal de contas, um bom subserviente tem um currículo a defender, mesmo quando este não é o que parece, ou aquele que é proclamado.
Shanghai, 12.03.2010