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sexta-feira, 1 de abril de 2022

Pensando a Ucrânia - Renato Marques (Revista CEBRI)

 PENSANDO A UCRÂNIA!


Renato L. R. Marques, embaixador do Brasil na Ucrânia entre 2003 e 2009

Revista CEBRI, 28/03/2022


A ofensiva armada da Rússia contra a Ucrânia é a face visível de uma operação muito mais complexa e articulada, que envolveu uma longa campanha prévia de desinformação e fakenews, destinada a desviar a opinião pública do que seria a maior operação bélica na Europa no século XXI, em total desconsideração aos princípios do direito internacional, à letra da Carta das Nações Unidas e a compromissos como os expressos no Memorando de Budapeste, de 1994. Naquela ocasião, a Rússia, os EUA e o Reino Unido ofereceram garantias de respeito à soberania e à integridade do território ucraniano, no contexto da devolução à Rússia, pelo regime de Kiev, do arsenal nuclear soviético existente no país.

Apesar disso, boa parte da comunidade internacional preferiu, no início, levar às últimas consequências o princípio da não intervenção nos assuntos internos dos Estados, em que pese a óbvia ameaça contra a integridade territorial e a independência da Ucrânia, em franca contradição ao art. 2.4 da Carta da ONU. Preferiu debater os inúmeros e variados argumentos manipulados por Putin para “justificar” sua programada invasão da Ucrânia e revisão do mapa geopolítico da Europa. Campanha que, coerente com os propósitos de uma “guerra híbrida”, teve o mesmo efeito que os decoys lançados por aviões quando invadem o espaço aéreo inimigo, ao promover uma interferência magnética capaz de embaralhar a leitura do radar e impossibilitar a identificação do alvo. A atenção do planeta esteve, assim, praticamente hipnotizada pelo discurso do líder russo, embora parecesse impossível ignorar que a mobilização e estacionamento, em níveis sem precedentes, de tropas e material bélico na fronteira com a Ucrânia, representava, por si só, um instrumento efetivo de intimidação e coação do país vizinho.

O mundo perdeu um tempo precioso discutindo alegações descabidas, como as infantis acusações de ameaças ucranianas à Rússia (o que lembra a fábula do Lobo e do Cordeiro), a caracterização do governo Zelensky como “nazista” (quando sabidamente ucranianos e russos são oriundos da mesma matriz étnica eslava) e as notórias deturpações históricas do tortuoso e insinuante discurso de Putin, de 12 de julho de 2021, sobre a existência de um “estado trino”, integrado por Rússia, Ucrânia e Belarus. Uma “guerra de narrativas” aparentemente impossível, ante o grande arsenal de informações hoje ao alcance de todos e a ampla cobertura midiática dos acontecimentos. Algo que, para ser minimamente compreensível, teria que ser estudado contra o pano de fundo da formação de seu principal ator, indiscutivelmente o Presidente Putin, egresso da KGB no período soviético. Daí se poderia depreender seu apego à prática da “soberania limitada”, imposta a ferro e fogo aos países da Europa Oriental à época, cujos “desvios de conduta” (como o levante anticomunista na Hungria, em 1956, e a Primavera de Praga, em 1968) acionariam o “dever internacionalista de intervenção” da URSS (rótulo com que mascarou guerras de repressão e expansão). Agregue-se a isso a permanência, ainda que subliminar, da mentalidade imperial, perceptível no discurso de Catarina, a Grande, para quem “a única maneira de defender minhas fronteiras é as expandindo” (à que a voz corrente acrescentou “a Rússia termina lá onde termina o idioma russo”). Nesse sentido, a veemente contestação, por Putin, da existência da Ucrânia é também coerente com a doutrina do Kremlin de combate sistemático à ideia de “nação”, na medida em que operava contra os interesses do internacionalismo soviético e, em última instância, da hegemonia russa. Sintomas detectados pelo diplomata e estrategista americano George Kennan, em sua passagem pela embaixada em Moscou, em 1946, quando afirmou, em seu Longo Telegrama, que a URSS não poderia manter “uma coexistência pacífica permanente com o Ocidente”, como resultado de sua “visão neurótica dos assuntos mundiais” e do “instintivo sentimento russo de insegurança”.

Nesse contexto, a reivindicação de recuar a OTAN às suas posições anteriores a 1997 faz supor que o presidente russo busca reativar os entendimentos alcançados em Ialta, em fevereiro de 1945, por Stálin, Roosevelt e Churchill, para definir zonas de influência entre os vitoriosos, em circunstâncias radicalmente distintas das atuais. Hoje, depois de consolidado o novo quadro geopolítico, com a incorporação dos países da Europa Oriental e bálticos à OTAN, sem que disso tenha resultado nenhuma ameaça real à segurança da Rússia, a proposta soa extemporânea e revanchista. Mais ainda quando é estendida, inopinadamente, à Finlândia e à Suécia, o que revela, sem meios tons, que a intenção é aplicar o conceito de “soberania limitada” aos países que considera em sua “esfera de influência”, condenados, pela lógica de Putin, a se tornar “estados tampões” entre a Rússia e a Europa. A neutralidade da OTAN, tanto agora quanto nos episódios da independência de províncias da Geórgia, em 2008, e da Ucrânia, em 2014, reafirma o caráter defensivo da Aliança. Seu erro terá sido o de anunciar uma “política de portas abertas”, e de com isso induzir a população e os governos interessados a alimentar expectativas infundadas e a avaliar equivocadamente os riscos de eventuais ações militares. Ucrânia e Geórgia tinham, desde o início, chances muito frágeis de se tornarem membros da OTAN, por se manterem em estado de guerra não-declarada com o vizinho, por terem áreas de seus territórios contestadas e, por último, por um desafortunado fatalismo geopolítico. No caso da Ucrânia, acrescente-se, a presença de uma base militar estrangeira (a base naval russa de Sebastopol, na Criméia).  

Da mesma forma, no tocante à UE, a Ucrânia teria que cumprir com os requisitos básicos enunciados em Copenhague em 1993, que incluem a problemática estabilidade de suas instituições políticas e econômicas no day after e sua capacidade de incorporar e cumprir com o acervo jurídico comunitário. De quebra, a Ucrânia colocaria em cheque o funcionamento de um dos cimentos da unidade europeia, a onerosa Política Agrícola Comum (PAC), ao incorporar um dos países mais competitivos neste setor. O ingresso no atraente clube econômico está assim comprometido por interesses potencialmente afetados dos próprios europeus e pelos elevados suprimentos energéticos russos à Europa (que tenderão a recuperar importância política, quando a opinião pública se desmobilizar, por ação do tempo e na presunção de que a Alemanha e seus parceiros não encontrem fontes alternativas confiáveis no médio prazo). A preservação da economia ucraniana na esfera de influência russa a condenará à estagnação e praticamente anulará suas oportunidades de recuperação. Com o agravante que, ao contrário da época da antiga Guerra Fria, a Rússia não oferece à Ucrânia atrativos do ponto de vista político, nem ideológico nem econômico, por abrigar um regime crescentemente autoritário, com grande intervenção do Estado na estrutura produtiva e por sua condição de exportador de commodities energéticas e agrícolas (onde são concorrentes).

Isto posto, quem se debruçar sobre a história da região, identificará, sem maiores esforços, que a Rússia “nasceu” da diáspora de contingentes do maior estado da Europa medieval, entre os séculos IX a XIII, a Rus de Kiev. Esse principado, que teve seu apogeu com Vladimir, o grande (980-1015), implantou o cristianismo ortodoxo ainda vigente na Ucrânia e na Rússia. Após a morte de seu filho, Iaroslav, o sábio (1019-1054), a Rus de Kiev passou por um longo período de lutas internas e invasões mongóis. Como resultado, seus nobres se deslocaram para outras regiões, como Moscou, que se tornou o novo centro hegemônico. Ou seja, a Rus de Kiev, com seus belos mosteiros do século XI e XII, tem uma incontestada precedência histórica sobre os demais e teve sua existência reconhecida (e não “inventada”) por Lênin, como sugerido por Putin. Por outro lado, a necessidade de proteger “grupos étnicos russos” na Ucrânia é um jogo de palavras, tendo em vista que o Velho Continente, tradicional área de emigração, adota o jus sanguinis, pelo qual a cidadania é determinada pela nacionalidade dos ascendentes paternos ou maternos das novas gerações (ao contrário do Brasil e do Novo Mundo, que adotam o jus soli, que considera nacional os nascidos no país). A russificação imposta pelo Império Russo a seus domínios desde o século XVIII e a localização de russos no leste da Ucrânia – na esteira do vazio demográfico provocado pela “Grande Fome” de 1932-1933 (Holodomor), imposta por Stálin, para promover a coletivização forçada da agricultura – tornam inevitável a presença de “russos étnicos” na região (tanto quanto de “portugueses étnicos” no Brasil). Esse argumento não teria, entretanto, o peso que tem se, desde os anos 2003-2009, não tivesse a Rússia, segundo reiteradas denúncias do governo ucraniano à época, promovido frequentes “missões consulares” para oferecer passaporte e nacionalidade russa aos locais, em preparação para o presente cenário de guerra.

Qualquer que seja o desfecho da guerra, a invasão russa já provocou impacto e efeitos previsíveis no relacionamento internacional. No campo político, expôs novamente os limites da ação da ONU, em decorrência do poder de veto das cinco potências nucleares. A ONU foi, entretanto, importante como caixa de ressonância da consciência mundial, como comprova a condenação maciça da Rússia como “país agressor”. A crise promoveu um surpreendente consenso entre os países europeus, que alcançou áreas pouco suscetíveis de acordo no passado recente, como a decisão de restringir as importações de gás e petróleo da Rússia e a concordância da Alemanha em deixar inoperante o gasoduto Nord Stream 2, que proveria mais combustíveis ao seu território e vizinhos. Como resultado, é de se esperar uma aceleração da busca de fontes alternativas de energia, em consonância com os objetivos já acordados em matéria de política ambiental. Também a OTAN, que chegara a ser ameaçada de retirada de tropas e de corte de contribuições pelo governo americano, à época de Trump, atuou com uma única voz e recuperou seu prestígio como instrumento de defesa coletiva. Mas traz, em contrapartida, um renovado clima de belicismo e o rearmamento da Alemanha. A ação militar russa desviou, por sua vez, o foco dos EUA de suas divergências com a China, que assinou uma aliança com a Rússia de alcance ainda desconhecido. A China tem interesses econômicos que transcendem, no curto prazo, seus ganhos com a desestruturação da segurança na Europa, seu mercado preferencial. No âmbito econômico, a ruptura das grandes cadeias de fornecimento estimulam o offshoring por razões de segurança e, subsidiariamente, tenderá a reforçar correntes desenvolvimentistas favoráveis a velhas políticas, como a de substituição de importações e o relançamento dos mesmos “campeões nacionais” de sempre. Em que pese o impacto atual dessas tendências, deve-se supor que ao final prevalecerá a lógica econômica e a globalização retomará, mesmo que com dificuldades, seu curso anterior. Enquanto isso, o mundo sofrerá com aumento dos preços das commodities, inflação e menor crescimento econômico. Finalmente, o grande fluxo de refugiados deverá forçar a Europa a redimensionar seu programa de apoio e a buscar a difícil acomodação desses novos contingentes à sua estrutura produtiva.

Tudo somado, a ofensiva russa ainda tem que mostrar até onde pretende avançar. O estrago já realizado não deixa margem a dúvidas quanto aos objetivos expansionistas da iniciativa. Tal como se encontra o quadro atual, pode-se apenas descartar a hipótese de manter o país inteiro sob ocupação, dado seu alto custo militar, econômico e político, ante a exacerbação inevitável dos sentimentos nacionalistas e a recusa dos ucranianos em abandonar sua assumida vocação europeia. As fricções daí decorrentes levariam a uma grave instabilidade política, com riscos de atentados, ações de guerrilha e outras formas de autodefesa. Como as forças russas não são suficientes para assegurar a terceira etapa de uma invasão, o controle da população civil, a alternativa mais provável seria a instalação de um governo fantoche, de imprecisa duração. Não está claro onde a Rússia traçará os limites de eventuais novas anexações que, mesmo se restritas ao leste, provocariam uma radical desestruturação da base industrial do país (posto que ali se concentram suas minas de carvão, usinas siderúrgicas, fábricas de turbinas, altos-fornos, tratores, indústria espacial). Se abranger os portos de Mariupol (no Mar de Azov) e de Odessa (no Mar Negro), por onde escoam as exportações de aço, fertilizantes, trigo e produtos alimentícios, estaria estrangulando a economia e inviabilizando o país. O que será aceitável para as duas Partes, quando sentarem à mesa de negociação, tendo em vista que Putin não pode abrir mão do papel de vitorioso e Zelensky não pode fazer concessões que deem a entender que todo o esforço de resistência foi em vão? Qualquer que seja o desfecho, terá um alto custo em vidas inocentes, defensores de seu torrão natal e de capital humano para o futuro. Para concluir: a generosa ajuda que vem sendo oferecida ao país pelo Ocidente está destinada a que “Ucrânia”?