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sábado, 6 de fevereiro de 2021

A esquizofrenia da atual política externa bolsolavista reflete a visão do mundo (se existe) de seus mandantes - Paulo Roberto de Almeida

A esquizofrenia da atual política externa bolsolavista reflete a visão do mundo (se existe) de seus mandantes

 

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.compralmeida@me.com)

[Objetivocrítica à política externa bolsonaristafinalidadedenúncia]

 

 

Algumas coisas precisam ficar claras: JMB é, sempre foi, e nunca deixará de ser um inepto total, um ignorante crasso em matéria de política internacional, relações exteriores, de diplomacia brasileira. Seu mundo é o do oportunismo político e das práticas corriqueiras do baixo clero da já extremamente baixa política de fundo de quintal, com a defesa corporativa dos estratos inferiores das forças de defesa e de segurança, a que se acrescentaram negócio milicianos ao longo de uma carreira política também marcada por malversação de fundos públicos (prática usada nas “transações” imobiliárias de toda a família estendida).

Na falta de qualquer visão mais sofisticada do mundo, o pouco que “aprendeu” de política externa lhe veio de intermediações fugazes com aquele guru destrambelhado da Virgínia, outro inepto completo em matéria de relações internacionais, mas que por algum tempo posou de conselheiro informal das FFAA e de militares aqui e ali, por exibir um anticomunismo de fachada, por denunciar o Foro de S. Paulo e outras tiradas “geopolíticas” da direita extrema, que encontram aceitação no mundo binário dos uniformizados. 

O resto veio dessa pauta de “costumes” reacionária que também impregna esses meios em diversos países: anticomunismo, antiprogressismo, antiabortismo e, com grande destaque, o antimultilateralismo e as posturas anti-ONU (forte na Direita dos EUA), que se juntou a essas outras correntes conspiratórias do antiglobalismo.  

Esse é o caldo insosso, confuso, precário no plano conceitual (para não dizer tosco no substrato intelectual) que estão na base da falta de qualquer pensamento articulado  em matéria de relações exteriores do Brasil. O julgamento sumário é que o principal dirigente do país é um ignorante consumado em qualquer tema de política externa e um total despreparado para tratar de qualquer assunto nessa esfera. 

Na falta de qualquer pensamento próprio nessa área se apegou aos rudimentos que lhe foram sendo fornecidos por esses outros ignaros: o guru destrambelhado e seus seguidores familiares, conselheiros da tropa conspiratória, até que irrompeu, em 2016-17, o “modelo” americano que lhe serviu de guia “espiritual” nesse mundo para ele totalmente desconhecido, mas similar em estilo e objetivos: confrontar o “comunismo” (China), o globalismo, a ONU, as ONGs progressistas de DH e da pauta da sustentabilidade ambiental, enfim todo o progressismo do politicamente correto que pontifica nessas áreas. Trump foi a inspiração que lhe faltava para “conformar” essa “visão do mundo” precária, essa Weltanschauung tosca que JMB sempre exibiu nos temas externos. Quando não se tem nada na cabeça, qualquer coisa serve: instintos primitivos e raciocínio tosco passam na frente de qualquer elaboração mais sofisticada em assuntos internacionais.

 

Pois é esse o “mundo” primário, grotesco, antidiplomático, ao qual tinha de se moldar qualquer pretendente a mero executor servil dessas poucas “ideias” (todas elas equivocadas) que estivesse disposto a servir o capitão ignorante à frente do Itamaraty. Por acaso surgiu um...

 

Naquela onda de refluxo da esquerda, de ascensão precária de impulsos de uma direita grosseira, sem doutrina, sem ideias, com vários saudosistas da ditadura militar, que surgiu no Brasil no contexto da crise política e econômica e do impeachment de 2016, coube a um herdeiro daqueles tempos sombrios esse papel de operador fiel das concepções destrambelhadas dos novos donos do poder. Tinha de ser um operador confiável daquelas poucas ideias confusas sobre o papel do Brasil na Grande Aliança Conservadora que se desenhava na era Trump. Por acaso, não mais que por acaso, apareceu um artigo providencial “Trump e o Ocidente”, que JMB nunca leu — e que, se “lesse”, não compreenderia patavina — mas que serviu de catapulta oportunista e oportuna para que o guru expatriado, o Rasputin de Subúrbio designasse seu autor como o “homem certo no lugar certo” para executar o projeto trumpista desenhado pelos Bolsonaros para orientar a “nova política externa do povo brasileiro”. 

A encomenda excedeu as expectativas: nunca se viu sabujo tão obediente à frente do Itamaraty, cujo corpo profissional ficou estupefato com a escolha e designação. As surpresas desabaram sobre a Casa, como uma espécie de intervenção externa num ministério normalmente cioso de sua competência e até mesmo excelência na condução de praticamente todos os assuntos das relações exteriores do país.

E as “realizações” revelaram-se muito piores do que quaisquer antecipações nessas áreas: o Itamaraty foi descendo na escala dos horrores e o Brasil despencando na sua imagem e reconhecimento externo.

De fracasso em fracasso, as apostas foram sendo dobradas, sempre com o olhar satisfeito do chefão despreparado: afinal de contas, ele tinha vindo para destruir, não para construir qualquer nova concepção de uma “política externa para o povo”, como não cansava de repetir o fiel escudeiro da falta de ideias do capitão.

Uma constatação se impõe quanto à chefia do Itamaraty: EA vive num mundo paralelo que teve de criar para ser aceito pelos tresloucados do antiglobalismo, e foi, ao longo do exercício, aceitando e reforçando as loucuras e obsessões do capitão ignorante para se conformar a um molde artificial, o que aprofundou seu desequilíbrio emocional. Em algum momento entrou em parafuso, como transpareceu em certas tiradas feitas para agradar a seus amos e encantar a plateia de beócios que o aplaudem nas redes sociais. Os devotos do bolsonarismo são tão ignorantes quanto seu suposto líder, sem o cálculo político que anima o capitão em seu projeto de poder. O chanceler acidental é outra coisa: possui leituras, como o sofista da Virgínia, mas coloca tudo isso a serviço de chefes ignorantes, aos quais precisa se nivelar de forma medíocre e subordinada para se manter no cargo. 

Imagino que deva ser difícil encaixar-se na extrema precariedade das diretrizes que lhe oferecem ou são sugeridas para se manter na posição que ocupa de modo muito precário (mas conveniente para is que mandam nele).

 

O resultado final, em termos práticos, é que o Brasil deixou de existir como interlocutor fiável para os principais parceiros que o país mantinha até 2018 no plano internacional, na região e fora dela. As perdas concretas ainda não foram todas contabilizadas — embora as que resultaram da extrema subserviência a Trump possam ser calculadas —, mas as perdas potenciais começam a se acumular e a se precipitar, em especial no tocante ao meio ambiente. 

O fato é que JMB, EA e os demais “formuladores” e executores de uma política externa e de uma diplomacia miseráveis encolheram o Brasil no mundo. 

A recuperação será muito dura e incerta. 

Este é o legado de um bando de ignaros na condução das relações exteriores do país: um cenário de devastação e de fracassos.

 

Meu papel, nessa questão, é apenas o de, como diplomata profissional, apontar as imensas distorções que reduziram a pó a credibilidade do nosso serviço exterior. Não possuo, na condição de servidor graduado lotado no Arquivo, nenhuma condição para mudar o que quer que seja nesse cenário de terra devastada: apenas denunciar e esperar que o quadro de horrores tenha fim o mais pronto possível.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3852, 6 de fevereiro de 2021

 

Uma lágrima para Shozo Motoyama: 1940-2021 - Ana Paula Torres Megiani (USP)

 Conheci e interagi, em algumas oportunidades, com Shozo Motoyama, li seus livros e até resenhei alguns. Considero-o um acadêmico íntegro e devotado ao que sempre fez: a história e o estudo das ciências no Brasil.

A história da ciência por um cientista historiador: Shozo Motoyama (1940-2021)

Por Ana Paula Torres Megiani, historiadora e vice-diretora da FFLCH/USP

01/02/2021

No dia 26 de janeiro de 2021 a comunidade científica e acadêmica, uspiana e brasileira, perdeu um de seus mais reconhecidos membros, o professor doutor Shozo Motoyama. Nascido em 5 de janeiro de 1940, Shozo Motoyama era descendente de imigrantes japoneses do interior de São Paulo. Graduou-se em Física em 1967 e doutorou-se em Ciências em 1971 com uma tese acerca da lógica em Galileu Galilei, sob a orientação do professor Eurípedes Simões de Paula, pela então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, onde abraçou a História como ofício e profissão.

A partir de 1969, Shozo Motoyama foi, durante quatro décadas, um dos mais ativos docentes do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), onde defendeu a tese de livre-docência em 1976, tornou-se professor titular de História da Ciência em 1999 e aposentou-se em 2009. Após a aposentaria continuou a atuar intensamente no ambiente acadêmico e universitário, contribuindo de maneira incansável na orientação de pós-graduação, docência e produção científica, com mais de 20 dissertações de mestrado e 30 teses de doutorado realizadas sob sua orientação junto ao Programa de História Social da FFLCH. Atualmente era docente sênior do Departamento de História.



Shozo Motoyama – Foto: IEA/USP

A reforma da USP (1968) desmembrou a antiga Faculdade de Ciências e Letras em diferentes institutos e agregou áreas afins na atual FFLCH. Naquele contexto o curso de História, que contava com docentes renomados como Sérgio Buarque de Holanda, Eduardo D’Oliveira França, Emilia Viotti da Costa e o próprio Eurípedes Simões de Paula, se transformou em Departamento de História e recebeu dois importantes novos campos: a História da Ciência e a História da Arte – esta logo seria anexada a um novo instituto, a Escola de Comunicações e Artes (ECA). Para a História da Ciência a FFLCH trouxe dois novos docentes, sendo um deles do Instituto de Física, Shozo Motoyama. Para a professora Raquel Glezer, colega e amiga do professor Shozo no DH, “a presença do Shozo e sua atuação transformaram o campo da História da Ciência em um núcleo interdisciplinar que reunia docentes de quase todos os institutos e faculdades da USP, contribuindo assim para o avanço das relações interinstitucionais do Departamento de História e da própria FFLCH”. Desse modo, destaca a professora Glezer, “a área de História da Ciência passou a atrair tanto alunos para o processo de formação na pós-graduação, como docentes interessados na história de seu próprio campo”, permitindo a ampliação e adensamento das reflexões acerca da relação entre a Teoria da História e História da Ciência.

Shozo Motyama atuou também como formador de quadros acadêmicos em História do Conhecimento e Teoria da História, tendo orientado um grande número de pesquisadores em nível de mestrado e doutorado na USP, e sendo responsável pela abertura de uma nova área de pesquisa e atuação: a História da Ciência e da Técnica no Brasil, hoje consolidada e fortalecida no âmbito das mais diversas sociedades e associações de História e de Ciência.

Dentre as importantes contribuições que Shozo Motoyama legou à USP, está o Centro Interunidades de História da Ciência (CHC – http://chc.fflch.usp.br/), fundado por ele em 1988 e dirigido até sua aposentadoria em 2009. Sediado no edifício de Geografia e História da FFLCH (campus Butantã), o CHC acolhe e agrega docentes e pesquisadores das áreas de Filosofia, Física, Astronomia, Engenharias, Biologia, entre tantas outras. Preserva arquivos pessoais e institucionais relevantes para o estudo da História da Ciência e da Técnica no Brasil. Em âmbito nacional, sua atuação foi fundamental para a criação da Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC), em 1983. Internacionalmente, foi diversas vezes pesquisador convidado, com destaque para instituições japonesas como o Science and Engineering Laboratory da Waseda University e o Cosmic Ray Laboratory da University of Tokyo, além de responsável por inúmeras colaborações por meio de convênios e protocolos.

Shozo Motoyama foi também uma importante presença nas relações Brasil-Japão, tendo atuado como membro da diretoria do Centro de Estudos Nipo-Brasileiros desde 1966 e presidente entre 2004 e 2019. Foi também diretor do Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil durante os anos 1991-1997 e 2008-2009. Era membro-titular da cadeira nº 15 da Academia Paulista de História. Dedicou-se à história da imigração japonesa no Brasil, com publicações voltadas para o tema como o livro Sob o signo do sol levante, de 2011, que trata do tema antes da Segunda Guerra Mundial, e em 2016, em colaboração com o jornalista Jorge Okubaro, Do conflito à integração – uma história da imigração japonesa no Brasil, que cobre o período de 1941 até 2008. Ambas as publicações foram resultado de sua dedicação à Associação para Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil e ao Instituto Brasil-Japão de Integração Cultural e Social.

Publicou um grande volume de trabalhos, livros e artigos ao longo da carreira, dentre os quais destacam-se aqueles dedicados à história da USP, do CNPq e da Fapesp: Para uma história da Fapesp – marcos documentais, de 1999; 50 anos do CNPq contados pelos seus presidentes, de 2002; Construindo o futuro – 35 anos de pós-graduação da USP, de 2004; USP 70 anos – imagens de uma história vivida, de 2006; Fapesp 50 anos: meio século de ciência, de 2015, para citar apenas alguns. Organizou diversas obras coletivas, dentre elas a importantíssima História das ciências no Brasil, em três volumes, em parceria com Mario Ferri, publicada entre 1979 e 1981. Participou também em obras sobre a história da Fuvest e história da Escola Politécnica com Marilda Nagamini, parceira de muitos trabalhos.

Em tempos tristes como este em que vivemos, com a multiplicação de ataques obscurantistas e negacionistas à ciência, que não param de nos estarrecer, a memória e o legado de Shozo Motoyama necessitam ser difundidos e cultivados. Sua vida dedicada à docência, ao conhecimento e à universidade pública são grande estímulo e inspiração às novas gerações de pesquisadores que ingressam nas universidades do Brasil. A ciência no Brasil mudou sob o olhar crítico e investigativo de Shozo Motoyama. A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e a Universidade de São Paulo rendem a ele as maiores homenagens e eterna gratidão. Muito obrigada, professor Shozo.

130 anos atrás, em 1891, a primeira Constituição republicana: teríamos mais seis - Agencia Senado

A Constituição republicana de 1891  

D. Pedro II, o imperador deposto, e Deodoro da Fonseca, o primeiro presidente (fotos: Mathew Brady e Irmãos Bernardelli)

A Constituição de 1891, promulgada pelos senadores e deputados constituintes 15 meses após a derrubada de D. Pedro II, estabeleceu as bases políticas sobre as quais o país se ergue até os dias de hoje: a República, o presidencialismo, os três Poderes e o federalismo.

Até 1889, as bases eram bem diferentes. Como Monarquia parlamentarista, o Brasil tinha imperador e primeiro-ministro. Havia o Poder Moderador, que era exercido pelo monarca e prevalecia sobre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Diferentemente dos atuais estados, as antigas províncias eram meros braços do governo central e quase não tinham autonomia política e financeira. Nem sequer escolhiam seus próprios presidentes (como se chamavam os governadores).

Entre as raras vozes da sociedade que conseguiram se manifestar na Constituinte de 1890-1891, estiveram o Apostado Positivista e a Igreja Católica, ambos por meio de carta. Os seguidores do positivismo (filosofia na época em voga que pregava que só a ciência garantiria o progresso da humanidade) recomendaram aos parlamentares que ficassem atentos para não cair em “utopias comunistas”. Os religiosos, por sua vez, não gostaram de ver o catolicismo perdendo o status de religião oficial do Brasil e os subsídios dos cofres públicos.

“A separação violenta, absoluta e radical não só entre a Igreja e o Estado, mas entre o Estado e toda religião, perturba gravemente a consciência da nação e produzirá os mais funestos efeitos, mesmo na ordem das coisas civis e políticas. Uma nação separada oficialmente de Deus torna-se ingovernável e rolará por um fatal declive de decadência até o abismo, em que a devorarão os abutres da anarquia e do despotismo”, escreveu o arcebispo primaz do Brasil, D. Antônio de Macedo Costa.

Os católicos não foram ouvidos. Além da separação entre Igreja e Estado, a Constituição de 1891 determinou que o casamento religioso não teria mais validade pública, apenas o casamento civil.

O Senado também passou por mudanças. Os senadores deixaram de ser vitalícios e passaram a ter mandato limitado. O Supremo Tribunal, que no Império era quase decorativo, ganhou poderes e pôde julgar processos políticos.

Charge mostra chegada de 1891 e da Constituição (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

De acordo com o cientista político Christian Lynch, da Fundação Casa de Rui Barbosa e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o governo republicano recorreu a vários artifícios para ter controle sobre o conteúdo da Constituição que seria aprovada:

— Primeiro, a eleição para o Congresso Constituinte foi regida por uma legislação fraudulenta, que impediu a entrada de todos que fossem adversários do novo regime, como os monarquistas, os parlamentaristas e os unitaristas [opositores do federalismo]. Depois, o governo enviou um projeto de Constituição pronto e deu aos constituintes parcos três meses para aprová-lo, o que restringiu as discussões e dificultou as modificações. Por fim, os constituintes automaticamente se tornariam senadores e deputados ordinários, sem nova eleição, após a dissolução do Congresso Constituinte. Isso foi ruim porque eles perderam a liberdade de decidir. Estando com o mandato garantido pelos próximos anos, não faria sentido que mudassem as regras do jogo político em seu prejuízo. Jamais, por exemplo, aprovariam uma Constituição prevendo o Poder Legislativo unicameral. No fim das contas, o Congresso Constituinte fez pouco mais que carimbar o projeto do governo provisório.

Apesar de a escravidão ter sido abolida apenas três anos antes, o Congresso Constituinte não tocou na complicada situação dos antigos escravizados, que foram libertados sem ganhar nenhum tipo de compensação ou apoio do poder público. A escravidão foi citada, por exemplo, quando um constituinte parabenizou o governo por incinerar todos os registros públicos relativos à posse de escravizados e também quando um político de Campos (RJ) afirmou que a Lei Áurea havia levado sua cidade à ruína econômica.

Alguns parlamentares chegaram a questionar se o povo teria condições intelectuais para, pelo voto direto, escolher os presidentes da República.

— O voto direto traz o país constantemente sobressaltado por ocasião das eleições, às quais concorre grande massa de povo ignorante, e não raro são os distúrbios e desordens que provoca, o que se economiza perfeitamente com o voto indireto, dando-se a faculdade eletiva a um eleitorado escolhido — argumentou o deputado Almeida Nogueira (SP).

— No Brasil, como em toda parte, qualquer que seja o sistema preferido, quem governa não é a maioria da nação. É a classe superior da sociedade, uma porção mais adiantada e, conseguintemente, mais forte da comunhão nacional — acrescentou o deputado Justiniano de Serpa (CE).

Apesar desse tipo de raciocínio, a Constituição de 1891 entrou em vigor prevendo a eleição direta para presidente. Grande parte dos ex-escravizados, contudo, foi alijada desse direito, já que a Carta republicana negou o voto aos analfabetos, como já faziam as leis do Império desde 1881. O deputado Lauro Sodré (PA) tentou, sem sucesso, permitir que os iletrados votassem:

— Estamos em uma fase social que se acentua pela elevação do proletariado. Se lançarmos os olhos para os povos civilizados, havemos de ver que em todos eles se vai levantando a grande massa. Chamem-na socialismo, niilismo ou fenianismo, um só é o fenômeno social: o advento do Quarto Estado. Não posso dar o meu voto a este verdadeiro esbulho com que se tenta ferir todos os que não sabem ler nem escrever, ainda que trabalhem tanto na obra do progresso da nação quanto aqueles que tiveram a fortuna de aprender a assinar o seu nome.

As províncias do Império, que se transformaram nos estados da República (imagem: Biblioteca do Senado)

As oligarquias estaduais aproveitaram o Congresso Constituinte para, na adoção do federalismo (transformação das províncias em estados), tentar obter o máximo possível de liberdades, prerrogativas e benesses. Sugeriu-se que o governo federal assumisse as dívidas de todos os estados, que os governos locais tivessem o poder para abrir bancos emissores de papel-moeda e que cada governador indicasse um ministro para o Supremo Tribunal Federal. Outra ideia debatida foi a liberdade para que os estados criassem suas próprias leis civis, processuais, comerciais, eleitorais e até penais.

— Os crimes de homicídio, de roubo e de furto hão de ser crimes de homicídio, de roubo e de furto no Rio Grande do Sul, no Pará, em Minas, no Amazonas e em toda parte, mas a penalidade pode diversificar. No Rio Grande do Sul, onde o povo é dado à indústria pastoril, infelizmente há em abundância o furto de gado e lá nós precisamos punir mais gravemente esse delito do que puniriam os pernambucanos, os mineiros e os alagoanos, para evitar sua reprodução — argumentou o deputado Cassiano do Nascimento (RS).

À exceção dos códigos processuais estaduais, nenhuma dessas ideias vingou. Em compensação, as oligarquias conseguiram incluir na Constituição a criação dos Judiciários estaduais (antes só havia o Judiciário nacional) e a concessão das terras devolutas aos estados (antes pertenciam à União).

— As antigas províncias, feudos da Monarquia, aqueles territórios estéreis onde dominavam o imperialismo e o niilismo, aquelas províncias verdadeiramente esfarrapadas e nuas, como se fossem mendigas, aí surgem, como que mudando de sexo, transformadas em estados — festejou o senador Américo Lobo (MG).

Trecho inicial da Constituição de 1891 (imagem: Arquivo do Senado)

A partilha do dinheiro público também mobilizou as oligarquias estaduais. Dos poucos embates ocorridos nos três meses do Congresso Constituinte, esse foi o mais renhido. No Império, a autonomia financeira das províncias era quase nula. Elas não tinham poder sobre o dinheiro arrecadado em seus territórios pelo governo central, que fazia a seu critério a distribuição dos recursos. No Congresso Constituinte, os estados mais ricos buscaram acabar com essa dependência. São Paulo, por exemplo, que não gostava de ver as volumosas somas geradas pela exportação do seu café sendo aplicadas em outros cantos do Império, agiu para ter o controle de todo o dinheiro.

— Diante da decadência que se abateu sobre o Nordeste na década de 1870, em razão da crise do açúcar, a Monarquia passou a redistribuir para as províncias nordestinas o dinheiro dos tributos arrecadados em São Paulo. Por esse motivo, a Monarquia era popular no Nordeste e impopular em São Paulo. Os paulistas, que se viam como a locomotiva que puxava os 20 vagões das demais províncias vazios, abraçaram a ideia do federalismo republicano porque não queriam mais perder dinheiro — explica o cientista político Christian Lynch. 

A bancada do Rio Grande do Sul apresentou uma proposta radical de federalismo: a arrecadação tributária passaria para as mãos dos governos locais, e a União se tornaria dependente de uma mesada paga pelos estados.

— Se dermos aos estados toda a autonomia, mas não lhes dermos renda, isso equivalerá à liberdade da miséria — argumentou o deputado Júlio de Castilhos (RS). — A federação, para ter realização efetiva, completa, satisfatória, depende da devolução aos estados não somente dos serviços que lhes competem, mas também da devolução das rendas que no regime decaído [Monarquia], o qual tanto combatemos, eram absorvidas quase que totalmente pelo governo central.

— Neste momento em que se tratamos de organizar os estados, se me afigura como que uma cena de família em que os filhos da casa, chegados à maioridade, deixam o teto paterno para constituírem em separado suas famílias. Os estados, antigas províncias, vão neste momento, depois de sua independência, adotar um novo regime que deve produzir sua grandeza e felicidade — comparou o senador Ramiro Barcellos (RS).

Charge da Revista Ilustrada mostra desejo de federalismo no fim do Império (Imagem: Biblioteca Nacional Digital)

Para os adversários da ideia, esse federalismo extremado fortaleceria tanto certos estados que poderia levá-los a desejar o separatismo, comprometendo a União.

— O que se está propondo é uma confederação de republiquetas — criticou o senador José Hygino (PE).

— Os estados brasileiros têm tido nesta Casa tantos defensores quantos são os seus representantes. A União, porém, a pátria comum, parece que não tem advogado — lamentou o senador Ubaldino do Amaral (PR), acrescentando que, caso os estados em algum momento se recusassem a transferir os impostos, o governo federal não teria como custear o Exército, a Marinha, as embaixadas no exterior, o serviço de correios e a segurança interna.

Para o senador Ruy Barbosa (BA), a União estaria fadada à morte se passasse a depender das “migalhas” dos estados:

— Os estados são órgãos; a União é o agregado orgânico. Os órgãos não podem viver fora do organismo assim como o organismo não existe sem os órgãos. Separá-los é matá-los. Não vejamos na União uma potência isolada no centro, mas a resultante das forças associadas disseminando-se equilibradamente até as extremidades. Fora da União, não há conservação para os estados.

Por uma margem apertada, 123 votos contrários e 103 favoráveis, a proposta da bancada gaúcha foi derrotada. O federalismo previsto na Constituição de 1891 garantiu recursos equilibrados para a União e o conjunto do estados. A estes últimos coube, entre outros, o imposto de exportação — justamente o principal pleito de São Paulo.

Ruy Barbosa e Júlio de Castilhos: adversário na questão do federalismo (fotos: Fundação Casa Rui Barbosa e Virgílio Calegari)

Aristides Lobo, o jornalista que descreveu o povo assistindo “bestializado” ao golpe de Estado de 1889, elegeu-se deputado pelo Distrito Federal (na época o Rio de Janeiro) e participou da elaboração da Constituição de 1891. O artigo ficou tão famoso já na época que, no Congresso Constituinte, ele ouviu colegas avaliando que o adjetivo “bestializado” era exagerado e jurando que o povo havia, sim, ajudado a derrubar a Monarquia. Lobo discordou: 

— O acontecimento deu-se no meio de uma população surpresa pela oscilação revolucionária. Esse é o aspecto natural da questão.

Na tribuna do Paço de São Cristóvão, o deputado Serzedello Correia (PA) fez uma avaliação semelhante à de Aristides Lobo:

— A República devia vir como veio: calma, silenciosa, de modo que as tropas percorreram as ruas em triunfo e as crianças continuavam a brincar no colo de suas mães.

Terminado o Congresso Constituinte, os parlamentares deixaram o improviso do Paço de São Cristóvão e se mudaram para o Centro do Rio de Janeiro. Os senadores passaram a trabalhar no mesmo prédio do Senado imperial e os deputados, no mesmo prédio da Câmara imperial. São Cristóvão se transformou no Museu Nacional — o mesmo que seria devastado em 2018 por um incêndio.

A seção Arquivo S, resultado de uma parceria entre a Agência Senado e o Arquivo do Senado, é publicada na primeira sexta-feira do mês no Portal Senado Notícias. 

Mensalmente, sempre no dia 15, a Rádio Senado lança um episódio do Arquivo S na versão podcast, disponível nos principais aplicativos de streaming de áudio.


Reportagem e edição: Ricardo Westin
Pesquisa histórica: Arquivo do Senado
Edição de multimídia: Bernardo Ururahy
Edição de fotografia: Pillar Pedreira
Pintura da Capa: Gustavo Hastoy/ Museu do Senado

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)

Fonte: Agência Senado

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

A obsessão americana com a ascensão da China está se transformando em um processo perigoso, para os EUA - Foreign Affairs

Desde os tempos da confrontação nuclear com a finada União Soviética, nos primeiros anos da década de 1960, não se via tamanha obsessão americana com a questão da sua primazia estratégica e supremacia militar, especialmente nuclear.

Não se compreende tal obsessão a não ser como demonstração de fraqueza em relação ao seu próprio futuro. Os generais do Pentágono têm o direito de ser paranóicos. Mas os acadêmicos parecem ter absorvido toda essa paranoia também. Vivem falando na "armadilha de Tucídides", como se fosse um precedente fatal.

Paulo Roberto de Almeida

“No matter what strategies the two sides pursue or what events unfold, the tension between the United States and China will grow, and competition will intensify; it is inevitable. War, however, is not,” writes Kevin Rudd, the former prime minister of Australia and current president of the Asia Society, in a new essay.

 

As their relationship enters its most dangerous phase yet, Washington and Beijing must find ways to carry out their competition within a set of ground rules that both respect—or, Rudd warns, “the alternatives are likely to be catastrophic.”

 

Read more from Foreign Affairs on the United States’ approach to China:

 

The Sources of Chinese Conduct” by Odd Arne Westad

China Thinks America Is Losing” by Julian Gewirtz

Can China’s Military Win the Tech War?” by Anja Manuel and Kathleen Hicks

How America Can Shore Up Asian Order” by Kurt M. Campbell and Rush Doshi

The Age of Uneasy Peace: Chinese Power in a Divided World” by Yan Xuetong

How to Prevent a War in Asia” by Michèle A. Flournoy

Competition Without Catastrophe” by Kurt M. Campbell and Jake Sullivan


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Uma declaração pública, transparente e sincera sobre o chanceler acidental - Paulo Roberto de Almeida

 Uma declaração pública, transparente e sincera sobre o chanceler acidental

Paulo Roberto de Almeida

O Itamaraty NUNCA teve, em quase 200 anos de história, chanceler tão medíocre, tão despreparado, tão sabujo de potência estrangeira, tão subserviente a ignorantes e loucos quanto EA. 

Ocupa uma posição ÚNICA nessa trajetória: a dos ineptos absolutos, a dos desqualificados por definição, a dos inadequados por simples diagnóstico primário: a do equilíbrio e preparo para a função.

Só está no cargo porque os aloprados do poder queriam um submisso total, sem qualquer vontade própria ou requisitos de defesa da própria honra pessoal.

Submeteu-se à contrafação de forjar um perfil fraudulento para alçar-se a um cargo a que nunca seria convidado pela “ordem natural das coisas”.

Mentiu ao seu suposto guru, mentiu a quem lhe atraiu para o cargo, continuou mentindo ao longo de toda a sua infeliz trajetória no Itamaraty, durante a qual desonrou as tradições da Casa, diminuiu a dignidade do cargo, submeteu os interesses nacionais a um dirigente estrangeiro — tão aloprado, despreparado, megalomaníaco e destrutivo quanto os nacionais, que o adotaram como modelo e chefe virtual — e envergonhou o Brasil e todos os brasileiros em face do mundo, diminuindo o grande prestígio internacional que a diplomacia profissional tinha acumulado até então. Fez o Brasil perder o respeito dos vizinhos, alienou parceiros estratégicos por ideologias idiotas — como as teorias alucinadas sobre o globalismo — e causou perdas reais à sociedade, pela perda de oportunidades externas.

Pior que tudo: aliou-se estreitamente, servilmente, às posturas irresponsáveis do dirigente negacionista no tratamento inadequado e perverso da pandemia, no que pode ser chamado de CRIME MORAL!

Em síntese, foi o PIOR chanceler que jamais nós, os diplomatas profissionais, poderíamos sequer imaginar que um dia estaria à frente do Itamaraty.

Seu único gesto de dignidade pessoal seria renunciar. 

Não acredito que o fará. 

Teria de ser “renunciado”! 

Se, claro, existisse uma clara consciência em setores responsáveis quanto à importância do cargo para a imagem externa da nação. 

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 5/02/2021


Bitcoin: A Hedge Against the Dystopian Present - John Mac Ghlionn (The Daily Hodl)

 

Bitcoin: A Hedge Against the Dystopian Present

When asked about the potential of Bitcoin in a recent interview with Bloomberg, Kenneth Rogoff, an economist and Harvard faculty member, conceded that the cryptocurrency has a future – but only if the future is “dystopian” in nature.

What if the dystopian future is already here? Without wishing to engage in linguistic inflation, let us start off by defining the term “dystopia.”

A dystopia is simply “a community or society that is undesirable or frightening.” One needn’t be living in a Mad Max nightmare to find modern-day existence both undesirable and frightening. Unlike utopias, which are both idealistic and unattainable, dystopias are both brutal and entirely attainable.

From Resident Evil to RoboCop, truly dystopian societies are violent, often brutally so. However, one needn’t escape into the world of fiction to find volatile societies. With rates of violence reaching dangerous new highs in major cities like New York and Ontario, for example, acts of brutality are alarmingly common.

As Cormac McCarthy’s magnum opus taught us, dystopian societies are also mired in poverty. Considering 45% of Americans have absolutely nothing in savings, it’s safe to say that daily existence is a dystopia for a sizable portion of the United States. In the UK, things aren’t much better, with 1 in 10 people having no access to savings. When it comes to emotions, despair is very much the flavor of the month.

For millions of people around the world, without access to savings, the threat of homelessness is never far away. From Catalonia to Caracas, that threat is very much a reality.

Meanwhile, governments across the world are drowning in a sea of debt. Last year, we saw global debt hit new historic highs. Expect new historic highs to be reached this year as well.

How do governments continue to finance their debt? By printing money, of course. Meanwhile, unemployment rates are dangerously high, economies continue to shrink, and suicide rates continue to rise. Gordon Brown thinks the UK is close to becoming a failed state.

Dystopian enough for you, Professor Rogoff?

In his 2004 book, In Praise of Empires, Deepak Lal wrote,

“Empires have been natural throughout human history. Most people have lived in empires. Empires and the process of globalization associated with them have provided the order necessary for social and economic life to flourish. By linking previously autarkic states into a common economic space, empires have promoted the mutual gains from trade adumbrated by Adam Smith. Therefore, despite their current bad name, empires have promoted peace and prosperity.”

When examining the American system, one should ask, who has prospered from the promotion more – the masses or the empirical elites?

In The Sleeper Awakes, one of the greatest dystopian novels of the 19th century, H. G. Wells depicted the governing class as decadent in the extreme, superficial, callous and devoid of any compunction. Over 120 years later, in the age of corporate socialism and Cantillion principles, little has changed.

Noam Chomsky once wrote, “For the powerful, crimes are those that others commit.” In California, for example, it’s perfectly fine for the governor to ignore lockdown regulations. If someone in a less powerful position behaves in a similar manner, however, they end up losing their ability to make a living.

Estonia has taught us that the best governments are the ones that govern the least. In dystopias, though, governments hold a vice-like grip over society. Language is weaponized, newspeak reigns supreme and a term like “stakeholder capitalism” is actually code for economic fascism.

Technological control is another theme of dystopias, where the rulers of society control the masses in both the most implicit and explicit of ways. Bentham’s panopticon is a global one. Privacy is no longer an option.

As Julian Assange and Edward Snowden have shown the world, if you expose this very fact, you are deemed a dangerous actor. This is the age of phone tapping and indiscriminate sharing of data, a dystopian age ruled by men named Dorsey and Zuckerberg.

Should we be worried? Considering Facebook supposedly feeds users’ private messages to the FBI, I think so. From 1984 to Black Mirror, dystopian offerings are known for darkness, both thematically and visually. Ever since the abolishment of the gold standard some 50 years ago, the shadows of inflation, fiduciary negligence and technocratic governance have dimmed the lights on democracy.

If Bitcoin is a technology that is only viable in dystopian times, then, dear readers, that time is now.


John Mac Ghlionn
John is a performance specialist obsessed with all things crypto