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terça-feira, 19 de novembro de 2024

Novo livro preparado para publicação: Constituições brasileiras: ensaios de sociologia política (2024) - Paulo Roberto de Almeida

4791. Constituições brasileiras: ensaios de sociologia política, Brasília, 18 novembro 2024, 187 p. Livro completo com nove ensaios sobre as constituições e suas implicações para o Brasil, em especial no terreno econômico. ISBN: 978-65-01-23460-1. Em preparação para publicação.


O problema brasileiro nunca foi fabricar Constituições, e sim cumpri-las.


Roberto Campos, Lanterna na Popa (memórias), 1994. 


Constituições brasileiras

ensaios de sociologia política


Índice

 

 

Apresentação: Constituições e desenvolvimento político no Brasil   11

 

1. Representação política no Brasil até a Constituição de 1824   19

2. Formação do constitucionalismo luso-brasileiro no século XIX     30

3. Da Constituinte de 1823 à Constituição de 1824: aspectos econômicos   51

4. A economia nas constituições brasileiras, de 1824 a 1946    64

5. As relações internacionais na ordem constitucional de 1988   86

6. Brasil: um Prometeu acorrentado pela sua própria Constituição   112

7. Análise crítica do conteúdo econômico da Constituição de 1988   134

8. A Constituição e a integração regional   172

9. Dois séculos de constituições e regimes políticos no Brasil, 1824-2024  177

 

Apêndices

Livros de Paulo Roberto de Almeida     179

Nota sobre o autor    185

 

Apresentação

 

Constituições e desenvolvimento político no Brasil

 

O Brasil já está em sua sétima constituição, um número não exatamente reduzido, mas em todo caso menor do que outros Estados da região, bem menos, por exemplo, do que a França, um país extremamente prolífico na adoção de novas constituições. Não se trata de algo excepcional na história política da humanidade. Constituições são, de fato, contratos sociais e políticos que as mais diversas comunidades humanas, organizadas em forma de Estados, contraem entre seus membros, como regras elementares de convivência pacífica, e que precisam ser revistos, eventualmente refeitos, ao longo de suas respectivas histórias. Como não deveria impressionar ninguém, imperadores, estadistas, partidos políticos, movimentos sociais, pensadores individuais, tendem a reproduzir ideias, formações políticas e instituições que, em democracias ou em regimes autocráticos, prolongam conceitos e organizações de coexistência social que perpassam toda a história humana, das próprias civilizações. As condições materiais e humanas sempre mudam, as circunstâncias políticas, econômicas e até morais vão se alterando ao sabor dos tempos, e com elas devem mudar também as “relações contratuais” que regem as interações dos estratos sociais entre si. Constituições nascem, são mudadas ou perecem no seu curso; elas podem ser estabelecidas consensualmente, ou impostas por algum poder dominante.

Quando Tocqueville escreveu O Antigo Regime e a Revolução, aproximadamente em 1848, ele tinha sido, por breve tempo, chanceler da Segunda República francesa, e o país já estava em sua quinta constituição, das quinze que acumulou até chegar na atual Quinta República (já um tanto abalada). Ou seja, a França já teve o dobro de constituições do que número exibido pelo Brasil, que, por sua vez, já teve quase tantas moedas quanto teve de constituições, um campeão absoluto na história monetária mundial (pelo menos até aqui, esperando que a Venezuela chavista ou a Argentina, peronista ou liberal, nos ultrapassem). 

A prolificidade na feitura de novas constituições é uma característica da história política dos países modernos e contemporâneos, o que poderia indicar, na visão de Kant, que estaríamos nos aproximando da “paz universal”, a qual, segundo o filósofo de Konigsberg, só seria alcançável quando todos os Estados fossem regimes constitucionais. Por acaso, as cartas escritas do século XVIII para cá tendem a repetir dispositivos e instituições relativamente similares aos padrões estabelecidos por Montesquieu, com alguns toques de Benjamin Constant e, vez por outra, um liberalismo político à la Cádiz (Carta de 1812), com algumas peculiaridades da constituição americana em países presidencialistas, como os da América Latina, Brasil inclusive. Nessa visão, praticamente todos os países contemporâneos deveriam, com poucas exceções, consolidar a organização de seus Estados com base no conhecido esquema tripartite dos poderes, que seriam, pelo menos teoricamente, harmônicos e independentes entre si, com algumas instituições assessórias no plano judiciário ou no controle dos gastos públicos. Parafraseando George Orwell, se poderia dizer que “todos os animais constitucionais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”. 

A organização política do Brasil precede a sua primeira constituição, a de 1824, pois que um “Estado”, ou algo equivalente, já existia, embrionariamente, desde que aqui chegou o primeiro governador-geral, Dom Tomé de Souza, em 1549, depois sucedido por vários vice-reis e, finalmente, pela Corte dos Braganças em sua inteireza, em 1808. Um dos Braganças fugidos da invasão napoleônica, o Príncipe Regente D. João, foi quem construiu os primeiros rudimentos de um Estado moderno no Brasil, entre 1808 e 1821, a partir de quando se assentam as bases de um futuro Estado independente, que toma forma, muito precariamente, já sob a regência do príncipe Dom Pedro, para depois se apresentar ao mundo como “Império do Brasil”, no final de 1822. O reconhecimento diplomático formal demorou um pouco mais, ainda que os Estados Unidos tenham dada a partida em 1824; mas as grandes potências europeias só começaram a reconhecer nossa existência depois que “acertamos as contas”, com Portugal e com Dom João VI, no tratado patrocinado pela Grã-Bretanha em 1825.

O ano de 2024 representa, portanto, o bicentenário de nossa primeira Carta, e cabe examinar como se organizou o novo Estado, a partir da Constituição de 1824 (outorgada, após o fechamento arbitrário, pelo jovem imperador, da primeira Assembleia Constituinte) e como se consolidou esse Estado, basicamente pela “parada institucional” oferecida pelo chamado Regresso, depois dos impulsos liberais dos primeiros tempos. Questões adicionais, que são tratadas pelos historiadores especializados, referem-se aos fundamentos conceituais, no plano econômico e político, da jovem nação americana, a segunda maior do hemisfério (mas muito atrasada em relação ao gigante anglo-saxão do Norte) e, também, quais foram, no início de nossa conturbada história política, os projetos para o Brasil, essencialmente o Estado unitário monárquico que Bonifácio estimava indispensável à preservação da própria existência da nação; ele se viu ameaçado, desde o ato da criação constitucional, por impulsos republicanos e progressistas avançados, por Frei Caneca por exemplo, um dos maiores intelectuais de nossa história, infelizmente ceifado pela prepotência da Corte do Rio de Janeiro, na breve experiência da Confederação do Equador, em 1824, proponente de um Estado federal, como finalmente a República se encarregou de instituir, 67 anos depois.

O foco central deste livro, uma compilação de ensaios de sociologia política, é essencialmente o Estado brasileiro, antes que a nação, pela simples razão – como já enfatizado anteriormente – de que o Estado precede a nação, e, de certa forma, ele a cria, a molda e a organiza (algumas vezes de forma brutal, como na escravidão do século XIX, ou nas ditaduras do século XX). O centralismo ibérico foi preservado na institucionalidade aqui implementada pelos Braganças e depois adaptado às peculiaridades da terra, como foi detectado desde cedo pelos liberais conservadores das Regências e do Regresso, ao início do Segundo Reinado. Foi quando o Estado brasileira deixa, finalmente, de ser “português”, como demonstrado em inúmeras inclinações políticas e diplomáticas do primeiro imperador. 

Alguns intérpretes, como Manoel Bomfim, ao início do século XX, afirmaram que o Estado só se tornou realmente “brasileiro” depois de 1831, embora Hipólito da Costa, que pode ser considerado o primeiro estadista brasileiro – a despeito de jamais ter vivido na terra que ele considerava sua, desde os estudos em Coimbra, na última década do século XVIII –, tinha plena convicção de que a nação começou a ser forjada desde a transferência da Corte, quando ele também dá início ao seu grande empreendimento intelectual, o Correio Braziliense, editado em Londres de 1808 a 1822. Essa é exatamente a postura de dois grandes intelectuais brasileiros, ambos “súditos portugueses”, admiradores de Adam Smith, Cairu e Hipólito, que figuram em primeiro lugar entre os “construtores da nação”, no meu livro sobre os “projetos para o Brasil, de Cairu a Merquior”, publicado em 2022.

Não há por que esconder a origem europeia de nossas instituições de Estado, e não poderia ser de outro modo, dados os vínculos de toda a sorte que nos prendiam ao molde português e, em parte, ao espírito liberal da Carta de Cádiz, que foi brevemente adotada em Portugal depois da Revolução do Porto, em 1820, e que, portanto, influenciou, em certa medida, os constitucionalistas eleitos e os membros da comissão que redigiu a Carta no final de 1823. Estes são alguns dos temas históricos que perpassam os ensaios que aqui coletei sobre nossa formação constitucional, não de um ponto de vista jurídico, mas essencialmente sociológico. 

Desde o Brasil do Segundo Reinado, se não antes, o Estado brasileiro começou a se organizar, sob o domínio das oligarquias, como um pequeno Leviatã burocrático, chegando, na República, a se apresentar como um grande Leviatã que invade e controla a vida de todos os cidadãos. Já no século XIX, esse Estado havia criado múltiplas formas de “extorsão” fiscal, um comportamento bastante bem preservado em todas as épocas, até nossos tempos. A tributação já tinha estado presente, inclusive, nas questões do tráfico e da escravidão, provavelmente a maior tragédia nacional em mais de quatro séculos de história, pois que deixou marcas indeléveis na nacionalidade, mesmo depois de terem sido ambos abolidos. A ideia, falsa, de que Rui Barbosa “destruiu” os registros da escravidão, se refere, mais exatamente, ao apagamento dos comprovantes de tributos recolhidos sobre transações privadas envolvendo escravos, para evitar justamente que o Estado fosse acionado pelos proprietários não ressarcidos de qualquer demanda agressiva por parte dos frustrados senhores de escravos, que se consideravam esbulhados. O Brasil, por sinal, é o mais antigo e frequente “cliente” dos relatórios anuais da primeira ONG do mundo, a British Anti-Slavery Society, pois que nunca deixamos de figurar em seus registros, seja durante o tráfico, depois enquanto durou o regime escravo, seja ainda, contemporaneamente, na parte das “formas análogas à escravidão”, que são ainda abundantes no vasto heartland brasileiro, e até em algumas grandes cidades (e até capitais dos estados). Essa ONG se tornou internacional, também uma das primeiras, logo depois que o Reino Unido aboliu a escravidão. 

Os fundamentos doutrinais e jurídicos desse primeiro Estado – e dos que se seguiram, nos dois últimos séculos – foram formulados nas duas faculdades de Direito criadas ainda no Primeiro Reinado, reformadas ao final do Império e na República. O Barão do Rio Branco e Joaquim Nabuco são dois dos mais conhecidos representantes da nossa tradição bacharelesca, que continua dando um prestígio talvez exagerado aos bacharéis de Direito. Estes integram a quase totalidade da diplomacia profissional, à qual pertenci e na qual trabalhei durante quase meio século. Ela hoje está aberta aos mais diversos talentos – como queria o verdadeiro “pai” da política externa brasileira, Paulino Soares de Souza, o Visconde do Uruguai –, mas ela sempre essencialmente lotada de bacharéis em Direito. Talvez, não por outra razão, os privilégios associados ao nosso Leviatã florescem mais em favor daqueles que servem ao próprio Estado do que sobre aqueles que “florescem” na sociedade civil como meros produtores de bens tangíveis e intangíveis: o Brasil sempre “produziu” mais advogados do que engenheiros.

Centenários, ou datas redondas, nos oferecem uma oportunidade de refletir sobre o que fizemos em nosso passado, como anda o estado presente das coisas e o que ainda nos resta fazer para completar os projetos formulados pelos grandes estadistas da nação. Em 1922, as comemorações oficiais do primeiro centenário da independência se fizeram por meio de uma Exposição Internacional do Rio de Janeiro, uma iniciativa que procurava emular as exposições universais que estavam voga desde a Grande Exposição do Palácio de Cristal, em Londres, em 1851. Ela foi precedida, no começo do ano, pela Semana de Arte Moderna, em São Paulo, um empreendimento vagamente afiliado ao futurismo que então agitava os círculos intelectuais europeus; o seu organizador, Mário de Andrade, já era um dos grandes intelectuais brasileiros, justamente especialista em identificar algumas de nossas excentricidades, como mais tarde representado pela figura de Macunaíma. Do lado menos oficial, tivemos, logo depois, a fundação do Partido Comunista do Brasil (seção brasileira da III Internacional), nosso mais conhecido Partidão, ou PCB: ele foi o mais longevo partido clandestino de nossa história política, embora tenha conseguido influenciar, por alguma mística atraente, boa parte da chamada intelligentsia brasileira.

Dois anos depois da Semana de Arte Moderna, Mário de Andrade, constatando que o Brasil ainda não tinha deslanchado para o futuro, confessou, de forma talvez decepcionante num poema-revelação, bizarramente chamado “O poeta come amendoim”, que as melhorias demorariam ainda para chegar: “Progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade”. Os bacharéis da diplomacia aproveitaram o centenário da independência para organizar e publicar, entre 1922 e 1926, os Arquivos Diplomáticos da Independência. O Itamaraty ainda se encarregou de republicar uma nova edição facsimilar dos Arquivos no sesquicentenário da Independência, em 1972, quando os militares no poder preferiram organizar um bizarro “passeio” dos ossos do primeiro imperador por várias “províncias” brasileiras, como uma espécie de resgate histórico da nossa “lusitanidade”. Esses Arquivos foram novamente republicados no bicentenário, em 2022, também pelo Itamaraty, e na exata forma em que tinham sido pela primeira vez editados nos anos 1920.

O primeiro centenário da nossa primeira Carta Constitucional, em 1924, não foi devidamente comemorado, provavelmente porque se queria esquecer a monarquia e, também, porque já tínhamos entrado no ciclo das revoltas tenentistas que desembocariam na Revolução “Liberal” de 1930. Paradoxalmente, ela abriu caminho a um dos períodos autoritários mais tenebrosos de nossa história, junto com o segundo, poucas décadas depois, ambas fortalecendo o poder Estado, acima e à margem das constituições surgidas, mudadas e desaparecidas à sombra de cada um deles. Elas foram as de 1934 (derivada de uma Constituinte corporativa), a imposta em 1937, inaugurando a ditadura do Estado Novo, e a de 1946, votada democraticamente por uma Constituinte, reformada em 1961, para a introdução do parlamentarismo e revertida ao presidencialismo por um plebiscito em 1963; o golpe de 1964 a desfigurou mediante atos institucionais, até ser substituída pela de 1967, ela própria emporcalhada por um ato adicional autoritário em 1969. A Carta democrática de 1988 segue sendo acrescida de inúmeras emendas, e é a mais prolixa de todas elas, o que é justamente a razão de tantos acréscimos puramente circunstanciais, quando não oportunistas.

 

Este livro deveria estar centrado unicamente nas constituições brasileiras, mas ele trata, em grande medida, do peso crucial do Estado sobre nossas vidas. Este, há muito, já deixou de ser aquele agente do crescimento e dos grandes empreendimentos nacionais para se converter num freio, talvez até um obstáculo, a um processo de crescimento sustentado, e bem menos um promotor do desenvolvimento social e cultural. Da “altura” destes 200 anos da primeira Constituição, e baseando-nos nas seis outras, podemos traçar um modesto balanço, e talvez até um diagnóstico mais preciso, de nossas insuficiências acumuladas até aqui, como reveladas nas instituições e experiências formuladas e implementadas quando do “primeiro Estado brasileiro”, para concebermos novos projetos no decorrer do terceiro centenário da Independência, que já se iniciou, à sombra de algumas nuvens estatizantes sempre presentes em nossa história.

Ainda não conseguimos superar os entraves burocráticos, jurídicos e políticos, do atual Leviatã inzoneiro, o Estado que, aparentemente moderno, preservou os traços essenciais do patrimonialismo que, segundo Raymundo Faoro, deita raízes na era medieval portuguesa. Depois de duas décadas de tecnocracia autoritária, chegamos a uma “Nova República” prometedora no itinerário dos direitos e das liberdades, mas que já parece estar ameaçada em seus fundamentos doutrinais pela divisão política da nação em dois projetos populistas que nos remetem ao lugar comum dos populismos latino-americanos. À luz dos “Estados” incompletos que tivemos nos últimos dois séculos, um exame circunstanciado das antigas e da atual Carta constitucional talvez nos ajude a rever nossos acertos e desacertos nos duzentos anos passados, assim como a prevenir desenvolvimentos indesejáveis para o futuro do atual Estado brasileiro ao longo do seu terceiro centenário. 

Este livro pretende oferecer uma modesta contribuição ao conhecimento de algumas das edificações constitucionais que balizaram a organização da nação, desde aquela que esteve presente no nascimento do Estado brasileiro, até a atual Carta, que fez promessas de novos avanços democrático nas próximas etapas de nosso desenvolvimento histórico. 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 18 de novembro de 2024


sábado, 6 de fevereiro de 2021

130 anos atrás, em 1891, a primeira Constituição republicana: teríamos mais seis - Agencia Senado

A Constituição republicana de 1891  

D. Pedro II, o imperador deposto, e Deodoro da Fonseca, o primeiro presidente (fotos: Mathew Brady e Irmãos Bernardelli)

A Constituição de 1891, promulgada pelos senadores e deputados constituintes 15 meses após a derrubada de D. Pedro II, estabeleceu as bases políticas sobre as quais o país se ergue até os dias de hoje: a República, o presidencialismo, os três Poderes e o federalismo.

Até 1889, as bases eram bem diferentes. Como Monarquia parlamentarista, o Brasil tinha imperador e primeiro-ministro. Havia o Poder Moderador, que era exercido pelo monarca e prevalecia sobre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Diferentemente dos atuais estados, as antigas províncias eram meros braços do governo central e quase não tinham autonomia política e financeira. Nem sequer escolhiam seus próprios presidentes (como se chamavam os governadores).

Entre as raras vozes da sociedade que conseguiram se manifestar na Constituinte de 1890-1891, estiveram o Apostado Positivista e a Igreja Católica, ambos por meio de carta. Os seguidores do positivismo (filosofia na época em voga que pregava que só a ciência garantiria o progresso da humanidade) recomendaram aos parlamentares que ficassem atentos para não cair em “utopias comunistas”. Os religiosos, por sua vez, não gostaram de ver o catolicismo perdendo o status de religião oficial do Brasil e os subsídios dos cofres públicos.

“A separação violenta, absoluta e radical não só entre a Igreja e o Estado, mas entre o Estado e toda religião, perturba gravemente a consciência da nação e produzirá os mais funestos efeitos, mesmo na ordem das coisas civis e políticas. Uma nação separada oficialmente de Deus torna-se ingovernável e rolará por um fatal declive de decadência até o abismo, em que a devorarão os abutres da anarquia e do despotismo”, escreveu o arcebispo primaz do Brasil, D. Antônio de Macedo Costa.

Os católicos não foram ouvidos. Além da separação entre Igreja e Estado, a Constituição de 1891 determinou que o casamento religioso não teria mais validade pública, apenas o casamento civil.

O Senado também passou por mudanças. Os senadores deixaram de ser vitalícios e passaram a ter mandato limitado. O Supremo Tribunal, que no Império era quase decorativo, ganhou poderes e pôde julgar processos políticos.

Charge mostra chegada de 1891 e da Constituição (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

De acordo com o cientista político Christian Lynch, da Fundação Casa de Rui Barbosa e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o governo republicano recorreu a vários artifícios para ter controle sobre o conteúdo da Constituição que seria aprovada:

— Primeiro, a eleição para o Congresso Constituinte foi regida por uma legislação fraudulenta, que impediu a entrada de todos que fossem adversários do novo regime, como os monarquistas, os parlamentaristas e os unitaristas [opositores do federalismo]. Depois, o governo enviou um projeto de Constituição pronto e deu aos constituintes parcos três meses para aprová-lo, o que restringiu as discussões e dificultou as modificações. Por fim, os constituintes automaticamente se tornariam senadores e deputados ordinários, sem nova eleição, após a dissolução do Congresso Constituinte. Isso foi ruim porque eles perderam a liberdade de decidir. Estando com o mandato garantido pelos próximos anos, não faria sentido que mudassem as regras do jogo político em seu prejuízo. Jamais, por exemplo, aprovariam uma Constituição prevendo o Poder Legislativo unicameral. No fim das contas, o Congresso Constituinte fez pouco mais que carimbar o projeto do governo provisório.

Apesar de a escravidão ter sido abolida apenas três anos antes, o Congresso Constituinte não tocou na complicada situação dos antigos escravizados, que foram libertados sem ganhar nenhum tipo de compensação ou apoio do poder público. A escravidão foi citada, por exemplo, quando um constituinte parabenizou o governo por incinerar todos os registros públicos relativos à posse de escravizados e também quando um político de Campos (RJ) afirmou que a Lei Áurea havia levado sua cidade à ruína econômica.

Alguns parlamentares chegaram a questionar se o povo teria condições intelectuais para, pelo voto direto, escolher os presidentes da República.

— O voto direto traz o país constantemente sobressaltado por ocasião das eleições, às quais concorre grande massa de povo ignorante, e não raro são os distúrbios e desordens que provoca, o que se economiza perfeitamente com o voto indireto, dando-se a faculdade eletiva a um eleitorado escolhido — argumentou o deputado Almeida Nogueira (SP).

— No Brasil, como em toda parte, qualquer que seja o sistema preferido, quem governa não é a maioria da nação. É a classe superior da sociedade, uma porção mais adiantada e, conseguintemente, mais forte da comunhão nacional — acrescentou o deputado Justiniano de Serpa (CE).

Apesar desse tipo de raciocínio, a Constituição de 1891 entrou em vigor prevendo a eleição direta para presidente. Grande parte dos ex-escravizados, contudo, foi alijada desse direito, já que a Carta republicana negou o voto aos analfabetos, como já faziam as leis do Império desde 1881. O deputado Lauro Sodré (PA) tentou, sem sucesso, permitir que os iletrados votassem:

— Estamos em uma fase social que se acentua pela elevação do proletariado. Se lançarmos os olhos para os povos civilizados, havemos de ver que em todos eles se vai levantando a grande massa. Chamem-na socialismo, niilismo ou fenianismo, um só é o fenômeno social: o advento do Quarto Estado. Não posso dar o meu voto a este verdadeiro esbulho com que se tenta ferir todos os que não sabem ler nem escrever, ainda que trabalhem tanto na obra do progresso da nação quanto aqueles que tiveram a fortuna de aprender a assinar o seu nome.

As províncias do Império, que se transformaram nos estados da República (imagem: Biblioteca do Senado)

As oligarquias estaduais aproveitaram o Congresso Constituinte para, na adoção do federalismo (transformação das províncias em estados), tentar obter o máximo possível de liberdades, prerrogativas e benesses. Sugeriu-se que o governo federal assumisse as dívidas de todos os estados, que os governos locais tivessem o poder para abrir bancos emissores de papel-moeda e que cada governador indicasse um ministro para o Supremo Tribunal Federal. Outra ideia debatida foi a liberdade para que os estados criassem suas próprias leis civis, processuais, comerciais, eleitorais e até penais.

— Os crimes de homicídio, de roubo e de furto hão de ser crimes de homicídio, de roubo e de furto no Rio Grande do Sul, no Pará, em Minas, no Amazonas e em toda parte, mas a penalidade pode diversificar. No Rio Grande do Sul, onde o povo é dado à indústria pastoril, infelizmente há em abundância o furto de gado e lá nós precisamos punir mais gravemente esse delito do que puniriam os pernambucanos, os mineiros e os alagoanos, para evitar sua reprodução — argumentou o deputado Cassiano do Nascimento (RS).

À exceção dos códigos processuais estaduais, nenhuma dessas ideias vingou. Em compensação, as oligarquias conseguiram incluir na Constituição a criação dos Judiciários estaduais (antes só havia o Judiciário nacional) e a concessão das terras devolutas aos estados (antes pertenciam à União).

— As antigas províncias, feudos da Monarquia, aqueles territórios estéreis onde dominavam o imperialismo e o niilismo, aquelas províncias verdadeiramente esfarrapadas e nuas, como se fossem mendigas, aí surgem, como que mudando de sexo, transformadas em estados — festejou o senador Américo Lobo (MG).

Trecho inicial da Constituição de 1891 (imagem: Arquivo do Senado)

A partilha do dinheiro público também mobilizou as oligarquias estaduais. Dos poucos embates ocorridos nos três meses do Congresso Constituinte, esse foi o mais renhido. No Império, a autonomia financeira das províncias era quase nula. Elas não tinham poder sobre o dinheiro arrecadado em seus territórios pelo governo central, que fazia a seu critério a distribuição dos recursos. No Congresso Constituinte, os estados mais ricos buscaram acabar com essa dependência. São Paulo, por exemplo, que não gostava de ver as volumosas somas geradas pela exportação do seu café sendo aplicadas em outros cantos do Império, agiu para ter o controle de todo o dinheiro.

— Diante da decadência que se abateu sobre o Nordeste na década de 1870, em razão da crise do açúcar, a Monarquia passou a redistribuir para as províncias nordestinas o dinheiro dos tributos arrecadados em São Paulo. Por esse motivo, a Monarquia era popular no Nordeste e impopular em São Paulo. Os paulistas, que se viam como a locomotiva que puxava os 20 vagões das demais províncias vazios, abraçaram a ideia do federalismo republicano porque não queriam mais perder dinheiro — explica o cientista político Christian Lynch. 

A bancada do Rio Grande do Sul apresentou uma proposta radical de federalismo: a arrecadação tributária passaria para as mãos dos governos locais, e a União se tornaria dependente de uma mesada paga pelos estados.

— Se dermos aos estados toda a autonomia, mas não lhes dermos renda, isso equivalerá à liberdade da miséria — argumentou o deputado Júlio de Castilhos (RS). — A federação, para ter realização efetiva, completa, satisfatória, depende da devolução aos estados não somente dos serviços que lhes competem, mas também da devolução das rendas que no regime decaído [Monarquia], o qual tanto combatemos, eram absorvidas quase que totalmente pelo governo central.

— Neste momento em que se tratamos de organizar os estados, se me afigura como que uma cena de família em que os filhos da casa, chegados à maioridade, deixam o teto paterno para constituírem em separado suas famílias. Os estados, antigas províncias, vão neste momento, depois de sua independência, adotar um novo regime que deve produzir sua grandeza e felicidade — comparou o senador Ramiro Barcellos (RS).

Charge da Revista Ilustrada mostra desejo de federalismo no fim do Império (Imagem: Biblioteca Nacional Digital)

Para os adversários da ideia, esse federalismo extremado fortaleceria tanto certos estados que poderia levá-los a desejar o separatismo, comprometendo a União.

— O que se está propondo é uma confederação de republiquetas — criticou o senador José Hygino (PE).

— Os estados brasileiros têm tido nesta Casa tantos defensores quantos são os seus representantes. A União, porém, a pátria comum, parece que não tem advogado — lamentou o senador Ubaldino do Amaral (PR), acrescentando que, caso os estados em algum momento se recusassem a transferir os impostos, o governo federal não teria como custear o Exército, a Marinha, as embaixadas no exterior, o serviço de correios e a segurança interna.

Para o senador Ruy Barbosa (BA), a União estaria fadada à morte se passasse a depender das “migalhas” dos estados:

— Os estados são órgãos; a União é o agregado orgânico. Os órgãos não podem viver fora do organismo assim como o organismo não existe sem os órgãos. Separá-los é matá-los. Não vejamos na União uma potência isolada no centro, mas a resultante das forças associadas disseminando-se equilibradamente até as extremidades. Fora da União, não há conservação para os estados.

Por uma margem apertada, 123 votos contrários e 103 favoráveis, a proposta da bancada gaúcha foi derrotada. O federalismo previsto na Constituição de 1891 garantiu recursos equilibrados para a União e o conjunto do estados. A estes últimos coube, entre outros, o imposto de exportação — justamente o principal pleito de São Paulo.

Ruy Barbosa e Júlio de Castilhos: adversário na questão do federalismo (fotos: Fundação Casa Rui Barbosa e Virgílio Calegari)

Aristides Lobo, o jornalista que descreveu o povo assistindo “bestializado” ao golpe de Estado de 1889, elegeu-se deputado pelo Distrito Federal (na época o Rio de Janeiro) e participou da elaboração da Constituição de 1891. O artigo ficou tão famoso já na época que, no Congresso Constituinte, ele ouviu colegas avaliando que o adjetivo “bestializado” era exagerado e jurando que o povo havia, sim, ajudado a derrubar a Monarquia. Lobo discordou: 

— O acontecimento deu-se no meio de uma população surpresa pela oscilação revolucionária. Esse é o aspecto natural da questão.

Na tribuna do Paço de São Cristóvão, o deputado Serzedello Correia (PA) fez uma avaliação semelhante à de Aristides Lobo:

— A República devia vir como veio: calma, silenciosa, de modo que as tropas percorreram as ruas em triunfo e as crianças continuavam a brincar no colo de suas mães.

Terminado o Congresso Constituinte, os parlamentares deixaram o improviso do Paço de São Cristóvão e se mudaram para o Centro do Rio de Janeiro. Os senadores passaram a trabalhar no mesmo prédio do Senado imperial e os deputados, no mesmo prédio da Câmara imperial. São Cristóvão se transformou no Museu Nacional — o mesmo que seria devastado em 2018 por um incêndio.

A seção Arquivo S, resultado de uma parceria entre a Agência Senado e o Arquivo do Senado, é publicada na primeira sexta-feira do mês no Portal Senado Notícias. 

Mensalmente, sempre no dia 15, a Rádio Senado lança um episódio do Arquivo S na versão podcast, disponível nos principais aplicativos de streaming de áudio.


Reportagem e edição: Ricardo Westin
Pesquisa histórica: Arquivo do Senado
Edição de multimídia: Bernardo Ururahy
Edição de fotografia: Pillar Pedreira
Pintura da Capa: Gustavo Hastoy/ Museu do Senado

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)

Fonte: Agência Senado