Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;
Era 29 de novembro de 1830 quando, em Varsóvia, os compatriotas de Chopin finalmente conspiraram, apoiados por boa parte da sociedade da época. Frédéric havia deixado o país no segundo dia daquele mês, para nunca mais retornar à terra natal. Na companhia de Titus Woyciechowski, passou por Breslávia, onde tocou em público e por Praga, chegando em Viena em 24 de novembro.
A insurgência, àquela altura, começava a ganhar corpo e se espraiava na já distante Polônia. Chopin, contudo, não poderia ter dali senão parcas notícias, que tardavam excessivamente a chegar. Desde a sua saída turbulenta até o percurso que empreendia na longa viagem, o seu pensamento – enquanto artista, mas também como cidadão – estava voltado à terra polonesa e seu povo, oprimido pelo Império Russo, que tomava cada vez mais o poder.
Foi Titus que recebeu os primeiros informes da Polônia e avisou Chopin de que grande número de austríacos era contrário às aspirações polonesas, pelo que ali estourara uma rebelião libertária. A rebelião, no entanto, durou pouco e foi mais duramente repreendida que pretendidamente libertadora. A tomada de Varsóvia pelos patriotas sucumbiu de imediato e foi completamente sufocada pelo Império Russo, liquidando a autonomia da Polônia.
A chamada Revolução dos Cadetes – tratava-se da insurgência de jovens oficiais poloneses da academia militar do Exército – ficou marcada pela aniquilação dos insurretos, que culminou com o decreto do Imperador Nicolau I, da Rússia, que se negava a aceitar os limites constitucionais estabelecidos pelo Congresso polonês. Ademais, com um Exército enormemente superior ao da Polônia, não foi evidentemente difícil à Rússia abafar qualquer tentativa de retomada de Varsóvia, diluindo o sonho polonês de liberdade.
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Tomada do arsenal em Varsóvia, pintura de Marcin Zaleski (1831)
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Essa liberdade cerceada – tanto física como moral e intelectual – foi a chave para que artistas de envergadura, como pintores, escritores e músicos, se debruçassem sobre como retomar para si e seu povo a amada pátria. Começaram, daí, um trabalho intelectual de alto burilamento, que culminou na transposição do folclore popular para os variados ramos artísticos, como as artes plásticas, a literatura e a música.
Chopin, nessa época, contava com apenas vinte anos de idade, mas já compreendia o que estava a se passar no país. Meses antes de sua partida, participou ativamente, junto a vários amigos, de reuniões secretas em prol da causa polonesa e, vez ou outra, temia por ser descoberto naquele seio.
Sem poder retornar à pátria, Chopin decide continuar viagem, partindo com destino final a Paris, passando, antes, por Salzburg e Munique, já em meados de 1831. Seu íntimo, no entanto, sofria com a Polônia invadida e pelas vidas de vários amigos. Sua dor chegaria ao ápice ao aportar em Stuttgart, quando recebe a notícia da definitiva ocupação russa em Varsóvia.
Naquele momento, o compositor é tomado por uma aflição profunda, registrada em seu diario de notas (Stuttgart, setembro de 1831) com os seguintes dizeres: “Os faubourgs estão destruídos, incendiados… Jeannot! Sem dúvida Wilus está morto nas trincheiras. Eu vejo Marcel no cativeiro. Sowinski, este bravo, nas mãos destes patifes! Deus, tu existes? Sim, tu existes e não nos vingas. Não existem crimes moscovitas que cheguem, ou tu és também moscovita?”.[1]
Entende-se ter sido naquele exato momento, pouco antes de chegar à França, em setembro de 1831, que Chopin então compôs – com recém-completados vinte e um anos de idade – uma das páginas mais profundas, significativas e arrebatadoras da literatura pianística: o estudo para a mão esquerda, conhecido por “Revolucionário”.
A composição é de uma eletricidade, vigor e fúria tão incomparáveis que penetrou ao espírito do povo polonês da época – e, não há dúvidas, ainda nos dias de hoje – com absoluta imediatidade, tornando compreensível, por todos os ouvintes, o recado certeiro passado por detrás da composição, sobre a necessidade de união pessoal e temporal do povo, menos à custa da bandeira da esperança que da efetiva necessidade em não permitir tirar de si a terra que viu cada qual dos poloneses nascer.
De fato, os efeitos do Estudo “Revolucionário”em dó menor (Opus 10, nº 12) foram capazes de criar uma atmosfera e uma cênica únicas, que fizeram vir à luz – como poucas peças na literatura pianística puderam fazer – o que se pode chamar de “alma polonesa” ou “espírito da Polônia”, fato curiosíssimo se se pensa na extrema pouca idade de seu compositor.
Para além de aspectos puramente pianísticos, ligados especialmente à velocidade e à dinâmica na interpretação, certo é que o “Revolucionário” foi capaz de ligar um povo à sua causa, tornando-se, por isso, um hino polonês, que seria, anos mais tarde, jungido pela monumental Polonaise “Heróica” (Opus 53). Enquanto esta é a página da robustez polonesa, da glória e da vitória que no futuro chegariam, aquele representa o estampido inicial da revolução, com seu olhar para o futuro libertador.
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Original (primeira página) da Polonaise “Heróica”, Opus 53, em lá bemol maior (1842)
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Esse conjunto de fatores somado nos faz refletir como a arte – e, no caso que ora nos ocupa, especificamente a música – pode fazer “levantar” um povo ameaçado pela opressão e pelas tiranias, inclusive as contemporâneas. Tanto naquele contexto – da Europa dos grandes salons – quanto no da história recente de vários países, a arte musical tem desempenhado função integradora da identidade cultural dos povos.
A diferença está, talvez, em que a música de hoje não tenha tanta longevidade quanto a de compositores como Chopin, que por centenas (ou milhares) de anos continuará a ser tão popular, não obstante sua complexidade teórica e técnica.
Falemos, pois, um pouco mais sobre Chopin para entender este assunto, certo de que foi no folclore polonês que o compositor se baseou para descortinar ao mundo aquele “espírito da Polônia” já referido.
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II
Tout court, os chamados “temas poloneses” provêm dos motivos populares cantados ou tocados no interior da Polônia, não por músicos profissionais, mas por cantores ou instrumentistas amadores nos vários campos, vales e planícies daquele país. Trata-se de música popular em sentido estrito, executada, muitas vezes, de improviso – ad libitum – por gaitistas ou violinistas em festas ou eventos de campo, enriquecidas com danças típicas. Suas linhas melódicas são ricas e exuberantes, sempre dançantes e de um sabor em tudo campestre. Às vezes, também podem aparecer em tom mais palaciano que popular, notadamente em ocasiões de festas nacionais.
A utilização desse rico arcabouço de temas populares para as composições eruditas – vejam-se, por exemplo, as árias de Couperin, Rameau, Bach e Fridmann – é uma forma, entre outras, de trazer a um povo certa esperança em tempos de sofrimento, seja ele de que índole for (econômica, política etc.). Trata-se da maneira pela qual é possível expressar um sentimento nacional por meio do que é erudito, exaltando o país de origem pela música, notadamente pela ótica do homem comum, do povo.
O escritor Etienne Witwcki, em correspondência enviada a Chopin, em 6 de julho de 1831, fazia sinceros votos a que seu compatriota fosse o primeiro polonês a “[…] beber nos vastos tesouros da melodia eslava […]”, dizendo que, ao não seguir esse caminho, Chopin renunciaria “[…] voluntariamente aos mais belos lauréis”.[2]
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Original da última composição de Chopin antes de morrer, a Mazurca em fá menor (Opus Post. 68, nº 4), que expressa a despedida do artista do mundo e a lembrança de seus primeiros anos na terra natal. A partitura (com apenas uma página manuscrita) está repleta de anotações e rabiscos de difícil compreensão, decriptografados por Auguste Franchomme e Julien Fontana
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Essa intenção nacionalista exacerbada estava em voga e se espraiou por todo o mundo musical de então – lembre-se, por exemplo, das Rapsódias húngaras de Liszt, das Danças húngaras de Brahms, das Danças norueguesas de Grieg, dentre tantas outras – a título de libertação das fórmulas herméticas do classicismo escolástico, flexibilizando os métodos e modulando conceitos até então imutáveis.
Chopin, de certa maneira, seguiu essa tendência nacionalista com as Polonaises e as Mazurcas, não obstante sem a ostensividade das grandes óperas e sinfonias. Certo, no entanto, é que tanto nele como em outros compositores do gênero, o tom do folclore foi atribuído pelo que se captou dos cânticos e danças populares, interioranos e campestres, burilados com a mais rica tessitura erudita, sobretudo pianística.
Do que era popular e, de certa forma, grosseiro, passou-se para o erudito e burilado, transferindo a simplória melodia do campo para a rica tessitura musical dos grandes salões de baile. Tais salões, a partir de então, viram-se impregnados de musicalidade graciosa e dançante, tudo, no entanto, muito distinto das valsas dos salões vienenses. Essa nova fórmula levava em conta matizes campestres – falamos das Mazurcas – que se transformavam em música instrumental, tendo o piano por solista.
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Representação de uma dança de Mazurca
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Não há dúvidas de que a transposição do folclore para o ambiente erudito – sinfônico e pianístico – configura menos um exercício composicional criativo que de absorção das necessidades de um povo – do qual o compositor faz parte – em ver-se representado por alto nível de erudição, como, por exemplo, é o caso dos temas e cânticos nacionalistas presentes nas Polonaises e Mazurcas de Chopin.
Esse alto nível erudito abandona todo e qualquer tipo de vulgaridade, às vezes presente na origem do cântico ou dança respectivo, para transformar-se em música de altíssima complexidade técnica, sobretudo interpretativa.
Desde aquele momento foi então possível compreender com clareza como a arte liberta e toca o sentimento da Nação enquanto unidade, capaz de servir de guia para aqueles que não desejam ver-se aniquilados por um sistema vil de liderança política.
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III
O que é a arte senão a forma de expressão intelectual que liberta tanto o artista quanto os que em sua obra recolhem as necessidades de um viver próprio e com causa? O que é a música senão o conjunto de sons que dialoga com o seu criador e com os que por ele nutrem empatia?
Não fosse a expressão musical de um povo – a representada por Chopin, sabe-se já, é apenas instrumental, salvo raríssimas exceções, como as 17 Canções Polonesas (Opus 74) para piano e voz – não se teria, v.g., um dos mais importantes símbolos nacionais, que é o Hino Nacional; não seria possível pensar naquele conceito de identidade nacional que, sobretudo por meio da música, floresce fértil no seio de uma Nação.
Somente a música é capaz de atingir multidões e Chopin foi mestre no exercício desse poder revolucionário, permitindo à sua arte “levantar” um povo não liberto e dominado, erguer sua cabeça e deixar altiva a sua estima. Mesmo Adam Mickiewicz – o maior poeta polonês, também refugiado em Paris e amigo de Chopin – não logrou chegar perto do que fez Chopin com a música, em termos de atingimento ao ideário popular.
A razão é simples: a música é melhor compreendida do que a poesia, mesmo que sem “título”. Chopin, que não admitia dar títulos alegóricos às suas composições, abriu raríssimas exceções, tanto para a Marcha Fúnebre da Sonata em si bemol menor (Opus 35) quanto para a Berceuse (Opus 57) e para a Barcarola (Opus 60); e nunca se opôs a que nominassem “Revolucionário” o Estudo Opus 10, nº 12.
Somente a compreensão dessa simbiose de criatividade e mistério revela o poder – tão oculto quanto significativo – que provém da música, notadamente aquela universal e atemporal, que teve no Silfo mestre do piano – Chopin – o seu mais digno e expressivo representante. Seu conhecido “Moja bieda”(“Meu sofrimento”) grafado no pacote de correspondências trocadas com Maria Wodzinska era, não somente em razão do amor desfeito, também endereçado ao seu interior sentimento de distância da pátria, que somente o piano, para ele, foi capaz de remediar.
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Célebre retrato de Chopin pintado por Delacroix (1838), integrante do acervo do Louvre
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O princípio regente desse universo místico presente na incorporação da música ao ser é – à guisa do presente nas ciências da saúde – o da “percussão”. Em termos metafísicos, contudo, trata-se não de percussão física, mas da ação (ataque) do conjunto de sons no plano do espírito, que não só percute (impacta) internamente como (re)percute (reverbera) de um ser humano a outro, atingindo milhões de pessoas (no caso de Chopin, o mundo todo).
Perceba-se que, muito mais que a literatura, só a música tem esse poder reverberador. De fato, não se lê (nem os próprios poetas leem…) uma mesma poesia repetidas vezes a um só tempo, mas é possível ouvir, em sequencia, dezenas de vezes um mesmo Estudo ou Noturno, uma mesma Valsa ou Balada de Chopin. E, a cada oitiva, sente-se aquela referida percussão e uma (re)percussão agregadora e única, mesmo que distintas as atividades sensoriais e captativas de cada qual.
Portanto, há na arte um particularismo (que percute em nós) que se espalha e une todos os que dela são admiradores (repercutindo neles). No que toca particularmente à arte musical, certo é que só ela tem maior capacidade de percutir e repercutir em grande escala, mudando paradigmas, quebrando preconceitos, alterando destinos ou os rumos de toda uma Nação, fazendo “levantar” um povo.
É esse um dos poderes que têm a arte, em geral, e a música, em particular: revolucionar!
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“Chopin tocando para os Radziwiłłs”, Henryk Siemiradzki, 1887
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Notas:
[1] SYDOW, Bronislas Édouard (Org.). Correspondência de Frédéric Chopin. Tradução de Zuleika Rosa Guedes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007, p. 166.
[2] SYDOW, Bronislas Édouard (Org.). Correspondência de Frédéric Chopin. Tradução de Zuleika Rosa Guedes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007, p. 159.
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Confira a obra do autor, Valerio Mazzuoli, sobreChopin: Elementos de Pianística e Impressões sobre a vida e a obra.
Valerio Mazzuoli
Valerio Mazzuoli é Professor-Associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, Pós-Doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor summa cum laude em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e Membro-titular da Academia Mato-Grossense de Letras, onde ocupa a Cadeira nº 36. Fora do universo jurídico, tem Habilitação Plena em Música, fundou a Confraria do Piano (Cuiabá-MT) e é autor do livro Chopin: elementos de pianística e impressões sobre a vida e obra (Editora Letramento, 2020).
Há pautas que se impõem. É o caso do terremoto político do já histórico dia 24 de abril de 2020.
Demissão de Sérgio Moro, que atribui a possibilidade de uma série de graves crimes a Jair Bolsonaro, presidente da República, em rede nacional. Pronunciamento do Presidente, rebatendo, entre digressões e tergiversações, o ex-ministro da Justiça. Evidências apresentadas por Moro em horário nobre, novamente em rede nacional.
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Para analisar esse cenário em profundidade, preparamos uma série de entrevistas ao longo desta semana.
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Hoje, inaugurando a série, trazemos o olhar do Professor José Eduardo Faria, Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV-Direito) e um dos ganhadores do Prêmio Jabuti (Direito) em 2012.
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Após o pronunciamento do Presidente na última sexta, Miguel Reale Jr. chegou a falar de “um grau de insanidade”. Como o senhor avalia o discurso do presidente — que foi do aquecedor da piscina do Alvorada ao namorico de seu filho mais jovem com a filha do miliciano que matou Marielle Franco —, sem responder, de forma convincente ou mesmo substantiva, às graves acusações de Moro? À luz dos acontecimentos do dia 24, o governo de Jair Bolsonaro acabou?
José Eduardo Faria: Tão importante quanto a fala de Reale Jr. foi uma recente entrevista do psiquiatra Joel Birman, na qual distingue o louco do psicopata. Bolsonaro não seria um insano, mas um psicopata que tende a se tornar mais violento à medida em que se torna mais inseguro e medroso. O que o levou a fazer esse pronunciamento desastroso, na tentativa de responder às críticas do ministro da Justiça, que pedira demissão horas antes, foram, certamente, as informações que recebeu sobre as investigações conduzidas pela Polícia Federal, por determinação do Supremo Tribunal Federal. O presidente se descontrolou quando foi informado de que essas investigações tinham conseguido estabelecer, com provas, as conexões de seu filho Carlos com o esquema criminoso de distribuição de fake news pelas redes sociais. Junte-se a isso o avanço das investigações da PF sobre o envolvimento de seu filho Flávio em negócios imobiliários com as milícias fluminenses, as quais estão por trás do assassinato da vereadora Marielle Franco. Descontrolado, agiu imaginando estar acima das instituições e ter o apoio dessa enganadora palavra polissêmica — “povo”.
Que Bolsonaro não tem condições psiquiátricas para atuar na vida pública, isso já é sabido desde o tempo em que foi expulso do Exército. E quando um grupo de generais imaginou que poderia controlá-lo no Planalto, ficou evidente que ele não se deixaria tutelar. O que, por consequência, o levou a buscar apoio de setores radicais para ameaçar as instituições de direito, incitando-os contra o Congresso e o Judiciário. Em pouco mais de um ano, seu governo inexiste e ele — homem vulgar, tosco, ignorante, mentiroso contumaz e ególatra — converteu-se um pária internacional. Seu governo acabou sem ter começado, no plano substantivo. Em plena tragédia humanitária e de suspensão das atividades econômicas, o governo Bolsonaro não comanda, não tem planos coerentes de ação, não tem liderança, não tem respeitabilidade, não tem legitimidade.
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(Reprodução: TV Brasil)
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No ano passado, em entrevista que nos concedeu por ocasião do lançamento de seu Corrupção, Justiça e Moralidade Pública, o senhor dizia que o caso Intercept dificilmente viria a gerar condenações a Sérgio Moro na esfera jurídica — um diagnóstico que se provou acertado. O senhor dizia também que, na esfera ética, a imagem do ex-juiz ficara maculada para qualquer um que tivesse “um mínimo de descortino”. Hoje, como o senhor avalia o juiz e o político Sérgio Moro?
José Eduardo Faria: Há diferentes modos de avaliar a transição de Sérgio Moro do universo judicial para o da vida política. Uma delas é partir de uma distinção clássica da sociologia política entre dois tipos de ética. A ética de convicção, por um lado, e a ética de responsabilidade, por outro. A primeira é a ética da coerência pessoal de cada um, com base em seus valores pessoais e sua visão de mundo. A segunda é a ética que envolve a convivência social, a tolerância, o diálogo, o princípio da alteridade e o interesse da coletividade. No limite, a ética de convicção dá prioridade aos fins, em detrimento dos meios, Já a ética de responsabilidade valoriza as regras do jogo, a ordem jurídica. Numa situação ideal, as duas éticas podem conviver — posso ser coerente por um lado, mas respeitando quem discordar de minhas convicções. O que se vê na conduta de Moro e dos procuradores da força-tarefa de Curitiba, durante os anos da Lava Jato, é o privilegiamento da ética de convicção, no sentido de que os fins justificam os meios. Daí a forte preocupação moralista, o apego ao consequencialismo jurídico mediante interpretações extensivas de normas jurídicas, o apego mais a princípios do que regras, o vazamento sistemático de informações para a imprensa com o objetivo de criar situações de fato, como mostraram as gravações da Intercept,etc. Daí as fortes críticas dos garantistas, no sentido de que os lavajatistasse tornaram obstinados, misturando uma visão moralista e entreabrindo certos valores cristãos, passando a atuar como ativistas judiciais, ultrapassando desse modo os limites das prerrogativas da magistratura e do Ministério Público.
Quando afirmei que Moro cometera um erro baseado em “falta de descortínio”, procurei apontar que, ao despir a toga para aceitar ser ministro de um governo dirigido por um tresloucado, ele acabou legitimando essas críticas. Ao trocar de poder, explicitou a politização de certos setores da Justiça. Com isso, abriu caminho para que segmentos parlamentares mais fisiológicos reagissem tentando tipificar os chamados crimes de abuso de autoridade, com o objetivo de reduzir ao mínimo a discricionariedade da magistratura, obrigando-a a fazer “interpretações literais”, o que é um disparate. Com base na ética de convicção, Moro foi um competente tecnocrata do direito. Mas, ao desprezar a ética de responsabilidade, trocando de Poder, converteu-se num político que, até hoje, não foi capaz de expressar ideias claras, de ir além da cruzada moral, do discurso apelativo do combate à corrupção. Jamais falou sobre uma agenda pró-ativa, limitando-se a lugares comuns. Qual é sua ideia de desenvolvimento? Quais são seus projetos para evitar a desindustrialização do País e preparar as novas gerações para a Revolução Industrial 4.0? Qual é sua opção em matéria de economia — políticas liberais, pró-mercado, ou medidas anticíclicas, de inspiração keynesiana? Ele sabe que as políticas de austeridade fiscal impostas na Europa por pressão de organismos multilaterais levaram à fragilização dos sistemas de saúde, como estamos vendo na Itália e na Espanha? Por que não abriu a boca quando MPs e PEC do governo a quer serviu dificultaram o acesso dos cidadãos aos tribunais, comprometendo assim a efetividade de direitos sociais previstos pela Constituição? O que entende de política externa num contexto de crescente policentrismo decisório?
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(Foto: Felipe Rau/Estadão)
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Dilma Rousseff, em 2016, com rito estabelecido pelo ministro do supremo Ricardo Lewandowski, levou 9 meses. E, agora, acusações de que Bolsonaro talvez tenha cometido crimes de falsidade ideológica coação no curso de processo, advocacia administrativa, prevaricação, obstrução de justiça, corrupção passiva privilegiada, denunciação caluniosa e crime contra a honra. De que forma um rito tão amarrado prejudica um novo processo de impeachment no Brasil hoje?
José Eduardo Faria: Acompanhei de perto o processo de impeachment de Collor, em 1992, por ter integrado a equipe de juristas que redigiu o pedido. Ali tomei consciência do que já intuía: mais do que jurídico, impeachment é um processo político. Por isso, seu timingdepende menos de prazos previstos por uma lei editada há 70 anos e mais de implicações não legais, como negociações partidárias, reações empresariais e movimentos de rua. No momento, não há manifestações de rua, o que favorece o presidente. E, embora venha perdendo popularidade, ainda tem de 10% a 15% do eleitorado. Já os setores mais sólidos do empresariado, e que não se confundem com o pessoal do mercado financeiro, não se deixaram seduzir pelo ultraliberalismo do ministro da Economia, que está caindo. Estão preocupados, sim, com quem virá a sucedê-lo. Sabem que, como neste momento os economistas mais competentes não querem sujar sua biografia servindo a um governo abjeto, Bolsonaro poderá nomear alguém sem envergadura, sem experiência e que se dobre às suas vontades e impulsos. Como ocorreu com Collor e Dilma, a mídia não está se sentido acuada pelas ameaças do Executivo e vem publicando o que está ocorrendo — e o cenário é tão desfavorável a Bolsonaro que seu ministro de articulação política chegou ao disparate de recomendar aos jornais e televisões que publicassem somente notícias positivas e não corpos de vítimas da Covid-19.
Sem capacidade de reação, Bolsonaro deixou de lado o que chamava de “velha política” e convocou o notório Centrão para tentar deter o avanço do impeachment. E, enquanto estiver no poder, para dele gozar e usufruir, o Centrão retardará ao máximo o andamento do processo de impeachment. Depois, como fez com Dilma, abandonará Bolsonaro à própria sorte. No meio disso, há, por um lado, as investigações solicitadas ao STF pela PGR, que podem surpreender trazendo fatos novos, explosivos. Por outro, há as eleições de outubro, que são decisivas para determinar candidaturas aos governos estaduais e para a própria presidência, em 2022. E ainda há algo que preocupa: no fim do ano, Bolsonaro indicará um novo ministro para o Supremo, por causa da aposentadoria compulsória de Celso de Mello. Por só lhe restar o círculo mais íntimo, em matéria de nomes, o presidente indicará Aras ou alguém que fará seu jogo, mas que não terá sólida formação jurídica nem respeitabilidade nos meios forenses. Basta ver o perfil dos nomes indicados para as áreas e órgãos jurídicos por Bolsonaro. São medíocres. Em suma, há muitas variáveis em jogo, o que torna difícil saber qual será o ritmo de avanço do processo de impeachment. Enquanto isso, o país continuará patinando no combate à pandemia e a economia continuará travada.
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O Brasil dispõe de um arcabouço jurídico-institucional capaz de lidar com uma crise contínua e intensa como é a marca do governo Bolsonaro?
José Eduardo Faria: Surpreendentemente, apesar do descalabro administrativo do governo e da contínua instabilidade política por ele criada, nestes 16 meses de mandato, as instituições têm se revelado resilientes. A Câmara dos Deputados e o Senado, por exemplo, foram responsáveis e consequentes, nesse período. O Supremo, apesar das divergências explícitas entre alguns ministros, envolvendo matérias que afetam o funcionamento do regime democrático, também agiu e vem agindo de modo prudente e com extrema moderação. Contudo, essas instituições devem enfrentar alguns problemas internos. No caso da Câmara e do Senado, o retorno do chamado presidencialismo de coalizão, mediante a cooptação do Centrão pelo Planalto, poderá gerar tensões no Congresso. Tensões essas que serão exponenciados pela sucessão de Davi Alcolumbre e de Rodrigo Maia, nas presidências das duas casas legislativas. Já o STF, embora há tempos venha demonstrado ter uma visão institucional do país, também terá de trocar de presidente. É difícil saber como ele se comportará, tendo, de saída, de atuar num momento politicamente instável e explosivo. Na PGR, apesar de ter sido indicado para ser homem de confiança de Bolsonaro, o procurador-chefe pode muito, mas não pode tudo. Se colocar o órgão a serviço do Planalto, para tentar deterá qualquer preço o avanço de um processo de impeachment, ele corre o risco de gerar uma crise interna. Tenho conversado com procuradores da República e eles me disseram que reagirão.
Além disso, a OAB e as entidades da magistratura não sós estão atentas com relação a ameaças contra o regime democrático, como também são comandados por advogados e juízes com firmeza e capacidade de resistência. Por fim, apesar do lixo das redes sociais e das falsas notícias emanadas do “gabinete do ódio”, a sociedade civil está atenta. Mesmo as Forças Armadas, apesar de Bolsonaro vir tentado identificá-las como sendo parte de “seu” governo, parecem não ter perdido a consciência de que são forças de Estado e não milícias ou guardas pretorianas de governantes autoritários e psicopatas. Muitas lideranças militares parecem conscientes dos erros cometidos após o golpe de 64, e de cujas consequências nefastas paras liberdades públicas até hoje não conseguiram se livrar. Se quiserem preservar a imagem da corporação, que continua maculada por erros de lideranças antigas, precisam ter bom senso para não reincidir naqueles equívocos.
Creio que o Brasil dispõe de um arcabouço-jurídico capaz de lidar com uma crise continua e intensa como tem sido a marca do governo Bolsonaro. Lembro-me que a mesma indagação me foi feita em 1992, no dia em que a redação do pedido de impeachment foi concluída, graças a um trabalho primoroso feito por Evandro Lins e Silva, Fábio Comparato, José Carlos Dias e René Dotti, entre outros. E, também, em 2016, na semana em que foi acolhido o processo de impeachment e Dilma. Nas duas ocasiões, o arcabouço jurídico-institucional, apesar de submetido a situações de estresse, funcionou. Não tem por que não funcionar novamente, mesmo que Bolsonaro consiga colocar um homem seu no STF e continuar patrocinando bravatas dominicais protagonizadas por insensatos e alienados.
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(Foto: Dida Sampaio/ Estadão)
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Por gentileza, Professor, uma reflexão final, mais ampla, já tomando a crise institucional como premissa.
Ampliando o horizonte, creio que o país está enfrentando um problema global, que é o advento do que tem sido chamado pelos cientistas políticos de democracias iliberais. Formalmente, esses países têm sistemas políticos democráticos. Mas, tentando comê-los pelas bordas, políticos populistas e autoritários deflagram crises e criam situações de fato, procurando minar as liberdades públicas e acabar com o chamado setor público não estatal. Veja-se, por exemplo, que a PGR, agora chefiada por um procurador de confiança de Bolsonaro, acaba de extinguir a Secretaria dos Direitos Humanos. No ano passado, o governo Bolsonaro também acabou com os representantes da sociedade civil nos órgãos colegiados da administração federal. Investiu contra o princípio de respeito às minorias. Lembro-me de um discurso de Bolsonaro, em que que respeitava a democracia representativa, mas que só obedecia ao “povo”. Também passou a agredir sistematicamente os meios de comunicação e a estimular empresários a não fazer anúncios na mídia tradicional, para asfixiá-la financeiramente. Cercou-se de ministros como o da Educação e o das Relações Exteriores, que têm uma visão regressiva de ordem pública. E não tem hesitado em minar uma cultura política democrática, que valoriza a alternância de poder por meio de eleições livres e limpas. Tenta corroer instituições e valores fundamentais para a solidez dos sistemas políticos representativos. São essas iniciativas iliberais que têm de ser combatidas. Como disse antes, Legislativo, Judiciário, entidades jurídicas e sociedade civil têm sido resilientes e o arcabouço jurídico-institucional tem resistido contra aqueles que almejam miná-lo. Mas é preciso ter consciência de que essa situação pode não ser durável, a médio prazo. Principalmente se o governo convocar plebiscitos e referendos. Ou seja, mecanismos previstos pela Constituição, em nome da democracia, mas que podem ser utilizados por aventureiros, levando ao que a história nos mostra: o uso da democracia para se acabar com ela. A Covid-19 nos mostrou o impacto disruptivo das contingências — daquilo que é incerto e até improvável, mas acaba acontecendo. Se no plano externo a pandemia acarretou o que se imaginava impensável até o final do ano passado, a desaceleração da integração das cadeias globais de valor, no plano interno o desafio é conter o iliberalismo. E ele tem de continuar a ser enfrentado mesmo que Bolsonaro saia do poder, por impeachment ou renúncia, caso sua situação se torne insustentável.
Ominous and risky trends were around long before Covid-19, making an L-shaped depression very likely
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After the 2007-09 financial crisis, the imbalances and risks pervading the global economy were exacerbated by policy mistakes. So, rather than address the structural problems that the financial collapse and ensuing recession revealed, governments mostly kicked the can down the road, creating major downside risksthat made another crisis inevitable. And now that it has arrived, the risks are growing even more acute. Unfortunately, even if the Greater Recession leads to a lacklustre U-shaped recovery this year, an L-shaped “Greater Depression” will follow later in this decade, owing to 10 ominous and risky trends.
The first trend concerns deficits and their corollary risks: debts and defaults. The policy response to the Covid-19 crisis entails a massive increase in fiscal deficits – on the order of 10% of GDP or more – at a time when public debt levels in many countries were already high, if not unsustainable.
Worse, the loss of income for many households and firms means that private-sector debt levels will become unsustainable, too, potentially leading to mass defaults and bankruptcies. Together with soaring levels of public debt, this all but ensures a more anaemic recovery than the one that followed the Great Recession a decade ago.
A second factor is the demographic timebomb in advanced economies. The Covid-19 crisis shows that much more public spending must be allocated to health systems, and that universal healthcare and other relevant public goods are necessities, not luxuries. Yet, because most developed countries have ageing societies, funding such outlays in the future will make the implicit debts from today’s unfunded healthcare and social security systems even larger.
A third issue is the growing risk of deflation. In addition to causing a deep recession, the crisis is also creating a massive slack in goods (unused machines and capacity) and labour markets (mass unemployment), as well as driving a price collapse in commodities such as oil and industrial metals. That makes debt deflation likely, increasing the risk of insolvency.
A fourth (related) factor will be currency debasement. As central banks try to fight deflation and head off the risk of surging interest rates (following from the massive debt build-up), monetary policies will become even more unconventional and far-reaching. In the short run, governments will need to run monetised fiscal deficits to avoid depression and deflation. Yet, over time, the permanent negative supply shocks from accelerated de-globalisation and renewed protectionism will make stagflation all but inevitable.
A fifth issue is the broader digital disruption of the economy. With millions of people losing their jobs or working and earning less, the income and wealth gaps of the 21st-century economy will widen further. To guard against future supply-chain shocks, companies in advanced economies will re-shore production from low-cost regions to higher-cost domestic markets. But rather than helping workers at home, this trend will accelerate the pace of automation, putting downward pressure on wages and further fanning the flames of populism, nationalism, and xenophobia.
This points to the sixth major factor: deglobalisation. The pandemic is accelerating trends toward balkanisation and fragmentation that were already well underway. The US and China will decouple faster, and most countries will respond by adopting still more protectionist policies to shield domestic firms and workers from global disruptions. The post-pandemic world will be marked by tighter restrictions on the movement of goods, services, capital, labour, technology, data, and information. This is already happening in the pharmaceutical, medical-equipment, and food sectors, where governments are imposing export restrictions and other protectionist measures in response to the crisis.
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The backlash against democracy will reinforce this trend. Populist leaders often benefit from economic weakness, mass unemployment, and rising inequality. Under conditions of heightened economic insecurity, there will be a strong impulse to scapegoat foreigners for the crisis. Blue-collar workers and broad cohorts of the middle class will become more susceptible to populist rhetoric, particularly proposals to restrict migration and trade.
This points to an eighth factor: the geostrategic standoff between the US and China. With the Trump administration making every effort to blame China for the pandemic, Chinese President Xi Jinping’s regime will double down on its claim that the US is conspiring to prevent China’s peaceful rise. The Sino-American decoupling in trade, technology, investment, data, and monetary arrangements will intensify.
Worse, this diplomatic breakup will set the stage for a new cold war between the US and its rivals – not just China, but also Russia, Iran, and North Korea. With a US presidential election approaching, there is every reason to expect an upsurge in clandestine cyber warfare, potentially leading even to conventional military clashes. And because technology is the key weapon in the fight for control of the industries of the future and in combating pandemics, the US private tech sector will become increasingly integrated into the national-security-industrial complex.
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A final risk that cannot be ignored is environmental disruption, which, as the Covid-19 crisis has shown, can wreak far more economic havoc than a financial crisis. Recurring epidemics (HIV since the 1980s, Sars in 2003, H1N1 in 2009, Mers in 2011, Ebola in 2014-16) are, like climate change, essentially manmade disasters, born of poor health and sanitary standards, the abuse of natural systems, and the growing interconnectivity of a globalised world. Pandemics and the many morbid symptoms of climate change will become more frequent, severe, and costly in the years ahead.