A Crise: “Bolsonaro não comanda nem tem legitimidade”, diz José Eduardo Faria
Estado da Arte
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Há pautas que se impõem. É o caso do terremoto político do já histórico dia 24 de abril de 2020.
Demissão de Sérgio Moro, que atribui a possibilidade de uma série de graves crimes a Jair Bolsonaro, presidente da República, em rede nacional. Pronunciamento do Presidente, rebatendo, entre digressões e tergiversações, o ex-ministro da Justiça. Evidências apresentadas por Moro em horário nobre, novamente em rede nacional.
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Para analisar esse cenário em profundidade, preparamos uma série de entrevistas ao longo desta semana.
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Hoje, inaugurando a série, trazemos o olhar do Professor José Eduardo Faria, Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV-Direito) e um dos ganhadores do Prêmio Jabuti (Direito) em 2012.
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Após o pronunciamento do Presidente na última sexta, Miguel Reale Jr. chegou a falar de “um grau de insanidade”. Como o senhor avalia o discurso do presidente — que foi do aquecedor da piscina do Alvorada ao namorico de seu filho mais jovem com a filha do miliciano que matou Marielle Franco —, sem responder, de forma convincente ou mesmo substantiva, às graves acusações de Moro? À luz dos acontecimentos do dia 24, o governo de Jair Bolsonaro acabou?
José Eduardo Faria: Tão importante quanto a fala de Reale Jr. foi uma recente entrevista do psiquiatra Joel Birman, na qual distingue o louco do psicopata. Bolsonaro não seria um insano, mas um psicopata que tende a se tornar mais violento à medida em que se torna mais inseguro e medroso. O que o levou a fazer esse pronunciamento desastroso, na tentativa de responder às críticas do ministro da Justiça, que pedira demissão horas antes, foram, certamente, as informações que recebeu sobre as investigações conduzidas pela Polícia Federal, por determinação do Supremo Tribunal Federal. O presidente se descontrolou quando foi informado de que essas investigações tinham conseguido estabelecer, com provas, as conexões de seu filho Carlos com o esquema criminoso de distribuição de fake news pelas redes sociais. Junte-se a isso o avanço das investigações da PF sobre o envolvimento de seu filho Flávio em negócios imobiliários com as milícias fluminenses, as quais estão por trás do assassinato da vereadora Marielle Franco. Descontrolado, agiu imaginando estar acima das instituições e ter o apoio dessa enganadora palavra polissêmica — “povo”.
Que Bolsonaro não tem condições psiquiátricas para atuar na vida pública, isso já é sabido desde o tempo em que foi expulso do Exército. E quando um grupo de generais imaginou que poderia controlá-lo no Planalto, ficou evidente que ele não se deixaria tutelar. O que, por consequência, o levou a buscar apoio de setores radicais para ameaçar as instituições de direito, incitando-os contra o Congresso e o Judiciário. Em pouco mais de um ano, seu governo inexiste e ele — homem vulgar, tosco, ignorante, mentiroso contumaz e ególatra — converteu-se um pária internacional. Seu governo acabou sem ter começado, no plano substantivo. Em plena tragédia humanitária e de suspensão das atividades econômicas, o governo Bolsonaro não comanda, não tem planos coerentes de ação, não tem liderança, não tem respeitabilidade, não tem legitimidade.
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No ano passado, em entrevista que nos concedeu por ocasião do lançamento de seu Corrupção, Justiça e Moralidade Pública, o senhor dizia que o caso Intercept dificilmente viria a gerar condenações a Sérgio Moro na esfera jurídica — um diagnóstico que se provou acertado. O senhor dizia também que, na esfera ética, a imagem do ex-juiz ficara maculada para qualquer um que tivesse “um mínimo de descortino”. Hoje, como o senhor avalia o juiz e o político Sérgio Moro?
José Eduardo Faria: Há diferentes modos de avaliar a transição de Sérgio Moro do universo judicial para o da vida política. Uma delas é partir de uma distinção clássica da sociologia política entre dois tipos de ética. A ética de convicção, por um lado, e a ética de responsabilidade, por outro. A primeira é a ética da coerência pessoal de cada um, com base em seus valores pessoais e sua visão de mundo. A segunda é a ética que envolve a convivência social, a tolerância, o diálogo, o princípio da alteridade e o interesse da coletividade. No limite, a ética de convicção dá prioridade aos fins, em detrimento dos meios, Já a ética de responsabilidade valoriza as regras do jogo, a ordem jurídica. Numa situação ideal, as duas éticas podem conviver — posso ser coerente por um lado, mas respeitando quem discordar de minhas convicções. O que se vê na conduta de Moro e dos procuradores da força-tarefa de Curitiba, durante os anos da Lava Jato, é o privilegiamento da ética de convicção, no sentido de que os fins justificam os meios. Daí a forte preocupação moralista, o apego ao consequencialismo jurídico mediante interpretações extensivas de normas jurídicas, o apego mais a princípios do que regras, o vazamento sistemático de informações para a imprensa com o objetivo de criar situações de fato, como mostraram as gravações da Intercept, etc. Daí as fortes críticas dos garantistas, no sentido de que os lavajatistasse tornaram obstinados, misturando uma visão moralista e entreabrindo certos valores cristãos, passando a atuar como ativistas judiciais, ultrapassando desse modo os limites das prerrogativas da magistratura e do Ministério Público.
Quando afirmei que Moro cometera um erro baseado em “falta de descortínio”, procurei apontar que, ao despir a toga para aceitar ser ministro de um governo dirigido por um tresloucado, ele acabou legitimando essas críticas. Ao trocar de poder, explicitou a politização de certos setores da Justiça. Com isso, abriu caminho para que segmentos parlamentares mais fisiológicos reagissem tentando tipificar os chamados crimes de abuso de autoridade, com o objetivo de reduzir ao mínimo a discricionariedade da magistratura, obrigando-a a fazer “interpretações literais”, o que é um disparate. Com base na ética de convicção, Moro foi um competente tecnocrata do direito. Mas, ao desprezar a ética de responsabilidade, trocando de Poder, converteu-se num político que, até hoje, não foi capaz de expressar ideias claras, de ir além da cruzada moral, do discurso apelativo do combate à corrupção. Jamais falou sobre uma agenda pró-ativa, limitando-se a lugares comuns. Qual é sua ideia de desenvolvimento? Quais são seus projetos para evitar a desindustrialização do País e preparar as novas gerações para a Revolução Industrial 4.0? Qual é sua opção em matéria de economia — políticas liberais, pró-mercado, ou medidas anticíclicas, de inspiração keynesiana? Ele sabe que as políticas de austeridade fiscal impostas na Europa por pressão de organismos multilaterais levaram à fragilização dos sistemas de saúde, como estamos vendo na Itália e na Espanha? Por que não abriu a boca quando MPs e PEC do governo a quer serviu dificultaram o acesso dos cidadãos aos tribunais, comprometendo assim a efetividade de direitos sociais previstos pela Constituição? O que entende de política externa num contexto de crescente policentrismo decisório?
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Dilma Rousseff, em 2016, com rito estabelecido pelo ministro do supremo Ricardo Lewandowski, levou 9 meses. E, agora, acusações de que Bolsonaro talvez tenha cometido crimes de falsidade ideológica coação no curso de processo, advocacia administrativa, prevaricação, obstrução de justiça, corrupção passiva privilegiada, denunciação caluniosa e crime contra a honra. De que forma um rito tão amarrado prejudica um novo processo de impeachment no Brasil hoje?
José Eduardo Faria: Acompanhei de perto o processo de impeachment de Collor, em 1992, por ter integrado a equipe de juristas que redigiu o pedido. Ali tomei consciência do que já intuía: mais do que jurídico, impeachment é um processo político. Por isso, seu timingdepende menos de prazos previstos por uma lei editada há 70 anos e mais de implicações não legais, como negociações partidárias, reações empresariais e movimentos de rua. No momento, não há manifestações de rua, o que favorece o presidente. E, embora venha perdendo popularidade, ainda tem de 10% a 15% do eleitorado. Já os setores mais sólidos do empresariado, e que não se confundem com o pessoal do mercado financeiro, não se deixaram seduzir pelo ultraliberalismo do ministro da Economia, que está caindo. Estão preocupados, sim, com quem virá a sucedê-lo. Sabem que, como neste momento os economistas mais competentes não querem sujar sua biografia servindo a um governo abjeto, Bolsonaro poderá nomear alguém sem envergadura, sem experiência e que se dobre às suas vontades e impulsos. Como ocorreu com Collor e Dilma, a mídia não está se sentido acuada pelas ameaças do Executivo e vem publicando o que está ocorrendo — e o cenário é tão desfavorável a Bolsonaro que seu ministro de articulação política chegou ao disparate de recomendar aos jornais e televisões que publicassem somente notícias positivas e não corpos de vítimas da Covid-19.
Sem capacidade de reação, Bolsonaro deixou de lado o que chamava de “velha política” e convocou o notório Centrão para tentar deter o avanço do impeachment. E, enquanto estiver no poder, para dele gozar e usufruir, o Centrão retardará ao máximo o andamento do processo de impeachment. Depois, como fez com Dilma, abandonará Bolsonaro à própria sorte. No meio disso, há, por um lado, as investigações solicitadas ao STF pela PGR, que podem surpreender trazendo fatos novos, explosivos. Por outro, há as eleições de outubro, que são decisivas para determinar candidaturas aos governos estaduais e para a própria presidência, em 2022. E ainda há algo que preocupa: no fim do ano, Bolsonaro indicará um novo ministro para o Supremo, por causa da aposentadoria compulsória de Celso de Mello. Por só lhe restar o círculo mais íntimo, em matéria de nomes, o presidente indicará Aras ou alguém que fará seu jogo, mas que não terá sólida formação jurídica nem respeitabilidade nos meios forenses. Basta ver o perfil dos nomes indicados para as áreas e órgãos jurídicos por Bolsonaro. São medíocres. Em suma, há muitas variáveis em jogo, o que torna difícil saber qual será o ritmo de avanço do processo de impeachment. Enquanto isso, o país continuará patinando no combate à pandemia e a economia continuará travada.
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O Brasil dispõe de um arcabouço jurídico-institucional capaz de lidar com uma crise contínua e intensa como é a marca do governo Bolsonaro?
José Eduardo Faria: Surpreendentemente, apesar do descalabro administrativo do governo e da contínua instabilidade política por ele criada, nestes 16 meses de mandato, as instituições têm se revelado resilientes. A Câmara dos Deputados e o Senado, por exemplo, foram responsáveis e consequentes, nesse período. O Supremo, apesar das divergências explícitas entre alguns ministros, envolvendo matérias que afetam o funcionamento do regime democrático, também agiu e vem agindo de modo prudente e com extrema moderação. Contudo, essas instituições devem enfrentar alguns problemas internos. No caso da Câmara e do Senado, o retorno do chamado presidencialismo de coalizão, mediante a cooptação do Centrão pelo Planalto, poderá gerar tensões no Congresso. Tensões essas que serão exponenciados pela sucessão de Davi Alcolumbre e de Rodrigo Maia, nas presidências das duas casas legislativas. Já o STF, embora há tempos venha demonstrado ter uma visão institucional do país, também terá de trocar de presidente. É difícil saber como ele se comportará, tendo, de saída, de atuar num momento politicamente instável e explosivo. Na PGR, apesar de ter sido indicado para ser homem de confiança de Bolsonaro, o procurador-chefe pode muito, mas não pode tudo. Se colocar o órgão a serviço do Planalto, para tentar deterá qualquer preço o avanço de um processo de impeachment, ele corre o risco de gerar uma crise interna. Tenho conversado com procuradores da República e eles me disseram que reagirão.
Além disso, a OAB e as entidades da magistratura não sós estão atentas com relação a ameaças contra o regime democrático, como também são comandados por advogados e juízes com firmeza e capacidade de resistência. Por fim, apesar do lixo das redes sociais e das falsas notícias emanadas do “gabinete do ódio”, a sociedade civil está atenta. Mesmo as Forças Armadas, apesar de Bolsonaro vir tentado identificá-las como sendo parte de “seu” governo, parecem não ter perdido a consciência de que são forças de Estado e não milícias ou guardas pretorianas de governantes autoritários e psicopatas. Muitas lideranças militares parecem conscientes dos erros cometidos após o golpe de 64, e de cujas consequências nefastas paras liberdades públicas até hoje não conseguiram se livrar. Se quiserem preservar a imagem da corporação, que continua maculada por erros de lideranças antigas, precisam ter bom senso para não reincidir naqueles equívocos.
Creio que o Brasil dispõe de um arcabouço-jurídico capaz de lidar com uma crise continua e intensa como tem sido a marca do governo Bolsonaro. Lembro-me que a mesma indagação me foi feita em 1992, no dia em que a redação do pedido de impeachment foi concluída, graças a um trabalho primoroso feito por Evandro Lins e Silva, Fábio Comparato, José Carlos Dias e René Dotti, entre outros. E, também, em 2016, na semana em que foi acolhido o processo de impeachment e Dilma. Nas duas ocasiões, o arcabouço jurídico-institucional, apesar de submetido a situações de estresse, funcionou. Não tem por que não funcionar novamente, mesmo que Bolsonaro consiga colocar um homem seu no STF e continuar patrocinando bravatas dominicais protagonizadas por insensatos e alienados.
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Por gentileza, Professor, uma reflexão final, mais ampla, já tomando a crise institucional como premissa.
Ampliando o horizonte, creio que o país está enfrentando um problema global, que é o advento do que tem sido chamado pelos cientistas políticos de democracias iliberais. Formalmente, esses países têm sistemas políticos democráticos. Mas, tentando comê-los pelas bordas, políticos populistas e autoritários deflagram crises e criam situações de fato, procurando minar as liberdades públicas e acabar com o chamado setor público não estatal. Veja-se, por exemplo, que a PGR, agora chefiada por um procurador de confiança de Bolsonaro, acaba de extinguir a Secretaria dos Direitos Humanos. No ano passado, o governo Bolsonaro também acabou com os representantes da sociedade civil nos órgãos colegiados da administração federal. Investiu contra o princípio de respeito às minorias. Lembro-me de um discurso de Bolsonaro, em que que respeitava a democracia representativa, mas que só obedecia ao “povo”. Também passou a agredir sistematicamente os meios de comunicação e a estimular empresários a não fazer anúncios na mídia tradicional, para asfixiá-la financeiramente. Cercou-se de ministros como o da Educação e o das Relações Exteriores, que têm uma visão regressiva de ordem pública. E não tem hesitado em minar uma cultura política democrática, que valoriza a alternância de poder por meio de eleições livres e limpas. Tenta corroer instituições e valores fundamentais para a solidez dos sistemas políticos representativos. São essas iniciativas iliberais que têm de ser combatidas. Como disse antes, Legislativo, Judiciário, entidades jurídicas e sociedade civil têm sido resilientes e o arcabouço jurídico-institucional tem resistido contra aqueles que almejam miná-lo. Mas é preciso ter consciência de que essa situação pode não ser durável, a médio prazo. Principalmente se o governo convocar plebiscitos e referendos. Ou seja, mecanismos previstos pela Constituição, em nome da democracia, mas que podem ser utilizados por aventureiros, levando ao que a história nos mostra: o uso da democracia para se acabar com ela. A Covid-19 nos mostrou o impacto disruptivo das contingências — daquilo que é incerto e até improvável, mas acaba acontecendo. Se no plano externo a pandemia acarretou o que se imaginava impensável até o final do ano passado, a desaceleração da integração das cadeias globais de valor, no plano interno o desafio é conter o iliberalismo. E ele tem de continuar a ser enfrentado mesmo que Bolsonaro saia do poder, por impeachment ou renúncia, caso sua situação se torne insustentável.
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