Problemas atuais do Mercosul e algumas soluções possíveis
Paulo Roberto de Almeida
O Mercosul possui vários problemas, evidenciados ao longo dos últimos meses e anos, todos eles provocados não por deficiências de sua estrutura institucional, ou devido a lacunas em suas regulações internas, mas por descumprimentos e inadimplências dos governos dos países membros. Ou seja, o Mercosul pode até possuir falhas de funcionamento, inclusive porque ele é mais dependente de decisões personalistas do que de estudos técnicos, mas os problemas são construídos em nível nacional, não no plano multilateral.
Observando-se o itinerário transcorrido até aqui, parece muito pouco provável que algum diagnóstico realista sobre a natureza dos problemas do Mercosul seja oferecido em qualquer uma das próximas reuniões de cúpula do bloco, o que dependeria, de todo modo, de alguma disposição política, para que o trabalho técnico fosse realizado previamente.
Ainda que ceticismo seja talvez de rigor, recomendável ou até mesmo incontornável quanto à possível implementação de algumas soluções aos problemas detectados, pode-se discutir brevemente o perfil de cada um deles e o feitio do caminho a ser eventualmente adotado. Não é provável, contudo, que soluções na linha do que vem aqui sugerido sejam implementadas no futuro previsível.
1. Desvio de rota e mudança de substância quanto ao projeto original
O Mercosul desviou-se, ou foi desviado, de seus objetivos fundamentais, que eram os da liberalização comercial e da integração econômica, e converteu-se – ou foi levado a converter-se – num esquema fragmentado de iniciativas setoriais, nos campos político, social, cultural, ou outros, não coordenados e desconectados entre si.
Caberia voltar aos propósitos originais do Mercosul, ou seja, retornar ao mainstream da integração, resgatando os objetivos da liberalização comercial e da conformação plena da união aduaneira. Proclamar objetivos sociais, políticos ou culturais, em substituição ao fortalecimento das bases efetivas do Mercosul, redunda necessariamente na erosão dos seus fundamentos.
2. Introversão do bloco nos mercados nacionais
O Mercosul deixou de ser uma ferramenta facilitadora, ou um meio, para atingir determinadas finalidades, que na origem eram as da modernização produtiva dos países membros e sua inserção econômica internacional, e tornou-se um fim em si mesmo, como se a forma devesse necessariamente determinar o conteúdo. Com essa nova orientação “hacia adentro”, a integração vem sendo perseguida pela própria integração, não como um veículo condutor ou uma alavanca para a consecução de objetivos economicamente racionais.
O Mercosul foi pensado como um instrumento facilitador e promotor da inserção internacional dos países membros. Os mercados a serem perseguidos são antes externos do que os recíprocos. Caberia voltar a essa determinação fundamental.
3. Fuga para frente, diversificação política
Em face de dificuldades reais, nos capítulos mais relevantes do processo integracionista, o Mercosul foi levado a efetuar uma verdadeira fuite en avant, atitude que se desdobra num número cada vez maior de iniciativas para compensar as tarefas não cumpridas de sua agenda corrente. A criação de novos órgãos, todos meramente acessórios ou simplesmente “redistribuidores”, confirma essa tendência, que não levará necessariamente a maior coesão e coerência em relação aos objetivos fundamentais.
A título de comparação, no longo processo europeu sempre existiu a preocupação de que, a despeito de dificuldades eventuais, deveria ser garantido o chamado acquis communautaire, ou seja, o núcleo central de normas que regem o processo. Isto implica fazer o dever de casa, isto é, empreender as reformas necessárias para que as regras constitutivas do processo sejam preservadas e reforçadas. Desvios ou tratamentos excepcionais podem ser aceitos apenas no que se refere à aplicação delongada das próprias normas, não na alteração de seu sentido original.
4. Expansão arriscada a novos membros
O Mercosul foi levado a expandir de maneira talvez impensada, em todo caso de modo pouco condizente com os seus requerimentos intrínsecos, previstos no tratado de Assunção e nas decisões já adotadas, em termos de Tarifa Externa Comum, regras de origem, defesa da concorrência etc. Decisões políticas de incorporação, sem atenção aos elementos constitutivos da união aduaneira, fragilizam o edifício original e tornam mais difícil o consenso interno para negociações externas.
O princípio de base deveria ser “aberto ma non troppo”, ou seja, novos sócios devem submeter-se aos estatutos vigentes, não pretender alterar o funcionamento do clube. A simpatia não pode ser um substituto para a seriedade no engajamento formal do respeito às normas. Um entendimento claro quanto aos propósitos definidos e quanto aos objetivos fundamentais é a primeira das condições para que novas incorporações sejam decididas.
5. Mimetismo indevido e foco em supostas assimetrias entre os membros
O Mercosul foi levado a mimetizar formas de cooperação baseados em outras experiências integracionistas, no caso a europeia, como se ele devesse, sem dispor dos mesmos instrumentos institucionais de compensação de desequilíbrios, dar início a um programa completo de correção de supostas “assimetrias estruturais”, à custa de transferência de recursos de alguns países a outros. Concretamente, o único país que pode ser considerado “não assimétrico” seria o Brasil – que, na verdade, possui muito mais assimetrias internas, regionais e sociais, do que todos os demais –, ou então ele é o assimétrico absoluto, portanto encarregado de redimir os males existentes.
Não há, na história do comércio exterior, doutrinas que enfatizem a necessidade de eliminação forçada das especializações competitivas baseadas em dotações naturais ou adquiridas. Ao contrário, vantagens ricardianas sempre funcionaram, em quaisquer latitudes e longitudes e constituem fonte de ganhos líquidos para todas as partes. Verdades simples como esta podem servir para avaliar os programas de “correção” de assimetrias, cujos efeitos podem ser mais danosos do que benéficos. Reconversão deve significar adaptação aos novos requerimentos, não equalização de condições.
6. Exceções protecionistas desfiguram o Mercosul, sem reforçá-lo
O Mercosul foi levado a aceitar a introdução, ainda que parcial, de restrições comerciais que de fato fragilizam o edifício integracionista, em lugar de fortalecê-lo, como parece ser a intenção, restrições que são, no mínimo, abusivas, quando não ilegais, seja do ponto de vista do próprio Mercosul, seja do ponto de vista do GATT.
Não ceder ao protecionismo setorial deveria ser uma regra básica dos decisores. Caso se ceda à tentação protecionista, todos os demais setores vão se julgar habilitados e demandar resguardo em algum momento da trajetória competitiva. Não custa lembrar, tampouco, que salvaguardas sempre devem ser não discriminatórias, por princípio.
7. Ênfase na superestrutura e carência de implementação infraestrutural
O Mercosul padece de excessos superestruturais, isto é, uma ênfase exagerada no “cupulismo” e nas decisões políticas em torno de iniciativas em geral mais retóricas do que substantivas, em detrimento da implementação de medidas de caráter “infraestrutural”, que possam valorizar o trabalho das burocracias nacionais ou da própria secretaria técnica.
Consoante uma velha fábula, sistemas econômicos organizados e funcionais requerem um pouco mais de formigas (isto é, empresários, trabalhadores e até mesmo burocratas), para a preservação dos equilíbrios fundamentais. As cigarras podem ajudar a enriquecer a harmonia do conjunto, mas nem sempre contribuem com os estímulos adequados.
Hartford, 18 de Fevereiro de 2014
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