MERCOSUL e UNIÃO EUROPEIA: VIDAS PARALELAS?
Paulo Roberto de Almeida
Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas.
Ex-Editor do Boletim de Integração Latino-Americana.
O processo de integração na União Europeia apresenta atualmente alguns problemas de crescimento, típicos daqueles estados de transição que os cientistas “kuhnianos” chamariam de “rupturas de paradigma”. A presente fase da integração no Mercosul revela, por sua vez, dificuldades de implementação características dos momentos históricos de emergência de novas realidades econômicas e sociais, que são, como tais, sempre difíceis de serem aceitas ou integradas aos esquemas e comportamentos políticos tradicionais.
Trata-se, num como noutro caso, de típicas crises de crescimento, aparentemente superáveis com alguma dose de imaginação jurídica e várias doses de vontade política, à condição, evidentemente, que os interesses sociais e econômicos nacionais dos países membros sejam razoavelmente coincidentes.
O presente artigo, de natureza analítica e exploratória sobre o atual processo de institucionalização do Mercosul, em perspectiva comparada com o da União Europeia, persegue um duplo objetivo: por um lado, ele discute alguns dos problemas da “transição” em cada uma das regiões; por outro lado, ele tenta definir, em relação ao Mercosul, o que poderia ser feito para superar a aparente situação de desconforto político e de indefinição institucional.
A pergunta do subtítulo deste ensaio provocador tira sua evidente inspiração da obra mais conhecida do grande historiador grego do primeiro século de nossa era, dedicada a pares de biografias. Plutarco, ao contar em seu Bioi paralleloi o caráter e os nobres feitos dos soldados, legisladores, oradores e homens de Estado gregos e romanos, pretendia ressaltar, de maneira comparada, os elementos historicamente significativos e individualmente relevantes que podiam ajudar a explicar a grandeza intelectual das cidades gregas, de um lado, e o poderio militar da República romana, do outro.
A intenção do Autor, ao reportar-se a processos comparados numa abordagem metodológica aparentemente sincrônica, não é a de explicitamente retirar da experiência histórica da integração na União Europeia, quaisquer que sejam os eventuais méritos instrumentais ou as supostas virtudes didáticas de seus “padrões” integracionistas, fórmulas organizacionais ou modelos de comportamento político para a conformação institucional do Mercosul, na presente fase de transição. O objetivo intelectual é, mais simplesmente, o de, numa perspectiva diacrônica, ressaltar o fato de que, em algumas oportunidades, retornar ao passado (europeu) é por vezes a melhor garantia de que a construção do futuro (no Cone Sul) possa ser feita em sólidas bases.
1. UE e MERCOSUL: problemas atuais
Comecemos pelo “estado” da União Europeia. Após quarenta anos de progressos contínuos, alternados com períodos de sensível acalmia (ou de relativa estagnação), o processo de integração na Europa enfrenta atualmente uma zona de tempestades, derivada basicamente dos problemas seguintes:
a) estado moroso da economia, apontando para um novo ciclo de retomada de crescimento, mas, desta vez, extremamente parcimonioso em termos de geração de empregos;
b) crise latente no setor agrícola em face de novas necessidades de adaptação aos acordos derivados da Rodada Uruguai e à própria conjuntura econômica interna (limitações creditícias determinadas pela própria expansão orçamentária exagerada da PAC, a “loucura” agrícola comum);
c) problemas institucionais persistentes, com uma preocupante indefinição dos mecanismos (se comunitários ou intergovernamentais) que devem orientar a continuidade da construção europeia, tal como determinada pela agenda de Maastricht, o que pode colocar em risco a projetada conferência de revisão de 1996;
d) desigualdades regionais remanescentes e diferenças de visão política daí decorrentes, que poderão eventualmente agravar-se com o ingresso dos quatro novos países membros (os 3 nórdicos e a Áustria) ou com o previsto alargamento a novos parceiros nas fronteiras centro-orientais – países do Grupo de Visegrad (Polônia, República Tcheca, Eslováquia e Hungria) e os Estados bálticos, mais hipoteticamente a Ucrânia –, assim como a prometida abertura a novos postulantes na frente meridional (candidaturas já postas de Malta, Chipre e Turquia);
e) uma caminhada dolorosa em direção da prometida (e ainda longínqua) união monetária, com pouquíssimos países satisfazendo aos critérios de convergência definidos no tratado de Maastricht;
f) uma perda geral de entusiasmo, no seio da sociedade civil, com a própria ideia da integração europeia e o consequente surgimento de correntes declaradamente “anti-maastrichtianas” (quando não anti0europeias, como revelado nas eleições para o Parlamento Europeu na França) ou, pelo menos, favoráveis a uma “Europa dos cidadãos”, no confronto de uma suposta Europa “tecnocrática” conduzida a partir de Bruxelas;
g) as inevitáveis frustrações da (até agora inexistente) política exterior e de segurança comum e, last but not least, um atraso mais que revelador na implementação dos acordos de Schengen sobre a livre movimentação interna de pessoas.
No confronto com essa espinhosa agenda europeia de debates (ou de confrontos, alguns seriam levados a dizer), o processo de integração do Mercosul parece avançar como sobre patins. De fato, a conjuntura integracionista no Cone Sul conheceu avanços notáveis nos terrenos da liberalização comercial, dos investimentos recíprocos e da interpenetração das duas maiores economias da região, o Brasil e a Argentina. O crescimento do intercâmbio intrarregional foi várias vezes superior à taxa de aumento do comércio global em cada uma das economias, gerando um fluxo de novas oportunidades produtivas e comerciais e de iniciativas concretas nos setores de serviços jamais visto no contexto latino-americano.
Sem dúvida, caminha-se no Cone Sul – podemos desde já associar, pelo menos de forma potencial, o Chile e a Bolívia a esse mercado regional emergente – para a conformação de um espaço geoeconômico caracterizado pela divisão “racional” de fatores produtivos e por uma crescente maximização dos ganhos de bem-estar. A interpenetração de agentes econômicos nacionais e os fluxos recíprocos de bens, serviços e outros fatores produtivos tendem a superar na prática os antigos conceitos estreitamente geográficos ligados ao equilíbrio bilateral das diversas rubricas dos respectivos balanços de pagamentos.
Os representantes da classe trabalhadora seriam certamente bem mais céticos quando apresentados a esse perfil “róseo” da integração regional, mas provavelmente concordariam também em que o processo vem representando, ainda que com pequenas diferenças nacionais, inegáveis oportunidades de crescimento econômico e, portanto, de defesa global do emprego. Aqui e ali, fenômenos setoriais de desocupação temporária poderão manifestar-se, com resultados por vezes socialmente penosos (ou mesmo traumáticos) de inadaptação profissional ou de não-reconversão produtiva, mas, a médio e longo prazo, a integração deve gerar em todos os países um patamar mais elevado de bem-estar social.
Mas, nem tudo pode ser considerado como perfeito nesse Mercosul sobre patins. Alguns elementos substantivos da atual fase de transição não lograram ainda desarmar as críticas dos eternos pessimistas de plantão, nem tampouco confirmar as fundadas esperanças de seus planejadores políticos. Sem pretender traçar, como acima e a exemplo dos diversos problemas políticos, econômicos e institucionais identificados na construção europeia, uma extensa lista de dificuldades concretas, não parece descabido dizer que o Mercosul atual se apresenta como que marcado por um bloqueio político e institucional, derivado de um certo número de dificuldades ligadas à:
a) conformação de uma zona de livre-comércio devendo conviver, durante uma certa fase ainda, com controles reforçados em pontos de passagem, para evitar os conhecidos problemas da triangulação comercial;
b) implementação prática de uma união aduaneira plena, na verdade, nesta fase, uma mera “pseudo” união aduaneira, parcial, pois que convivendo com listas nacionais de exceções à Tarifa Externa Comum;
c) impossibilidade prática de coordenação de políticas macroeconômicas, em vista dos diferentes estágios de implementação dos planos nacionais de estabilização macroeconômica, o que requer uma aproximação apenas gradual (e parcial) de políticas setoriais;
d) harmonização insuficiente das legislações e regras administrativas nacionais nos campos definidos como prioritários pelos agentes econômicos e pelos “guardiães” jurídicos do processo de integração.
Acrescente-se a essa panóplia de desafios colocados aos diplomatas e demais negociadores institucionais dos países do Mercosul o quadro decorrente de uma deficiente coordenação de posições em foros relevantes de âmbito regional e mundial, ou uma postura muitas vezes voluntariosa assumida por autoridades políticas de primeiro plano numa ou noutra ocasião e chegaremos a um cenário certamente pouco confortável para os encarregados de planejar a agenda diplomática e de conduzir a atividade negociadora quadripartite nesta fase crucial do processo de integração do Cone Sul.
Teria o Mercosul esgotado suas possibilidades antes mesmo de iniciar o ciclo de sua plena implementação? Ou teria ele, segundo uma visão otimista do processo, confirmado inteiramente seu potencial econômico e político ao vincular, inarredavelmente, as estruturas econômicas e os comportamentos políticos dos países da região, conformando uma comunidade integrada de Estados cuja afirmação internacional é apenas uma questão de tempo? Com efeito, o processo de integração no Cone Sul, ao eliminar, aparentemente de maneira definitiva, qualquer possibilidade de conflito militar ou de competição estratégica entre o Brasil e a Argentina e ao suprimir a maior parte das barreiras nacionais à livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos na região, já realizou obra notável e com isso poderíamos talvez dizer que o Mercosul cumpriu, basicamente, sua missão histórica.
Entretanto, como qualquer observador poderá deduzir de uma leitura mesmo perfunctória do Tratado de Assunção, o Mercosul não veio “apenas” para instalar uma zona de livre comércio na região, ou para realizar (ainda que isso seja altamente meritório) um estado de “paz perpétua” entre os dois grandes da América do Sul. Seus objetivos econômicos e, de certa forma, políticos, são um pouco mais ambiciosos, daí a preocupação com as dificuldades práticas de se lograr o primeiro requerimento formal de um mercado comum, qual seja, a constituição material de uma união aduaneira plena, administrada de maneira uniforme. Frente a esse desafio e parafraseando um conhecido ideólogo, hoje fora de moda, também poderíamos perguntar: que fazer?
2. Desafios do momento: recuar para melhor saltar?
Na Europa, como se disse, o processo de integração foi, no passado, marcado por momentos históricos de progressos rápidos, impulsionados por grandes projetos que mobilizaram a vontade nacional das lideranças políticas em determinadas conjunturas: a coordenação dos recursos escassos para fins de reconstrução econômica no final dos anos 40, a partilha inovadora dos recursos do carvão e do aço em princípios dos anos 50, o salto comunitário em 1951 e 1957, a constituição de uma união aduaneira nos anos 60, o surgimento de políticas comuns nos setores industrial e tecnológico nos anos 70, o projeto de um grande mercado unificado para os anos 90, a partir do Ato Único de 1986, bem como a ideia verdadeiramente ambiciosa da união econômica e monetária e da cooperação política ampliada consubstanciada nos acordos de Maastricht.
Atualmente, percebe-se uma certa stasis do projeto federalista e, ao contrário, uma reação nacionalista apoiada na ideia da defesa da soberania e dos mercados nacionais, cujo testemunho mais visível é o crescimento da ideia antieuropeia em alguns países e mesmo entre correntes políticas eleitas para o próprio Parlamento Europeu.
Em todo caso, os desafios que se colocam aos dirigentes políticos europeus, neste lustro final do século XX, são certamente bem mais complexos do que os de um Mercosul ainda em fase incipiente de conformação. O Tratado de Maastricht, assinado em 7 de fevereiro de 1992 e entrado em vigor no dia 1° de novembro de 1993, após peripécias em diversos países (difícil passagem referendária na Dinamarca e na França, debates de procedimento no Parlamento britânico tornado “eurocético”, limitações de jurisdição ditados pela Corte Constitucional de Karlsruhe), traz em si, com efeito, um compromisso complexo entre vocação “federal” e realidades nacionais.
A União Europeia é definida como um “quadro institucional único” (Artigo C), mas essa união não possui uma personalidade jurídica, ao mesmo título que, anteriormente, as Comunidades Europeias. O Conselho Europeu, ou seja, a instância intergovernamental onde se encontram os representantes supremos das legitimidades nacionais, continua a ser o governo político da União. Essa realidade é o resultado de uma contradição nunca resolvida, praticamente desde o início do processo de integração, entre as impulsões supranacionais de alguns de seus ideólogos e promotores e as realidades mais prosaicas da afirmação das soberanias nacionais promovida por políticos e burocratas dos países membros.
Essas tensões políticas entre pretensões comunitárias e limites intergovernamentais manifestaram-se ao longo de todo o período e ainda hoje marcam a natureza contraditória dos arranjos de Maastricht. Com efeito, como indicam quatro conhecidos especialistas, “o debate sobre a estrutura do tratado [de Maastricht] mergulha suas raízes no passado da integração europeia, caracterizada pela oposição sempre renovada entre os partidários de uma abordagem comunitária ou até mesmo supranacional e os partidários de uma abordagem intergovernamental. Ele traduz concepções diferentes da União Europeia e se abre, em consequência, a controvérsias filosóficas e ideológicas”. Cabe, em todo caso, aos próprios europeus encontrar uma solução aos desafios por eles mesmos colocados a esse projeto fundamentalmente político que parece apontar cada vez mais longe no quadro institucional relativamente uniforme que leva, num primeiro momento, da CECA ao Mercado Comum e à CEE, depois às CCEE (ou simplesmente CE) e, finalmente, via Ato Único, à UE.
No Mercosul, ao contrário da experiência europeia, não se pode traçar uma linha evolutiva contínua, do ponto de vista doutrinal ou jurídico, ou mesmo uma simples derivação filogenética, entre os vários tratados regionais de integração, desde o Tratado de Montevidéu-1960 até o de Assunção de 1991, passando pelo de Montevidéu-1980, o bilateral de Integração Brasil-Argentina de 1988 e a Ata de Buenos Aires de 1990. Tal se dá pelo fato de não haver uma verdadeira continuidade institucional ou política entre esses diversos instrumentos diplomáticos, mas tão somente um objetivo vagamente partilhado de se aprofundar um processo empírico de integração comercial (considerado como conjunturalmente funcional do ponto de vista de projetos nacionais de desenvolvimento), por meio de mecanismos nem sempre uniformes de liberalização aduaneira ou de desarme tarifário, e respondendo a diferentes coberturas jurídicas multilaterais (GATT-1947 numa primeira etapa, cláusula de habilitação da Rodada Tóquio depois).
Num certo sentido, a integração quadripartite e tendencialmente (a qualificação se justifica) comunitária do Mercosul poderia ser considerada como um mero derivativo – um “side-effect” diriam os anglo-saxões – do processo bilateral Brasil-Argentina, inaugurado com uma forte visão “produtivista” em meados da década passada e ampliado por razões políticas, num sentido “livre-cambista”, em princípios desta. Do ponto de vista da “boa doutrina”, nada a objetar à construção jurídica traçada no Tratado de Assunção, que repete aliás, com as inevitáveis adaptações, o essencial do programa integracionista – isto é, apontando para um mercado comum do tipo Tratado de Roma – já previsto no Acordo de Alcance Parcial n° 14 entre o Brasil e a Argentina.
Embora conformando uma arquitetura que poderia ser chamada de “híbrida”, com alguns elementos conceituais inovadores, o “TA” cumpriu razoavelmente bem a primeira parte de sua missão histórica, qual seja, a de liberalizar o comércio e limpar o “entulho anti-integracionista” que dificultava a natural e necessária aproximação e interpenetração das economias argentina e brasileira. Do ponto de vista prático, o cenário é algo mais contraditório, uma vez que, quaisquer que sejam suas virtudes intrínsecas, um simples instrumento diplomático não possui a capacidade material de alterar rapidamente uma realidade marcada por décadas de crescimento irregular em bases semi-autárquicas e fortemente impregnada por disfunções setoriais que levaram, de um e outro lado do Prata, a algumas graves distorções na alocação de recursos produtivos.
Em todo caso, como foi possível constatar amplamente, ao abrigo do Tratado de Assunção concretizou-se uma fase de progressos notáveis no processo de liberalização quadrilateral, com aumentos contínuos do intercâmbio recíproco. Do ponto de vista institucional, contudo, uma vez que não foram cumpridos todos os requisitos apontados no Artigo 1° para a constituição de um “mercado comum” (e não do Mercado Comum do Sul), permanece um claro impasse quanto ao perfil político-jurídico que o esquema integracionista deve assumir na fase ulterior ao período de transição, isto é, a partir de 1° de janeiro de 1995.
Seria o caso, então, de, seguindo o conselho de velhos estrategistas de muitas vitórias militares, recuar para melhor saltar ? No caso do Mercosul, não se trataria tanto de saltar no espaço físico da integração econômica quanto no tempo histórico da integração política. A chave da questão parece situar-se na definição de uma arquitetura evolutiva para a união aduaneira do Mercosul. As próximas seções deste ensaio provocador tentarão apresentar uma perspectiva mais ampla dessa questão.
3. Back to the future in the Southern Cone?
Tentando encontrar uma solução aos problemas da reconstrução europeia nos anos do imediato pós-guerra, um grupo de trabalho financiado pela “Carnegie Endowment for International Peace”, que operava paralelamente aos esforços de coordenação suscitados pelo Plano Marshall (OECE), fez figurar num relatório preliminar algumas dúvidas quanto ao caminho a ser seguido naquela oportunidade. As primeiras conclusões eram razoavelmente pessimistas, mas poderiam, quem sabe, ser aplicadas, mutatis mutandis, ao caso atual do Mercosul (cuja sigla deveria, portanto, substituir as referências à Europa na seguinte passagem):
“Uma união aduaneira não poderia ser a panaceia para os males atuais da Europa e não seria razoável tentar fazê-la cumprir esse papel. Um estudo mais aprofundado mostraria talvez que ela poderia trazer uma contribuição efetiva à prosperidade futura da Europa, mas é preciso considerar que os ajustes iniciais acarretariam, no período imediato, sacrifícios consideráveis para as nações, as indústrias e os indivíduos, sacrifícios que teriam de ser aceitos de maneira resoluta”.
Adaptando o argumento às presentes circunstâncias, estariam “as nações, as indústrias e os indivíduos” do Mercosul dispostos a aceitar de “maneira resoluta” os sacrifícios acarretados, durante um determinado período, pelos ajustes iniciais de uma união aduaneira? Na verdade, no caso europeu como veremos, uma experiência de união aduaneira trilateral já se encontrava em curso naquela ocasião e, numa fase ulterior, poucos sacrifícios tiveram de ser efetivamente consentidos, em forma individual ou coletiva, pelas sociedades europeias engajadas em diferentes (mas convergentes) processos de integração econômica. Uma “volta” ao passado da integração europeia – uma espécie de reprise de “De Volta para o Futuro, Parte III”, em versão livre – nos permitirá, talvez, ver mais claro o futuro do Mercosul
Desde já parece evidente que a atual fase de transição no Mercosul está destinada a prolongar-se por um período adicional de pelo menos 6 anos, até que se realize, em 2001 (ou mais tarde), a prometida convergência dos perfis tarifários nacionais numa única pauta aduaneira submetida a uma autoridade administrativa integrada (ou seja, o que era basicamente o Mercado Comum Europeu por volta de 1967). A razão se situa, de um ponto de vista prático, no fato de que as estruturas econômicas nacionais dos países membros do “TA”, mesmo ao cabo de 4 “longos” anos de abertura recíproca, estão longe de constituírem conjuntos homogêneos e intercomplementares dentro daquilo que se poderia chamar de um “sistema produtivo regional”.
Do ponto de vista institucional, deve-se primeiramente reconhecer que os países signatários do Tratado de Assunção pretendiam chegar a um mercado comum não através dos mecanismos comunitários e moderadamente supranacionais de um instrumento diplomático do tipo da CECA ou do Tratado de Roma-1957, mas por meio do seria mais apropriado chamar-se de um “modelo BENELUX”, de tipo claramente intergovernamental, ou seja uma combinação da Convenção de Londres de 1944 com o Protocolo da Haia de 1947 (com umas leves pinceladas formais, é verdade, do Tratado de Roma).
Em relação à experiência do Benelux, caberia sublinhar que, a não ser pela guerra e ocupação alemã, dois de seus membros (Bélgica e Luxemburgo) conformavam uma união aduaneira ininterrupta desde 1922, que um ensaio tripartite já tinha sido tentado em 1932 e que uma união monetária estava em curso há vários anos entre os dois citados países. Não é preciso, tampouco, lembrar o fato de suas três economias serem naturalmente interdependentes, como resultado de um processo de décadas, ou até mesmo de séculos, de integração física e social, combinado a etapas de “união política” (entre a Bélgica e os Países Baixos) mais ou menos involuntárias.
Em que consistiu, basicamente, a experiência Benelux dos anos 50 e princípios dos 60 e o que ela tem de relativamente similar com o processo atual do Mercosul? Uma avaliação ponderada dessa rica experiência integracionista é hoje obscurecida não só pelo fato do Benelux, processo original e bastante avançado (para a época) de união econômica, ter sido posteriormente “diluído” no Mercado Comum europeu, mas também em virtude de uma certa “ditadura conceitual” exercida pelo Tratado de Roma, involuntariamente convertido em uma espécie de nec plus ultra jurídico e organizacional, uma estrutura “acabada e perfeita” de integração, pela qual supostamente todas as demais experiências regionais deveriam necessariamente passar para receber um certificado de “bom comportamento” integracionista.
Parece evidente, contudo, que, constando de apenas 24 artigos, o Tratado de Assunção não pode ser comparado ao Tratado de Roma, muito embora ele persiga, grosso modo, os mesmos objetivos integracionistas de seu ancestral (mas não antecessor) europeu. Diferentemente, porém, do instrumento institucional que lançou o Mercado Comum Europeu, o “TA” não comporta nenhum procedimento de tipo comunitário, nem prevê órgãos supranacionais; tampouco ele contempla aspectos normativos de alcance tão vasto como, por exemplo, a política agrícola comum da CEE, cujos parâmetros são definidos ao seio da Comissão Europeia.
Do ponto de vista comparativo, portanto, o “TA” se aproxima mais da Convenção BENELUX de 1944 (firmada em Londres, em 5 de setembro de 1944, completada pelo Protocolo de Haia, de 14 de março de 1947), que instituiu uma união aduaneira entre a Bélgica, o Luxemburgo e os Países Baixos. Esses países se propunham, resumidamente, a criar um território econômico no qual nada se oporia à livre circulação de bens, serviços, capitais e pessoas, a eliminar qualquer discriminação entre produtos e produtores nacionais respectivos, a instaurar uma política econômica, financeira, fiscal e social coordenada, a instituir uma tarifa externa comum, a estabelecer uma política comercial e cambial comum em relação a terceiros países e a promover o bem-estar econômico e social de seus povos, ou seja, exatamente os objetivos a que aspiram os Estados membros do Tratado de Assunção.
No plano institucional, a implementação do Benelux, também como no caso atual do Mercosul, deveria ser obra de conferências ministeriais – ou seja, de caráter intergovernamental – entre os três países, assim como de órgãos mistos, econômicos e técnicos, com funções meramente consultivas. A harmonização aduaneira deveria ser criada por intermédio de:
a) um conselho administrativo de aduanas, encarregado de propor as medidas de unificação das disposições legislativas e regulamentares para a percepção dos direitos aduaneiros;
b) uma comissão de litígios aduaneiros;
c) um conselho administrativo de regulamentação do comércio exterior.
Os mesmos objetivos, mas ainda não os mesmos mecanismos, são encontrados, com as diferenças que se sabe, no “TA”, que também prevê, como no caso do BENELUX, uma Comissão Interparlamentar de caráter consultivo, (mas não um Parlamento dotado de poderes específicos no quadro de uma comunidade de Estados) e um sistema original de solução de controvérsias que, no caso do Benelux, desembocou num verdadeiro Tribunal de Justiça.
O Tratado de Roma, de sua parte, constituiu uma construção regional sistemática e progressiva de um conjunto de países relativamente uniformes do ponto de vista econômico e social (França e Alemanha, os três do Benelux e, com menor ênfase na homogeneidade socioeconômica, a Itália), cujo funcionamento dependia desde o começo de instituições, senão supranacionais, pelo menos comuns e em todo caso “desnacionalizadas”: a Comissão, guardiã do Tratado e independente dos Governos, deveria velar, junto com a Corte de Justiça, pelo cumprimento das obrigações (que eram muito precisas em termos de desarme aduaneiro e de tarifa externa comum). A Comissão por sua vez remete projetos de diretivas, de regulamento ou de decisão ao Conselho, cujas decisões, durante a fase de transição para o mercado comum, também requeriam a unanimidade. Mas, as decisões e regulamentos do Conselho tinham força de lei para os Estados membros, sendo diretamente aplicáveis nos territórios destes, ou, no caso das diretivas, necessitando de sua transposição na lei nacional.
Em que medida o processo de integração no Cone Sul e o Tratado de Assunção, na prometida conferência diplomática prevista em seu Artigo 18, poderiam operar a transmutação da atual fase intergovernamental para assumir plenamente esse ideal-typus comunitário? Caberia indagar, primeiramente, se o Mercosul tem realmente condições de se definir, segundo um modelo “ideal”, como um mercado comum efetivo, ou se ele pode apenas, em vista do quadro econômico e político prevalecente, apresentar-se como um Mercosul potencial.
4. O Mercosul possível: a modest proposal
A aproximação do Mercosul ao modelo da CEE, ou seja a modelização do “TA” segundo a arquitetura definida idealmente no “TR”, deveria dar-se, em princípio, a partir da conclusão de um novo tratado de integração quadripartite ou da reforma do atual “TA”, a ser negociado e firmado no segundo semestre de 1994, quando então a instituição de órgãos comunitários definitivos significaria o ato efetivo de criação do MERCOSUL, isto é do Mercado Comum do Sul. Na verdade, sabemos que, em virtude dos problemas práticos e políticos acima apontados, o “TA” continuará a ser, pelo menos numa nova fase intermediária, essa espécie de “híbrido conceitual” consubstanciado no Mercosul atual, ou seja, uma estrutura intergovernamental de transição entre uma união aduaneira em formação e um mercado comum de tipo simplificado (como o dos primeiros tempos do Mercado Comum Europeu).
A razão, mais uma vez, é de natureza essencialmente prática e tem a ver com o grau relativamente insuficiente de intercomplementariedade entre as quatro economias envolvidas. No caso da experiência europeia, um analista, ao estudar, nos anos 50, os padrões de comércio no Benelux, descobriu que a especialização e o comércio depois da formação da união aduaneira tinham lugar mais dentro do que entre as diferentes categorias de produtos, sugerindo assim uma tendência a um comércio intra-indústria, mais do que inter-indústria. No caso do Mercosul, se está longe ainda de se ter atingido esse padrão de comércio intra-ramos e intra-firmas, muito embora a composição e o volume do comércio recíproco tenham se densificado extraordinariamente nos últimos anos. Independentemente do fato dele também servir para desviar ou mesmo criar comércio entre seus membros, o Mercosul deveria basicamente estabelecer ligações dinâmicas entre empresas dos quatro países e com outras da região. Esta é, contudo, uma realidade que, como todos os processos históricos e estruturas sociais, é muito lenta a se instalar e desenvolver.
Paralelamente, um outro aspecto, vinculado à soberania dos Estados, deve ser aqui ressaltado: a opção fundamentalmente política – mas também por razões de ordem prática – em favor da adoção de um processo de tomada de decisões por consenso, em ambos órgãos políticos do Mercosul (Conselho e Grupo Mercado Comum), torna dificilmente aceitável, na atual fase de transição, uma mudança abrupta dos mecanismos institucionais em vigor. Teria sido conveniente instituir uma espécie de decision-making mix, ou seja, operar uma combinação de mecanismos decisórios, na qual determinadas decisões (de tipo constitucional, por exemplo), requeiram a unanimidade, outras uma maioria simples, outras ainda uma maioria qualificada ou ponderada.
A experiência das Comunidades Europeias, com diversas instâncias e sistemas decisórios, oferece, nesse terreno, um laboratório avançado sobre o funcionamento dos vários mecanismos possíveis de tomada de decisão no Mercosul. Mas, não se deve tampouco esquecer que a experiência histórica da primeira fase da Comunidade Europeia demonstrou a existência de problemas no sistema decisório quando prevalecia o critério da unanimidade, o que retardou consideravelmente os processos de conformação do mercado interno e de afirmação do poder comunitário até a assinatura do Ato Único de 1986.
Quais são, finalmente, as características estruturais do modelo comunitário de integração do tipo proposto pela União Europeia? Elas estão definidas pela presença de instituições independentes dos Estados membros (Comissão, Parlamento, Corte de Justiça), dotadas de métodos supranacionais (direito de iniciativa dado à Comissão e, agora também, ao Parlamento Europeu, possibilidade do Conselho votar segundo o princípio majoritário, ou seja, superando eventuais oposições de Estados individuais), um sistema próprio de recursos e a transferência de certas competências à Comunidade. O Conselho de Ministros, integrado por representantes dos governos dos Estados membros, exerce em relação às competências comunitárias um poder de decisão separado dos Estados membros e vinculando diretamente os indivíduos e as empresas e agentes econômicos.
Parece claro que, nas atuais circunstâncias, não se poderia sem riscos políticos (inclusive de credibilidade internacional) impulsionar no Mercosul, um processo de definição supranacional de instituições e métodos de tão vastas consequências jurídicas, políticas e econômicas como as acima descritas. Não se trata tanto de escolher neste momento entre a eficiência respectiva dos procedimentos normativos de uma tecnocracia comunitária, de um lado, e a das burocracias nacionais, de outro, ou entre o “federalismo” destruidor das barreiras nacionais ao grande mercado unificado e a soberania absoluta de uma comunidade de “nações”. A questão do Mercosul está, mais prosaicamente, ligada às necessidades intrínsecas, cabe repetir, de uma união aduaneira em formação. Nesse sentido, o “modelo Benelux” é mais relevante, política e institucionalmente falando, do que o “modelo Tratado de Roma”.
A emergência de uma estrutura econômica e política propriamente “comunitária” no MERCOSUL ficará portanto para mais tarde e deverá começar a ser discutida no decurso da segunda fase de transição que terá início em 1995, sem prejuízo de que, no segundo semestre de 1994, tenham sido definidos, nos termos do Artigo 18 do Tratado de Assunção, “a estrutura institucional definitiva dos órgãos de administração do Mercado Comum, assim como atribuições específicas de cada um deles e seu sistema de tomada de decisões”. Uma vez definidos tais órgãos, os próprios termos do Protocolo modificatório que, com toda probabilidade, será agregado ao “TA” neste final de ano podem determinar igualmente uma implementação diferida no tempo, um verdadeiro back to the future que os colocaria na dependência do acabamento ulterior da união aduaneira pretendida.
Esses órgãos permanentes podem ser, a exemplo da CEE, mas não necessariamente, um Conselho político intergovernamental, dotado de poder decisório em última instância, uma Comissão de caráter supranacional – ou seja, um órgão executivo dotado de poderes e atribuições propriamente comunitárias e não mais simplesmente intergovernamentais –, um Tribunal de Justiça – que funcionaria como corte constitucional e como instância de controle e de apelo e cujos laudos teriam aplicabilidade direta nos Estados Partes – e um Parlamento comunitário (provavelmente constituído, numa primeira fase, por via indireta, isto é, a partir dos legislativos nacionais, e, numa fase ulterior, por via eletiva direta). Em todo caso, um dos poucos avanços institucionais que poderiam ser introduzidos na segunda fase de transição que deve levar à implementação dos órgãos definitivos do Mercosul seria o estabelecimento de um verdadeiro Tribunal de Justiça em forma simplificada.
A experiência histórica da Europa, tanto do Benelux quanto das Comunidades Europeias confirma que uma das tarefas mais difíceis da construção integracionista é a atribuição de poderes supranacionais a órgãos de constituição e funcionamento em regime propriamente comunitário. Na Europa essa tarefa foi facilitada pela percepção de um destino conjunto em face de uma ameaça comum – real ou ilusória, não importa aqui – representada pela União Soviética. Na América Latina, provavelmente mais do que em qualquer outro continente, os Estados nacionais e a própria doutrina do direito são extremamente ciosos em tudo o que toca à soberania nacional. Mas, a mesma experiência europeia indica também que a existência de uma Corte politicamente independente e soberana em suas decisões é também uma segura garantia de uma construção comunitária uniforme, por cima dos óbices colocados pelos Estados Partes. Com efeito, como não deixou de indicar um especialista, “os princípios constitucionais legais da Comunidade [Europeia] são basicamente encontrados nos julgamentos da Corte, e não no Tratado [de Roma]”.
A opção continuada dos países membros do Mercosul por estruturas de tipo intergovernamental, submetidas a regras de unanimidade, pode portanto ser considerada como a mais adequada na etapa atual do processo integracionista em escala sub-regional, na qual nem a abolição dos entraves à livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos, nem a instituição da tarifa externa comum, nem a integração progressiva das economias nacionais parecem ainda requerer mecanismos e procedimentos supranacionais suscetíveis de engajar a soberania dos Estados. Esses objetivos podem, nesta fase, ser alcançados através da coordenação de medidas administrativas nacionais e da harmonização das legislações individuais. Ainda que os objetivos do Mercosul sejam similares aos do Mercado Comum Europeu e, eventualmente, em última instância, aos da União Europeia, não há necessidade, para o atingimento dos objetivos que são os seus atualmente, de que o seu sistema jurídico copie, neste momento, o modelo instituido no Tratado de Roma e, numa fase ulterior, o Tratado de Maastricht: basta atribuir-lhe personalidade de direito internacional e implantar um marco de disciplina coletiva no exercício das respectivas soberanias nacionais.
A estrutura institucional transitória do Mercosul em construção não deve, portanto, determinar o formato constitucional definitivo da nova área de integração no Cone Sul latino-americano. Diferentes possibilidades permanecem abertas, dentro e fora das diversas zonas de libre comércio em projeto na região, inclusive a da própria preservação do modelo Benelux atualmente privilegiado, ou seu aperfeiçoamento através de mecanismos ad hoc de consulta e controle intergovernamentais. O melhor mesmo, antes de “fechar” o próximo capítulo diplomático do Mercado Comum do Sul, seria deixar abertas as diferentes opções institucionais para um mercado comum no Cone Sul, dentro e fora de um processo de integração regional definido como de “geometria variável”, mormente numa conjuntura política em que o Brasil passa por uma mudança de governo e, eventualmente, por novas definições estratégicas e táticas na área da política externa.
Assim como o processo de integração da União Europeia é uma das poucas “invenções” geopolíticas genuinamente originais deste século, também o Mercosul não deveria temer a ousadia arquitetônica e a inovação institucional em seu processo de integração econômica e política: afinal de contas, como demonstrado amplamente pelos “eurocratas” de Maastricht, uma das poucas mercadorias ainda disponíveis no supermercado das ideias políticas, num fin-de-siècle aparentemente marcado pelo fim da história, é a criatividade dos juristas e dos diplomatas. Se os economistas parecem ter esgotado, pelo menos no Brasil, seu estoque de planos mirabolantes, tendo-se reconvertido às modestas virtudes da estabilização ortodoxa, certamente que os “mercocratas” em gestação no Cone Sul saberão propor algumas boas ideias para testar nos laboratórios da História. O Mercosul ainda se encontra aberto à imaginação criadora.
Nota: As opiniões expressas no presente texto são exclusivamente as de seu Autor, não representando, no todo ou em parte, posições ou políticas do Ministério das Relações Exteriores ou do Governo brasileiro.
[Paris: 29/07/1994]
[Relação de Trabalhos nº 441]
441. “Mercosul e União Europeia: Vidas Paralelas?”, Paris: 29 julho 1994, 16 pp. Artigo de natureza analítica e exploratória sobre o atual processo de institucionalização do Mercosul, em perspectiva comparada com a União Europeia. Publicado no Boletim de Integração Latino-Americana (Brasília: n° 14, julho-agosto-setembro de 1994, pp. 16-25). Relação de Publicados n° 161.
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