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sexta-feira, 24 de abril de 2020

A agenda internacional e a diplomacia brasileira - Paulo Roberto de Almeida

Perguntas sobre a agenda internacional e sobre a diplomacia brasileira

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: respostas a questões apresentadas; finalidade: complemento de informação]


Tendo feito palestra e respondido a algumas questões apresentadas no decorrer da palestra efetuada em 23 de abril de 2020, para alunos do curso de graduação em Relações Internacionais da Universidade Salvador (BA), a convite do coordenador do NERI, prof. Felippe Silva Ramos, fiquei de responder às questões complementares apresentadas pela audiência (online, via Instagram), que não puderam ser abordadas no limitado tempo devotado ao evento. Os interessados em ler as notas que formulei previamente à palestra – “Pandemia global e pandemia nacional: um futuro pior que o passado” – podem acessar o arquivo correspondente disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/42836086/Pandemia_global_e_pandemia_nacional_um_futuro_pior_que_o_passado_2020_).
Passo diretamente às questões que me foram submetidas pelos organizadores. 

1. Qual o papel dos entes subnacionais nesta crise diplomática e PE? 
PRA: Cada país possui suas estruturas de governança adaptadas ao seu regime político, à sua estrutura constitucional, aos arranjos específicos de seu sistema político e também em função de sua evolução histórica. O Brasil saiu de uma monarquia unitária, fortemente centralizada – daí algumas revoltas regionais, no Nordeste, no Norte e no Sul –, durante mais de sessenta anos, para uma república teoricamente descentralizada, em todo caso funcionando sob um regime dito federativo. De fato, os Estados Unidos do Brasil, tal como constituídos sob a Carta de 1891, eram teoricamente uma federação, e sua constituição seguiu, mas apenas superficialmente, o modelo americano. Mas é evidente que a base real do país não refletia a “liberdade” concedida aos estados, dada a forte presença do Estado federal, inclusive com intervenções nos Estados. Depois da Revolução de 1930, se assiste a uma nova concentração do poder central, não sem nítido desconforto de alguns estados, a exemplo da chamada “revolução constitucionalista” de São Paulo, em 1932. Durante toda a “era Vargas”, o país funcionou sob regime fortemente centralizado, com nova abertura sob a Constituição de 1946. O regime militar (1964-1985) novamente centralizou estruturas e poderes, sobretudo no plano fiscal e das políticas setoriais, com esquemas tributários que perduraram na fase seguinte, a da redemocratização, mas com alguns arranjos específicos estabelecidos a partir da nova Constituição, a de 1988. Novamente, os entes subnacionais, nos dois níveis inferiores da União, adquirem certa autonomia, mas a concentração fiscal ainda permanece forte, muito embora a dinâmica política tenha levada a nova desagregação das políticas nacionais na esfera tributária (daí a guerra fiscal entre estados e municípios, nem sempre enquadrada nos princípios gerais de administração fiscal). 
Essa indefinição entre competências respectivas dos três níveis da federação se manifesta igualmente na área da política externa, a mais forte razão, na medida em que se trata de área – como a defesa nacional e a justiça – que requer unidade de concepção e de ação, assim como homogeneidade de representação. Ainda assim, estados e munícipios caminharam paulatinamente para uma maior latitude de ação, alguns até assinando acordos de cooperação com entidades congêneres ou países estrangeiros, e grande parte deles até instituindo secretarias ou assessorias permanentes de relações internacionais. Na condução normal dos assuntos “externos” de cada uma dessas unidades da federação, já se nota certa descoordenação entre elas, com as unidades subnacionais tentando impulsionar iniciativas e acordos de cooperação externa, com as limitações constitucionais, legais ou práticas impostas pela União, que teme perder seu monopólio ou controle sobre essas interfaces externas.
No contexto da atual pandemia, cabe registrar um aumento da descoordenação e de potenciais conflitos e contradições entre essas unidades, o que parece normal, uma vez que cada um dos dirigentes procura resolver os desafios com todos os meios colocados (ou não) à sua disposição, algumas vezes até em oposição a normas rígidas estabelecidas no plano nacional (como licenças de importação, normas e padrões de bens e serviços, questões de natureza tributária e um sem número de outros dispositivos nem sempre claros, num relacionamento nem sempre cooperativo entre elas). Essa situação reflete, na verdade, o estado de confusão que ainda reina no plano internacional, uma vez que a OMS é incapaz de estabelecer – inclusive por falta de meios, de capacidade e talvez de autoridade legítima – padrões comuns aos países (e eles são muito diferentes entre si, e no confronto com a pandemia) ou esquemas cooperativos entre eles. Essa falta de coordenação é lamentável, pois expressa justamente a ausência de uma autoridade reconhecida de governança, e abre espaço para os comportamentos predatórios do passado, como as políticas de “beggar-thy-neighbor” dos anos 1930, ou seja, empurre a crise para o seu vizinho. 
O fato é que vai ser muito difícil estabelecer um amplo espírito cooperativo seja internamente em países de estrutura federativa, seja externamente entre os países, numa conjuntura de escassez de meios e de incertezas quanto à dimensão dos desafios enfrentados. 

2. Ricupero durante sua fala na Academia versa sobre a falta de esperança do brasileiro após as frustrações/derrotas durante a história. Tendo em vista o declínio da diplomacia brasileira e o rol de reflexos internacionais que se segue, como haveria de se conservar a esperança de continuidade da credibilidade do MRE como instituição?
PRA: O Brasil não é um país “declinista”, ou seja, propenso a depressões ou estados de “alma” negativos, com os progressos exasperantemente lentos nos terrenos do crescimento econômico e do desenvolvimento social. Mas o fato é que depois de tantas crises, decepções, recessões e frustrações com a ausência de progressos reais, com o aumento percebido da corrupção, com a acumulação de problemas, entre eles a marginalidade social, o desrespeito pela autoridade e a delinquência “normal” (em aparente ascensão), o ânimo do brasileiro está mais próximo daquele personagem de desenho animado (“Oh Deus, oh céus, eu sabia que não iria dar certo”) do que do Candide de Voltaire, ou do Dr. Pangloss (Tout est bien qui finit bien). A área econômica é campeã nas frustrações cidadãs, pois nenhum outro país no mundo conheceu uma sucessão de oito moedas em três gerações, ou seis moedas em menos de dez anos. Com certo esforço, conseguimos superar nosso emissionismo selvagem, base das hiperinflações do passado, mas o crescimento tem sido decepcionante, desde os anos 80 do século passado. Uma brutal recessão, a maior de nossa história econômica, em 2015-16, afastou uma vez mais as perspectivas de uma taxa de crescimento vigorosa e sustentada no futuro previsível, e a atual pandemia promete arrastar qualquer equilíbrio das contas públicas para vários anos além de 2030. 
Em nenhuma outra esfera, porém, as decepções são tão amplas, gerais e irrestritas quanto na política externa, com a possível exceção da educação, aliás dois ministérios que apresentam chefias e políticas disfuncionais, regressivas e abertamente esquizofrênicas, em total descompasso com o que observadores racionais esperariam contemplar desde o início do que parece ser o pior governo desde o primeiro governador geral do Brasil, Tomé de Souza, desembarcado de Portugal em 1548. Não vejo, contudo, qualquer problema para o MRE enquanto instituição, pois a Casa de Rio Branco apresenta um corpo profissional de alta qualidade, preparado para conceber, implementar e apoiar uma política externa e sua correspondente diplomacia dignas de sua tradição de padrões de excelência poucas vezes vistos na burocracia governamental. O problema está inteiramente nos “controladores” da política externa e da diplomacia, seres totalmente ineptos e despreparados, aos quais responde como um boneco de ventríloquo o chanceler acidental, incapaz de formular um programa de política externo digno desse nome, inseguro quanto à sua capacidade de ação, dispersivo nas suas prioridades e, aparentemente, desequilibrado no plano pessoal. 
Se não fosse o risco de também parecer pessimista, ou até depressivo, eu até ousaria proclamar que, com os dirigentes que temos atualmente, não há nenhum risco de que possa melhorar no futuro previsível. Resta esperar que a atual crise de governança, com nítidos sinais de incompetência administrativa e até com obsessões absolutamente idiossincráticas, possa ser superada – ou encerrada – para que se possa novamente planejar um futuro um pouco menos medíocre. Mas se ouso, por outro lado, parafrasear uma estrofe de um poema conhecido do grande e irônico Mario de Andrade, de quase cem anos atrás – “O poeta come amendoim”–, poderia repetir, com ele: “Progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade”. 

3. Como atual governo interfere nos pilares da política externa brasileira identificados pelo Embaixador Ricupero: pragmatismo; cooperação regional; aposta no multilateralismo. 
PRA: O atual governo, deliberadamente ou por estupidez coletiva, desmantelou todas as bases conceituais e operacionais da política externa tradicional, a do passado, e até a política externa partidária registrada durante os governos recentes do lulopetismo, e não colocou nada de funcional em seu lugar, a não ser suas obsessões absolutamente disfuncionais sob cada uma dessas rubrica: falta de pragmatismo, substituído por um voluntarismo irracional ou inadequado do ponto de vista das demandas reais da sociedade brasileira; abandono completo da cooperação regional, sob pretexto de “desalinhamento” com governos de outras orientações políticas; abandono do multilateralismo e uma política ativa de rejeição do “globalismo” – o que queira dizer esse conceito abstrato – e de retorno a um nacionalismo anacrônico e exclusivista (com rejeição, por exemplo, do Pacto Global das Migrações, um instrumento inócuo do ponto de vista da soberania brasileira, e até positivo para um país bem mais “exportador” de seus cidadãos do que “importador” de imigrantes). 
Desde já pode-se dizer que os retrocessos conhecidos nessa área são os mais vergonhosos em quase 200 anos de política externa nacional, e de uma diplomacia tida por excelente, sob diversos critérios. O atraso nessa área segue, com um grau maior de distorções políticas e de perversidades funcionais, a tremenda deterioração já constatada em quase todas as esferas da administração pública. Não há nenhuma perspectiva de que essa perda de qualidade na substância da política externa e de que a erosão institucional registrada no plano do funcionamento do Ministério das Relações Exteriores possa ser corrigida any time soon, ou seja, no futuro previsível.

4. Em sua opinião, o quão a atual política externa brasileira impacta na "miséria da diplomacia", comparativamente a anterior do lulopetismo? 
PRA: Não há comparação possível, pois forma e conteúdo são sensivelmente diferentes entre as duas épocas, por mais que se possa indicar incongruências na chamada diplomacia lulopetista. Eu mesmo dediquei um livro inteiro – Nunca Antes na Diplomacia (2014) – e mais meio livro – Contra a Corrente (2019) – à análise crítica daquela diplomacia, mas reconheço que o verdadeiro “nunca antes” se processa sob nossos olhos, no inacreditável espetáculo da incompetência com a estupidez mais evidente, a partir do próprio chefe de governo, do seu guru preferencial, de seu filho supostamente vocacionado para os assuntos externos – todos eles altamente ineptos para quaisquer assuntos internacionais – situação que se prolonga de modo patético na inoperância do chanceler acidental, um diplomata de carreira, em corrigir os disparates de todos esses incompetentes. 
Se ouso exemplificar o que existe de diferença entre o lulopetismo diplomático e a atual diplomacia olavo-bolsonarista, eu usaria a imagem de uma dessas “pizzas” que servem de gráfico para distribuições de proporções em apresentações econômicas. Sob o lulopetismo, as deformações ideológicas ocupavam uma “fatia”, no máximo duas”, da política externa do governo, e estavam concentradas naquelas áreas de obsessão companheira: a coordenação de países do “Sul”, para se contrapor à hegemonia das potências do Norte, a aliança com regimes supostamente de esquerda (alguns deles execráveis ditaduras), a simpatia com os governos “bolivarianos”, e uma obsessão megalomaníaca do presidente, pretendendo ser o líder de coalizões de países em desenvolvimento para “mudar a relações de força no mundo” e estabelecer uma “nova geografia do comércio internacional” – palavras de Lula e de seu chanceler –, ou seja, a tal de diplomacia “ativa e altiva” em prol da projeção mundial do Brasil. Mas todo o resto – multilateralismo, regionalismo, integração, desenvolvimentismo, terceiro-mundismo, antiamericanismo moderado – tudo isso era perfeitamente comum e contínuo com a “ideologia” do Itamaraty e as linhas defendidas em sua diplomacia. 
Atualmente, mesmo se não existe NENHUMA definição explícita e clara do que seja a sua “diplomacia” – que nunca foi apresentada de maneira sistemática –, o que se tem, sobre TODA a “pizza” diplomática do olavo-bolsonarismo, é um horrível molho insosso, intragável e altamente vergonhoso para as tradições e padrões de qualidade do Itamaraty. Não se tem notícia, em toda a nossa história, de um adesismo tão sabujo e tão ridículo do Brasil a uma potência estrangeira, aliás ao seu chefe de Estado, o que é pior ainda, pois este poderá ser derrotada nas eleições de novembro, nos Estados Unidos. Tampouco se tem registro de desvios tão flagrantemente ilegais do Direito Internacional e de resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas, como registrados em votações da ONU e em casos específicos da atualidade diplomática (como por exemplo o assassinato de um líder militar iraniano no Iraque, ou o apoio explícito a um “plano de paz” do presidente Trump para a Palestina, que não foi aceito sequer por seus aliados da OTAN). 
A “miséria da diplomacia” é ainda mais evidente naquilo que eu designei, no seguimento desse título de um dos meus livros mais recente, de “destruição da inteligência no Itamaraty”, o que é evidente na intimidação do seu pessoal profissional e no constrangimento evidente dos negociadores externos em defender, em diferentes foros, posturas francamente em descompasso, e até em oposição, com posturas anteriores, responsáveis da diplomacia seguida até o final de 2018. Essa “miséria” diplomática deve continuar, enquanto ideólogos ineptos continuarem determinando as ações e intenções da política externa prática, em face da completa passividade, indiferença ou conivência do atual chanceler acidental. 

5. Paulo que conselhos você daria para alguém que quer seguir a carreira diplomática hoje? 
PRA: Sim, a que sempre dei a todos os candidatos: leia de tudo, o tempo todo, se informe todos os canais abertos de leitura, reflexão e informação, buscando adquirir um domínio amplo de todas as matérias setoriais e conhecimentos gerais que são requeridos nos concursos de ingresso, cujos padrões são anormalmente elevados, selecionando, portanto, os melhores dentre os melhores (com alguma coisa de sorte no meio dessa preparação exigente). 
O outro conselho é não se deixar impressionar com os horrores do momento atual, a EA, a Era dos Absurdos, pois em algum momento os aloprados se vão, se retiram ou são afastados pela alternância democrática normal. A situação lamentável vivida atualmente pela diplomacia brasileira retomará sua trajetória normal. 

6. Gostaria de perguntar sobre esse tipo novo de diplomacia, que foi chamado nas mídias por diplomacia das máscaras. 
PRA: Sinceramente, estou mal informado sobre tal designação, e não saberia me expressar em torno desse conceito, seja na realidade, seja figurativamente. Se e quando eu tiver uma explicitação sobre seu significado poderei oferecer minha modesta opinião pessoal. 

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 24 de abril de 2020

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