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segunda-feira, 6 de abril de 2020

O Itamaraty e a diplomacia brasileira em debate - Paulo Roberto de Almeida

O Itamaraty e a diplomacia brasileira em debate

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

[Objetivo: entrevista ao Livres; finalidade: notas para desenvolvimento oral]

 

 

Notas para entrevista concedida ao jornalista Mano Ferreira, do Livres, sobre temas da política externa e da diplomacia do governo Bolsonaro.

 

1. Professor Paulo Roberto de Almeida, eu gostaria de começar expressando toda a nossa solidariedade, em nome do Livres, e pedindo que o senhor faça um relato da perseguição que vem sofrendo no Itamaraty.

 

PRA: O que está ocorrendo atualmente no Itamaraty é absolutamente inédito em sua história quase bissecular: não existem registros, em quaisquer épocas, que um chanceler tenha antagonizado tanto a Casa de Rio Branco quanto o faz atualmente aquele a quem eu chamo de chanceler acidental, Ernesto Araújo. Eu o chamo de chanceler acidental pois que ele conquistou esse cargo não por ter se distinguido, ao longo da carreira, por eminentes serviços prestados ao Itamaraty ou à política internacional do Brasil, tornando-o uma personalidade conhecida, capaz, portanto, de reunir ao apoio da maioria dos diplomatas ou de conhecidos especialistas em relações internacionais. Não, praticamente ninguém o conhecia, fora do ambiente restrito em que circulou na própria diplomacia.

Tanto é assim que, assim que ele foi anunciado, na tarde do dia 14 de novembro de 2018, um jornalista conhecido de uma grande revista nacional, telefonou-me para saber o que eu poderia falar acerca do desconhecido escolhido. Tive de recobrar-me, primeiro de minha surpresa, para confessar-lhe, em seguida, que eu não conhecia praticamente nada sobre o colega recém promovido a embaixador (em junho de 2018). Não tinha a menor ideia do que ele havia feito na carreira até ali; foi esse jornalista que me passou o nome e endereço do blog que Ernesto havia criado para apoiar a candidatura do capitão: Metapolítica 17: contra o globalismo. Ou seja, não pude ajudar em nada esse jornalista, e me desculpei por isso.

Foi só na noite do dia 14 de novembro, e durante toda a jornada do feriado de 15 de novembro que eu consegui penetrar na mente perturbada do desconhecido colega: fiquei estarrecido ao ler as postagens, carregadas do olavismo mais exacerbado, de um pensamento de extrema direta, bastante agressivo contra o suposto marxismo, do esquerdismo inaceitável que parecia grassar e abundar no Itamaraty, e que a intenção de sua turma era extirpar tudo isso do cenário político nacional. Foi só aí, também, que eu fui finalmente ler o artigo que ele havia publicado na revista que eu editava no IPRI, os Cadernos de Política Exterior, um ano antes, “Trump e o Ocidente”, uma assemblagem de ideias confusas, em nada condizente com o espírito e os objetivos da revista, mas que eu permiti que fosse publicado porque nunca fui de fazer censura sobre ideias alheias. Eu havia visto esse artigo muito por cima, concluído que ele sequer passaria por um Conselho Editorial, e tinha deixado de lado para ler coisas mais interessantes: os apelos religiosos, a visão messiânica me assustaram.

A partir dali tomei consciência de que as coisas iriam mudar muito no Itamaraty, e, prontamente, avisei meu assessor imediato, um conselheiro da mais alta qualidade intelectual, doutorando, como eu fui, pela Universidade de Bruxelas, que buscasse um novo emprego, pois, como disse a ele, a partir de 2 de janeiro, estaríamos desempregados. Demorou um pouco mais, provavelmente porque ainda não tinham quem colocar no meu lugar. Mas, desde o dia 2 de janeiro, congelaram o programa de trabalho que eu havia preparado em dezembro de 2018, ordenaram-me não fazer absolutamente nada até nova definição das “altas chefias” quanto a um novo programa para o IPRI, e até a designação de um novo presidente para a Funag. Tive de lutar para garantir a realização de duas ou três atividades já contratadas, uma com a embaixada da França, a outra com o próprio sogro do chanceler acidental, embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, duas vezes secretário geral do Itamaraty, uma outra em que eu mesmo participaria como palestrante, o que de toda forma era incerto.

Fui, portanto, forçado a uma inatividade forçada nos meses de janeiro e fevereiro, quando aproveitei o lazer involuntário para compor um novo livro sobre a política externa, mas que não tinha nada a ver com o governo que recém começava, Mas ele ainda não tinha título, eu só achei um apropriado depois que fui exonerado da direção do IPRIContra a corrente: ensaios contrarianistas sobre as relações internacionais do Brasil, 2014-2018 (Curitiba: Appris, 2019). A exoneração veio em pleno Carnaval, e de maneira bizarra. Noite adentro do domingo de Carnaval, em torno de 23hs, cai na minha tela mais um petardo do chanceler acidental na minha tela: uma resposta muito acerba a um artigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso nessa mesma manhã, sobre a Venezuela, e a uma palestra do embaixador e ex-ministro Rubens Ricupero abordando a política externa de forma geral. 

Resolvi, então, juntar os três textos, fiz uma pequena introdução convidando os meus 18 leitores a um debate sobre a política externa brasileira e postei no meu blog: “A política externa brasileira em debate: Ricupero, FHC e Araújo”, Brasília, 4 março 2019, 18 p. Introdução, em 2 p., à transcrição de três textos relativos à política externa do governo Bolsonaro, de Rubens Ricupero (25/02/2019), de Fernando Henrique Cardoso (03/03/2019), e do chanceler Ernesto Araújo (3/03/2019). Postado no blog Diplomatizzando (4/03/2019; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2019/03/a-politica-externa-brasileira-em-debate.html). Já estávamos então na madrugada da segunda-feira de Carnaval, como registrado: “Postado por Paulo Roberto de Almeida às 01:14. Fui dormir uma hora depois, para ser acordado cerca de 8 horas da manhã, pelo chefe de gabinete do chanceler acidental, mas prefiro poupar meus leitores da conversa desagradável que ele manteve comigo. 

Pretendia dormir novamente, mas fui novamente despertado pela imprensa, que queria saber o que tinha acontecido naquela manhã de Carnaval. No início não pretendia fazer nenhuma declaração, e por isso fiz uma nota para informar sobre minha saída do IPRI: “Nota sobre minha exoneração como diretor do IPRI”, Brasília, 4 março 2019, 1 p. Explicando o que se passou. Divulgado no blog Diplomatizzando (4/03/2019; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2019/03/nota-sobre-minha-exoneracao-como.html). Nessa mesma postagem eu anunciava o título do meu livro, Contra a Corrente, que foi finalmente publicado cerca de um mês depois. A partir dali, e depois de uma semana atribulada, na qual fiquei dando entrevistas a vários periódicos, e até compareci no programa da Miriam Leitão, com o embaixador Roberto Abdenur, fui exercer o meu contrarianismo na Biblioteca do Itamaraty, meu habitual refúgio durante os anos de travessia do deserto durante o lulopetismo diplomático, quanto não tive nenhum cargo na Secretaria de Estado das Relações Exteriores, durante os treze anos e meio de duração do regime. 

No mês de maio seguinte, fui lotado na Divisão de Comunicações e Arquivo, mas apenas “formalmente”, como me disseram, e que eu não precisaria me preocupar com a catraca eletrônica, pois eu não estaria sendo controlado, pois eu não teria nenhuma função ali e poderia continuar tranquilamente na Biblioteca. Foi, portanto, o que fiz, mantive uma frequência regular à Biblioteca, apenas intercalada por compromissos de natureza acadêmica, alguns fora de Brasília, após os quais voltava ao meu labor solitário na Biblioteca. Disso resultou mais um livro, agora tratando diretamente da política externa do novo governo, pois eu dispunha de abundantes fontes primárias, declarações, artigos e entrevistas do próprio chanceler acidental, assim como as aventuras de Bolsonaro com seus grandes amigos, na verdade poucos, Trump e dois ou três líderes da extrema direita europeia. 

Em meados do ano ficou pronto este livro: Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty, primeiro em edição de autor, depois pela editora da UFRR, ambas disponíveis aos interessados (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/03/miseria-da-diplomacia-destruicao-da.html). Imagino que ele deva ter deixado o chanceler muito nervoso, mas não tive reflexos disso até o final de novembro, quando o Boletim de Serviço publicou 20 supostas faltas que eu teria perpetrado entre maio e agosto. Justifiquei cada uma delas no dia seguinte, mas sem qualquer efeito para a Administração: elas foram imediatamente indeferidas. Não preciso contar o resto, tanto porque já o fiz, numa das minhas postagens no Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/04/minhas-faltas-injustificadas-segundo-o.html). Resumo: continuaram contabilizando minhas faltas e me descontaram no contracheque de janeiro deste ano: recebi exatamente R$ 210,16. Em 13 de março de 2020, publicaram supostas dez faltas adicionais, que também justifiquei, mas que provavelmente serão mantidas numa próxima decisão da Administração do Pessoal. 

Quanto ao contexto geral da intimidação do Itamaraty contra mim, ela está explícita no artigo seguinte: “Kafka no Itamaraty” (1 abril 2020; blog Diplomatizzando; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/04/kafka-no-itamaraty-paulo-roberto-de.html), que pode ser complementado pela cronologia que estabeleci para todo o período 2003-2020 (https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/04/uma-trajetoria-diplomatica-do-limbo-ao.html). A etapa mais recente cobre minha defesa contra as arbitrariedades do Itamaraty, mediante uma ação em justiça introduzida no dia 31 de março. A luta continua...

 

2. Embaixador, também é público que o senhor sofreu perseguições e permaneceu subaproveitado durante toda a gestão do PT a frente do governo federal, ou seja, sentiu na pele os desmandos da gestão petista e agora sente na pele os problemas da gestão bolsonarista. Há alguma diferença?

 

PRA: Governos autoritários ou ideologicamente marcados não gostam de mentes independentes, que eles equiparam a dissidentes, ou até mesmo a inimigos do regime. Entendo que eu possa ter sido assim considerado pelo regime lulopetista, pois antes mesmo da vitória de Lula nas eleições de 2002, eu já escrevia artigos analisando a postura do PT em matéria de política externa e relações internacionais. Continuei fazendo isso a despeito do início do governo em janeiro de 2003, e com isso fui vetado para exercer qualquer cargo ba Secretaria de Estado das Relações Exteriores. Passei anos e anos na Biblioteca do Itamaraty, mas não fui objeto de nenhuma punição formal: apenas não fui promovido até terminar o regime, e fiquei no limbo, sem cargos formais. 

Efetuei um relato sobre esses anos neste trabalho: “Auge e declínio do lulopetismo diplomático: um depoimento pessoal” (Brasília, 26/06/2016; blog Diplomatizzando; link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/08/auge-e-declinio-do-lulopetismo.html). Esse depoimento foi incluído como apêndice ao livro Contra a corrente: ensaios contrarianistas sobre as relações internacionais do Brasil, 2014-2018 (Curitiba: Appris, 2019), mas também foi disponibilizado, em forma revista, na plataforma Academia.edu (27/11/2019; link: https://www.academia.edu/41084491/Auge_e_decl%C3%ADnio_do_lulopetismo_diplom%C3%A1tico_um_testemunho_pessoal). Uma coletânea de meus artigos sobre o lulopetismo diplomático é Miséria da diplomacia: apogeu e declínio do lulopetismo diplomático (link: https://www.researchgate.net/publication/323252005_Miseria_da_Diplomacia_apogeu_e_declinio_do_lulopetismo_diplomatico_2018), que foi complementada por uma nova introdução: “Fim do lulopetismo diplomático? Ou apenas o começo do fim?” (Brasília, 10/07/2018; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2018/07/fim-da-unasul-fim-do-lulopetismo.html).

Se existe alguma diferença entre o que eu passei sob o lulopetismo diplomático e o atual olavo-bolsonarismo diplomático ela está no ódio pessoal que o chanceler acidental parece ressentir contra mim, uma vez que, no seu irmão siamês ideológico, mas oposto, eu fui deixado no limbo, mas em paz, ou seja, pude me dedicar a meus estudos e pesquisas. O que a atual Administração inovou foi a punição financeira, por supostas “faltas injustificadas”, que pode ser um prelúdio a um eventual processo de demissão por “inassiduidade habitual”, com o objetivo de me privar de meus direitos. Nesse sentido, o Itamaraty do chanceler acidental é muito mais intimidante, num sentido mesquinho, do que o anterior, dos lulopetistas.

 

3. O Itamaraty tem condições de conter os danos causados pelo bolsonarismo à nossa reputação? Qual seria o caminho para fortalecer o profissionalismo da nossa diplomacia?

 

PRA: A política externa tem, realisticamente, um papel secundário em face dos grandes problemas nacionais. A maior parte desses problemas são “made in Brazil”, e devem receber respostas e soluções puramente nacionais. O ambiente externo tem sido, na verdade, favorável ao crescimento dos países que souberam aproveitar os impulsos e as oportunidades externas para alavancar avanços internos. A política externa poderia ter um papel relevante na agenda nacional se o Brasil fosse mais aberto ao comércio internacional e bem mais receptivo aos investimentos estrangeiros e associações com os países mais avançados tecnologicamente, fatores relevantes para projetos nacionais de desenvolvimento. Uma comparação entre os países de mais alta renda per capita e seus respectivos coeficientes de abertura externa comprovam esta assertiva. Este deveria ser um argumento suficientemente convincente para justificar um processo de abertura comercial e de maior aproximação aos países líderes do desenvolvimento tecnológico e cultural no mundo. 

Uma política externa compatível com os interesses nacionais precisaria se concentrar numa agenda desse tipo. Pode o Brasil encarar, internamente, a ampliação de facilidades no comércio exterior, com o desmantelamento de entraves administrativos e sistêmicos a uma elevação dos fluxos de exportações e de importações? Tal processo teria de ser paralelo e coincidente com um processo de diminuição da carga tributária sobre as empresas, insuportável sob qualquer critério que se examine. 

Paralelamente seria iniciado um esforço de revisão completa das bases de funcionamento da união aduaneira do Mercosul, a começar pela alternativa entre: (a) unificação de suas regras de aplicação; ou (b) negociação de um protocolo adicional ao Protocolo de Ouro Preto (POP), introduzindo a possibilidade de negociação externa individual de novos acordos de liberalização, com preservação da cláusula de nação-mais-favorecida para dentro. Sob a segunda hipótese, o Brasil poderia negociar acordos com a UE, a Aliança do Pacífico e até com os EUA, prevendo redução de tarifas, abertura a comércio de serviços, defesa de propriedade intelectual e regras estáveis para investimentos, abertos aos demais membros do Mercosul, se estes assim o desejassem. Não há muito que o Brasil possa fazer no plano das negociações comerciais multilaterais, seja no âmbito da Rodada Doha (paralisada e provavelmente moribunda). O que cabe, sim, é examinar os demais acordos plurilaterais existentes no sistema multilateral de comércio, verificar a compatibilidade com o processo (a ser conduzido) de reforma na política comercial nacional, e considerar a hipótese de aderir a esses outros instrumentos de abertura e facilitação.

A política industrial está intimamente relacionada à política comercial, e, na sua vertente externa, deveria dedicar-se a atrair o máximo possível de investimentos estrangeiros e incentivar associações com o que há de mais tecnologicamente avançado no mundo. Independentemente de o Brasil ser ou não membro da OCDE, caberia associar-se ao Comitê de Indústria dessa organização e passar a examinar todos os protocolos, códigos e demais normas voluntárias estabelecidas naquele âmbito, de maneira a colocar a indústria brasileira num contexto de plena conformidade com os padrões internacionais nessa área. Uma das primeiras tarefas internas seria retomar, reexaminar, eventualmente assinar ou renegociar todos os acordos bilaterais de proteção a investimentos, os APPIs, que foram sabotados pelos petistas antes mesmo de assumirem o governo em 2003. O Brasil descumpriu mais de uma dezena de acordos assinados com os mais importantes parceiros exportadores de capitais e de investimentos diretos. Deixou de oferecer um ambiente seguro e estável para esses investimentos, assim como deixa de oferecer um ambiente estável para os próprios empresários brasileiros do setor. Caberia trabalhar com a CNI e algumas federações estaduais mais ativas nessa área, com o objetivo de colocar o Brasil no mesmo patamar regulatório que os países mais avançados.

A política externa precisa retornar aos padrões habituais de profissionalismo e de isenção na análise técnica dos problemas que sempre estiveram afetos ao Itamaraty. Ambos, a política e a instituição, foram bastante deformados nos anos de lulopetismo diplomático, quando uma e outra foram submetidas e ficaram ao sabor das preferências e alucinações partidárias, quando não a serviço de outras causas que não o interesse nacional. O Itamaraty não terá nenhum problema em cumprir uma nova pauta na política externa, pois sempre foi muito disciplinado no cumprimento das diretrizes do chefe do executivo, mas ele necessita passar por reformas organizacionais, depois de mais de uma década de uma nefasta deformação em seus métodos de trabalho e de inversão vertical no processo decisório que sempre o caracterizou.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 6 de abril de 2020

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