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segunda-feira, 6 de abril de 2020

O nacionalismo não pode nos salvar - Hussein Kalout (OESP)

Pretendo seguir o Hussein Kalout no Estadão, como já sigo na Época.
Paulo Roberto de Almeida

Análise: O nacionalismo não pode nos salvar

Diante de desafios impostos pela pandemia, não é o nacionalismo que pode nos salvar de seus efeitos, mas a cooperação internacional por meio do fortalecimento do multilateralismo

Hussein Kalout

O Estado de S. Paulo, 6/04/202


O mundo não será mais o mesmo depois da pandemia do covid-19. Trata-se de um abalo sísmico de grandes proporções na ordem internacional construída pós-Segunda Guerra Mundial. O seu impacto não é menor do que uma guerra em perdas de vidas humanas, desestruturação de tecidos produtivos e na redistribuição mundial de poder. Embora a primeira reação dos diversos países é ter reafirmado as prerrogativas dos governos nacionais - fechando fronteiras, centralizando compras de insumos médicos, baixando pacotes econômicos -, o efeito de longo prazo da pandemia, se formos capazes de tirar as lições corretas, deveria ser o reforço da cooperação multilateral. 

Antes da pandemia, já havia uma clara crise estrutural na ordem internacional dita liberal do pós-Guerra. Os EUA, os antigos garantidores dessa ordem, mostravam insatisfação crescente com suas regras, uma vez que, de sua perspectiva, potências malignas puderam vicejar nesse contexto. 

China teria se valido de sua participação na OMC para auferir vantagens indevidas, angariando os benefícios do sistema multilateral de comércio sem arcar com os ônus. Resultado teria sido a exportação líquida de empregos dos EUA para a China e outros países asiáticos. A Rússia, por sua vez, teria aproveitado as brechas do sistema de segurança coletiva da ONU, onde possui poder de veto, e as fragilidades da Otan para mostrar as garras na Geórgia, na Síria e, sobretudo, na Ucrânia

O unilateralismo e uma visão “transacional” das relações exteriores passaram a dominar a política externa dos EUA sob Trump, que não hesitou em minar regimes internacionais - como o Acordo de Paris, o pacto migratório da ONU e o mecanismo de solução de controvérsias da OMC - para forçar mudanças das regras a seu favor. Essa mesma lógica levou à guerra comercial com a China, à imposição de sobretaxas ao aço e ao alumínio sob alegação de segurança nacional, à renegociação forçada do Nafta e à retirada do TPP, além das críticas à atuação e ao financiamento da Otan. 

Apesar da reação inicial à pandemia aparentar vitória do nacionalismo egoísta sobre a cooperação multilateral, não há dúvida de que ameaças como essa não encontrarão respostas sustentáveis no ambiente do cada um por si ou do toma-lá-dá-cá que caracteriza a política de Trump. O enfrentamento da pandemia e a reconstrução posterior demandarão investimentos públicos maciços não apenas dos governos nacionais, mas também das instâncias multilaterais. 

Se a OMS contasse com um sistema de alerta precoce mais robusto em matéria de notificação de pandemias, com sanções claras, talvez a demora da China em alertar sobre os primeiros casos tivesse sido menor, com ganhos para a prevenção e preparação em todo o mundo. Além disso, sistemas nacionais de saúde frágeis têm implicações além-fronteiras. Para mobilizar recursos, conhecimentos especializados e boas práticas, será fundamental envolver organismos internacionais como a ONU, a OMS, o Banco Mundial, o FMI, a FAO e a OMC, entre outros, com vistas a fortalecer as estruturas nacionais. 

pandemia do covid-19 é particularmente dramática porque concentra no tempo os seus efeitos, mas não é distinta, em sua natureza, de temas como mudança do clima, migrações, crimes transnacionais, terrorismo, segurança alimentar, e diversos tipos de conflitos e tensões regionais e globais. Diante desses desafios, não é o nacionalismo que pode nos salvar, mas a cooperação internacional por meio do fortalecimento do multilateralismo. No lugar da anarquia internacional do salve-se-quem-puder, apenas a ordem regida por regras compartilhadas será capaz de garantir soluções de longo prazo. 

Uma grande ameaça gera sempre o reflexo inicial de proteger os interesses nacionais por meio de ações individuais dos países. Esse nacionalismo epidérmico, contudo, terá de ceder lugar, no andar da carruagem, a uma visão mais sofisticada do interesse nacional, que, no longo prazo, estará melhor protegido por regras multilaterais e pela cooperação internacional. Não podemos repetir o erro dos anos 1930, em que a cegueira ultranacionalista dos entusiastas de políticas transacionais da época gerou apenas mais insegurança, desesperança e conflito. 

*HUSSEIN KALOUT, 43, é cientista político, professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018) e atuou como consultor das Nações Unidas e do Banco Mundial. Escreve semanalmente, às segundas-feiras.

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