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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Brasil precisa de nova política externa para deixar de ser pária no mundo - Hussein Kalout (FSP)

Brasil precisa de nova política externa para deixar de ser pária no mundo

Em 2023, relações internacionais deveriam priorizar os interesses reais do país, não buscar fantasmas para combater

Hussein Kalout

Folha de S. Paulo, 28.set.2022


O Brasil fechará o ano de 2022 no ponto mais baixo de credibilidade internacional que se tem notícia em nossa história recente. Um país que se isolou e optou por ser um pária, por obra e força de uma política externa destrutiva, guiada por visão conspiratória do mundo.

Uma política externa que está amparada em uma regressão executada desde 2019 em uma ampla gama de políticas públicas; regressão que se fez acompanhar do ataque sistemático do governo aos órgãos de Estado encarregados da execução dessas políticas.

A estratégia de terra arrasada foi implementada com graus variados de sucesso na área ambiental, na saúde, na economia, nos direitos das mulheres, no combate à discriminação racial, na gestão orçamentária, segurança, cultura, ciência, entre outras.

A política externa foi a cereja desse bolo podre, dando contribuição própria para que a perda de respeito internacional decorrente do descalabro interno ganhasse impulso adicional com decisões estapafúrdias implementadas pela chancelaria: do alinhamento rastejante a Donald Trump à antagonização gratuita com a China, de votos solitários e contrários à tradição brasileira na ONU ao abandono da integração regional, da priorização de países de importância relativa apenas por terem governos de extrema direita à ofensa infantil a parceiros fundamentais e grandes investidores no Brasil, como a França e a Alemanha.

Na América do Sul, a política externa bolsonarista cometeu o pecado capital de impulsionar a formação de coalizões antibrasileiras, transformando em inimigos do Brasil governos de países estratégicos, como Argentina, Bolívia ou Chile, simplesmente porque são governados por líderes de ideologia diversa. O pragmatismo morreu com o radicalismo dos incautos.

Impossível ser exaustivo nessa lista de despautérios no espaço de um artigo. Essa amostra serve, contudo, para ilustrar o argumento central: a necessidade de colocar em marcha, assim que possível, uma estratégia de retomada do lugar do Brasil no mundo.

Para isso, será necessário reconstruir a política externa, resgatando as linhas mestras que emanam da Constituição Federal e atualizando antigos paradigmas com vistas a responder a uma realidade internacional cada vez mais competitiva, complexa e desafiadora.

A reconstrução demanda uma política externa que não corra atrás de fantasmas a combater, mas seja pautada pelos interesses reais do país e por uma leitura objetiva da realidade regional e global. Mais do que prender-se a qualquer anacronismo de tempos que não voltam, o país precisa enfrentar as urgências do presente com um olhar posto na construção do futuro que almejamos.

Uma nova política exterior é necessária —realista, pragmática, integrada e coesa—, que não perca de vista o seu viés universalista e solidário.

A política externa de um país não se faz, obviamente, no vácuo ou desconsiderando as demandas mais urgentes da sociedade, especialmente na redução das violentas desigualdades. O Brasil precisa de uma política externa que efetivamente trabalhe para resolver problemas históricos e inaceitáveis do nosso povo, como a fome, o racismo e a desigualdade de gênero.

Precisamos de uma política externa que equilibre as demandas domésticas com as oportunidades internacionais. Não podemos nos ausentar das relações internacionais, lutar contra moinhos imaginados ou dar passos maiores que a perna. A política externa deve refletir um projeto nacional pautado a partir de uma análise dos interesses concretos em jogo na ordem internacional, em consonância com nossas mazelas domésticas.

Os exemplos do passado não devem ser desprezados, desde que não signifiquem uma camisa de força; precisam ser pensados como fonte de inspiração para inovar. Afinal, não se implementa uma estratégia eficaz de inserção internacional olhando apenas pelo retrovisor ou pensando em cenários futuros nunca alcançáveis ou irreais.

A atenção deve estar voltada prioritariamente para o que encontramos na nossa frente nessa longa estrada na busca do desenvolvimento e da influência internacional do país.

O Brasil de 2023 terá de encarar pelo menos cinco grandes urgências: a emergência climática, a ausência brasileira na sua própria região, tensões entre grandes potências com impacto sobre a economia e a paz mundiais, a necessidade de conferir eficácia ao multilateralismo diante de problemas globais e e a importância da aposta na África e na Ásia.

Cada um desses tópicos demandará muito diálogo entre governo e sociedade. As respostas podem variar, mas é fundamental formular as perguntas certas.

Partindo do pressuposto de que a política ambiental brasileira será reconstruída, é preciso perguntar como tirar vantagem do patrimônio representado pela Amazônia para gerar desenvolvimento sustentável, reclamando a nossa liderança natural na agenda da mudança do clima e da transição energética.

Na região, devemos indagar como promover arranjos de integração inclusivos, sem seletividade, para enfrentar desafios comuns (segurança, pandemias, desenvolvimento sustentável, integração física, resposta a catástrofes etc.), independentemente da cor ideológica dos governos envolvidos.

Como devemos nos posicionar diante das tensões entre EUA e China ou entre Otan e Rússia, de modo a preservar nossos interesses bilaterais sem renunciar a princípios caros à política externa brasileira?

Quais seriam as prioridades de reforma de organismos internacionais para fazer face não somente às ameaças à paz, mas também a problemas reais como pandemias, crise de refugiados, guerras comerciais, segurança cibernética, fome e insegurança alimentar?

Quais caminhos tomar e quais estratégias implementar para nos posicionarmos diante do deslocamento do centro de gravidade econômico para a Ásia e da emergência inelutável da África, regiões totalmente negligenciadas pela política externa nos últimos anos?

A resposta a essas perguntas não pode ignorar os ativos brasileiros, tanto seu patrimônio diplomático, que deve ser resgatado, quanto seus recursos humanos, econômicos e naturais, que conferem peso específico ao país na região e no mundo.

A consciência desses ativos poderá ajudar a definir áreas e nichos em que o país poderá ser mais relevante e influente, de modo a priorizar as ações que tendem a gerar mais ganhos e privilegiar iniciativas que visariam minimizar eventuais danos, em um contexto de competição geoeconômica e geopolítica acirrada.

Depois de tanto tempo como pária, será preciso recuperar a credibilidade sem se exceder, evitando qualquer exagero em relação às nossas capacidades, mas sem deixar de ousar, propor e inovar nas áreas e tabuleiros em que podemos ter mais sucesso.

Não há respostas fáceis e nem óbvias às questões aqui levantadas. O único ponto óbvio é que o mundo sente a falta do Brasil e irá celebrar nosso retorno. Virar a página da política externa destrutiva dos últimos anos é a condição indispensável da nossa volta ao mundo.

A reconstrução dessa presença, no entanto, demandará mais que repetir as fórmulas que podem não se adequar à realidade do presente: vai requerer enfrentar as urgências do momento com visão de futuro, exigindo, portanto, uma política externa que reflita não apenas o país que temos, mas também o país que queremos.

Todo brasileiro quer ver seu país ser respeitado nas relações internacionais. O respeito começa pela admiração. A política externa brasileira pode ser um importante instrumento para que povos do mundo inteiro voltem a admirar o Brasil.

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/09/brasil-precisa-de-nova-politica-externa-para-deixar-de-ser-paria-no-mundo.shtml

sábado, 6 de agosto de 2022

"A hora da diplomacia brasileira voltar a priorizar seu retorno regional": Policy Paper do Núcleo América do Sul do CEBRI


O Núcleo América do Sul do CEBRI convida para o evento de lançamento do Policy Paper "A hora da diplomacia brasileira voltar a priorizar seu retorno regional".

Data e hora: 9 de agosto, terça-feira, às 17h

Evento presencial em São Paulo, vagas limitadas.
Inscrição presencial: rsvp@cebri.org.br
Assista ao evento ao vivo AQUI 

Endereço: USP - Cidade Universitária -  Prédio do Instituto de Relações Internacionais
Avenida Professor Lúcio Martins Rodrigues, Tv. 4 e 5/2º andar, Butantã, São Paulo

Em caso de dúvidas, por favor, entrar em contato pelo e-mail rsvp@cebri.org.br




sábado, 23 de julho de 2022

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Não foi a antidiplomacia de Bolsonaro que fez o Brasil voltar ao CSNU - Hussein Kalout (OESP)

O retorno do Brasil ao Conselho de Segurança da ONU: é preciso contar a verdade; leia o artigo


Não foi o governo Bolsonaro que articulou a volta do Brasil ao Conselho de Segurança, e é um acinte dizer que este retrono é um 'eixo da política externa' de um Presidente que sempre desprezou a ONU
       
Hussein Kalout*, O Estado de S.Paulo
03 de janeiro de 2022

“Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.” – (Mateus 22:21). 

Sobre o retorno do Brasil ao Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), para o exercício de mandato de dois anos (2022-2023), é preciso contar esse conto por inteiro para preservar a verdade histórica e o apego aos fatos. Mais do que contar a verdade, compele irromper o festival de distorções apregoados pelo Presidente e seu governo em torno desse assunto.

Política externa é política pública complexa e multifacetada, de difícil compreensão pelo público em geral. Normalmente, o debate fica restrito a círculos muito específicos, que, se mal-intencionados, conseguem facilmente manipular e distorcer a natureza do jogo diplomático para fins politiqueiros.

Em vez de explicar os seus intrincados meandros, com a atenção necessária a períodos pretéritos capazes, ao percurso do processo decisório, ao conjunto de ações engendradas e à racional estratégica por trás de cada passo, pode-se facilmente criar percepções imprecisas com base num fato descontextualizado. O resultado é a subversão da verdade.

É direito inalienável do povo, do parlamento e dos centros de conhecimento saberem como se deu, verdadeiramente, o retorno o Brasil ao órgão mais relevante das Nações Unidas. Nesse sentido, urge reestabelecer a verdade, para que aqueles que trabalham com o tema (política externa) não caiam, enfim, em armadilhas retóricas, narrativas fabricadas e distorções interesseiras.

Descortinar a bizarra fábula que vem sendo sustentada pelo Presidente, pelos seus múltiplos auxiliares na área internacional e por alguns meios de comunicação, é imperativo para que as novas gerações saibam o que o Itamaraty fez pelo país no passado-recente – antes da chegada deste desgoverno.

Não foi o governo Bolsonaro que articulou a volta do Brasil ao Conselho de Segurança – clube de elite da cúpula geopolítica da ONU. É estapafúrdia e risível a tese espalhada pelos corredores da República de que o Brasil foi eleito para compor o CSNU como forma de reconhecimento “ao prestígio internacional” do governo de Jair Bolsonaro. É igualmente um acinte sem precedente dizer que a volta do Brasil ao CSNU é um eixo da política externa de um Presidente que sempre desprezou a ONU, tendo ameaçado até mesmo abandonar a organização.

A verdade histórica e os fatos são os seguintes, caros leitores:

1. A escolha de um país para integrar o Conselho de Segurança da ONU se dá por meio de uma “eleição negociada” e rotativa no âmbito de cada um dos cinco Grupos Regionais das Nações Unidas. O Grupo de Países da América Latina e Caribe, conhecido no jargão diplomático de GRULAC (criado em 1964 e formado por 33 Estados Membros), é o foro apropriado onde o Brasil apresenta a sua postulação. Após a escolha regional, a indicação segue para uma ratificação burocrática em votação no âmbito da Assembleia Geral da ONU.

2. Entre 2012 e 2014, no primeiro governo Dilma, o Brasil acabou não apresentando a sua candidatura no âmbito do GRULAC e isso fez com o que o país parasse, por assim dizer, no final da fila. O nosso turno de retornar o Conselho, somente, se daria, lá para 2033 – seria um hiato de 22 anos já que o Brasil ocupara uma das vagas rotativas no biênio 2010-2011.

3. No início do segundo governo Dilma, entre 2015 e 2016, o Itamaraty inicia um processo de diálogo com países da região com o objetivo de encurtar esse hiato. Nesse período, o então ex-chanceler Mauro Vieira, passou a prospectar quais países estariam propensos a ceder ao Brasil a sua vaga mediante apoio para outras posições-chave no âmbito do sistema das Nações Unidas. República Dominicana, São Vicente e Granadinas e Honduras foram identificados como potenciais países.

4. Abriram-se sondagens então com os três países em diferentes estágios e a partir de estratégias específicas. República Dominicana sinalizou que não pretendia ceder a sua posição – face a supostas pressões advindas de Washington. O foco prioritário passou a ser São Vicente e Granadinas. Porém, a crise política no Brasil interrompeu o ciclo de conversas e posteriormente, o país caribenho, que havia recebido forte apoio da Venezuela, decide seguir com a vaga. Restava como opção: Honduras.

5.  Em meados de 2016, o Embaixador Mauro Vieira é indicado pelo governo Temer para assumir o posto de Representante Permanente do Brasil junto à ONU, em Nova York. Assume o Itamaraty o Senador José Serra, por uns nove meses e, posteriormente, é sucedido pelo então Senador Aloysio Nunes Ferreira na chefia da Chancelaria brasileira. Com Aloysio Nunes Ferreira, o processo de negociação com parceiros caribenhos e latino-americanos avança – por volta de abril de 2017. Além de Honduras, outras possibilidades passam a ser estudadas.

6.  Em representação ao GRULAC estariam, a princípio, no CSNU, Bolívia (biênio 2017-2018), República Dominicana (biênio 2019-2020), São Vicente e Granadinas (biênio 2020-2021), México (biênio 2021-2022) e Honduras (biênio 2022-2023). Ao pisar em Nova York para assumir as suas novas funções, o Embaixador Mauro Vieira abre um diálogo direito nos bastidores com a Representante Permanente de Honduras na ONU, Mary Elizabeth Flores Flake, no intuito de testar a flexibilidade política de Tegucigalpa. Ao largo dos meses subsequentes, o diálogo entre Vieira e Flores Flake avança ao ponto em que, a parte hondurenha, revela a intenção do país centro-americano de postular a Presidência da 73˚AGNU.

7. Naquele momento, Honduras cogitava lançar a própria Flores Flake para a Presidência da Assembleia Geral da ONU – mandato que se estenderia de setembro de 2018 à setembro de 2019 – e, para que a empreitada hondurenha ganhasse robustez, o apoio do Brasil no âmbito da América Latina se caracterizava como indispensável.

8. No primeiro trimestre de 2018, o diálogo nos bastidores entre Brasil e Honduras ganha concretude e após intenso processo de negociação, a chancelaria brasileira decide franquear o seu apoio a Honduras em troca da vaga para o CSNU. Selado o acordo, em junho de 2018, Flores Flake disputa a Presidência da 73˚AGNU com a então chanceler do Equador, María Fernanda Espinosa, que acaba levando o pleito.

9. É importante sublinhar que o Brasil não teve que disputar com nenhum outro país do GRULAC a vaga para o CSNU para o biênio 2022-2023. O acordo selado entre Brasil e Honduras, em 2018, foi respaldado e respeitado por todos os países latino-americanos e caribenhos. Quando, em junho de 2021, o Brasil teve a sua indicação confirmada pela Assembleia Geral, o país era candidato único do GRULAC para a vaga. Tratava-se de um regresso ao Conselho de Segurança com o cronômetro rodando em contagem regressiva e com data certa para se concretizar. Ou seja, não se tratou de diretriz nenhuma do governo Bolsonaro.

Infinitas inverdades sobre supostas “conquistas da política externa” hão de emergir neste ano eleitoral – decisivo para o futuro do Brasil. No mercado da ilusão, a usina de mentiras venderá para quem quiser crer, uma “política externa equilibrada”, enquanto o Brasil segue implementando a mesma política destrutiva no campo das relações internacionais. O padrão de voto do Brasil nos foros multilaterais segue sendo hoje o mesmo do início do governo em praticamente todas as áreas. Afinal, o Presidente é o mesmo, o governo é o mesmo e a “política externa” é, portanto, a mesma (com retoques cosméticos aqui ou ali no discurso. Uma mudança na estampa e não na essência).

Convém não esquecer que o governo Bolsonaro desmoralizou até a medula o nome do Brasil no sistema multilateral ao longo de seus três anos de governo – não apenas por atacar as próprias instituições do sistema das Nações Unidas, mas, por tentar, permanentemente, desacreditá-las.

Política de Estado não se faz com retóricas vazias, distorções dos fatos ou via “marquetagem infanto-juvenil”, seja para subverter a verdade, a história ou para contar um monte de contos da carochinha – sobre este e tantos outros temas. O fato é que a antecipação do retorno do Brasil ao CSNU abrangeu dois governos (Dilma e Temer) e foi realizado de forma meticulosa, silenciosa e estratégica, ao largo de quatro anos (2015-2018), em defesa do interesse nacional. Diga-se de passagem, aliás, que a agressividade do governo Bolsonaro contra o multilateralismo e especialmente contra vários países da América Latina colocaram todo o trabalho feito sob enorme risco. O Brasil acabou eleito porque os demais países respeitam acordos firmados e tradições, ou seja, fomos eleitos não por causa do atual governo, que nada teve a ver com a história, mas apesar desse governo.

No charlatanismo diplomático do governo apenas acredita quem quer!

* HUSSEIN KALOUT, é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais, e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018).

https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,o-retorno-o-brasil-ao-conselho-de-seguranca-da-onu-e-preciso-contar-a-verdade-leia-o-artigo,70003940455

quarta-feira, 14 de julho de 2021

How Will Brazil Navigate the US-China Rivalry? - Hussein Kalout (Americas Quarterly)

 Americas Quarterly, Washington DC – 14.3.2021

How Will Brazil Navigate the US-China Rivalry?

Both superpowers are pivotal to the country. Choosing is not an option.

Hussein Kalout

 

Historians may one day describe the escalating rivalry between the United States and China as the most important driver of contemporary international relations. As the mightiest power in the Western world since the fall of the Roman Empire, the U.S. is fighting to preserve its hegemony. As a challenger, China aims to restore its imperial might – not only as the greatest empire in the history of the East, but as a rising global superpower in its own right.

Their battle for the 21st century has begun, and – for better and for worse – Latin America has already become a critical staging ground. China seems to have gained the upper hand in recent years as a distracted Washington channeled most of its resources into unsuccessful military interventions in the Middle East, the global “War on Terror” and confronting a resurgent Russia as well as numerous crises at home.Throughout the past three U.S. administrations, the White House and State Department assigned only peripheral importance to Latin American countries, despite occasional rhetoric to the contrary. This strategic inertia has allowed China to overtake the U.S. as the main trading partner of Brazil and Argentina – the two largest economies in South America – and some other countries as well.

In Brazil, a new and pressing question has arisen: How to navigate this growing rivalry?

An array of internal and external actors seeks to frame Brazil’s path forward as a binary choice – that is, forcing Brazil to develop a deep relationship with either Washington or Beijing, but not both. The Donald Trump administration certainly framed this as a mutually exclusive choice. Since taking office in January, the Joe Biden administration seems to perceive Beijing in a broadly similar light. In Brazil, Jair Bolsonaro’s government has welcomed and even encouraged this Manichean view.However, it has met with stiff resistance in Brazil’s National Congress, business sector, and in the Foreign Ministry, where many believe that making such a binary choice violates the Brazilian national interest and reduces Brazil’s leeway amid the intensifying geostrategic clash of titans.

The magnitude and complexity of Brazil-U.S.-China relations are immense. For Brazil, navigating these relationships is not about making a binary choiceIt is about fine-tuning the nation’s indispensable relationships with the two greatest powers in the world.

This may be particularly true at a time when Brazil’s economy, stagnant or shrinking for the past decade, cannot afford to alienate large partners. In the trade sphere, Brazil’s dependence on China is significantly greater than its dependence on the United States. Brazilian exports to China in 2020 were more than triple its shipments to the U.S.

 

Of the 15 most exported Brazilian commodities, China is the main importer of 11, while the U.S. is the main importer of only twoMoreover, U.S. companies are the main competitors of Brazilian companies in the Asian and European markets. And, of the total investments in infrastructure in Brazil – a fundamental part of the country’s continued development – China by far surpasses the U.S., even though the latter continues to be a much larger source of foreign direct investments overall. These numbers reveal Brazil’s deep dependence on China when it comes to structural elements of the economy such as job creation, income, credit and investments.

But of course, trade and business cannot be the only aspects of Brazil’s relationships with foreign powers. The equation facing the country’s foreign policy thinkers is in fact much more complex.

 

A complex relationship

 

U.S.-Latin America relations have gone through numerous ups and downs, despite generally positive sentiment and some improvements in recent years. Today’s political classes are still scarred by the history of U.S. interventions in Latin America, often involving the overthrow of democratically elected governments such as Salvador Allende in Chile and João Goulart in Brazil during the Cold War. More recently, the Trump administration resuscitated the idea of the Monroe Doctrine while making threats of military intervention in Venezuela and lending support to Jeanine Áñez’s coup in Bolivia. Even among friends, the U.S.’ record as a dependable, trustworthy power has been put in doubt because of its history of betraying and abandoning its former allies. The examples in this list are plentiful: Saddam Hussein in Iraq, the Kurds in Syria, and the criticism of NATO and Europe, to name but a few. In contrast, Latin American governments tend to view China as both more consistent in its relationships and more prone to boost the region’s economies without staining its hands with the blood of their people.

At the same time, many Brazilians retain an admiration for the Founding Fathers of the United States – particularly for their construction of a nation based on the rule of law, the unequivocal separation of powers, democratic solidity and an enviable educational system. Similar admiration is not generally expressed towards China, in part because its long and storied history is not widely known or studied in Brazil. China is seen by the public as a faraway, mysterious, and exotic country.

The Brazilian view towards Washington, of course, is not monolithic. Internal political divisions frame many of the differing opinions on how the nation should interact with the United States. For instance, the Brazilian left is divided into two currents. The most radical see the U.S. as a constant threat to regional political stability. The influence of this group in Brazilian policymaking, however, is practically nonexistent. The second current, with a more pragmatic view, understands that despite having valid reasons to distrust the U.S., it is necessary for Brazil to maintain good relations with Washington. This latter group believes that the two countries have considerable room for cooperation, particularly in the fields of human rights, education, trade, and the environment.

We can identify two distinct views on the political right as well. The first, a minority position, claims that the subordination of Brazilian interests to those of the U.S. during the Cold War saved Brazil from “communism” and domestic subversive elements – ostensibly including in that group anyone who opposed Brazil’s authoritarian military regime. Juracy Magalhães, a well-known conservative politician in Brasília and foreign minister under the military regime, had a famous phrase that is sometimes still invoked by adherents of this belief: “What is good for the U.S. is good for Brazil.” Today, the most prominent proponents of these sentiments are President Jair Bolsonaro and his supporters. For them, a close and friendly relationship between Brasília and Washington is not enough. They believe Brazil should instead pledge unconditional alignment to the U.S. policy, something Bolsonaro sought to create while Trump was in office.

The less radical viewpoint found on the Brazilian right – and, I believe, the more commonly held one, frames the relationship with the U.S. as a source of prosperity, opportunity, and development, but still tends to harbor some reticence about the supercilious behavior of the U.S. towards developing countries. Adherents to such a view tend to favor a close bilateral relationship, but not one of automatic and unconditional alignment with Washington.

Critically, the radicals on the left and the right alike constitute only a minority. Taken together, those who prefer unconditional alignment and those who advocate for staunch U.S. containment may represent the views of less than a fifth of the Brazilian population. This minority can be noisy and disruptive, though. The right-wing extremists were able to gain decisive influence in the decision-making process, as we have seen under the Bolsonaro administration and in the beginning of the military cycle inaugurated in 1964. The other two subgroups, more realistic and pragmatic, represent the majority viewpoint of those who find themselves on the right and the left of the political spectrum. The more moderate positions are even stronger in the most influential segments of Brazilian society, such as the private sector, parliamentarians, the military, diplomats, journalists, academics, scientists and public intellectuals. This is not a guarantee that a more moderate view will always prevail, but it is a powerful undercurrent force that should be reckoned with.

Global stage

For Brazilian state institutions, whose raison d’être involves upholding the country’s national interest, the current majority assessment holds that Brazil should not treat the two relationships as mutually exclusive – now or in the future. Any effort to determine a possible preference between the U.S. and China should be based on past practical experiences, objective data, and the treatment of Brazil by each power.

In the view of the Brazilian diplomatic corps, for example, the relationship between Brasília and Washington over the last 20 years has not lived up to expectations. During this period, Brazil has waited for a recognition that has never materialized. The U.S. has consistently supported rivals against Brazilian candidates in elections to multilateral forums such as the WTO and FAO. The Chinese, on the other hand, offered their votes to the Brazilian candidates in these elections. Furthermore, U.S. support for Japan and Germany, and more recently India, to hold permanent seats on the United Nations Security Council in a hypothetical reform has disappointed Brazilian diplomatsBrazil’s own aspirations for such a position were never recognized or supported by the United States. In the Brazilian view, this unequal treatment constitutes a reminder that the United States does not consider Brazil to be a power worth respecting.

Although China has never expressed explicit support for Brazilian claims to become a permanent member of the UN Security Council, Beijing has sought to treat Brazil as a rising power comparable to China – even when China is undoubtedly the more powerful nation. The Chinese establishment, in the last 20 years, has been able to more accurately understand how the hearts and minds of Brazilian public agents work. This is not to say that China never practices protectionist measures or blocks Brazilian interests, but the way in which these actions are carried out and the language used to express them are important. The experience of high-level diplomatic missions to Beijing tends to be more respectful and honorable when compared to the treatment offered by Washington – especially when considering the latter’s far more ceremonious conduct towards officials from nations such as IndiaDeepening diplomatic connections between Brazil and China are reflected in the frequent high-level interactions between the two countries as well. In the last 20 years, the number of Brazilian head of state missions to Beijing was at least double the number of missions to Washington.

Washington’s hesitation to endorse Brazil’s accession to the OECD is an additional example, and another instance appeared when the Bolsonaro administration attempted to support a Brazilian candidate for the presidency of the Inter-American Development Bank. This move was unsuccessful because the United States chose to support Mauricio Claver-Carone, Donald Trump’s candidate for the regional forum. In the view of the Brazilian diplomatic community, this was an unmistakable sign that the U.S. did not have much interest in supporting even the most pro-U.S. Brazilian government in history. The move to support Claver-Carone not only undermined Brazilian regional leadership in the Latin American context, but also reignited the classic distrust of the region’s countries towards the United States.

 

5G conundrum

 

Another important factor is the incessant pressure that Washington has placed on Brazil and other countries to disallow Huawei’s participation in the bidding process for 5G networksFollowing such commands would completely ruin Brazil’s relationship with China. Not to mention that Washington’s warnings of Chinese espionage and data theft – risks that Brazil could potentially be exposed to – seem wildly hypocritical in the face of the U.S. espionage operation against the former Brazilian president, Dilma Rousseff, revealed to the public in 2013. This pressure and the hypocritical argument used to justify it have seriously damaged the U.S.-Brazil diplomatic relationship, in the eyes of Brazilian establishment officials.

This is not to say that past and present Chinese misdeeds are ignored in Brazil. Brazilians certainly view the Chinese government as authoritarian, a regime that engages in serious persecution of minorities and violates the sovereignty of its neighbors. Many Brazilians know that Beijing may have not-so-friendly policies toward Africa (the so-called debt trap) and has supported the Maduro regime, albeit not as decisively as Russia. However, in the Brazilian view, the Chinese government has not tended to invoke moralistic, holier-than-thou rhetoric in the same way the U.S. often has. Despite China’s flaws, Brazilian leaders believe today that they can maintain a pragmatic stance towards Beijing – a decision motivated by much of the same pragmatism that leads Washington to defend allied dictatorships in the Middle East in order to safeguard U.S. economic and political interests.

It is important to remember that Brazil has always offered unwavering solidarity in the most heart-wrenching moments of American national life, such as the Second World War and the terrorist attacks ofSeptember 11. Brazil fought with the Allies with Brazilian soldiers serving alongside American troops in the fight against Nazi forces in Italy. Military cooperation with the U.S. and its allies has long been a cornerstone of Brazilian doctrine. In the eyes of the Brazilian military, the alignment of interests with the U.S. for defense cooperation is infinitely greater than that between Brazil and other powers such as China and Russia. Partnership with these strategic rivals of the U.S. is extremely limited – and even during left-leaning Brazilian governments, this preference remained unchanged.

The U.S. Senate recently passed a unique bipartisan bill – the Innovation and Competition Act – designed to combat China’s growing economic influence around the world. But Washington’s new strategy could also benefit from incorporating a renewed emphasis on Latin America – and especially the largest economy in the region, Brazil. Increasing the bilateral trade between the two countries is certainly possible, but it will ultimately depend on how the U.S. chooses to navigate the issue in the coming years – perhaps, for instance, by gradually eliminating commercial barriers for Brazilian goods, helping to revamp Brazilian infrastructure, connecting Brazilian innovation ecosystem with American tech hubs, and providing incentives for renewable energy and sustainable development. 

When considering areas of potential cooperation, environmental issues have often been an area where visions and goals have overlapped. The current situation is an obvious exception, with the Biden administration making combating climate change a vital priority, while the Bolsonaro government has adopted decidedly non-environmentally friendly policies fueling the destruction of the Amazon. But looking more in the medium term, it is important to emphasize that in this field in particular, Brazil has opportunity to cooperate both with the U.S. and with China.

Vaccine diplomacy will continue to be another important factor. So far, Brazil has made better progress with China following the partnership established between the Butantã Institute and the Chinese company Sinovac Biotech. As the pandemic continues to wreak havoc in Latin America, Brazil’s dependence on China has become increasingly evident. The import of input materials to produce the CoronaVac vaccine in Brazil depended exclusively on supplies from China. The Biden administration has recently made progress in expanding its provision of vaccines around the world, but China still holds a lead in the realm of vaccine diplomacy in Brazil and Latin America in general.

In the last two decades, Brazil’s relations with China have evolved in an unprecedented manner. But these trends are not set in stone. It is time for the U.S. to make up for lost time and bet on a closer relationship with Brazil to reverse this situation in the two decades ahead. While China values ??Brazil among its international priorities, the U.S. continues to attribute low strategic relevance to the country. If this dynamic persists, Brazil will have little choice but to deepen its relationship with the dragon at the expense of the eagle. And trying to impose a binary choice on Brazil, as the Trump administration attempted to do, will not succeed in the long run. The Brazilian governmental and economic establishment will not opt ??for the exclusion of one of the two most powerful countries on Earth. To do so would run contrary to Brazil’s long history of pendular diplomacy – carefully fostering relations with both sides of an international competition for as long as possible to increase Brasília’s strategic leverage. The best strategy, and the one that respects the Brazilian national interest, is certainly one that involves a balanced relationship between both the United States and China. But the precise nature of that balance will depend in large part on how Washington chooses to proceed.

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Kalout is a political scientist and research scholar at Harvard University and a former special secretary of strategic affairs of Brazil (2016-2018)

terça-feira, 16 de março de 2021

A inércia do Congresso Nacional sobre a política externa não pode persistir - Hussein Kalout (OESP)

 A inércia do Congresso Nacional sobre a política externa não pode persistir

Apesar da Constituição Federal haver consignado ao presidente a supremacia no processo de formulação da política exterior, ela definitivamente não o autoriza a erodir a imagem do país no mundo

Hussein Kalout

Estadão | 15/3/2021, 9h

A elite brasileira em seu respectivo espectro econômico, político e intelectual sabe que a atual "política externa" não prima pelos predicados necessários para ser tipificada como uma política de Estado e tampouco se encontra a serviço do interesse nacional. Após dois anos de cacofonia diplomática, as vísceras da incompetência dos que comandam o destino das relações internacionais do país foram expostas para quem quiser julgar.

Da subordinação dos interesses brasileiros ao derrotado governo de Donald Trump à inexplicável "missão científica" brasileira à Israel (classificada pelos diplomatas de "missão Borat"), conclui-se que o presidente da República nunca deixou de instrumentalizar o Ministério das Relações Exteriores em benefício exclusivo de seu projeto ideológico e logo de seus pretensos objetivos eleitorais.

A criação de falsas percepções sobre o que seriam os supostos objetivos do Brasil no mundo possui como propósito elementar confundir o cidadão, especialmente quando alude à canhestra defesa da "democracia e das liberdades". A exploração de pontos de fricção com países vizinhos e parceiros estratégicos tem sido uma estratégia deliberada para fabricar posições políticas e travesti-las em ações em defesa dos interesses da população.

Exausta, a sociedade brasileira já não consegue assistir às ginásticas retóricas do Planalto e do Itamaraty, para justificar as inexplicáveis contradições. É sob esse arquétipo que vimos os ataques à China, à Argentina e até sobrou uma plêiade de grosserias ao mandatário dos EUA e ao seu partido político.

Um dos vetores que caracteriza as políticas neopopulistas do governo Bolsonaro é a sua plena submissão à ditadura do algoritmo. Isso significa que o processo decisório que comanda as políticas públicas é regido, simplesmente, pela volatilidade de manifestações nas redes sociais. São as redes que determinam, enfim, a oitava do tom do discurso presidencial e, por conseguinte, a sua ação – vide os efeitos práticos e psicológicos do recente discurso do ex-presidente Lula sobre o governo.

Corrigir as graves distorções geradas pelo governo Bolsonaro tornou-se uma questão de emergência nacional. O neopopulismo praticado no país está dilacerando no nosso sistema de saúde e o nosso capital diplomático (com o descalabro sanitário dominando o Brasil impiedosamente, a CPI da Pandemia se torna cada vez mais urgente e imperativa).

No passado recente, a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado da República se limitou a uma atuação burocrática – salvo exceções pontuais. Na Câmara dos Deputados, por seu turno, essa mesma comissão foi transformada em um braço contíguo da diplomacia oficialista.

A função precípua de ambas as comissões é o de zelar pelo verdadeiro controle constitucional sobre as atividades da política externa, buscando identificar riscos aos interesses da sociedade, às fundações econômicas do país e à própria segurança do Estado brasileiro – atuando para corrigir as distorções nos rumos das relações do Brasil com o mundo. 

Políticos experientes e influentes, os recém empossados presidentes das respectivas Comissões de Relações Exteriores do Senado da República, a senadora Kátia Abreu, e da Câmara dos Deputados, o deputado Aécio Neves, entendem e conhecem com propriedade a dimensão dos danos políticos e dos prejuízos econômicos impingidos pela atual diplomacia ao Brasil e ao seu povo.

Apesar da Constituição Federal de 1988 haver consignado ao chefe do Executivo a supremacia no processo de formulação da política exterior, ela definitivamente não o autoriza a erodir a imagem do país no mundo ou a agir de forma desimpedida, desobrigando-o de quaisquer prestações de contas.

O poder legislativo é o guardião do interesse nacional e autoridade legitima para impor respeito ao regime de freios e contrapesos, quando houver excessos ou distorções no exercício da atividade pública internacional pelo poder executivo. Seria um enorme desserviço ao país manter o curso da inércia e vedar os olhos para essa responsabilidade.

https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,artigo-a-inercia-do-congresso-nacional-sobre-a-politica-externa-nao-pode-persistir,70003648157


segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Os desafios de Biden para América Latina - Hussein Kalout

 Os desafios de Biden para América Latina

Região compõe encadeamento de temas que são fundamentais para os interesses dos EUA no contexto global – como meio ambiente, migração e contenção do poder chinês

Hussein Kalout

Estadão | 7/12/2020, 15h

 

Uma das indagações que perpassa a mente dos líderes dos países latino-americanos é o de tentar decodificar o grau de importância que a região terá no mapa cartesiano da política externa do futuro governo dos EUA. O presidente eleito, Joe Biden, repetirá os desatinos da administração Trump para a região ou oferecerá uma nova perspectiva sem ameaças militares (invadir a Venezuela) ou escolhas de caráter binário (EUA ou China)? 

Biden herdará um país dividido politicamente e em meio a uma grave crise sanitária. Sua missão será, por um lado, minorar as feridas internas após a fratricida eleição, por outro, recompor o deteriorado arco de alianças dos EUA no mundo. 

A América Latina, em si, talvez não seja estruturalmente importante para o sistema nervoso da diplomacia americana. Porém, a região compõe encadeamento de temas que são fundamentais para os interesses dos EUA no contexto global – como meio ambiente, migração e contenção do poder chinês.

Nos últimos quatro anos, a região foi instrumentalizada como entreposto da “guerra cultural” ao largo do governo Trump. O combate ao Castro-Chavismo culminou no desmantelamento do reatamento das relações diplomáticas Washington-Havana e ressuscitou o perigoso discurso do uso da força militar – como meio de coerção – contra alguns governos na região. A relação EUA-América Latina mais recuou do que avançou. 

A Venezuela tornou-se o alvo predileto do governo Trump. Não cabe aqui negar, por obviedade cristalina, o tremendo déficit democrático gerado pelo governo autoritário de Nicolás Maduro. Mas, a invenção de Juan Guaidó – o autoproclamando presidente venezuelano – e a fracassada tentativa de implosão o regime podem vir a ser contabilizados como um dos maiores erros da política externa dos EUA para a América Latina desde a invasão da Baía dos Porcos, em 1961. 

Se o tecido social venezuelano já estava dilacerado, a administração Trump – com a ajuda dos governos do Brasil e da Colômbia – contribuiu para o recrudescimento do regime chavista. O fracasso de sua abordagem política e a incapacidade do Grupo de Lima de oferecer soluções razoáveis para o impasse interno, somente ampliou o fosso e de quebra permitiu que a Rússia consolidasse a sua mão sobre Caracas. O resultado da eleição para a Assembleia Legislativa venezuelana, com maciço boicote da oposição, é puro reflexo daquilo que já estava ruim piorar ainda mais.  

Para agravar a conjuntura continental, a falecida OEA faleceu novamente graças a obra do governo Trump – com o beneplácito dos governos mais afoitos do hemisfério. Ao invés de atuar como instituição proponente de soluções e construtora de diálogos para dirimir conflitos, o que vimos foi a cooptação da OEA como um instrumento de pressão ideológica – não irei me debruçar aqui sobre o papelão vexaminoso exercido pelo secretário-geral da organização no caso boliviano.

Contudo, a pedra de toque para colocar de joelhos o sistema multilateral hemisférico foi a ruptura do consenso em torno da escolha do presidente do BID. Os países latino-americanos viram a administração Trump, com a dedicada ajuda do governo brasileiro, perder o único posto multilateral a eles confiado – e tudo isso como parte da “guerra cultural”.

No afã de deter a expansão dos interesses da China na América Latina, o governo Trump não ofereceu alternativas substantivas economicamente aos países da região. Ampliar investimentos, absorver a pauta exportadora ou aprofundar as relações comerciais com os países latino-americanos nem sequer compôs a sua estratégia. O que se viu foi a ameaça da construção do muro junto à fronteira do México, açodamento na política de imigração e a imposição de barreiras tarifárias contra vários setores produtivos dos países da região – e entre os quais o próprio Brasil, apesar de toda a sua subserviência.

Se o governo Trump errou a mão em pautas como o multilateralismo regional, política migratória, o dilema venezuelano e o grave cochilo com a destruição do meio ambiente, a vindoura administração Biden estará diante de importantes desafios diplomáticos junto aos países latino-americanos.  

Será necessária uma estratégia de reversão de boa parte dessas políticas. O comércio não pode ser assimétrico, os países latino-americanos não podem ser postos como reféns de uma escolha binária entre EUA e China, e o lançamento de uma vigorosa agenda global voltada para o desenvolvimento sustentável e a proteção do meio ambiente requer um diálogo profícuo com os países amazônicos – e não a sua exclusão. Em sua maioria, os países latino-americanos respiram aliviados com a chegada de Joe Biden à Casa Branca, porém, a construção de uma agenda positiva para a região depende, fundamentalmente, do como Washington fará esse trabalho de reversão e a partir de que parâmetros deseja sedimentar as suas relações com os países do hemisfério. 

* HUSSEIN KALOUT, 44, é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018). Escreve semanalmente, às segundas-feiras.

https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,analise-os-desafios-de-biden-para-america-latina,70003543035

sábado, 5 de dezembro de 2020

A diplomacia da pólvora - Hussein Kalout (Estadao)

A diplomacia da pólvora 

Visão sectária e irracional promove o desmoronamento da diplomacia brasileira e traz prejuízos aos interesses nacionais 

Hussein Kalout 

O Estado de S.Paulo02/12/2020 

 Como no clássico de García Márquez, antevíamos o declínio inevitável do Brasil nas relações internacionais. A crônica de uma morte anunciada, no caso, foi a crônica da morte da política exterior do país. Diferentemente do realismo mágico da prosa magistral de Gabo, contudo, o que assistimos foi ao surrealismo aplicado à realidade, com uma anti-diplomacia capturada por visão sectária e operada em nível de rudeza e irracionalidade sem precedente. 

Em contraste com a ficção, a “obra” da política vigente não diverte nem maravilha, mas constrange e envergonha, não sem causar elevados prejuízos ao interesse nacional nos mais variados tabuleiros. Em queda livre, o país vai se tornando espécie de “rejeitado” universal. 

No início deste ano, Fernando Henrique Cardoso, Francisco Rezek, José Serra, Celso Lafer, Celso Amorim, Aloysio Nunes Ferreira, Rubens Ricupero e este escriba nos juntávamos para denunciar o caráter inconstitucional da política externa. Sublinhávamos ponto a ponto as violações ao artigo 4˚ da Constituição Federal (inclusive ao seu parágrafo único). 

Publicado no dia 8 de maio de 2020 em quatro grandes jornais do país – O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, O Globo e Valor Econômico –, o artigo exortava o governo Bolsonaro e o seu ministro do exterior a mudarem com urgência o rumo da política exterior do país antes que os prejuízos, que já eram palpáveis, se tornassem irreversíveis. 

Àquela altura já prevíamos o fundo do poço, porém, não imaginávamos que poderia ser mais fundo e mais obscuro do já era. Nos últimos dias, o presidente da República e seu círculo íntimo se encarregaram de esfolar, em carne viva, a nossa diplomacia para quem quisesse ver e ouvir. Em um dia justificou-se como ato legítimo o ataque desferido contra China e, em outro, sublinhou-se que o novo presidente dos EUA foi eleito de forma fraudulenta. É difícil imaginar que haja uma grande estratégia por trás de toda essa incontinência verbal anti-diplomática. 

Se já estávamos isolados pelos europeus, agora o governo brasileiro ampliou o arco de desafetos – agregando apenas e tão somente EUA e China a esse conjunto de forças internacionais. A sacada genial, o drible desconcertante, a manobra perfeita para quem quisesse transformar o Brasil num pária concretizou-se à perfeição, sob aplausos da claque de adeptos de teorias da conspiração e extremistas de toda sorte.

 Existem dois problemas estruturais de como o Planalto processa os seus interesses e como guia a sua ação em matéria internacional. Em primeiro lugar, na visão do núcleo duro do círculo presidencial, o interesse do Estado brasileiro e o seu projeto de poder são moeda que compõem a mesma face – ou ao menos se busca convencer parte do eleitorado brasileiro com essa fábula. 

Em segundo, a política externa em si pouco importa se ela não for um artefato gerador de ressonância para fortalecer esse projeto de poder e, consequentemente, mobilizar a minguante base de apoio e preservar adeptos. Fica plasmado, cada vez mais, que o compromisso do governo brasileiro nas relações internacionais não é de Estado para Estado, mas, sim, da relação daquele Estado para com o projeto de poder do presidente. Ao cabo, não é o bolsonarismo que precisa se adaptar aos interesses estratégicos da política externa do Estado brasileiro, senão, a política externa é que precisa se adaptar aos desejos da base bolsonarista. 

Esses dois problemas explicam, em certo sentido, a forma como a relação com os EUA e com a China são guiadas. Ao público menos ilustrado, se procura vender a animosidade com os chineses como uma ação de benfeitoria em prol da proteção do povo brasileiro, já que o país asiático é (em sua visão) disseminador da covid-19, do comunismo e de padrões políticos antidemocráticos. 

Esse mesmo público não possui os pré-requisitos necessários para discernir de forma crítica sobre a ambiguidade de tal discurso. Alguns podem até se perguntar por que então deveríamos seguir vendendo produtos agrícolas à China ou hesitar em excluir os chineses do 5G se, de fato, a narrativa sobre o gigante asiático corresponde inteiramente a verdade, certo?! 

A incongruência também encontra esteio na própria relação com os EUA. Quando se percebeu que a derrota de Trump era iminente, o incumbente do Itamaraty tentou reformular o discurso em uma frustrada tentativa de aproximação com o time do Presidente-eleito, Joe Biden – enfatizando que o Brasil sempre buscará uma relação estável e produtiva com Washington independente da cor do governo (razoável!) – não funcionou! Esqueceu-se que o núcleo duro do círculo presidencial passou dias a fio demonizando Biden para a base bolsonarista – tracionando a tese de fraude na eleição e impulsionando teorias conspiratórias em que o próprio presidente Biden era colocado como alguém contra os valores religiosos e rotulando-o como simpatizante do comunismo. 

'O grau de rudeza é ainda mais estonteante quando na gramática diplomática presidencial propaga-se a estapafúrdia tese de que o Brasil não precisa da China, mas é a China que precisa do Brasil. Esse mesmo padrão de pensamento guia a posição do Planalto em relação ao Biden: são os americanos que precisam do Brasil para bloquear a participação chinesa do 5G e não o Brasil que precisa dos EUA. 

Em resumo, imaginar que China e os EUA precisam do Brasil mais do que o Brasil precisa de ambos é de um primitivismo intelectual e estratégico incomensuráveis. Enfim, a tensão com China, EUA e europeus pode até servir circunstancialmente para galvanizar essa base de apoio bolsonarista, porém, cedo ou tarde, as consequências do isolamento internacional serão sentidas no bolso dos brasileiros. 

Como já se sabe, ativismo diplomático não é mesmo que política externa. Promover eventos com atores de baixa relevância internacional (enquanto deveria estar focado em construir uma estratégia de como lidar com chineses, europeus e americanos) apenas para demonstrar que o país não está se tornando um “rejeitado” serve exclusivamente para enganar os próprios promotores dessa diplomacia da pólvora. 

* HUSSEIN KALOUT, 44, é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018). Escreve semanalmente, às segundas-feiras. Esse artigo foi publicado originalmente em: https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,analise-a-diplomacia-da-polvora,70003536809.


terça-feira, 10 de novembro de 2020

Ascensão e queda do deus do bolsolavismo - Hussein Kalout (OESP)

 Ascensão e queda do deus do bolsolavismo

Derrota de Trump é oportunidade única de realizar ajuste de rumos em nossa inserção internacional

Hussein Kalout

O Estado de S.Paulo09/11/2020


Qual a melhor imagem para descrever o efeito da eleição de Biden, ou melhor, da derrota de Trump para o Brasil? Depende, claro, se analisamos da perspectiva do atual governo brasileiro ou dos interesses mais amplos do país. Do ponto de vista da “política externa” vigente, a casa caiu, ficamos sem chão.

O deus de Ernesto, ainda que não tenha morrido, saiu de cena. No entanto, se olhamos da ótica dos interesses brasileiros, trata-se de oportunidade única de realizar ajuste de rumos em nossa inserção internacional. Oportunidade que precisa ser aproveitada com urgência, sob pena de se agravar o isolamento ao qual a atual diplomacia destrambelhada nos relegou.

Sem Trump para emular e nos salvar do isolamento completo, deixam de ser ativos atuar como trumpista empedernido, escrever loas ao suposto salvador do Ocidente ou posar de defensor número 1 das políticas unilaterais daquele senhor em nome de afinidades ideológicas transcendentes. Melhor dizendo, esses ativos viram moeda podre no mercado político, sem conversibilidade.

Assim, o atual chanceler terá de se reinventar para provar capacidade de conduzir a diplomacia brasileira, estando doravante fora de sua zona de conforto – diminuta e apequenada, é verdade, mas com liberdade até agora para brincar de ajudante do salvador do Ocidente, para desespero dos adultos na sala.

Não mais. O tempo das brincadeiras com coisa séria vai ficar para trás. Na ausência do ativo antes valorizado - e hoje mais próximo das notas do Banco Imobiliário da Estrela -, será preciso que nossa diplomacia retome algo de suas características passadas, recuperando uma leitura racional do mundo, para projetar e defender os reais interesses do país, seja dos setores produtivos, seja da cidadania em seu conjunto.

Um país das dimensões do Brasil não pode se dar ao luxo de cavar a própria cova e ignorar a necessidade de criar um ambiente propício à cooperação com o novo governo americano, enquanto alguns de seus ministros desempenham o papel ridículo de seguidores da igreja que tem Trump como guia.

Desse modo, a vitória de Biden deveria (espera-se) puxar de volta nossa diplomacia da estratosfera lunática à terra firme, injetando-lhe dose cavalar de realidade. Quem sabe com o desaparecimento do deus pagão Trump, possamos substituir a adoração cega ao ídolo destronado pelo cálculo terreno de nossos objetivos na relação com os EUA e outros parceiros importantes.

Isso terá de passar pelo abandono da crença de que democratas são inimigos por serem “globalistas”. Em vez da reação epidérmica contrária a qualquer reparo ou crítica, mesmo se eventual manifestação sobre a Amazônia, será necessário calibrar o discurso, buscando encontrar um “modus vivendi” que preserve a capacidade brasileira de defender seus interesses, inclusive no que concerne à busca de investimentos e acesso a novas tecnologia e mercados.


Pois é disso que se trata, em particular na conjuntura. O Estado brasileiro não está nadando em dinheiro, nem as condições externas no momento pós-pandemia parecem brilhantes. Temos de proteger nossa população, garantindo-lhe segurança, oportunidades e renda. A política externa, e aí vale ressaltar o óbvio, deveria ser um instrumento para alcançar esses objetivos, por meio de uma inserção soberana na cena internacional.

Isto pressupõe racionalidade, pragmatismo e compromisso com as tradições diplomáticas que se provaram fundamentais para preservar nossos interesses no passado, como, por exemplo, não se meter em processos eleitorais de outros países nem importar artificialmente conflitos que não nos pertencem. Se até agora o alinhamento automático com Trump nos rendeu algumas migalhas, mais simbólicas do que reais, sua saída de cena retira a capacidade dos atuais condutores da “política externa” de vender a afinidade ideológica como um instrumento para mover a agenda e aprofundar a aliança com a principal potência mundial. Os resultados pífios agora se combinam com a ausência de referência espiritual de seus seguidores tupiniquins, criando a oportunidade para que algo da racionalidade perdida seja recobrada. E para que a diplomacia como método, que foi esquecida e desaprendida, volte a ser utilizada pelos profissionais do ramo.

Ainda que as condições internacionais demandem esse ajuste para preservar nossos interesses e manter o Brasil minimamente blindado de ameaças, riscos e prejuízos palpáveis, será também preciso pressão interna do nosso agronegócio, de nossa indústria e do Congresso. Sob pena de o ajuste ocorrer quando já for tarde demais e para evitar que o fundamentalismo trumpista tupiniquim sobreviva à retirada de cena de sua divindade, no que poderíamos antecipar como o pior de dois mundos.

De um lado, já não poderíamos recorrer à milagrosa divindade, doravante ausente. De outro, não seríamos capazes de obter ganhos e preservar nossos interesses em terra firme, visto que o sectarismo inconsequente e irresponsável manteria o país no mundo da lua, completamente alheado dos grandes processos decisórios internacionais, desarmado para realizar seus objetivos num mundo de acirrada competição.


*HUSSEIN KALOUT, 44, é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018). Escreve semanalmente, às segundas-feiras.


Esse artigo foi publicado originalmente em:

https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,analise-ascensao-e-queda-do-deus-do- bolsolavismo,70003506599

domingo, 27 de setembro de 2020

A palavra do Barão na ONU - Hussein Kalout (Época)

 A palavra do Barão na ONU

HUSSEIN KALOUT *

Revista Época, 27/09/2020


Olá, meu jovem! Tudo bem? Que bom revê-lo! E essa máscara é para quê? Há algum baile na capital? Ah, o quê??? Uma pandemia!!! A geração próxima à minha viveu com a tal “gripe espanhola”.

Diziam que era uma gripezinha. Milhares perderam as suas vidas e muitas famílias foram arrasadas, meu jovem. Vou improvisar o meu lenço aqui como máscara! Ah, não precisa? O presidente disse o quê??? Preciso me proteger, meu jovem, não posso dar ouvidos a isso. Com essa protuberante saliência que ostento, tu vês que não tenho histórico de atleta!

Por que estou aqui de volta? São as necessidades e as circunstâncias da política. Tive que retornar antes do esperado! Ao que parece, as coisas ainda não andam muito bem pelo meu Itamaraty, não é?! Da vez passada que por lá passei, fiquei estarrecido. Um misto de medo, inércia e bajulações tomou conta da Casa de Rio Branco. O clima era aterrorizante! Por favor, não me chame de “seu Barão”. O meu nome é José Maria da Silva Paranhos Júnior, como já sabes! Me chame apenas de Juca, é mais fácil!

Vamos que estou apressado, meu jovem. Tenho que adiantar o discurso para a abertura da 76°Assembleia Geral das Nações Unidas. Por que tão cedo? É ano que vem; eu sei! Não entremos nesses detalhes menores. É uma grande honra para o nosso país inaugurar o maior dos palcos da política internacional. Na minha época, ainda estávamos engatinhando no que depois se chamou de multilateralismo, mas essa ideia já estava em nosso DNA diplomático! Não posso desperdiçar essa oportunidade com palavras ao vento. O mundo prestará atenção em cada vocábulo e mensagem que ali irei apregoar. O Oswaldo Aranha está apreensivo. Parece que no ano passado o Brasil bagunçou o coreto. Botaram na mão do presidente um discurso aloprado. O que eu achei do discurso deste ano?

Fiquei sabendo pelo “sonequinha”, o Ramiro, ah não se lembra dele? O Saraiva Guerreiro, ora! Enfim, até o “Soneca” reclamou do teor e você sabe que nada tira a irritante calma do velho Ramiro do sério.

Me disse que foi uma... deixa para lá!

Vamos, vamos! Me ajude com a papelada. Preciso me antecipar antes que enviesem o humor do presidente com ideias que nada tem a nos agregar. Um país como o nosso, meu jovem, com recursos limitados de poder, a palavra é tudo!

Ah você quer que eu lhe antecipe quais são as ideias que pretendo aqui esmiuçar. Já saberás!

Vamos partir daquilo que é mais sagrado nos cânones de nossa diplomacia: independência! Ouviste falar de que? Homenagear o Senhor Trump? Ah, meu jovem, sequer passa pela minha cabeça a intenção do mandatário querer adular esse Senhor Trump. A bem da verdade, o Lincoln, o Abraham – ah não ouviu falar? – me alertou que esse Senhor está usurpando de seu legado. O Senhor Kennedy, homem de garbo, me confessou ao pé do ouvido que Trump pode levar o nosso irmão do Norte à

ruína com as tensões sociais e raciais. O Brasil que se cuide!

Foca aqui, meu jovem! Nessa alocução precisamos enfatizar com altivez que um país como o Brasil não abre mão de uma política externa independente. Aliás, um de meus sucessores, o Araújo Castro, me passou nessa pasta que em mãos seguras, uma seleção de discursos históricos de nossa diplomacia. Veja aí essa papelada! O que é isso? Ah, Araújo! Danado! Veja só, ele ajuntou aqui o meu discurso no Clube Naval proferido, em 1902, quando de minha assunção ao posto de Chanceler. Ora!

Que lisonjeiro! E essa parte sublinhada, em vermelho, meu jovem, o que diz? Estou sem as lunetas.

Leia, por favor, para mim: “Não venho servir a um partido político: venho servir ao nosso Brasil, que todos desejamos ver unido, íntegro, forte e respeitado.” Ah, meu jovem! Será difícil fazer o pessoal de hoje compreender o sentido dessas palavras. Que penúria!

O Silveirinha, aliás, insistiu tenazmente para não deixar de fora o conceito que ele bolou: “pragmatismo responsável e ecumênico”. Vaidoso, esse baixinho! Ele ouviu falar de um novo termo que estão a cunhar: a tal “cristofobia”. Nem sei o que é isso, meu jovem? Tu sabes? Ah, não! Seguimos, seguimos!

É preciso mencionar, nessa alocução, a vocação do nosso país de atuar em múltiplos tabuleiros estratégicos. Compreendeu, meu jovem?! Jamais devemos restringir a nossa capacidade decisória a um canto específico do mundo. E nunca, jamais, subordinar nossos interesses a potências externas. Que perguntas, meu Jovem? Mas, é claro que podemos ter parceiros estratégicos como os Estados Unidos, França, Argentina e China! O que não podemos fazer é escolher apenas um, em detrimento dos demais. Não é verdade?!

Aliás, meu jovem, preciso lhe fazer uma confissão. O mais importante dos conselhos que cultivei em minha memória foi o de Dom Pedro II. Antes de partir para o exílio disse-me, o Magnânimo, que o Brasil não poderia jamais rebaixar-se à rastejante posição de subserviência a país algum. Quem é o quê? Ah, o Magnânimo? Ora, era o apelido de Dom Pedro II, meu jovem! Hoje, existe quem? Ah, Mito! Dom Pedro II, nos deixou um país; uma nação. Espero que o legado do Senhor...como é, meu jovem? Ah, Mito! Então, espero que ele nos deixe um país respeitável!

Tu terás sabido, meu jovem, de minha inconfundível admiração pelo nosso irmão do Norte. Contudo, um país que é gigante pela própria natureza, e que é belo, forte, impávido colosso, e onde em seu futuro espelha a grandeza, não pode de jeito algum envergar a sua alma nacional em subordinação ao estrangeiro. Ah, deixe para lá; me passe a tinta, por favor. Vamos seguindo com o discurso!

Nessa parte, meu jovem, é preciso falar do equilíbrio em nossa região. A necessidade do Brasil ser o baluarte na construção de soluções negociadas e pacíficas para os seus vizinhos na América do Sul. O nosso peso é muito desproporcional em relação aos demais. Há um tempo, eu tive dois dedos de prosa com o grande Simon Bolívar. Ah, esse você ouviu falar! Que bom! O “Libertador” – como é conhecido – está estarrecido com o que fizeram com a sua biografia e em seu nome na Venezuela.

Aquilo virou uma nefanda ditadura! Que tragédia! Como é? O que temos que fazer? Guerra? Invasão?

Não...não...não, meu jovem! O uso da força não vai solucionar o problema lá. Veja o caso de Cuba. Resolveu?! Sobre a Venezuela, infelizmente, fomos condescendentes no passado e estamos errando grosseiramente a mão nos dias presentes. Perdemos as estribeiras! Renunciamos à nossa capacidade de contribuir para uma solução, abrindo espaço para que outros decidam por nós!

Duas premissas são cruciais para iniciar qualquer diálogo de paz, meu jovem. Não se pode chegar à casa de alguém violando a sua autodeterminação e ameaçando a sua soberania. A confiança no diálogo fica comprometida e as feridas podem não cicatrizar. Por isso, existe a diplomacia! Quem não é forte em sua vizinhança, meu jovem, não é forte em outros canteiros do mundo.

Me disseram que o pessoal responsável pelas relações internacionais do país colocou a América Latina à deriva. Fico aqui me recordando do discurso do presidente Monroe: “América para os americanos”.

É uma pena que tenham esquecido dessa parábola no episódio das Malvinas! Aliás, cabe aqui mencionar a máxima do Conselho do Império que definia a política brasileira para a sua circunvizinhança como: “uma diplomacia inteligente sem vaidade; franca sem indiscrição; e enérgica sem arrogância”. Essa tradição diplomática está sendo dilapidada, meu jovem!

Vamos agora para um ponto fundamental. A importância do meio ambiente e da Amazônia no discurso do país. Nunca e jamais podemos partir de uma posição defensiva! É preciso, meu jovem, articular uma posição propositiva, preservando a primazia sobre a narrativa. Entende? Alegar que o estrangeiro tem cobiça e que há grupos de interesses, enfim, isso é sabido desde que o mundo é mundo. Aliás, me surpreende como esse assunto é tratado. Botaram a culpa nos indígenas! Oh, céus!

O Marechal Rondon me disse em confidência: “Barão, eles não entenderam o valor estratégico da Amazônia”. O Senhor da “boiada” é uma lástima para o nosso país. Ah, quanto aos investimentos?

Esquece, meu jovem! As consequências serão graves!

Estamos finalizando! Não desanime! Falta pouco. Se não formos capazes de passar uma mensagem confiável e altiva para o mundo, ninguém irá nos respeitar. O Caxias está certo! Os verdeoliva não podem se deixar levar pelas tertúlias do poder. O seu papel é perene e não circunstancial.

Sei que tentaram ajudar dentro das possibilidades para atenuar sandices no discurso deste ano. A autonomia e a lucidez são variáveis inalienáveis para a boa formulação da política externa, meu jovem!

Espero que levem essas linhas em consideração. Ah, você não crê?! Tampouco creio eu! Contudo, não posso perder a esperança!


HUSSEIN KALOUT* –– É Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.