Brasil precisa de nova política externa para deixar de ser pária no mundo
Em 2023, relações internacionais deveriam priorizar os interesses reais do país, não buscar fantasmas para combater
Hussein Kalout
Folha de S. Paulo, 28.set.2022
O Brasil fechará o ano de 2022 no ponto mais baixo de credibilidade internacional que se tem notícia em nossa história recente. Um país que se isolou e optou por ser um pária, por obra e força de uma política externa destrutiva, guiada por visão conspiratória do mundo.
Uma política externa que está amparada em uma regressão executada desde 2019 em uma ampla gama de políticas públicas; regressão que se fez acompanhar do ataque sistemático do governo aos órgãos de Estado encarregados da execução dessas políticas.
A estratégia de terra arrasada foi implementada com graus variados de sucesso na área ambiental, na saúde, na economia, nos direitos das mulheres, no combate à discriminação racial, na gestão orçamentária, segurança, cultura, ciência, entre outras.
A política externa foi a cereja desse bolo podre, dando contribuição própria para que a perda de respeito internacional decorrente do descalabro interno ganhasse impulso adicional com decisões estapafúrdias implementadas pela chancelaria: do alinhamento rastejante a Donald Trump à antagonização gratuita com a China, de votos solitários e contrários à tradição brasileira na ONU ao abandono da integração regional, da priorização de países de importância relativa apenas por terem governos de extrema direita à ofensa infantil a parceiros fundamentais e grandes investidores no Brasil, como a França e a Alemanha.
Na América do Sul, a política externa bolsonarista cometeu o pecado capital de impulsionar a formação de coalizões antibrasileiras, transformando em inimigos do Brasil governos de países estratégicos, como Argentina, Bolívia ou Chile, simplesmente porque são governados por líderes de ideologia diversa. O pragmatismo morreu com o radicalismo dos incautos.
Impossível ser exaustivo nessa lista de despautérios no espaço de um artigo. Essa amostra serve, contudo, para ilustrar o argumento central: a necessidade de colocar em marcha, assim que possível, uma estratégia de retomada do lugar do Brasil no mundo.
Para isso, será necessário reconstruir a política externa, resgatando as linhas mestras que emanam da Constituição Federal e atualizando antigos paradigmas com vistas a responder a uma realidade internacional cada vez mais competitiva, complexa e desafiadora.
A reconstrução demanda uma política externa que não corra atrás de fantasmas a combater, mas seja pautada pelos interesses reais do país e por uma leitura objetiva da realidade regional e global. Mais do que prender-se a qualquer anacronismo de tempos que não voltam, o país precisa enfrentar as urgências do presente com um olhar posto na construção do futuro que almejamos.
Uma nova política exterior é necessária —realista, pragmática, integrada e coesa—, que não perca de vista o seu viés universalista e solidário.
A política externa de um país não se faz, obviamente, no vácuo ou desconsiderando as demandas mais urgentes da sociedade, especialmente na redução das violentas desigualdades. O Brasil precisa de uma política externa que efetivamente trabalhe para resolver problemas históricos e inaceitáveis do nosso povo, como a fome, o racismo e a desigualdade de gênero.
Precisamos de uma política externa que equilibre as demandas domésticas com as oportunidades internacionais. Não podemos nos ausentar das relações internacionais, lutar contra moinhos imaginados ou dar passos maiores que a perna. A política externa deve refletir um projeto nacional pautado a partir de uma análise dos interesses concretos em jogo na ordem internacional, em consonância com nossas mazelas domésticas.
Os exemplos do passado não devem ser desprezados, desde que não signifiquem uma camisa de força; precisam ser pensados como fonte de inspiração para inovar. Afinal, não se implementa uma estratégia eficaz de inserção internacional olhando apenas pelo retrovisor ou pensando em cenários futuros nunca alcançáveis ou irreais.
A atenção deve estar voltada prioritariamente para o que encontramos na nossa frente nessa longa estrada na busca do desenvolvimento e da influência internacional do país.
O Brasil de 2023 terá de encarar pelo menos cinco grandes urgências: a emergência climática, a ausência brasileira na sua própria região, tensões entre grandes potências com impacto sobre a economia e a paz mundiais, a necessidade de conferir eficácia ao multilateralismo diante de problemas globais e e a importância da aposta na África e na Ásia.
Cada um desses tópicos demandará muito diálogo entre governo e sociedade. As respostas podem variar, mas é fundamental formular as perguntas certas.
Partindo do pressuposto de que a política ambiental brasileira será reconstruída, é preciso perguntar como tirar vantagem do patrimônio representado pela Amazônia para gerar desenvolvimento sustentável, reclamando a nossa liderança natural na agenda da mudança do clima e da transição energética.
Na região, devemos indagar como promover arranjos de integração inclusivos, sem seletividade, para enfrentar desafios comuns (segurança, pandemias, desenvolvimento sustentável, integração física, resposta a catástrofes etc.), independentemente da cor ideológica dos governos envolvidos.
Como devemos nos posicionar diante das tensões entre EUA e China ou entre Otan e Rússia, de modo a preservar nossos interesses bilaterais sem renunciar a princípios caros à política externa brasileira?
Quais seriam as prioridades de reforma de organismos internacionais para fazer face não somente às ameaças à paz, mas também a problemas reais como pandemias, crise de refugiados, guerras comerciais, segurança cibernética, fome e insegurança alimentar?
Quais caminhos tomar e quais estratégias implementar para nos posicionarmos diante do deslocamento do centro de gravidade econômico para a Ásia e da emergência inelutável da África, regiões totalmente negligenciadas pela política externa nos últimos anos?
A resposta a essas perguntas não pode ignorar os ativos brasileiros, tanto seu patrimônio diplomático, que deve ser resgatado, quanto seus recursos humanos, econômicos e naturais, que conferem peso específico ao país na região e no mundo.
A consciência desses ativos poderá ajudar a definir áreas e nichos em que o país poderá ser mais relevante e influente, de modo a priorizar as ações que tendem a gerar mais ganhos e privilegiar iniciativas que visariam minimizar eventuais danos, em um contexto de competição geoeconômica e geopolítica acirrada.
Depois de tanto tempo como pária, será preciso recuperar a credibilidade sem se exceder, evitando qualquer exagero em relação às nossas capacidades, mas sem deixar de ousar, propor e inovar nas áreas e tabuleiros em que podemos ter mais sucesso.
Não há respostas fáceis e nem óbvias às questões aqui levantadas. O único ponto óbvio é que o mundo sente a falta do Brasil e irá celebrar nosso retorno. Virar a página da política externa destrutiva dos últimos anos é a condição indispensável da nossa volta ao mundo.
A reconstrução dessa presença, no entanto, demandará mais que repetir as fórmulas que podem não se adequar à realidade do presente: vai requerer enfrentar as urgências do momento com visão de futuro, exigindo, portanto, uma política externa que reflita não apenas o país que temos, mas também o país que queremos.
Todo brasileiro quer ver seu país ser respeitado nas relações internacionais. O respeito começa pela admiração. A política externa brasileira pode ser um importante instrumento para que povos do mundo inteiro voltem a admirar o Brasil.